SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 3
Baixar para ler offline
#publipost: Internet não é terra sem leis
para publicidade
Dagoberto L M M Chaves
Mar 3
© 2003–2018 Shutterstock, Inc
Nós, brasileiros, deveríamos ter no rol de heróis nacionais os nossos
publicitários. A título de ilustração, em 2018 nossos craques da
publicidade acumularam 101 premiações em Cannes, o que nos colocou
na terceira posição global num ranking relacionado a atividade de
essencial relevância para o giro econômico. Ficamos atrás apenas dos
EUA e Reino Unido e, convenhamos, não é sempre que conseguimos
essa façanha.
Quantificando o feito, estima-se que o investimento publicitário no Brasil em 2017
tenha sido de R$ 44,4 bilhões, segundo pesquisa do Interactive Advertising Bureau. A
mesma pesquisa revelou que, desse bolo, R$ 14,8 bilhões foram direcionados aos
meios digitais, um terço do total, representando crescimento de 25,4% em relação ao
ano anterior.
Por inúmeras vantagens, dentre as quais a maximização da mensagem pelo alcance
proporcionado, a otimização do investimento pela segmentação da audiência e
capacidade de medição de impacto propiciada pelas próprias plataformas de
disponibilização, a publicidade online há muito deixou de ser uma aposta para se tornar
item obrigatório no planejamento de mídia para alguns públicos, como crianças com
idade até 12 anos, que em 2017, conforme levantamento do ESPM Media Lab, foram
responsáveis por 52,5 bilhões de visualizações únicas de vídeos hospedados no
Youtube.
Essas ações de comunicação publicitária envolvendo o público infantil são
materializadas, em boa parte, por intermédio de influenciadores digitais numa
modalidade conhecida como publicidade indireta, onde se incluem o product placement
e o branded content. Registros históricos indicam que Alan Turing, considerado pai da
computação, tinha 7 anos de idade quando o mundo presenciou a primeira ação de
product placement: foi numa produção cinematográfica de 1919 chamada “The
Garage”.
Não houve registro de um unboxing, mas os protagonistas interagiam em meio a uma
série de referências a algumas marcas de óleos de motor e postos de combustíveis, que
permaneciam estáticas nas cenas como parte integrante de uma garagem, com total
coerência e naturalidade. Trazendo a questão para os dias atuais, poucas pessoas se
deram conta de que uma das fotos mais curtidas e compartilhadas da história, uma certa
selfie tirada pela Ellen DeGeneres durante a transmissão do Oscar de 2014, na verdade
era uma ação de merchandising contratada pelo fabricante do telefone celular, que
acabou viralizando.
Desde a primeira ação, há exatos 100 anos, aos dias de hoje, as ações de product
placement, em maior ou menor escala, têm em comum a sutileza que permeia a inserção
do produto divulgado numa dada situação, e a publicidade online não apenas não possui
o privilégio da invenção deste tipo de comunicação, mas deve observar as mesmas
regras criadas para a publicidade off-line.
Por exemplo, nosso Código de Defesa do Consumidor determina que a mensagem deve
ser clara o suficiente para que o consumidor identifique facilmente seu caráter
publicitário. De fevereiro a outubro de 2018 o CONAR (Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária) instaurou quarenta e seis processos éticos
relacionados à falta de clareza de cunho publicitário em peças de comunicação, grande
parte envolvendo influenciadores digitais. Para contornar essa questão, alguns
influenciadores têm adotado a hashtag “publipost” (#publipost) e algumas variações em
suas postagens comerciais.
No mesmo período, foram dezesseis processos éticos relacionados à publicidade voltada
para o público infanto-juvenil. Material publicitário voltado ao público infantil não é
considerado, por si só, ilegal. Ao se dialogar com o público infantil, contudo, é
fundamental que sejam observadas não apenas normas gerais que emolduram a
atividade de comunicação publicitária, mas também regras especiais decorrentes do
maior grau de proteção demandado pelo estágio ainda imaturo de desenvolvimento de
crianças e adolescentes. Há restrições na forma de sua veiculação e no seu conteúdo.
Não devem, dentre outros limites, dirigir mensagem imperativa de consumo diretamente
à criança, promover ou provocar discriminação. Há inclusive limitações à utilização de
elementos do universo infantil, podendo ser caracterizadas como abusivas, ou lesivas.
Adicionalmente, as mesmas vantagens propiciadas pelos meios digitais trazem
preocupações específicas, como a legislação aplicável ao tratamento dos dados obtidos
por meio de ferramentas de gestão disponíveis ao publisher que possibilitam a
segmentação do público-alvo das campanhas, acompanhamento do retorno e geração de
relatórios para fornecimento de informações de consumo de conteúdos e engajamento a
agências e anunciantes.
Deslizes são frequentes e a atuação do Ministério Público, do CONAR e entidades de
proteção à infância são onipresentes. Em dezembro do ano passado, o Ministério
Público de São Paulo ajuizou ação civil pública contra a Google na qual, dentre outros
pedidos, solicita a derrubada de uma série de vídeos disponíveis na plataforma Youtube
sob o argumento de violarem normas aplicáveis à publicidade direcionada ao público
infantil, bem como adoção de medidas de vigilância por parte da plataforma, de forma a
impedir seu uso para burlar tais normas, e de medidas que impeçam a monetização de
vídeos que violem direitos infanto-juvenis.
Algumas situações demandam, efetivamente, um olhar treinado para aferição de
cumprimento das normas aplicáveis. Nem sempre é simples identificar uma situação
onde a mensagem denote que o consumo trará superioridade, ou na sua falta,
inferioridade à criança. Afinal, já em um longínquo 1992, numa famosa campanha
televisiva que exaltava as qualidades de uma tesourinha estampada com dois
personagens infantis, se nossos publicitários defenderam a cantilena “eu tenho, você não
tem” como exaltação às crianças da década de 90, cujo comportamento teria sido ali
perfeitamente espelhado, o CONAR, por seu turno, a entendeu como instrumento apto a
estimular comportamentos antissociais.
Autores do texto:
* Dagoberto L. M. M. Chaves
dagoberto@cqs.adv.br
Advogado do escritório Cesnik, Quintino e Salinas, coautor do livro Regulação e Novas
Tecnologias. Professor convidado do CEPED da UERJ, atuante nas áreas de tecnologia,
televisão e mídias digitais desde 2001.
* Camila Madlum Nunes
camila.madlum@cqs.adv.br
Advogada do escritório Cesnik, Quintino e Salinas, atuante nas áreas de propriedade
intelectual, direito do entretenimento, televisão e mídias digitais desde 2015.

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Aula 23 4 rpan_2010_2
Aula 23 4 rpan_2010_2Aula 23 4 rpan_2010_2
Aula 23 4 rpan_2010_2Ney Queiroz
 
Mídia e novas mídias 1
Mídia e novas mídias 1 Mídia e novas mídias 1
Mídia e novas mídias 1 Ney Azevedo
 
E-Branding Mtv Brasil _ Trabalho da pós mkt. digital
E-Branding Mtv Brasil _ Trabalho da pós mkt. digitalE-Branding Mtv Brasil _ Trabalho da pós mkt. digital
E-Branding Mtv Brasil _ Trabalho da pós mkt. digitalCarlos Augusto Baggetti
 
Young lions 2015 - Marketer - Bruno Friães Marques
Young lions 2015 - Marketer - Bruno Friães MarquesYoung lions 2015 - Marketer - Bruno Friães Marques
Young lions 2015 - Marketer - Bruno Friães MarquesBruno Marques
 
CSI - Jan a Jun / 2014
CSI - Jan a Jun / 2014CSI - Jan a Jun / 2014
CSI - Jan a Jun / 2014Nino da Silva
 

Mais procurados (7)

Aula 23 4 rpan_2010_2
Aula 23 4 rpan_2010_2Aula 23 4 rpan_2010_2
Aula 23 4 rpan_2010_2
 
Ingresso
IngressoIngresso
Ingresso
 
Mídia e novas mídias 1
Mídia e novas mídias 1 Mídia e novas mídias 1
Mídia e novas mídias 1
 
E-Branding Mtv Brasil _ Trabalho da pós mkt. digital
E-Branding Mtv Brasil _ Trabalho da pós mkt. digitalE-Branding Mtv Brasil _ Trabalho da pós mkt. digital
E-Branding Mtv Brasil _ Trabalho da pós mkt. digital
 
Campanha - Programa Media smart
Campanha - Programa Media smartCampanha - Programa Media smart
Campanha - Programa Media smart
 
Young lions 2015 - Marketer - Bruno Friães Marques
Young lions 2015 - Marketer - Bruno Friães MarquesYoung lions 2015 - Marketer - Bruno Friães Marques
Young lions 2015 - Marketer - Bruno Friães Marques
 
CSI - Jan a Jun / 2014
CSI - Jan a Jun / 2014CSI - Jan a Jun / 2014
CSI - Jan a Jun / 2014
 

Semelhante a Internet não é terra sem leis para publicidade

AV3 - 5 sem - ROTEIRO DE ESTUDOS - 2014/2
AV3 - 5 sem - ROTEIRO DE ESTUDOS - 2014/2AV3 - 5 sem - ROTEIRO DE ESTUDOS - 2014/2
AV3 - 5 sem - ROTEIRO DE ESTUDOS - 2014/2Cíntia Dal Bello
 
GESTÃO DE MARKETING DE CONTEÚDO: As características dos fenômenos no marketin...
GESTÃO DE MARKETING DE CONTEÚDO: As características dos fenômenos no marketin...GESTÃO DE MARKETING DE CONTEÚDO: As características dos fenômenos no marketin...
GESTÃO DE MARKETING DE CONTEÚDO: As características dos fenômenos no marketin...ALEXANDRE BARBOSA
 
Curso de Redação para o Enem: Aula 4
Curso de Redação para o Enem: Aula 4Curso de Redação para o Enem: Aula 4
Curso de Redação para o Enem: Aula 4Aline Gomes
 
Young Lions - Case Toddy Cookie
Young Lions - Case Toddy CookieYoung Lions - Case Toddy Cookie
Young Lions - Case Toddy Cookiebrunasimoespi
 
Report — Publicidade Infantil: guia sobre a proibição e boas práticas
Report — Publicidade Infantil: guia sobre a proibição e boas práticasReport — Publicidade Infantil: guia sobre a proibição e boas práticas
Report — Publicidade Infantil: guia sobre a proibição e boas práticasAna Virtuozo
 
Veracidade nas Propagandas da Indústria de Cosméticos
Veracidade nas Propagandas da Indústria de CosméticosVeracidade nas Propagandas da Indústria de Cosméticos
Veracidade nas Propagandas da Indústria de CosméticosAlisson Santana da Conceição
 
Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1Ney Queiroz
 
Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1Ney Queiroz
 
Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1Ney Queiroz
 
Aula 01 7 Ppan 2010 1
Aula 01 7 Ppan 2010 1Aula 01 7 Ppan 2010 1
Aula 01 7 Ppan 2010 1Ney Queiroz
 
Cases empreendedores nas mídias sociais
Cases empreendedores nas mídias sociaisCases empreendedores nas mídias sociais
Cases empreendedores nas mídias sociaisRafael Galdino
 
TPP - Roteiro de Estudos AV3 - 2014/2
TPP - Roteiro de Estudos AV3 - 2014/2TPP - Roteiro de Estudos AV3 - 2014/2
TPP - Roteiro de Estudos AV3 - 2014/2Cíntia Dal Bello
 
11 Tendências E.Life para 2014
11 Tendências E.Life para 201411 Tendências E.Life para 2014
11 Tendências E.Life para 2014E.LIFE
 
11 tendencias de marketing digital para 2014
11 tendencias de marketing digital para 201411 tendencias de marketing digital para 2014
11 tendencias de marketing digital para 2014Israel Degasperi
 
As normas eticas e a acao do conar na publicidade de produtos e servicos dest...
As normas eticas e a acao do conar na publicidade de produtos e servicos dest...As normas eticas e a acao do conar na publicidade de produtos e servicos dest...
As normas eticas e a acao do conar na publicidade de produtos e servicos dest...Alex Anunciato
 
11 tendencias para 2014 em comunicação, relacionamento e marketing digital
11 tendencias para 2014 em comunicação, relacionamento e marketing digital11 tendencias para 2014 em comunicação, relacionamento e marketing digital
11 tendencias para 2014 em comunicação, relacionamento e marketing digitalElife Brasil
 

Semelhante a Internet não é terra sem leis para publicidade (20)

AV3 - 5 sem - ROTEIRO DE ESTUDOS - 2014/2
AV3 - 5 sem - ROTEIRO DE ESTUDOS - 2014/2AV3 - 5 sem - ROTEIRO DE ESTUDOS - 2014/2
AV3 - 5 sem - ROTEIRO DE ESTUDOS - 2014/2
 
Propaganda & Mídia Digital
Propaganda & Mídia DigitalPropaganda & Mídia Digital
Propaganda & Mídia Digital
 
GESTÃO DE MARKETING DE CONTEÚDO: As características dos fenômenos no marketin...
GESTÃO DE MARKETING DE CONTEÚDO: As características dos fenômenos no marketin...GESTÃO DE MARKETING DE CONTEÚDO: As características dos fenômenos no marketin...
GESTÃO DE MARKETING DE CONTEÚDO: As características dos fenômenos no marketin...
 
Curso de Redação para o Enem: Aula 4
Curso de Redação para o Enem: Aula 4Curso de Redação para o Enem: Aula 4
Curso de Redação para o Enem: Aula 4
 
Young Lions - Case Toddy Cookie
Young Lions - Case Toddy CookieYoung Lions - Case Toddy Cookie
Young Lions - Case Toddy Cookie
 
Report — Publicidade Infantil: guia sobre a proibição e boas práticas
Report — Publicidade Infantil: guia sobre a proibição e boas práticasReport — Publicidade Infantil: guia sobre a proibição e boas práticas
Report — Publicidade Infantil: guia sobre a proibição e boas práticas
 
Veracidade nas Propagandas da Indústria de Cosméticos
Veracidade nas Propagandas da Indústria de CosméticosVeracidade nas Propagandas da Indústria de Cosméticos
Veracidade nas Propagandas da Indústria de Cosméticos
 
Pós Tesarac
Pós TesaracPós Tesarac
Pós Tesarac
 
Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1
 
Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1
 
Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1Aula 07 8 coan_2010_1
Aula 07 8 coan_2010_1
 
Aula 01 7 Ppan 2010 1
Aula 01 7 Ppan 2010 1Aula 01 7 Ppan 2010 1
Aula 01 7 Ppan 2010 1
 
Mídias Globais 2016/1
Mídias Globais 2016/1Mídias Globais 2016/1
Mídias Globais 2016/1
 
Guia do movimento ESTA VAGA NÃO É SUA NEM POR UM MINUTO
Guia do movimento ESTA VAGA NÃO É SUA NEM POR UM MINUTOGuia do movimento ESTA VAGA NÃO É SUA NEM POR UM MINUTO
Guia do movimento ESTA VAGA NÃO É SUA NEM POR UM MINUTO
 
Cases empreendedores nas mídias sociais
Cases empreendedores nas mídias sociaisCases empreendedores nas mídias sociais
Cases empreendedores nas mídias sociais
 
TPP - Roteiro de Estudos AV3 - 2014/2
TPP - Roteiro de Estudos AV3 - 2014/2TPP - Roteiro de Estudos AV3 - 2014/2
TPP - Roteiro de Estudos AV3 - 2014/2
 
11 Tendências E.Life para 2014
11 Tendências E.Life para 201411 Tendências E.Life para 2014
11 Tendências E.Life para 2014
 
11 tendencias de marketing digital para 2014
11 tendencias de marketing digital para 201411 tendencias de marketing digital para 2014
11 tendencias de marketing digital para 2014
 
As normas eticas e a acao do conar na publicidade de produtos e servicos dest...
As normas eticas e a acao do conar na publicidade de produtos e servicos dest...As normas eticas e a acao do conar na publicidade de produtos e servicos dest...
As normas eticas e a acao do conar na publicidade de produtos e servicos dest...
 
11 tendencias para 2014 em comunicação, relacionamento e marketing digital
11 tendencias para 2014 em comunicação, relacionamento e marketing digital11 tendencias para 2014 em comunicação, relacionamento e marketing digital
11 tendencias para 2014 em comunicação, relacionamento e marketing digital
 

Internet não é terra sem leis para publicidade

  • 1. #publipost: Internet não é terra sem leis para publicidade Dagoberto L M M Chaves Mar 3 © 2003–2018 Shutterstock, Inc Nós, brasileiros, deveríamos ter no rol de heróis nacionais os nossos publicitários. A título de ilustração, em 2018 nossos craques da publicidade acumularam 101 premiações em Cannes, o que nos colocou na terceira posição global num ranking relacionado a atividade de essencial relevância para o giro econômico. Ficamos atrás apenas dos EUA e Reino Unido e, convenhamos, não é sempre que conseguimos essa façanha. Quantificando o feito, estima-se que o investimento publicitário no Brasil em 2017 tenha sido de R$ 44,4 bilhões, segundo pesquisa do Interactive Advertising Bureau. A mesma pesquisa revelou que, desse bolo, R$ 14,8 bilhões foram direcionados aos meios digitais, um terço do total, representando crescimento de 25,4% em relação ao ano anterior. Por inúmeras vantagens, dentre as quais a maximização da mensagem pelo alcance proporcionado, a otimização do investimento pela segmentação da audiência e capacidade de medição de impacto propiciada pelas próprias plataformas de
  • 2. disponibilização, a publicidade online há muito deixou de ser uma aposta para se tornar item obrigatório no planejamento de mídia para alguns públicos, como crianças com idade até 12 anos, que em 2017, conforme levantamento do ESPM Media Lab, foram responsáveis por 52,5 bilhões de visualizações únicas de vídeos hospedados no Youtube. Essas ações de comunicação publicitária envolvendo o público infantil são materializadas, em boa parte, por intermédio de influenciadores digitais numa modalidade conhecida como publicidade indireta, onde se incluem o product placement e o branded content. Registros históricos indicam que Alan Turing, considerado pai da computação, tinha 7 anos de idade quando o mundo presenciou a primeira ação de product placement: foi numa produção cinematográfica de 1919 chamada “The Garage”. Não houve registro de um unboxing, mas os protagonistas interagiam em meio a uma série de referências a algumas marcas de óleos de motor e postos de combustíveis, que permaneciam estáticas nas cenas como parte integrante de uma garagem, com total coerência e naturalidade. Trazendo a questão para os dias atuais, poucas pessoas se deram conta de que uma das fotos mais curtidas e compartilhadas da história, uma certa selfie tirada pela Ellen DeGeneres durante a transmissão do Oscar de 2014, na verdade era uma ação de merchandising contratada pelo fabricante do telefone celular, que acabou viralizando. Desde a primeira ação, há exatos 100 anos, aos dias de hoje, as ações de product placement, em maior ou menor escala, têm em comum a sutileza que permeia a inserção do produto divulgado numa dada situação, e a publicidade online não apenas não possui o privilégio da invenção deste tipo de comunicação, mas deve observar as mesmas regras criadas para a publicidade off-line. Por exemplo, nosso Código de Defesa do Consumidor determina que a mensagem deve ser clara o suficiente para que o consumidor identifique facilmente seu caráter publicitário. De fevereiro a outubro de 2018 o CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) instaurou quarenta e seis processos éticos relacionados à falta de clareza de cunho publicitário em peças de comunicação, grande parte envolvendo influenciadores digitais. Para contornar essa questão, alguns influenciadores têm adotado a hashtag “publipost” (#publipost) e algumas variações em suas postagens comerciais. No mesmo período, foram dezesseis processos éticos relacionados à publicidade voltada para o público infanto-juvenil. Material publicitário voltado ao público infantil não é considerado, por si só, ilegal. Ao se dialogar com o público infantil, contudo, é fundamental que sejam observadas não apenas normas gerais que emolduram a atividade de comunicação publicitária, mas também regras especiais decorrentes do maior grau de proteção demandado pelo estágio ainda imaturo de desenvolvimento de crianças e adolescentes. Há restrições na forma de sua veiculação e no seu conteúdo. Não devem, dentre outros limites, dirigir mensagem imperativa de consumo diretamente à criança, promover ou provocar discriminação. Há inclusive limitações à utilização de elementos do universo infantil, podendo ser caracterizadas como abusivas, ou lesivas. Adicionalmente, as mesmas vantagens propiciadas pelos meios digitais trazem preocupações específicas, como a legislação aplicável ao tratamento dos dados obtidos por meio de ferramentas de gestão disponíveis ao publisher que possibilitam a
  • 3. segmentação do público-alvo das campanhas, acompanhamento do retorno e geração de relatórios para fornecimento de informações de consumo de conteúdos e engajamento a agências e anunciantes. Deslizes são frequentes e a atuação do Ministério Público, do CONAR e entidades de proteção à infância são onipresentes. Em dezembro do ano passado, o Ministério Público de São Paulo ajuizou ação civil pública contra a Google na qual, dentre outros pedidos, solicita a derrubada de uma série de vídeos disponíveis na plataforma Youtube sob o argumento de violarem normas aplicáveis à publicidade direcionada ao público infantil, bem como adoção de medidas de vigilância por parte da plataforma, de forma a impedir seu uso para burlar tais normas, e de medidas que impeçam a monetização de vídeos que violem direitos infanto-juvenis. Algumas situações demandam, efetivamente, um olhar treinado para aferição de cumprimento das normas aplicáveis. Nem sempre é simples identificar uma situação onde a mensagem denote que o consumo trará superioridade, ou na sua falta, inferioridade à criança. Afinal, já em um longínquo 1992, numa famosa campanha televisiva que exaltava as qualidades de uma tesourinha estampada com dois personagens infantis, se nossos publicitários defenderam a cantilena “eu tenho, você não tem” como exaltação às crianças da década de 90, cujo comportamento teria sido ali perfeitamente espelhado, o CONAR, por seu turno, a entendeu como instrumento apto a estimular comportamentos antissociais. Autores do texto: * Dagoberto L. M. M. Chaves dagoberto@cqs.adv.br Advogado do escritório Cesnik, Quintino e Salinas, coautor do livro Regulação e Novas Tecnologias. Professor convidado do CEPED da UERJ, atuante nas áreas de tecnologia, televisão e mídias digitais desde 2001. * Camila Madlum Nunes camila.madlum@cqs.adv.br Advogada do escritório Cesnik, Quintino e Salinas, atuante nas áreas de propriedade intelectual, direito do entretenimento, televisão e mídias digitais desde 2015.