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Inês Dussel e Marcelo Caruso
§ Visao tradicional da pedagogia (p.15 e 16)
começamos a revisar tratados de pedagogia de outras épocas e
observamos que na maioria deles definiam-se a pedagogia, seus
tipos ou divisões, as ciências auxiliares e as áreas de aplicação.
Quase todos consideravam a pedagogia como um saber que ca
bia integralmente neste esquema: para alguns, tenderia mais para
uma ciência, e para outros, tenderia mais para uma arte. No
entanto, em todos os casos, constituía um corpo de conheci
mentos definidos, que bastava especificar e transmitir aos futu
ros professores para que estes os pusessem em prática.
Uma obra de Bernard Shavv, Pigmalião, expressa exata
mente esta visão da pedagogia. Em Pigmalião, Liza Doolittle, uma
humilde florista de rua, tem um encontro fortuito com dois aris
tocratas ingleses, Pickering e Higgins. Estes estudiosos da lin
guística decidem fazer uma experiência: reeducar a florista para
que fale e se comporte como uma dama da sociedade. A idéia é
que a educação, quando utiliza um bom método, consegue trans
formar as pessoas por completo, até apagar os vestígios de sua
origem social e cultural. Instalam Liza em sua casa e ministram-
lhe aulas diárias — teóricas e práticas. Os linguistas triunfam:
Liza transforma-se em uma dama, casa-se com um jovem de boa
família (embora sem posses) e mantém um relacionamento pla
tônico com seu mentor, Higgins. Final feliz para a pedagogia:
Liza ama seus professores e estes a amam, por ter-se transfor
mado exatamente no que desejavam.
Vejamos outro exemplo literário. Trata-se do conto in
fantil de Emma Wolf “Escola de Monstros”. A autora narra a
uma ciência, e para outros, tenderia mais para uma arte. No
entanto, em todos os casos, constituía um corpo de conheci
mentos definidos, que bastava especificar e transmitir aos futu
ros professores para que estes os pusessem em prática.
Uma obra de Bernard Shavv, Pigmalião, expressa exata
mente esta visão da pedagogia. Em Pigmalião, Liza Doolittle, uma
humilde florista de rua, tem um encontro fortuito com dois aris
tocratas ingleses, Pickering e Higgins. Estes estudiosos da lin
guística decidem fazer uma experiência: reeducar a florista para
que fale e se comporte como uma dama da sociedade. A idéia é
que a educação, quando utiliza um bom método, consegue trans
formar as pessoas por completo, até apagar os vestígios de sua
origem social e cultural. Instalam Liza em sua casa e ministram-
lhe aulas diárias — teóricas e práticas. Os linguistas triunfam:
Liza transforma-se em uma dama, casa-se com um jovem de boa
família (embora sem posses) e mantém um relacionamento pla
tônico com seu mentor, Higgins. Final feliz para a pedagogia:
Liza ama seus professores e estes a amam, por ter-se transfor
mado exatamente no que desejavam.
Vejamos outro exemplo literário. Trata-se do conto in
fantil de Emma Wolf “Escola de Monstros”. A autora narra a
15 :
A In ven ção da Sal a oe A ul a
vida em uma escola onde Frankensiein e Drácula, entre outros
alunos, aprendem a comportar-se como monstros. Em certa oca
sião, um deles, querendo cumprir uma ordem ao pé da letra,
destrói as paredes da escola. Transformou-se em monstro. Final
íeliz para a pedagogia? Você dirá.
Com um pouco de desconfiança, pode-se também per
guntar se não há algo de monstruoso na Liza de Bernard Shaw, se
ela também não aprendeu a ser um monstro, colocando-se no
lugar que seu professor determinou e cumprindo suas ordens ao
pé da letra. Espantamo-nos diante da menção da clonagem da
ovelha Dolly, mas não nos assusta da mesma maneira essa idéia da
pedagogia que quer replicar indivíduos, moldá-los e formá-los à
medida que pretende dominá-los e conhecê-los por completo.
Certamente, a vontade de tê-los sob controle está asso
ciada ao temor provocado pela situação de ensinar. Como en
frentar um grupo de crianças, cada uma com sua própria histó
ria, com desejos diferentes em uma sala de aula? Seremos capazes
de transmitir-lhes alguma coisa, de conseguir que aprendam al
guma coisa? E se falharmos? E se utilizarem nossos ensinamen
tos de maneira diversa daquela que pretendíamos? E se nem
sequer nos escutarem? Esses temores são reais e concretos; en
gogia é um saber que ajuda os docentes a serem “bons” professo
res, é conveniente começar por estabelecer como se define um
“bom professor”, quem o define, como trabalha, antes de pensar
mos em regras, divisões e formas de transmitir esse saber.
Para nós, não há melhor maneira de abordar estas ques
tões senão através de uma visão histórica. Partimos do princípio
de que as definições de um bom professor, do conteúdo dos
ensinamentos, de métodos e didáticas são saberes históricos, pro
duzidos por indivíduos sociais, por pensadores, grupos, insti
tuições que atuaram e pensaram em outros contextos — alguns
muito semelhantes aos nossos, outros muito diferentes. Inclusi
ve a idéia de que é preciso levar em conta a psicologia infantil e
as categorias e conceitos utilizados para falar sobre a aprendiza
gem da criança, que parece “natural" e “necessária”, é no entanto
um produto histórico: como será visto nos capítulos a seguir, há
quatro séculos, ou mesmo dois, não se falava nesses termos.
Percorrendo a história da sala de aula e das formas de
ensinar, procuramos esclarecer o fato de que muitas técnicas e
palavras que utilizamos para nos referir ao que acontece na
sala de aula têm um passado, surgiram em situações concretas
as categorias e conceitos utilizados para falar sobre a aprendiza
gem da criança, que parece “natural" e “necessária”, é no entanto
um produto histórico: como será visto nos capítulos a seguir, há
quatro séculos, ou mesmo dois, não se falava nesses termos.
Percorrendo a história da sala de aula e das formas de
ensinar, procuramos esclarecer o fato de que muitas técnicas e
palavras que utilizamos para nos referir ao que acontece na
sala de aula têm um passado, surgiram em situações concretas
como respostas a desafios ou problemas específicos, e que pro
vavelmente, quando as utilizamos hoje em dia, ainda trazem
parte desses significados. Compreender de onde surgem, de
quais estratégias e problemas fazem parte, como foram ou são
utilizadas, e que efeitos causaram pode ajudar-nos a aliviar essa
carga e a assumir nossa tarefa como uma reinvenção própria
das tradições que recebemos. Embora não voltemos a inventar
a pólvora, também não seremos clones de outros e nem clona-
remos nossos alunos. Pois, em última instância, transmitir é
A In ven ção da Sal a de Aul a
também abrir espaço para que o outro utilize de maneira dife
rente nosso saber e nosso desejo de educá-lo — para que seja
outro, e não o mesmo indivíduo. Como disse um psicanalista,
o que é fascinante “na própria aventura da transmissão é preci
samente o fato de sermos diferentes daqueles que nos precede
ram, e que provavelmente nossos descendentes seguirão um
caminho bastante diferente do nosso. (...) E, no entanto, (...) é
aí, nessa série de diferenças, que inscrevemos aquilo que trans
ram, e que provavelmente nossos descendentes seguirão um
caminho bastante diferente do nosso. (...) E, no entanto, (...) é
aí, nessa série de diferenças, que inscrevemos aquilo que trans
mitiremos” (Hassoun, 1996, p. 17).
Gostaríamos que este livro ajudasse a entender de onde
vem o hábito dos alunos de levantar a mão, formar fila ou utili
zar cadernos, para poder avaliar se isto é realmente o que quere
mos lhes ensinar, e assumirmos essa decisão e essa responsabili
dade. Um dos ensinamentos que gostaríamos de transmitir, à
maneira de Hassoun, é que no ensino não há lugar neutro nem
indiferente: todas as estratégias e opções que utilizamos em nos
sa tarefa cotidiana têm histórias e significados que nos superam
e produzem efeitos sobre os alunos — não só em termos de
aprender ou deixar de aprender determinado conteúdo, mas tam
bém de sua relação com a autoridade, com o saber letrado em
geral e com os demais. Alguns professores, temerosos desta res
ponsabilidade, acreditam que o melhor seja renunciar a trans
mitir algo, laissez-Jaire (deixar fazer), não intervir, como se com
este gesto pudessem desfazer-se do poder inerente à posição
docente. Como argumentaremos adiante (Caruso e Dussel, 1996,
que cria a criança”— do pedante — “mestre que ensina as crian
ças”1(Covarrubias Orozco, 1611). Desse modo, o pedagogo era
entendido como um educador no sentido mais amplo do termo:
não era somente um professor de escola, mas também podia ter a
seu cargo funções que hoje chamaríamos de a criação das crianças.
A palavra pedagogia compartilha sua raiz — ped: pé,
aquele que anda a pé — com a palavra pedante, que é aquele que
“se diz sábio”, aquele que pretende ser erudito. Isto revela prin
cipalmente o pouco prestígio que as pessoas letradas tinham na
época. Esta ambiguidade fica bem definida na seguinte frase,
“um bom professor galés, um bom estudioso, porém muito pe
dagógico (extraído do Oxford English Dictionaiy de 1888). Ser
“pedagógico”não era, então, sinônimo de uma qualidade positi
va, e sim o contrário.
O Diccionaiio de Autoridades de 1737 define pedagogo
como “qualquer um que ande sempre com outro, e o leva aonde
desejar ou lhe diz o que deve fazer”. Neste caso, aparecem tanto o
significado de “pé” como o de conduzir ou guiar como ação pró
pria. Entretanto, já em 1788, o significado que conhecemos hoje
aparece com mais intensidade. A pedagogia aproxima-se daquilo1
1. N.T. Uma definição antigo da polavro pedante, hoje em desuso, significa “mestre que
ensino gramático às crianças indo de cosa em cosa"
.
NTRODUÇAO
Iniciaremos pela palavra que nos convoca, a você e a
nós, a nos encontrarmos neste livro. Apalavra pedagogia teve signi
ficados muito diferentes através dos tempos. Levando-se em con
sideração apenas os significados produzidos desde 1500 até os
nossos dias, ou seja, na idade moderna — cujas características ana
lisaremos no primeiro capítulo — pode-se dizer que as primeiras
definições diferenciavam o pedagogo — entendido como o “aio
que cria a criança”— do pedante — “mestre que ensina as crian
ças”1(Covarrubias Orozco, 1611). Desse modo, o pedagogo era
entendido como um educador no sentido mais amplo do termo:
não era somente um professor de escola, mas também podia ter a
seu cargo funções que hoje chamaríamos de a criação das crianças.
A palavra pedagogia compartilha sua raiz — ped: pé,
aquele que anda a pé — com a palavra pedante, que é aquele que
“se diz sábio”, aquele que pretende ser erudito. Isto revela prin
cipalmente o pouco prestígio que as pessoas letradas tinham na
época. Esta ambiguidade fica bem definida na seguinte frase,
“um bom professor galés, um bom estudioso, porém muito pe
que denominamos “mestre” e deixa de ser a ação de guia geral
(Terreros e Pando, 1788, p.73). Surge no século 19 a definição de
pedagogia como “a arte e a ciência de ensinar e educar as crian
ças”. Esta descrição, que hoje nos parece natural, é, na realidade,
uma invenção recente, dos últimos séculos (Rizzi Salvatori, 1996).
Analisemos mais detalhadamente a definição moderna
de pedagogia. A pedagogia é uma ciência e uma arte; está asso
ciada ao “ensinar” e ao “educar”. A pedagogia ocupa-se das “cri
anças”. Neste caso, pode-se acrescentar que algumas versões con
temporâneas sustentam que a pedagogia não se ocupa unicamente
das crianças, mas que há também uma pedagogia dos adoles
das crianças, mas que há também uma pedagogia dos adoles
centes e uma pedagogia dos adultos. Para analisar os compo
nentes desta definição, à qual voltaremos diversas vezes no de
correr do livro, começaremos pelo último ponto:1
1. De acordo com o pedagogo Mariano Narodowski, a
pedagogia moderna nasce com o conceito de que a criança deve
ser educada. Se durante muito tempo as crianças corriam pelo po
voado, aprendiam espontaneamente e se vinculavam a muitos adul
tos, em determinado momento (que o historiador Philippe Ariès
situou no final da Idade Média) surgiu uma nova “sensibilidade”
com relação à criança, uma nova forma de cuidar dela. Narodowski
argumenta que a criança será “infantilizada”: inicia-se uma tendên
cia segundo a qual a criança precisa de maiores cuidados, que é
preciso colocá-la em uma instituição, que necessita de regras mais
rígidas. Esta postura constante de cuidados com a criança, e sua
vigilância intensiva, permite a formação e a estruturação de um
saber que justifica as razões para essas ações, suas finalidades e
seus métodos: a pedagogia. Surge a disciplina universitária, e sur
gem os catedráticos, que afirmam que a ciência orienta aqueles
neles como sujeitos do saber, mas também de submetê-los a outro
tipo de vigilância, com a idéia de que devem ser cuidados com
maior esmero e assiduidade. A modernidade talvez seja a época
em que diversos setores da sociedade vão-se “pedagogizando”: é
preciso cuidar dessas pessoas, dizer-lhes o que devem fazer, colo
cá-las em instituições educativas, se possível — lembre-se de que
até hoje se diz que é melhor a criança estar na escola do que brin
cando na rua — e dar-lhes regras mais precisas (Narodowski, 1995).
2. A pedagogia encarrega-se do “ensinar” e do educar.
Pode-se dizer que não se ocupa somente das “situações de ensino”
— como, por exemplo, o ensino da estaitura e das funções do
aparelho digestivo — , mas também da educação, que é muito mais
abrangente. As crianças são educadas desde seu primeiro dia de
vida: tenta-se, por imposição, que obedeçam a um ritmo, que dur
mam à noite, que comam com certa periodicidade. Logo vêm as
proibições diante de situações perigosas, virá o controle das “neces
sidades”, devem também se acostumar a comer outros alimentos
em determinadas horas do dia. A “educação” inclui preceitos com
relação aos palavrões, à sexualidade, à ideologia, à maneira de viver,
à compreensão e à crítica aos meios de comunicação, entre muitas
outras coisas. Diz-se, inclusive, que a educação não termina nunca,
uma vez que uma pessoa jamais estará completamente educada.
Desse modo, ainda que a pedagogia esteja diretamente relacionada
com a escola, parece que também a excede, e muito.
3. Por último, diz-se que a pedagogia é tanto uma
outras coisas. Diz-se, inclusive, que a educação não termina nunca,
uma vez que uma pessoa jamais estará completamente educada.
Desse modo, ainda que a pedagogia esteja diretamente relacionada
com a escola, parece que também a excede, e muito.
3. Por último, diz-se que a pedagogia é tanto uma
“ciência” como uma “arte”. Por um lado, pretende esse presti-
21
A In ven ção da Sal a üe Aul a
gioso rótulo cle “científica”, uma forma de conhecimento que
pode ser comprovada, com regras, métodos de avaliação e pa
drões compartilhados. Sabemos que em nossas sociedades os
“cientistas”constituem uma profissão de grande prestígio, ainda
que nem sempre recebam retribuições de acordo com esse pres
tígio e muitos não entendam o conteúdo do trabalho científico.
Portanto, a pedagogia quer ser tratada como ciência. Por outro
lado, porém, a pedagogia é uma arte. Vejamos: um professor
pode ser muito versado em diversas disciplinas, conhecer o con
teúdo a ensinar, conhecer as diversas dificuldades de aprendiza
gem, dispor de uma longa lista de métodos de ensino e de bons
instrumentos de diagnóstico e de avaliação. Entretanto, a ma
neira, o momento e a forma como utiliza seus conhecimentos —
essas decisões da prática de ensino — são por si mesmas uma
gioso rótulo cle “científica”, uma forma de conhecimento que
pode ser comprovada, com regras, métodos de avaliação e pa
drões compartilhados. Sabemos que em nossas sociedades os
“cientistas”constituem uma profissão de grande prestígio, ainda
que nem sempre recebam retribuições de acordo com esse pres
tígio e muitos não entendam o conteúdo do trabalho científico.
Portanto, a pedagogia quer ser tratada como ciência. Por outro
lado, porém, a pedagogia é uma arte. Vejamos: um professor
pode ser muito versado em diversas disciplinas, conhecer o con
teúdo a ensinar, conhecer as diversas dificuldades de aprendiza
gem, dispor de uma longa lista de métodos de ensino e de bons
instrumentos de diagnóstico e de avaliação. Entretanto, a ma
neira, o momento e a forma como utiliza seus conhecimentos —
essas decisões da prática de ensino — são por si mesmas uma
“arte”, se entendermos por arte uma estruturação pessoal, uma
sintonia específica com a situação daquele momento. Mesmo
que se possa aprender as regras do ensino, estas se modificam
em cada situação e dependem do julgamento daquele que as
utiliza e da situação em que são utilizadas. A pedagogia, então,
prolonga-se cada vez mais no tempo: o que se iniciou com a criança
chegou aos adultos e desenvolve-se até a terceira idade. A pedagogia
tão concentradas, e com razão, na escola.
A pedagogia ajudou a estruturar, a dar forma e corpo
às escolas como as conhecemos. Formulou programas, idéias,
diretrizes que foram adaptados em maior ou menor grau, com
melhores ou piores resultados. Dessa forma, queremos expor a
pedagogia em ação, em funcionamento. Queremos associá-la a
uma série de materiais que mostrem como os pedagogos pensa
ram as salas de aula em sua época, o que propuseram e como
estas propostas se relacionavam com realidades muito diferen
tes. Queremos mostrar que o conhecimento pode ajudar-nos no
desafio que compartilhamos com vocês de enfrentar um grupo e
fazê-lo de maneira responsável.
Para darmos as boas-vindas à reflexão pedagógica, fo
calizaremos neste livro um exemplo de como o conhecimento
pedagógico — essa ciência, essa arte — desempenhou um papel
importante no momento de armar e dar um contorno a um de
nossos mais antigos conhecidos: a sala de aula da escola elemen
tar. Neste trajeto da história da sala de aula, talvez fique mais
claro por que a pedagogia podia ser entendida tanto como mé
todo, aio ou acompanhante. Queremos mostrar como a pedago
gia tentou dar forma à sala de aula, à disposição do espaço, a
seus rituais, costumes, modos de interação e de comunicação.
Talvez isso nos ajude a lidar com nossos temores e a nos apro
priarmos com decisão desse espaço de ação.
Para tanto, desenvolveremos a idéia de que a sala de
diretrizes que foram adaptados em maior ou menor grau, com
melhores ou piores resultados. Dessa forma, queremos expor a
pedagogia em ação, em funcionamento. Queremos associá-la a
uma série de materiais que mostrem como os pedagogos pensa
ram as salas de aula em sua época, o que propuseram e como
estas propostas se relacionavam com realidades muito diferen
tes. Queremos mostrar que o conhecimento pode ajudar-nos no
desafio que compartilhamos com vocês de enfrentar um grupo e
fazê-lo de maneira responsável.
Para darmos as boas-vindas à reflexão pedagógica, fo
calizaremos neste livro um exemplo de como o conhecimento
pedagógico — essa ciência, essa arte — desempenhou um papel
importante no momento de armar e dar um contorno a um de
nossos mais antigos conhecidos: a sala de aula da escola elemen
tar. Neste trajeto da história da sala de aula, talvez fique mais
claro por que a pedagogia podia ser entendida tanto como mé
todo, aio ou acompanhante. Queremos mostrar como a pedago
gia tentou dar forma à sala de aula, à disposição do espaço, a
seus rituais, costumes, modos de interação e de comunicação.
Talvez isso nos ajude a lidar com nossos temores e a nos apro
priarmos com decisão desse espaço de ação.
Para tanto, desenvolveremos a idéia de que a sala de
aula elementar é uma invenção do ocidente cristão, a partir de
1500, e que nesse processo a pedagogia utilizou-se de muitas ar
gumentações diferentes para dar corpo e forma a este espaço. Isto
não significa que não existissem experiências pedagógicas antes
Provavelmente de
Laurentius de
Voltolina
Uma aula de Henricus
de Alemannia, de
1233
seus rituais, costumes, modos de interação e de comunicação.
Talvez isso nos ajude a lidar com nossos temores e a nos apro
priarmos com decisão desse espaço de ação.
Para tanto, desenvolveremos a idéia de que a sala de
aula elementar é uma invenção do ocidente cristão, a partir de
1500, e que nesse processo a pedagogia utilizou-se de muitas ar
gumentações diferentes para dar corpo e forma a este espaço. Isto
não significa que não existissem experiências pedagógicas antes
24
In t r o d u ção
desse período; pelo contrário, os gregos, os romanos, os primei
ros cristãos, os povos indígenas, todos idealizaram maneiras de
transmitir conhecimentos e tiveram formas de ensino mais ou
menos institucionalizadas. Conservamos muitas delas: os amau-
tas incas, os sofistas gregos, a figura socrática da interrogação mai-
êutica deixaram marcas no imaginário sobre o que é ser um bom
professor e sobre como se faz para ensinar. Entretanto, suas preo
cupações e seus mundos eram mais distintos dos nossos do que
os cie 1500. Seus espaços educativos eram povoados por outras
inquietações e temores. Certamente, nas práticas que surgiram
por volta de 1500, havia muita influência das pedagogias anterio
res, que eram, afinal, o conhecimento disponível para homens e
mulheres daquela época, e nosso estudo ganharia em profundida
de caso fizesse todas as conexões possíveis tanto com o passado
como com o futuro. O argumento pocleria retroceder ainda mais,
em uma cadeia infinita. Dizem os que sabem escrever que em
algum lugar deve-se colocar o ponto final, dizer “cheguei até aqui”,
e é até aqui que chegaremos. Restringimos nosso trabalho à mo
último, propusemos algumas perguntas sobre o futuro da sala de
aula com relação à sua história.
Como professores e alunos, estivemos, estamos e esta
remos na sala de aula por muito tempo. Entretanto, na agitação
da rotina de aprender e de ensinar, nem sempre paramos para
pensar qual é realmente esta situação, tão importante para nos
definirmos como docentes e pedagogos. O fato de ocuparmos
uma sala de aula não significa automaticamente que a “habita
mos”. Quando alguém apenas “ocupa” um espaço, trata-se de
uma estrutura já existente: móveis, rotinas, tudo está lá e nos
espera. O docente mais experiente nos diz o que considera fun
damental para ser um bom professor. Se permanecermos com
estas orientações, com a tradição que nos transmite a experiên
cia dos outros (por mais valiosa que possa ser), estaremos “ocu
pando” a sala de aula de uma maneira passiva, na qual simples
mente nos acostumamos a coisas já existentes. “Habitar” a sala
de aula significa formar esse espaço de acordo com gostos, op
ções, margens de manobra; considerar alternativas, eleger algu
mas e descartar outras. Habitar um espaço é, portanto, uma po
sição ativa. Assim, este convite não se esgota no tema da sala de
aula, mas tenta ser uma convocação para ativar nossas forças no
sentido de “habitar” o lugar que apenas “ocupamos”.
Agrada-nos esta citação do poeta Oliverio Girondo: “A
rotina tece diariamente uma teia de aranha em nossas pupilas.
Pouco a pouco, nos aprisionam a sintaxe, o dicionário, e ainda
Fig. I. Gravura de 1592, provavelmente de uma escola de latim,
instrumental pedagógico) como na estrutura de comunicação
(quem fala, onde se situa, o fluxo de comunicações).
De acordo com dados fornecidos pelo pesquisador Da-
vid Hamilton, o termo “sala de aula para lições” começou a ser
utilizado na língua inglesa no final do século 18 (Hamilton, 1989).
Em castelhano, por sua vez, o uso de “sala de aula” e de “lições”
era comum ao ensino universitário na Idade Média, conservan
do seu significado latino de “local onde o professor ou catedráti-
co ensina aos estudantes a ciência e a disciplina que professa”
(Diccionano de Autoridades, 1726). Entretanto, não era comum
seu uso para referir-se ao recinto no qual teria lugar o ensino ele
mentar, o qual, até aquele momento, era ministrado na casa do
próprio professor ou em salas disponibilizadas pelo município ou
pela igreja, denominadas scholas (em latim). A diferenciação dos
alunos por idade era ainda incipiente (o que investigaremos mais
adiante neste capítulo), e, na maioria das vezes, todas as crianças
recebiam os ensinamentos juntas, sob a tutela de um professor
que sabia apenas ler e escrever, e que lhes ensinava os rudimentos
das primeiras letras, de cálculo e de catecismo. Entretanto, a difu
2. Um bom exemplo desta disjunção que se produzirio em um suposto encontro com nossos
ontepossodos é o filmeNovigotor (Vincent UUord. fíustrólio, 1989), que conto o história de
um grupo de camponeses afetadospelo peste bubônico por volto do ono 1350, que por
ocoso 'surgem'’ em pleno século 20.
Sal a üe a u l a ? Gen eal o g ia 5 Def in iç õ es par a In iciar o Per cur so
são do termo “sala de aula”em relação à escolaridade elementar surgiu
somente com a vitória dos métodos pedagógicos que propunham uma
organização do ensino por grupos escolares diferenciados entre si, às
vezes por idade e outras por seus resultados de aprendizagem.
Neste capítulo, propomos um exame dessa história do
surgimento e da consolidação da sala de aula como espaço edu
capítulo é um pouco diferente. Para nós, de acordo com alguns
filósofos e historiadores deste século, a genealogia é uma forma
de olhar e de escrever a história que difere da história tradicio
nal, porque é definida como história com perspectiva, crítica, inte
ressada. A genealogia parte de um problema ou conceito atual e
33
A In ven ção da Sal a de Aul a
elabora um “mapa” — não dos antepassados, mas sim das lutas
e dos conflitos que configuraram o problema tal como o conhe
cemos hoje. Os materiais históricos (fontes, escritos de época,
análises históricas) não são revisados com um interesse mera
mente erudito (“para aprender mais”), e sim com o objetivo de
compreender como se criaram as condições que configuram o
presente. É um olhar que adota o ponto de vista daqueles que sofrem
os efeitos de poderes e saberes específicos (Varela, 1997, pp.36 e 61).
Esta posição é claramente contrária à da história tradicio
nal, que pressupõe que o conhecimento é neutro e objetivo, e que o
historiador pode situar-se acima de seu tempo e de sua sociedade, e
pode conhecer “o que verdadeiramente se passou”na Revolução de
Maio ou em qualquer outro evento histórico, independentemente de
seus valores e posições, ou dos conceitos e categorias que sua época
lhe provê para analisar a história. Agenealogia, pelo contrário, assume
uma visão perspectiva e não tenta enganar ninguém com relação à sua
neutralidade. O filósofo e historiador Michel Foucault3afirma que “as
forças presentes na história não obedecem nem a um destino nem a
3. Michel Foucoult (1926-1984) foi um filósofo, historiador e critico social, cujos trabalhos, que
nãopodem ser facilmente enquodrodos em uma matéria determinado, se encontrom entre os
moisinfluentesnasciênciasscaois e humonosda últimametodedo século. Cmboro seja difícil
sistematizor em poucos palavras os linhos principais de suo obro. pode-se dizer que seus
moiores interesses foram: I) o formação e a transformação do sober e dos conhecimentos e
suo reloção com o poder e com o construção do verdade; 2) ossistemasde poder"
invisíveis",
paém centroisnossociedadesmodernas3) a construção dosdiferentestiposde subjetivida­
las, ou para decidir qual nos parece mais “
justa" ou “verdadeira”;
apenas nos lembra que esta hierarquização ou decisão é um ato
próprio (político, diria Foucault), porque implica tomar posição
diante de uma realidade conflituosa e dinâmica. Não renuncia a
“conhecer a verdade”, e para isso utiliza todas as ferramentas dos
historiadores — essa erudição minuciosa, paciente e cansativa de
consultar arquivos e ler documentos. Sustenta, porém, que o que
é “justo” e “verdadeiro” também deve ser questionado, pois essas
definições são produto de lutas e conflitos específicos.
A SALA DE AULA COMO MATERIALIDADE
E COMO COMUNICAÇÃO
Saber por que a sala de aula que conhecemos é como é
ajuda-nos a ver quais decisões foram tomadas no passado e que
processos ocorreram para chegarmos a esta determinada confi
guração. Nosso argumento central é que a sala de aula onde as lições
são ministradas é uma construção histórica, produto de um desenvol
vimento que incluiu outras alternativas e possibilidades. Uma vez
que a sala de aula é o recinto principal de nossa atividade docen
te, questionar o óbvio, ver por que esta opção triunfou e quais
opções foram excluídas pode contribuir também para pensar
mos outros caminhos para nossas práticas.
Para abordar nossa genealogia, queremos discutir pri
meiro o que é a sala de aula. Ela tem, certamente, muitos ele
mentos. Não apenas os docentes e os alunos, mas também mo
biliário, instrumentos didáticos, as questões da arquitetura
escolar, tudo faz parte da sala de aula. Os bancos escolares, as
lousas e os cadernos têm uma história e uma especificidade pouco
r ~ 3 6
docente ensina em uma escola regida por leis, opiniões, planos
de estudo e outras coisas; entretanto, ele tem o poder de definir
as pautas dessa relação, de torná-la mais igualitária, mais varia
da, ou mais uniforme e hierárquica. Uma vez que a situação de
ensino implica uma complexa situação de poder, consideramos que o
ensino, como “condução”da sala de aula, pode ser analisado em rela
ção ã condução das sociedades e dos grandes grupos.
Assim sendo, a sala de aula pode ser analisada como
uma situação de governo. São estas conexões entre sala de aula e
governo que orientarão nossa genealogia. É esta a perspectiva que
elegemos: a história dasformas de comunicação egoverno da sala de
aula moderna como parte de uma história mais ampla, a história doS
.
S. Os contribuições de Hamilton ( I 989). Cutler (1989) e Johnson ( 1994) sõo trabalhospio­
neiros neste sentido. No âmbito do nosso trabalho, o história do caderno de lições e sua
difusão na Rrgentino foi trabalhada por Silvina Gwtz (1997).
37
tem mais poder do que as crianças para definir o que transmitir
a elas. É claro que esse poder não é absoluto, uma vez que o
docente ensina em uma escola regida por leis, opiniões, planos
de estudo e outras coisas; entretanto, ele tem o poder de definir
as pautas dessa relação, de torná-la mais igualitária, mais varia
da, ou mais uniforme e hierárquica. Uma vez que a situação de
ensino implica uma complexa situação de poder, consideramos que o
ensino, como “condução”da sala de aula, pode ser analisado em rela
ção ã condução das sociedades e dos grandes grupos.
Assim sendo, a sala de aula pode ser analisada como
uma situação de governo. São estas conexões entre sala de aula e
governo que orientarão nossa genealogia. É esta a perspectiva que
elegemos: a história dasformas de comunicação egoverno da sala de
aula moderna como parte de uma história mais ampla, a história doS
.
S. Os contribuições de Hamilton ( I 989). Cutler (1989) e Johnson ( 1994) sõo trabalhospio­
neiros neste sentido. No âmbito do nosso trabalho, o história do caderno de lições e sua
difusão na Rrgentino foi trabalhada por Silvina Gwtz (1997).
37
A In ven ção da Sal a de Aul a
governo das sociedades modernas. Certamente, pode haver genea
logias que orientem o leitor em outras direções (a sala de aula
como surgimento do indivíduo moderno ou como lugar de pro
fissionalização docente, para citar alguns outros exemplos), mas
acreditamos que esta é uma linha central na reflexão pedagógica
da qual nem sempre nos encarregamos como educadores. Quan
do um professor lê o recibo de seu salário ou percebe a quanti
dade de instâncias que estão acima dele e que decidem sobre
sua tarefa (ministérios, leis, diretores, especialistas), pode pen
sar que não tem poder algum. Esta estrutura do sistema, as frus
trações diárias e os poucos sucessos tornam difícil para os pro
fessores pensar sobre o poder em geral e sobre seu próprio poder
em particular. Em outro ponto, vimos como o poder é algo que
está em todos os lugares, é onipresente; e como circula, se trans
forma e se consolida.6 Em seguida, tentaremos mostrar como foi
construída essa estrutura de poder particular que é o ensino na sala
de aula, e se asformas da “liderança ”da sala de aula se relacionam
com asformas de “liderança”na sociedade e na política. Tentaremos
verificar se algumas características do governo das sociedades
modernas têm algo em comum com as formas do “governo das
crianças”,como alguns autores definiam a educação há 200 anos.
Se durante muito tempo se falou da educação “autoritária”, terá
sido porque houve ditaduras ou porque o totalitarismo também
mas décadas, quando Sigmund Freud — o fundador da psicaná-
|jSC__começou a refletir sobre quando deve terminar a terapia
psicanalítica, e tentou formular qual seria o ponto de maturidade
da ação terapêutica, encontrou-se diante de uma questão ainda
mais radical. Existe realmente esse momento no qual se pode afir
mar que uma pessoa está curada? Freud responde provisoriamente
que sim, e acrescenta: “Detenhamo-nos por um momento para
garantir ao analista nossa sincera simpatia por ter que cumpri-lo
com requisitos tão difíceis no exercício de sua atividade. E até
parecería que analisar seria a terceira das profissões ‘impossíveis’, em
que se pode dar antecipadamente como certa a insuficiência do resulta
do. ris outras duas, há muito conhecidas, são educar egovernar”(Freud,
1937; 1986, p. 249; a parte em itálico foi destacada por nós).
Com esta afirmação, que voltaremos a analisar no
último capítulo, Freud tenta formular algo além do simples
fato de que a educação não termina nunca, que nenhum go
verno é para sempre, simplesmente porque não existe gover
no “completo” ou “perfeito”, ou que o final de uma terapia
psicanalítica é um momento relativo. O que a afirmação de
Freud parece sugerir é que talvez educação, psicanálise e gover
no tenham estruturas semelhantes. As três atividades propõem-
se a modificar o indivíduo em determinada direção; ao mes
mo tempo, as três enfrentam a dificuldade de moldá-lo de
acordo com um esquema prefixado — pois assim como não
existe governo totalmente onipotente e eficaz, que consegue
tudo aquilo a que se propõe, também não existe um processo
educativo que garanta totalmente que o produto final seja o
esperado. Em nossa abordagem genealógica, proporemos que
os problemas da educação são mais bem-compreendidos quando
os enfocamos como parte das relações de poder e de estruturas de
governo e de organização da sociedade.
39
cipalmente conventos e monastérios): a consciência. Ter uma cons
ciência boa ou má tornou-se o elemento central da religião. Essas
técnicas do eu, essas questões dirigidas a si próprio são o que chamaría
mos de a base de nossa conduta, ou seja, de nossa “condução”. Ao longo
desses séculos, conduzir a si próprio, controlar-se através da boa ou
má consciência converteu-se em algo primordial para as pessoas
(Kittsteiner, 1991, p. 357 e ss.). Do mesmo modo, o pai de família
começou a questionar-se sobre suas obrigações, entre elas a educa
ção de seus filhos, embora naquele momento a “educação” fosse
compreendida como algo diferente daquilo que entendemos hoje.
O que ocorre entre os séculos 16 e 18 é a constituição
de uma moral coletiva ainda vigente entre nós, embora conviva
mos com os sintomas de sua prolongada crise. Esse processo de
moralização interessa imensamente aos reis e a outras autoridades
da época, que vêem o mundo transformar-se diante de seus olhos.
Já não se trata de impor a obediência cega sob ameaça de violência,
mas de obter a obediência reflexiva, aceita como correta. A obediência
com “boa consciência”, a obediência “interior”, toma-se cada vez
42
automóveis, e talvez mais próximo da “conduta” dos boletins es
colares: como alguém se comporta, como se conduz. Conduziras
conduções não é fácil. O primeiro requisito é que a população “sinta”
que deve conduzir a si mesma, que deve cumprir as regras e que,
caso não o faça, deve justificar-se e saber por que não as cumpre,
e aceitar um castigo ou reprimenda. A idéia de que é preciso go
vernar-se, controlar os impulsos, comportar-se de acordo com
determinados códigos e refletir sobre as causas e consequências
de nossos atos é um fenômeno que, embora reconheça antece
dentes na Antigüidade clássica, se expandiu apenas durante os
séculos que estamos analisando. O camponês da Idade Média,
embora pagasse os impostos anuais, não tinha necessidade de jus
tificar-se detalhadamente por seus atos, nem de “comportar-se”
ou “conduzir-se” de maneira minuciosamente regrada. Isto não
significa que fosse livre ou que pudesse fazer o que bem entendes
se. Por um lado, não era livre em termos jurídicos, e tinha muitas
obrigações para com seu senhor; por outro, sua vida tinha outras
regulações, provenientes de seu relacionamento com a natureza,
de sua religiosidade e de seu trabalho como camponês. O que
queremos destacar com esta comparação retrospectiva é que o
“poder central” (reis e senhores) não estava interessado nem pro
curava justificativa para o que seu subordinado pensava, sentia e
fazia, a não ser em relação às suas obrigações mínimas.
Uma vez que a população aceita a necessidade de go
vernar-se a si própria, o segundo requisito é agrupar, organizar e
43
embora pagasse os impostos anuais, não tinha necessidade de jus
tificar-se detalhadamente por seus atos, nem de “comportar-se”
ou “conduzir-se” de maneira minuciosamente regrada. Isto não
significa que fosse livre ou que pudesse fazer o que bem entendes
se. Por um lado, não era livre em termos jurídicos, e tinha muitas
obrigações para com seu senhor; por outro, sua vida tinha outras
regulações, provenientes de seu relacionamento com a natureza,
de sua religiosidade e de seu trabalho como camponês. O que
queremos destacar com esta comparação retrospectiva é que o
“poder central” (reis e senhores) não estava interessado nem pro
curava justificativa para o que seu subordinado pensava, sentia e
fazia, a não ser em relação às suas obrigações mínimas.
Uma vez que a população aceita a necessidade de go
vernar-se a si própria, o segundo requisito é agrupar, organizar e
43
A In ven ção da Sal a de Aul a
selecionar estas conduções, definindo quais dessas condutas po
dem ser consideradas desejáveis e quais não o são. Por esse mo
tivo, definimos governo como essas definições sobre as conduções dos
súditos, essa condução das conduções individuais. A esse respeito
afirmou Michel Foucault: “Em minha opinião, o ponto de con
tato no qual a forma de dirigir os indivíduos está ligada a outras
conduções, como a forma de condução de si próprio, pode ser
chamado de governo. Em um sentido amplo da palavra, ‘gover
no’ não é uma forma de forçar os homens a fazer coisas que o
governante deseja; na realidade, trata-se antes de um equilíbrio
móvel com agregados, e de conflitos entre as técnicas que garan
tem a obediência (imposição) e os processos através dos quais
uma pessoa se desenvolve e se transforma” (Foucault, 1993a,
pp. 203-204). Ou seja, para criar um governo, para criar um
estado de “governamentalidade” (uma mentalidade de governo,
que aceite e valorize o governo), duas coisas são necessárias: em
primeiro lugar, a condução de si próprio; e em segundo lugar a
articulação, a união, a combinação de muitas conduções (a do
pai, a do professor, inclusive a do médico) com a condução glo
bal de um estado moderno. Estas duas conduções não necessa
riamente coincidem: muitas vezes, o ato de autogovemar-se vai
contra aquilo que a sociedade impõe, e dessas discrepâncias sur
gem espaços de liberdade. Assim, o governo moderno, longe de
governante deseja; na realidade, trata-se antes de um equilíbrio
móvel com agregados, e de conflitos entre as técnicas que garan
tem a obediência (imposição) e os processos através dos quais
uma pessoa se desenvolve e se transforma” (Foucault, 1993a,
pp. 203-204). Ou seja, para criar um governo, para criar um
estado de “governamentalidade” (uma mentalidade de governo,
que aceite e valorize o governo), duas coisas são necessárias: em
primeiro lugar, a condução de si próprio; e em segundo lugar a
articulação, a união, a combinação de muitas conduções (a do
pai, a do professor, inclusive a do médico) com a condução glo
bal de um estado moderno. Estas duas conduções não necessa
riamente coincidem: muitas vezes, o ato de autogovemar-se vai
contra aquilo que a sociedade impõe, e dessas discrepâncias sur
gem espaços de liberdade. Assim, o governo moderno, longe de
ser a antítese da liberdade, é sua condição de possibilidade —
pois a condução de si próprio e dos demais implica, paradoxal
mente, a administração e a regulação da liberdade: governar-se é
aprender afazer uso da liberdade, de uma liberdade que nem é pura
nem está livre de contaminação, mas que surge das aprendizagens
sociais, das regidações e dos espaços intersticiais criados por das. *
O governo deve ser produzido e, mais do que isso, deve ser
produzido de maneira constante. “O conceito de ‘arte de governar’
44
remete à ‘artificialidade’ das técnicas de condução (...)” (Lemke,
1997, p. 158; a parte em itálico foi destacada por nós). Esta artifi
cialidade refere-se a uma “arte” que age sobre a natureza; é algo
que deve ser inventado, provado, avaliado, modificado, uma vez
que não se pode pegá-la como se pega uma maçã de uma árvore.
Neste processo, a educação do príncipe que governa, ou governa
rá, e a educação do governado passam a ter importância crucial.
Assim sendo, ogoverno também se define pela maneira como se pensa a
quem e a que se diríge a condução. Nos primórdios da modernidade
— por volta de 1500 até 1700 — ,surgiram duas formas para defi
nir as práticas de governo: a primeira (prevalente na Idade Média)
afirmava que governar era ter a soberania sobre um território, en
quanto que a segunda considerava que governar não se referia so
mente a um território, mas principalmente a objetos ou pessoas.
“(...) o conceito de ‘governo’não envolve uma questão de imposi
ção das leis aos homens, mas de dispor as coisas: isto é, de empre
gar mais táticas do que leis, e inclusive utilizar as leis como táticas
em si mesmas” (Foucault, 1991, p. 95). Embora desde a Antigui
dade clássica (gregos e romanos) sempre tenham existido alguns
tipos de leis, códigos ou regras de validade geral, o governo mo
derno, embora continue a utilizá-los, combina-os com novas formas:
por exemplo, quando um governo “investe”em determinados em
preendimentos econômicos, já não se trata de aplicar uma lei, mas
sim de outro tipo de intervenção, que regula outros aspectos da
vida social, introduzindo novos agentes e novas instituições. A es
colafaz parte desses novos tipos de intewenção: a preocupação em for
mar a consciência da população e de criar uma nova aceitação para as
coisas quejã existiam (os impostos, por exemplo) ou para as novas in
tervenções (o serviço militar obrigatório, por exemplo).
Para desenvolver essas táticas, a acumulação de conhe
cimentos sobre os objetos (homens e materiais) que devem ser
i
4.
A sala de aula cresce: a disciplina na era da revolução industrial
parece natural, e, no entanto, aparecerá bem mais tarde na his
tória das práticas de governo. Governar é, portanto, conduzir uma
população (idem, p. 99). Este é o espaço central da pedagogia,
uma vez que trata de educar as consciências e os corpos.8
 sala de aula como a conhecemos e também as estruturas
que a precederam são situações sociais nas quais se produzem as con
duções. Em primeiro lugar, interessa que a criança conduza a si
mesma, seja ficando quieta em seu banco ou conduzindo seu pró
prio pensamento durante a aprendizagem. Em segundo lugar, que
conduza a si mesma por meio de e com base em modelos, pautas
e normas definidas pelo condutor dessas conduções: o professor
e, acima dele, o Estado. Nos postulados da pedagogia com relação
à sala de aula, principalmente com respeito ao método, pode-se
observar como se produz uma certa “governamentalidade”, esta
do que permite que sejamos governados. Em seguida, analisare
mos de que maneira a sala de aula se estruturou como uma situa
ção de governo na qual as crianças, os jovens e também os
professores deveríam ser conduzidos. Veremos, por um lado, como
surgiu na pedagogia uma condução especificamente moderna — ado
professor na sala de aula onde as lições são ministradas; e como se
vincula esta nova situação com a tendência a longo prazo do mundo
moderno de produzir a condução de si mesmo e de combinar todas as
conduções em uma condução central, ou governo.
penetrou no contexto das grandes mudanças econômicas, sociais e
políticas na Europa ocidental pouco antes de 1800. Vamos concen
trar-nos nessa época cheia de novidades e de mudanças estruturais
e na forma como a sala de aula, como materialidade e como forma
de comunicação, foi não apenas reagindo a este desenvolvimento,
mas também contribuindo para que de fato ocorresse.
Vamos retomar algumas pontas soltas do capítulo an
terior. Argumentamos que a pedagogia de 1700 imaginava e pro
punha uma sala de aula onde a condução pastoral havia sido deslo
cada, passando a dar prioridade ao grupo, e havia deixado de lado
certa individualização das práticas educativas anteriores (por exem
plo, a prática implícita na educação de príncipes e artesãos). Um
dos motivos do sucesso dessa proposta entre os estadistas era o
número de alunos que pretendia incorporar. O outro lado da
moeda era o fato de privilegiar uma obediência em grupo, con
siderando a individual como um resultado daquela. No entanto,
as novas condições nas sociedades européias reivindicaram mu
103
Contexto de mudanças - Revolução industrial,
crescimento da massa urbana, revolução
francesa, iluminismo, liberalismo clássico
Neste contexto em que as transformações causavam
novas demandas e inseguranças, os estados centrais começaram
a demonstrar maior interesse na questão da educação primária.
Lembremos que, até este momento, as iniciativas da educação
popular tinham-se baseado em obras de caridade de caráter pri
vado e, além disso, de forma inorgânica e pouco coordenada. A
educação obrigatória apareceu como a nova ferramenta para a pro
dução em massa da obediência, no contexto de populações que mi
gravam, cidades que cresciam descontroladamente e ritmo de cres
108
A 5al a o e Aul a Cr esc e: a Discipl in a nos Tempo s da Rev o l u ç ão In dust r ial
cimento acelerado. Em 1768, o presidente do parlamento de Pa
ris dizia: é necessária a educação comum que divulgue “os mes
mos princípios e as mesmas luzes (de maneira uniforme). Imbu
ídos desde a infância das mesmas verdades, os jovens de todas
as províncias se libertarão dos preconceitos do nascimento, de
senvolverão as mesmas idéias de virtude e justiça, e aprenderão
a derrubar as barreiras que os separam de seus compatriotas”
(citado em Chartier e outros, 1976, p. 209). Entre 1763 e 1803,
Prússia, Áustria, Saxônia e Baviera foram os primeiros estados a
introduzir a obrigatoriedade escolar por um período de seis a
sete anos (Manacorda, 1987, p. 391). Em alguns casos, era com
plementada com a obrigatoriedade de participar de uma escola
dominical de fundo religioso até os 18 anos. A escola não era
A 5al a o e Aul a Cr esc e: a Discipl in a nos Tempo s da Rev o l u ç ão In dust r ial
cimento acelerado. Em 1768, o presidente do parlamento de Pa
ris dizia: é necessária a educação comum que divulgue “os mes
mos princípios e as mesmas luzes (de maneira uniforme). Imbu
ídos desde a infância das mesmas verdades, os jovens de todas
as províncias se libertarão dos preconceitos do nascimento, de
senvolverão as mesmas idéias de virtude e justiça, e aprenderão
a derrubar as barreiras que os separam de seus compatriotas”
(citado em Chartier e outros, 1976, p. 209). Entre 1763 e 1803,
Prússia, Áustria, Saxônia e Baviera foram os primeiros estados a
introduzir a obrigatoriedade escolar por um período de seis a
sete anos (Manacorda, 1987, p. 391). Em alguns casos, era com
A 5al a o e Aul a Cr esc e: a Discipl in a nos Tempo s da Rev o l u ç ão In dust r ial
cimento acelerado. Em 1768, o presidente do parlamento de Pa
ris dizia: é necessária a educação comum que divulgue “os mes
mos princípios e as mesmas luzes (de maneira uniforme). Imbu
ídos desde a infância das mesmas verdades, os jovens de todas
as províncias se libertarão dos preconceitos do nascimento, de
senvolverão as mesmas idéias de virtude e justiça, e aprenderão
a derrubar as barreiras que os separam de seus compatriotas”
(citado em Chartier e outros, 1976, p. 209). Entre 1763 e 1803,
Prússia, Áustria, Saxônia e Baviera foram os primeiros estados a
introduzir a obrigatoriedade escolar por um período de seis a
sete anos (Manacorda, 1987, p. 391). Em alguns casos, era com
plementada com a obrigatoriedade de participar de uma escola
dominical de fundo religioso até os 18 anos. A escola não era
gratuita e, apesar de as taxas não serem muito altas, o grande
número de crianças em uma família camponesa poderia resultar
em uma soma total considerável a ser paga. Por outro lado, a
escolarização significava afastar as crianças do mundo do traba
lho, privando as famílias de uma renda que, em muitos casos,
EDUCAÇÃO
PRUSSIANA
IMPÉRIO PRUSSIANO
1701-1918 Tornou a educação um direito de cada
cidadão e um dever do Estado em prover
instalações, professores, currículos e
avaliações.
Foi o rei Frederico Guilherme I quem
inaugurou o sistema de educação
compulsória prussiano, o primeiro sistema
nacional na Europa. Em 1717, ele ordenou a
frequência obrigatória para todas as
crianças nas escolas estatais e, em atos
posteriores, seguiu com a disposição para a
construção de mais escolas
(ROTHBARD, 1999, p. 25,in “ORIGEM DA
EDUCAÇÃO OBRIGATÓRIA: UM OLHAR
SOBRE A PRÚSSIA” CELETI, Filipe Rangel).
Samuel Theodor Gericke, 1713
O sucessor de Frederico II também continuou com o
ideal educacional.
Decorrente do estabelecimento da obrigatoriedade
da frequência escolar, o ministro de Frederico
Guilherme III, Barão vom Stein, começou abolindo as
escolas privadas semi-religiosas e colocando toda
educação diretamente sob o Ministério do Interior.
Em 1810, o ministro decretou a necessidade de exame
estatal e certificação de todos os professores. Em
1812, o exame de graduação escolar foi retoma-do,
como um requerimento necessário para o ingresso da
criança na escola estatal, e foi estabelecido um
sistema elaborado de burocratas para supervisionar
as escolas no campo e nas cidades
(ROTHBARD, 1999, p. 25, in “ORIGEM DA EDUCAÇÃO OBRIGATÓRIA: UM
OLHAR SOBRE A PRÚSSIA” CELETI, Filipe Rangel).
Frederico Guilherme III e rainha Luísa no jardim do Palácio Charlottenburg Friedrich
Georg Weitsch, 1799
EDUCAÇÃO PRUSSIANA
Selo de Nuremberg de 1910 representando o funil de
Nuremberg ("Se você perder sabedoria em alguns
campos, traga o funil de Nuremberg")
o funil de nurenberg já foi muito estimado, mas hoje as pessoas são mais inteligentes, você não precisa mais dele
A 5al a de Aul a Cr esce a Discipl in a nos Tempo s da Dev o l u ç ão In dust r ial
animalidade. Para Kant, o objetivo da escola era disciplinar os
instintos animais e “humanizar”o homem. Assim, o tema da con
dução das crianças era central em suas preocupações. Dizia que,
inicialmente, as crianças são encaminhadas “à escola, não ainda
com a intenção de que aprendam algo, mas'sim com o objetivo
de habituá-las a permanecer em silêncio e a observar pontual
mente o que lhes é ordenado, para que mais tarde não se deixem
dominar por seus caprichos momentâneos” (Kant, 1803; 1983,
p. 30). Não por acaso, Kant escolhe a metáfora das plantas e da
jardinagem para falar da educação. Ao comparar o trabalho com
as crianças ao trabalho com as plantas, mostra claramente as
tendências disciplinadoras da época por meio da idéia de que o
pensamento infantil pode ser endireitado como um galho torci
do (Petrat, 1987, introdução).
Entre os filósofos modernos, Kant é um dos primeiros
a refletir sobre a relação entre o governo e a educação. Em suas
aulas, argumentava que “a arte do governo e a arte da educação”
são as duas invenções mais difíceis da humanidade, e sobre as
quais sempre haverá controvérsia (Kant, 1983, p. 35). O gover
no que imaginava devia basear-se na razão, e não na força; por
tanto, era preciso que a obediência estivesse fundada na racio
nalidade, e não na repetição de memória: “deve-se cultivar a
memória desde muito cedo, sem esquecer também da compre
ensão” (idem, p. 65, tradução modificada pelos autores). Con
centrar-se, sentar-se em silêncio, obedecer às instruções: para
Kant, eram estas as atitudes fundamentais na sala de aula. Afir
são as duas invenções mais difíceis da humanidade, e sobre as
quais sempre haverá controvérsia (Kant, 1983, p. 35). O gover
no que imaginava devia basear-se na razão, e não na força; por
tanto, era preciso que a obediência estivesse fundada na racio
nalidade, e não na repetição de memória: “deve-se cultivar a
memória desde muito cedo, sem esquecer também da compre
ensão” (idem, p. 65, tradução modificada pelos autores). Con
centrar-se, sentar-se em silêncio, obedecer às instruções: para
Kant, eram estas as atitudes fundamentais na sala de aula. Afir
ma: “A escola é uma cultura coercitiva” (p. 63); deve habituar a
criança ao trabalho, separando a vida escolar da brincadeira e
dotando-a da seriedade e da coação necessárias. Embora se ba
seasse no uso da razão, a seriedade de sua pedagogia tem conti
nuidade na vida escolar jesuítica, que criava um universo artifi
111
nidade. O catecismo católico (o mais famoso foi escrito por
um jesuíta, Pedro Canisius) e o catecismo protestante (escrito
pelo próprio Lutero) tinham uma longa trajetória de utilização
nas salas de aula da escola elementar. “Catecismo” (do latim
medieval catechismus) significa “instruir em viva voz” (Cucu-
zza, 1997, p. 1), e era a forma corrente de instrução religiosa.
No entanto, a insistência de Kant no método catequista con
tinha elementos novos, uma vez que propunha resolver a ques
tão da disciplina em meio a grandes mudanças sociais e políti
cas. No caso alemão, a obrigatoriedade da escola — sancionada
na Prússia por um regulamento para as escolas rurais de 1763,
e reforçada por outro regulamento em 1794, no qual as doutri
nas kantiana e iluminista de “educar o camponês” estavam na
ordem do dia — não coincidia estritamente com a industriali
zação, nem com a ascensão da burguesia, como nos casos in
glês e francês. Naquele momento, o problema da Prússia era
como “liberar” os camponeses das velhas relações de submis
são à nobreza e introduzi-los nas relações mais modernas sem
sofrer as turbulências revolucionárias que colocariam em risco
a ordem absolutista estabelecida. Kant e os iluministas alemães-
prussianos pensavam que, nesse contexto de transformações,
a escola deveria desempenhar um papel estabilizador (Van Horn
Melton, 1988), e por esse motivo sua pedagogia reduziu o
método global à catequização, onde a dinâmica de pergunta e
resposta era, na verdade, uma contrapartida na qual a resposta
já estava estabelecida e deveria apenas ser reproduzida.
A In ven ção da Sal a de Aul a
da escola25. Na Alemanha, a pedagogia assumiu nesse momento
o caráter de disciplina universitária. Em 1779, na Universidade
da cidade de Halle, criou-se a primeira cadeira de Pedagogia em
língua alemã. Essa cadeira foi ocupada por Christian Trapp (1745-
1818), que no ano seguinte publicou suas aulas com o título
Ensaio de Pedagogia. Na sua obra, a didática — esse ramo da
pedagogia que se ocupa do método de ensino — emergiu como
uma catequização disciplinadora, como vimos em Kant. No en
tanto, tinha uma preocupação crescente com a atenção do aluno
e a compreensão do conteúdo, que recuperava a velha demanda
de Comenio sobre a compreensão e a motivação com base no
ensino (Trapp, 1977, p. 256 e 286 s.). Trapp defendia que a
compreensão do aluno (e não apenas a repetição de memória)
fosse incluída na estrutura de comunicação na sala de aula. O
A Sal a de Aul a Cr esc e: a Discipl in a nos Tempo s da Rev o l u ç ão In dust r ial
tratava de apenas manter as crianças quietas na sala de aula,
mas também de fazer com que aprendessem. Até então, a es
cola elementar tinha muito da creche disciplinar, onde as
pessoas soletravam, cantavam e, às vezes, liam e contavam. 0
“ensino”em sentido estrito e moderno existiu a partir da estrutu
ra do processamento didático e ocorreu a partir da preocupa
ção não com uma disciplina aparente ou superficial, mas sim
com um governo “profundo” das crianças, por uma internali-
zação de saberes que modificava condutas e atitudes. Esta
transição foi possível porque a memória perdeu o monopólio
como objetivo da formação, e a compreensão ou o entendi
mento passou a ocupar o centro. A nova pedagogia exigia
que os “alunos (fossem) levados paulatinamente a pensar”
(Petrat, 1979, p. 187). Diferentemente da obediência reflexi
va de Lutero, centralizada na relação da pessoa com sua co
munidade e com Deus, a idéia pós-kantiana da compreensão
como objetivo do ensino centrava-se em um indivíduo carac
Fig. I I.A aula na galeria, segundo o sistema de Wilderspin ( 1840). Observe que
as crianças levantam a mão (Extraído de: D. Hamilton: Towards aTheory ofSchooling,
Falmer Press, Londres, 1989).
Recapitulando tudo o que foi dito sobre esta etapa da
Revolução Industrial, da Revolução Francesa e da modernização
do século XIX, podemos dizer que o pastorado, na maneira como
foi integrado à sala de aula nos primeiros tempos da modernida
de, adquiriu nessa época uma forma mais definida e minuciosa
mente regulamentada. A imagem clássica do professor diante da
lousa e as crianças olhando para frente — tão clássica que às
vezes nos custa imaginar outra, apesar de existirem variantes,
como tentamos mostrar neste capítulo — aparece como uma
proposta que sintetiza os propósitos moralizadores da condução
pastoral e os disciplinadores da condução industrial.
Nessa época, com a lenta, porém segura expansão da
obrigatoriedade da escola e com a produção de técnicas de con
dução e vigilância por parte dos pedagogos, consolidou-se essa
“mentalidade de governo”que chamamos “govemamentalidade”.
155 1
n m a n B n n H M
A In ven ção da Sal a de Aul a
De fato, as crianças foram colocadas em uma situação definida
pela obediência — responder uma pergunta, não se arriscar a
colar, aprender que a autoridade está centralizada e que define
as coisas. A civilização industrial, não só através da sala de aula
e da escola, mas também tomando-as como pilares, ampliou as
formas e o alcance do governo. Tantas horas, tantos dias, tantos
anos em uma situação de governo como é a sala de aula levavam
as grandes massas a pensar no governo como algo “natural”, e
não como algo construído pelos homens e pelos poderes. Em
bora anteriormente se produzisse obediência (vimos inclusive
que Lutero falava de uma obediência reflexiva), na nova ordem
social que surgiu depois da Revolução Industrial e da Revolução
Francesa, esta obediência foi produzida em termos de um indi
víduo autônomo, capaz de governar suas condutas e seus senti
mentos. Isto ocorreu por meio de muitos agentes: o serviço mi
litar, a autoridade médica, a adoção das línguas vulgares na missa,
a legislação estatal sobre a família, nascimentos, cemitérios, etc.
Nesta estratégia, a sala de aula global ou simultânea, com sua
comunicação organizada em torno de uma figura centralizada,
desempenhou papel fundamental.
A formação do caráter e a docilidade dos corpos foram
dois lados do mesmo processo; no entanto, este não fói automá
tico, imediato ou completo, mas sim o resultado de muitas pro
postas e de desenvolvimentos divergentes. Junto a eles, a didáti
ca emergiu no meio dessas mudanças como uma tecnologia em rápida
expansão. A formação docente sistematizada seguiu este desenvolvi
mento e institucionalizou-se. No entanto, longe de ser um cami
nho de desenvolvimento e aperfeiçoamento sem riscos, a pro
dução pedagógica sobre a condução da sala de aula sofreria ainda
outros questionamentos e mudanças. Serão estes os temas do
próximo capítulo.

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  • 1. Inês Dussel e Marcelo Caruso
  • 2. § Visao tradicional da pedagogia (p.15 e 16) começamos a revisar tratados de pedagogia de outras épocas e observamos que na maioria deles definiam-se a pedagogia, seus tipos ou divisões, as ciências auxiliares e as áreas de aplicação. Quase todos consideravam a pedagogia como um saber que ca bia integralmente neste esquema: para alguns, tenderia mais para uma ciência, e para outros, tenderia mais para uma arte. No entanto, em todos os casos, constituía um corpo de conheci mentos definidos, que bastava especificar e transmitir aos futu ros professores para que estes os pusessem em prática. Uma obra de Bernard Shavv, Pigmalião, expressa exata mente esta visão da pedagogia. Em Pigmalião, Liza Doolittle, uma humilde florista de rua, tem um encontro fortuito com dois aris tocratas ingleses, Pickering e Higgins. Estes estudiosos da lin guística decidem fazer uma experiência: reeducar a florista para que fale e se comporte como uma dama da sociedade. A idéia é que a educação, quando utiliza um bom método, consegue trans formar as pessoas por completo, até apagar os vestígios de sua origem social e cultural. Instalam Liza em sua casa e ministram- lhe aulas diárias — teóricas e práticas. Os linguistas triunfam: Liza transforma-se em uma dama, casa-se com um jovem de boa família (embora sem posses) e mantém um relacionamento pla tônico com seu mentor, Higgins. Final feliz para a pedagogia: Liza ama seus professores e estes a amam, por ter-se transfor mado exatamente no que desejavam. Vejamos outro exemplo literário. Trata-se do conto in fantil de Emma Wolf “Escola de Monstros”. A autora narra a uma ciência, e para outros, tenderia mais para uma arte. No entanto, em todos os casos, constituía um corpo de conheci mentos definidos, que bastava especificar e transmitir aos futu ros professores para que estes os pusessem em prática. Uma obra de Bernard Shavv, Pigmalião, expressa exata mente esta visão da pedagogia. Em Pigmalião, Liza Doolittle, uma humilde florista de rua, tem um encontro fortuito com dois aris tocratas ingleses, Pickering e Higgins. Estes estudiosos da lin guística decidem fazer uma experiência: reeducar a florista para que fale e se comporte como uma dama da sociedade. A idéia é que a educação, quando utiliza um bom método, consegue trans formar as pessoas por completo, até apagar os vestígios de sua origem social e cultural. Instalam Liza em sua casa e ministram- lhe aulas diárias — teóricas e práticas. Os linguistas triunfam: Liza transforma-se em uma dama, casa-se com um jovem de boa família (embora sem posses) e mantém um relacionamento pla tônico com seu mentor, Higgins. Final feliz para a pedagogia: Liza ama seus professores e estes a amam, por ter-se transfor mado exatamente no que desejavam. Vejamos outro exemplo literário. Trata-se do conto in fantil de Emma Wolf “Escola de Monstros”. A autora narra a 15 : A In ven ção da Sal a oe A ul a vida em uma escola onde Frankensiein e Drácula, entre outros alunos, aprendem a comportar-se como monstros. Em certa oca sião, um deles, querendo cumprir uma ordem ao pé da letra, destrói as paredes da escola. Transformou-se em monstro. Final íeliz para a pedagogia? Você dirá. Com um pouco de desconfiança, pode-se também per guntar se não há algo de monstruoso na Liza de Bernard Shaw, se ela também não aprendeu a ser um monstro, colocando-se no lugar que seu professor determinou e cumprindo suas ordens ao pé da letra. Espantamo-nos diante da menção da clonagem da ovelha Dolly, mas não nos assusta da mesma maneira essa idéia da pedagogia que quer replicar indivíduos, moldá-los e formá-los à medida que pretende dominá-los e conhecê-los por completo. Certamente, a vontade de tê-los sob controle está asso ciada ao temor provocado pela situação de ensinar. Como en frentar um grupo de crianças, cada uma com sua própria histó ria, com desejos diferentes em uma sala de aula? Seremos capazes de transmitir-lhes alguma coisa, de conseguir que aprendam al guma coisa? E se falharmos? E se utilizarem nossos ensinamen tos de maneira diversa daquela que pretendíamos? E se nem sequer nos escutarem? Esses temores são reais e concretos; en
  • 3. gogia é um saber que ajuda os docentes a serem “bons” professo res, é conveniente começar por estabelecer como se define um “bom professor”, quem o define, como trabalha, antes de pensar mos em regras, divisões e formas de transmitir esse saber. Para nós, não há melhor maneira de abordar estas ques tões senão através de uma visão histórica. Partimos do princípio de que as definições de um bom professor, do conteúdo dos ensinamentos, de métodos e didáticas são saberes históricos, pro duzidos por indivíduos sociais, por pensadores, grupos, insti tuições que atuaram e pensaram em outros contextos — alguns muito semelhantes aos nossos, outros muito diferentes. Inclusi ve a idéia de que é preciso levar em conta a psicologia infantil e as categorias e conceitos utilizados para falar sobre a aprendiza gem da criança, que parece “natural" e “necessária”, é no entanto um produto histórico: como será visto nos capítulos a seguir, há quatro séculos, ou mesmo dois, não se falava nesses termos. Percorrendo a história da sala de aula e das formas de ensinar, procuramos esclarecer o fato de que muitas técnicas e palavras que utilizamos para nos referir ao que acontece na sala de aula têm um passado, surgiram em situações concretas
  • 4. as categorias e conceitos utilizados para falar sobre a aprendiza gem da criança, que parece “natural" e “necessária”, é no entanto um produto histórico: como será visto nos capítulos a seguir, há quatro séculos, ou mesmo dois, não se falava nesses termos. Percorrendo a história da sala de aula e das formas de ensinar, procuramos esclarecer o fato de que muitas técnicas e palavras que utilizamos para nos referir ao que acontece na sala de aula têm um passado, surgiram em situações concretas como respostas a desafios ou problemas específicos, e que pro vavelmente, quando as utilizamos hoje em dia, ainda trazem parte desses significados. Compreender de onde surgem, de quais estratégias e problemas fazem parte, como foram ou são utilizadas, e que efeitos causaram pode ajudar-nos a aliviar essa carga e a assumir nossa tarefa como uma reinvenção própria das tradições que recebemos. Embora não voltemos a inventar a pólvora, também não seremos clones de outros e nem clona- remos nossos alunos. Pois, em última instância, transmitir é A In ven ção da Sal a de Aul a também abrir espaço para que o outro utilize de maneira dife rente nosso saber e nosso desejo de educá-lo — para que seja outro, e não o mesmo indivíduo. Como disse um psicanalista, o que é fascinante “na própria aventura da transmissão é preci samente o fato de sermos diferentes daqueles que nos precede ram, e que provavelmente nossos descendentes seguirão um caminho bastante diferente do nosso. (...) E, no entanto, (...) é aí, nessa série de diferenças, que inscrevemos aquilo que trans
  • 5. ram, e que provavelmente nossos descendentes seguirão um caminho bastante diferente do nosso. (...) E, no entanto, (...) é aí, nessa série de diferenças, que inscrevemos aquilo que trans mitiremos” (Hassoun, 1996, p. 17). Gostaríamos que este livro ajudasse a entender de onde vem o hábito dos alunos de levantar a mão, formar fila ou utili zar cadernos, para poder avaliar se isto é realmente o que quere mos lhes ensinar, e assumirmos essa decisão e essa responsabili dade. Um dos ensinamentos que gostaríamos de transmitir, à maneira de Hassoun, é que no ensino não há lugar neutro nem indiferente: todas as estratégias e opções que utilizamos em nos sa tarefa cotidiana têm histórias e significados que nos superam e produzem efeitos sobre os alunos — não só em termos de aprender ou deixar de aprender determinado conteúdo, mas tam bém de sua relação com a autoridade, com o saber letrado em geral e com os demais. Alguns professores, temerosos desta res ponsabilidade, acreditam que o melhor seja renunciar a trans mitir algo, laissez-Jaire (deixar fazer), não intervir, como se com este gesto pudessem desfazer-se do poder inerente à posição docente. Como argumentaremos adiante (Caruso e Dussel, 1996,
  • 6. que cria a criança”— do pedante — “mestre que ensina as crian ças”1(Covarrubias Orozco, 1611). Desse modo, o pedagogo era entendido como um educador no sentido mais amplo do termo: não era somente um professor de escola, mas também podia ter a seu cargo funções que hoje chamaríamos de a criação das crianças. A palavra pedagogia compartilha sua raiz — ped: pé, aquele que anda a pé — com a palavra pedante, que é aquele que “se diz sábio”, aquele que pretende ser erudito. Isto revela prin cipalmente o pouco prestígio que as pessoas letradas tinham na época. Esta ambiguidade fica bem definida na seguinte frase, “um bom professor galés, um bom estudioso, porém muito pe dagógico (extraído do Oxford English Dictionaiy de 1888). Ser “pedagógico”não era, então, sinônimo de uma qualidade positi va, e sim o contrário. O Diccionaiio de Autoridades de 1737 define pedagogo como “qualquer um que ande sempre com outro, e o leva aonde desejar ou lhe diz o que deve fazer”. Neste caso, aparecem tanto o significado de “pé” como o de conduzir ou guiar como ação pró pria. Entretanto, já em 1788, o significado que conhecemos hoje aparece com mais intensidade. A pedagogia aproxima-se daquilo1 1. N.T. Uma definição antigo da polavro pedante, hoje em desuso, significa “mestre que ensino gramático às crianças indo de cosa em cosa" . NTRODUÇAO Iniciaremos pela palavra que nos convoca, a você e a nós, a nos encontrarmos neste livro. Apalavra pedagogia teve signi ficados muito diferentes através dos tempos. Levando-se em con sideração apenas os significados produzidos desde 1500 até os nossos dias, ou seja, na idade moderna — cujas características ana lisaremos no primeiro capítulo — pode-se dizer que as primeiras definições diferenciavam o pedagogo — entendido como o “aio que cria a criança”— do pedante — “mestre que ensina as crian ças”1(Covarrubias Orozco, 1611). Desse modo, o pedagogo era entendido como um educador no sentido mais amplo do termo: não era somente um professor de escola, mas também podia ter a seu cargo funções que hoje chamaríamos de a criação das crianças. A palavra pedagogia compartilha sua raiz — ped: pé, aquele que anda a pé — com a palavra pedante, que é aquele que “se diz sábio”, aquele que pretende ser erudito. Isto revela prin cipalmente o pouco prestígio que as pessoas letradas tinham na época. Esta ambiguidade fica bem definida na seguinte frase, “um bom professor galés, um bom estudioso, porém muito pe que denominamos “mestre” e deixa de ser a ação de guia geral (Terreros e Pando, 1788, p.73). Surge no século 19 a definição de pedagogia como “a arte e a ciência de ensinar e educar as crian ças”. Esta descrição, que hoje nos parece natural, é, na realidade, uma invenção recente, dos últimos séculos (Rizzi Salvatori, 1996). Analisemos mais detalhadamente a definição moderna de pedagogia. A pedagogia é uma ciência e uma arte; está asso ciada ao “ensinar” e ao “educar”. A pedagogia ocupa-se das “cri anças”. Neste caso, pode-se acrescentar que algumas versões con temporâneas sustentam que a pedagogia não se ocupa unicamente das crianças, mas que há também uma pedagogia dos adoles
  • 7. das crianças, mas que há também uma pedagogia dos adoles centes e uma pedagogia dos adultos. Para analisar os compo nentes desta definição, à qual voltaremos diversas vezes no de correr do livro, começaremos pelo último ponto:1 1. De acordo com o pedagogo Mariano Narodowski, a pedagogia moderna nasce com o conceito de que a criança deve ser educada. Se durante muito tempo as crianças corriam pelo po voado, aprendiam espontaneamente e se vinculavam a muitos adul tos, em determinado momento (que o historiador Philippe Ariès situou no final da Idade Média) surgiu uma nova “sensibilidade” com relação à criança, uma nova forma de cuidar dela. Narodowski argumenta que a criança será “infantilizada”: inicia-se uma tendên cia segundo a qual a criança precisa de maiores cuidados, que é preciso colocá-la em uma instituição, que necessita de regras mais rígidas. Esta postura constante de cuidados com a criança, e sua vigilância intensiva, permite a formação e a estruturação de um saber que justifica as razões para essas ações, suas finalidades e seus métodos: a pedagogia. Surge a disciplina universitária, e sur gem os catedráticos, que afirmam que a ciência orienta aqueles neles como sujeitos do saber, mas também de submetê-los a outro tipo de vigilância, com a idéia de que devem ser cuidados com maior esmero e assiduidade. A modernidade talvez seja a época em que diversos setores da sociedade vão-se “pedagogizando”: é preciso cuidar dessas pessoas, dizer-lhes o que devem fazer, colo cá-las em instituições educativas, se possível — lembre-se de que até hoje se diz que é melhor a criança estar na escola do que brin cando na rua — e dar-lhes regras mais precisas (Narodowski, 1995). 2. A pedagogia encarrega-se do “ensinar” e do educar. Pode-se dizer que não se ocupa somente das “situações de ensino” — como, por exemplo, o ensino da estaitura e das funções do aparelho digestivo — , mas também da educação, que é muito mais abrangente. As crianças são educadas desde seu primeiro dia de vida: tenta-se, por imposição, que obedeçam a um ritmo, que dur mam à noite, que comam com certa periodicidade. Logo vêm as proibições diante de situações perigosas, virá o controle das “neces sidades”, devem também se acostumar a comer outros alimentos em determinadas horas do dia. A “educação” inclui preceitos com relação aos palavrões, à sexualidade, à ideologia, à maneira de viver, à compreensão e à crítica aos meios de comunicação, entre muitas outras coisas. Diz-se, inclusive, que a educação não termina nunca, uma vez que uma pessoa jamais estará completamente educada. Desse modo, ainda que a pedagogia esteja diretamente relacionada com a escola, parece que também a excede, e muito. 3. Por último, diz-se que a pedagogia é tanto uma
  • 8. outras coisas. Diz-se, inclusive, que a educação não termina nunca, uma vez que uma pessoa jamais estará completamente educada. Desse modo, ainda que a pedagogia esteja diretamente relacionada com a escola, parece que também a excede, e muito. 3. Por último, diz-se que a pedagogia é tanto uma “ciência” como uma “arte”. Por um lado, pretende esse presti- 21 A In ven ção da Sal a üe Aul a gioso rótulo cle “científica”, uma forma de conhecimento que pode ser comprovada, com regras, métodos de avaliação e pa drões compartilhados. Sabemos que em nossas sociedades os “cientistas”constituem uma profissão de grande prestígio, ainda que nem sempre recebam retribuições de acordo com esse pres tígio e muitos não entendam o conteúdo do trabalho científico. Portanto, a pedagogia quer ser tratada como ciência. Por outro lado, porém, a pedagogia é uma arte. Vejamos: um professor pode ser muito versado em diversas disciplinas, conhecer o con teúdo a ensinar, conhecer as diversas dificuldades de aprendiza gem, dispor de uma longa lista de métodos de ensino e de bons instrumentos de diagnóstico e de avaliação. Entretanto, a ma neira, o momento e a forma como utiliza seus conhecimentos — essas decisões da prática de ensino — são por si mesmas uma gioso rótulo cle “científica”, uma forma de conhecimento que pode ser comprovada, com regras, métodos de avaliação e pa drões compartilhados. Sabemos que em nossas sociedades os “cientistas”constituem uma profissão de grande prestígio, ainda que nem sempre recebam retribuições de acordo com esse pres tígio e muitos não entendam o conteúdo do trabalho científico. Portanto, a pedagogia quer ser tratada como ciência. Por outro lado, porém, a pedagogia é uma arte. Vejamos: um professor pode ser muito versado em diversas disciplinas, conhecer o con teúdo a ensinar, conhecer as diversas dificuldades de aprendiza gem, dispor de uma longa lista de métodos de ensino e de bons instrumentos de diagnóstico e de avaliação. Entretanto, a ma neira, o momento e a forma como utiliza seus conhecimentos — essas decisões da prática de ensino — são por si mesmas uma “arte”, se entendermos por arte uma estruturação pessoal, uma sintonia específica com a situação daquele momento. Mesmo que se possa aprender as regras do ensino, estas se modificam em cada situação e dependem do julgamento daquele que as utiliza e da situação em que são utilizadas. A pedagogia, então, prolonga-se cada vez mais no tempo: o que se iniciou com a criança chegou aos adultos e desenvolve-se até a terceira idade. A pedagogia
  • 9. tão concentradas, e com razão, na escola. A pedagogia ajudou a estruturar, a dar forma e corpo às escolas como as conhecemos. Formulou programas, idéias, diretrizes que foram adaptados em maior ou menor grau, com melhores ou piores resultados. Dessa forma, queremos expor a pedagogia em ação, em funcionamento. Queremos associá-la a uma série de materiais que mostrem como os pedagogos pensa ram as salas de aula em sua época, o que propuseram e como estas propostas se relacionavam com realidades muito diferen tes. Queremos mostrar que o conhecimento pode ajudar-nos no desafio que compartilhamos com vocês de enfrentar um grupo e fazê-lo de maneira responsável. Para darmos as boas-vindas à reflexão pedagógica, fo calizaremos neste livro um exemplo de como o conhecimento pedagógico — essa ciência, essa arte — desempenhou um papel importante no momento de armar e dar um contorno a um de nossos mais antigos conhecidos: a sala de aula da escola elemen tar. Neste trajeto da história da sala de aula, talvez fique mais claro por que a pedagogia podia ser entendida tanto como mé todo, aio ou acompanhante. Queremos mostrar como a pedago gia tentou dar forma à sala de aula, à disposição do espaço, a seus rituais, costumes, modos de interação e de comunicação. Talvez isso nos ajude a lidar com nossos temores e a nos apro priarmos com decisão desse espaço de ação. Para tanto, desenvolveremos a idéia de que a sala de diretrizes que foram adaptados em maior ou menor grau, com melhores ou piores resultados. Dessa forma, queremos expor a pedagogia em ação, em funcionamento. Queremos associá-la a uma série de materiais que mostrem como os pedagogos pensa ram as salas de aula em sua época, o que propuseram e como estas propostas se relacionavam com realidades muito diferen tes. Queremos mostrar que o conhecimento pode ajudar-nos no desafio que compartilhamos com vocês de enfrentar um grupo e fazê-lo de maneira responsável. Para darmos as boas-vindas à reflexão pedagógica, fo calizaremos neste livro um exemplo de como o conhecimento pedagógico — essa ciência, essa arte — desempenhou um papel importante no momento de armar e dar um contorno a um de nossos mais antigos conhecidos: a sala de aula da escola elemen tar. Neste trajeto da história da sala de aula, talvez fique mais claro por que a pedagogia podia ser entendida tanto como mé todo, aio ou acompanhante. Queremos mostrar como a pedago gia tentou dar forma à sala de aula, à disposição do espaço, a seus rituais, costumes, modos de interação e de comunicação. Talvez isso nos ajude a lidar com nossos temores e a nos apro priarmos com decisão desse espaço de ação. Para tanto, desenvolveremos a idéia de que a sala de aula elementar é uma invenção do ocidente cristão, a partir de 1500, e que nesse processo a pedagogia utilizou-se de muitas ar gumentações diferentes para dar corpo e forma a este espaço. Isto não significa que não existissem experiências pedagógicas antes
  • 10. Provavelmente de Laurentius de Voltolina Uma aula de Henricus de Alemannia, de 1233
  • 11. seus rituais, costumes, modos de interação e de comunicação. Talvez isso nos ajude a lidar com nossos temores e a nos apro priarmos com decisão desse espaço de ação. Para tanto, desenvolveremos a idéia de que a sala de aula elementar é uma invenção do ocidente cristão, a partir de 1500, e que nesse processo a pedagogia utilizou-se de muitas ar gumentações diferentes para dar corpo e forma a este espaço. Isto não significa que não existissem experiências pedagógicas antes 24 In t r o d u ção desse período; pelo contrário, os gregos, os romanos, os primei ros cristãos, os povos indígenas, todos idealizaram maneiras de transmitir conhecimentos e tiveram formas de ensino mais ou menos institucionalizadas. Conservamos muitas delas: os amau- tas incas, os sofistas gregos, a figura socrática da interrogação mai- êutica deixaram marcas no imaginário sobre o que é ser um bom professor e sobre como se faz para ensinar. Entretanto, suas preo cupações e seus mundos eram mais distintos dos nossos do que os cie 1500. Seus espaços educativos eram povoados por outras inquietações e temores. Certamente, nas práticas que surgiram por volta de 1500, havia muita influência das pedagogias anterio res, que eram, afinal, o conhecimento disponível para homens e mulheres daquela época, e nosso estudo ganharia em profundida de caso fizesse todas as conexões possíveis tanto com o passado como com o futuro. O argumento pocleria retroceder ainda mais, em uma cadeia infinita. Dizem os que sabem escrever que em algum lugar deve-se colocar o ponto final, dizer “cheguei até aqui”, e é até aqui que chegaremos. Restringimos nosso trabalho à mo
  • 12. último, propusemos algumas perguntas sobre o futuro da sala de aula com relação à sua história. Como professores e alunos, estivemos, estamos e esta remos na sala de aula por muito tempo. Entretanto, na agitação da rotina de aprender e de ensinar, nem sempre paramos para pensar qual é realmente esta situação, tão importante para nos definirmos como docentes e pedagogos. O fato de ocuparmos uma sala de aula não significa automaticamente que a “habita mos”. Quando alguém apenas “ocupa” um espaço, trata-se de uma estrutura já existente: móveis, rotinas, tudo está lá e nos espera. O docente mais experiente nos diz o que considera fun damental para ser um bom professor. Se permanecermos com estas orientações, com a tradição que nos transmite a experiên cia dos outros (por mais valiosa que possa ser), estaremos “ocu pando” a sala de aula de uma maneira passiva, na qual simples mente nos acostumamos a coisas já existentes. “Habitar” a sala de aula significa formar esse espaço de acordo com gostos, op ções, margens de manobra; considerar alternativas, eleger algu mas e descartar outras. Habitar um espaço é, portanto, uma po sição ativa. Assim, este convite não se esgota no tema da sala de aula, mas tenta ser uma convocação para ativar nossas forças no sentido de “habitar” o lugar que apenas “ocupamos”. Agrada-nos esta citação do poeta Oliverio Girondo: “A rotina tece diariamente uma teia de aranha em nossas pupilas. Pouco a pouco, nos aprisionam a sintaxe, o dicionário, e ainda
  • 13.
  • 14. Fig. I. Gravura de 1592, provavelmente de uma escola de latim,
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  • 16.
  • 17.
  • 18. instrumental pedagógico) como na estrutura de comunicação (quem fala, onde se situa, o fluxo de comunicações). De acordo com dados fornecidos pelo pesquisador Da- vid Hamilton, o termo “sala de aula para lições” começou a ser utilizado na língua inglesa no final do século 18 (Hamilton, 1989). Em castelhano, por sua vez, o uso de “sala de aula” e de “lições” era comum ao ensino universitário na Idade Média, conservan do seu significado latino de “local onde o professor ou catedráti- co ensina aos estudantes a ciência e a disciplina que professa” (Diccionano de Autoridades, 1726). Entretanto, não era comum seu uso para referir-se ao recinto no qual teria lugar o ensino ele mentar, o qual, até aquele momento, era ministrado na casa do próprio professor ou em salas disponibilizadas pelo município ou pela igreja, denominadas scholas (em latim). A diferenciação dos alunos por idade era ainda incipiente (o que investigaremos mais adiante neste capítulo), e, na maioria das vezes, todas as crianças recebiam os ensinamentos juntas, sob a tutela de um professor que sabia apenas ler e escrever, e que lhes ensinava os rudimentos das primeiras letras, de cálculo e de catecismo. Entretanto, a difu 2. Um bom exemplo desta disjunção que se produzirio em um suposto encontro com nossos ontepossodos é o filmeNovigotor (Vincent UUord. fíustrólio, 1989), que conto o história de um grupo de camponeses afetadospelo peste bubônico por volto do ono 1350, que por ocoso 'surgem'’ em pleno século 20. Sal a üe a u l a ? Gen eal o g ia 5 Def in iç õ es par a In iciar o Per cur so são do termo “sala de aula”em relação à escolaridade elementar surgiu somente com a vitória dos métodos pedagógicos que propunham uma organização do ensino por grupos escolares diferenciados entre si, às vezes por idade e outras por seus resultados de aprendizagem. Neste capítulo, propomos um exame dessa história do surgimento e da consolidação da sala de aula como espaço edu
  • 19. capítulo é um pouco diferente. Para nós, de acordo com alguns filósofos e historiadores deste século, a genealogia é uma forma de olhar e de escrever a história que difere da história tradicio nal, porque é definida como história com perspectiva, crítica, inte ressada. A genealogia parte de um problema ou conceito atual e 33 A In ven ção da Sal a de Aul a elabora um “mapa” — não dos antepassados, mas sim das lutas e dos conflitos que configuraram o problema tal como o conhe cemos hoje. Os materiais históricos (fontes, escritos de época, análises históricas) não são revisados com um interesse mera mente erudito (“para aprender mais”), e sim com o objetivo de compreender como se criaram as condições que configuram o presente. É um olhar que adota o ponto de vista daqueles que sofrem os efeitos de poderes e saberes específicos (Varela, 1997, pp.36 e 61). Esta posição é claramente contrária à da história tradicio nal, que pressupõe que o conhecimento é neutro e objetivo, e que o historiador pode situar-se acima de seu tempo e de sua sociedade, e pode conhecer “o que verdadeiramente se passou”na Revolução de Maio ou em qualquer outro evento histórico, independentemente de seus valores e posições, ou dos conceitos e categorias que sua época lhe provê para analisar a história. Agenealogia, pelo contrário, assume uma visão perspectiva e não tenta enganar ninguém com relação à sua neutralidade. O filósofo e historiador Michel Foucault3afirma que “as forças presentes na história não obedecem nem a um destino nem a 3. Michel Foucoult (1926-1984) foi um filósofo, historiador e critico social, cujos trabalhos, que nãopodem ser facilmente enquodrodos em uma matéria determinado, se encontrom entre os moisinfluentesnasciênciasscaois e humonosda últimametodedo século. Cmboro seja difícil sistematizor em poucos palavras os linhos principais de suo obro. pode-se dizer que seus moiores interesses foram: I) o formação e a transformação do sober e dos conhecimentos e suo reloção com o poder e com o construção do verdade; 2) ossistemasde poder" invisíveis", paém centroisnossociedadesmodernas3) a construção dosdiferentestiposde subjetivida­
  • 20. las, ou para decidir qual nos parece mais “ justa" ou “verdadeira”; apenas nos lembra que esta hierarquização ou decisão é um ato próprio (político, diria Foucault), porque implica tomar posição diante de uma realidade conflituosa e dinâmica. Não renuncia a “conhecer a verdade”, e para isso utiliza todas as ferramentas dos historiadores — essa erudição minuciosa, paciente e cansativa de consultar arquivos e ler documentos. Sustenta, porém, que o que é “justo” e “verdadeiro” também deve ser questionado, pois essas definições são produto de lutas e conflitos específicos. A SALA DE AULA COMO MATERIALIDADE E COMO COMUNICAÇÃO Saber por que a sala de aula que conhecemos é como é ajuda-nos a ver quais decisões foram tomadas no passado e que processos ocorreram para chegarmos a esta determinada confi guração. Nosso argumento central é que a sala de aula onde as lições são ministradas é uma construção histórica, produto de um desenvol vimento que incluiu outras alternativas e possibilidades. Uma vez que a sala de aula é o recinto principal de nossa atividade docen te, questionar o óbvio, ver por que esta opção triunfou e quais opções foram excluídas pode contribuir também para pensar mos outros caminhos para nossas práticas. Para abordar nossa genealogia, queremos discutir pri meiro o que é a sala de aula. Ela tem, certamente, muitos ele mentos. Não apenas os docentes e os alunos, mas também mo biliário, instrumentos didáticos, as questões da arquitetura escolar, tudo faz parte da sala de aula. Os bancos escolares, as lousas e os cadernos têm uma história e uma especificidade pouco r ~ 3 6 docente ensina em uma escola regida por leis, opiniões, planos de estudo e outras coisas; entretanto, ele tem o poder de definir as pautas dessa relação, de torná-la mais igualitária, mais varia da, ou mais uniforme e hierárquica. Uma vez que a situação de ensino implica uma complexa situação de poder, consideramos que o ensino, como “condução”da sala de aula, pode ser analisado em rela ção ã condução das sociedades e dos grandes grupos. Assim sendo, a sala de aula pode ser analisada como uma situação de governo. São estas conexões entre sala de aula e governo que orientarão nossa genealogia. É esta a perspectiva que elegemos: a história dasformas de comunicação egoverno da sala de aula moderna como parte de uma história mais ampla, a história doS . S. Os contribuições de Hamilton ( I 989). Cutler (1989) e Johnson ( 1994) sõo trabalhospio­ neiros neste sentido. No âmbito do nosso trabalho, o história do caderno de lições e sua difusão na Rrgentino foi trabalhada por Silvina Gwtz (1997). 37 tem mais poder do que as crianças para definir o que transmitir a elas. É claro que esse poder não é absoluto, uma vez que o docente ensina em uma escola regida por leis, opiniões, planos de estudo e outras coisas; entretanto, ele tem o poder de definir as pautas dessa relação, de torná-la mais igualitária, mais varia da, ou mais uniforme e hierárquica. Uma vez que a situação de ensino implica uma complexa situação de poder, consideramos que o ensino, como “condução”da sala de aula, pode ser analisado em rela ção ã condução das sociedades e dos grandes grupos. Assim sendo, a sala de aula pode ser analisada como uma situação de governo. São estas conexões entre sala de aula e governo que orientarão nossa genealogia. É esta a perspectiva que elegemos: a história dasformas de comunicação egoverno da sala de aula moderna como parte de uma história mais ampla, a história doS . S. Os contribuições de Hamilton ( I 989). Cutler (1989) e Johnson ( 1994) sõo trabalhospio­ neiros neste sentido. No âmbito do nosso trabalho, o história do caderno de lições e sua difusão na Rrgentino foi trabalhada por Silvina Gwtz (1997). 37 A In ven ção da Sal a de Aul a governo das sociedades modernas. Certamente, pode haver genea logias que orientem o leitor em outras direções (a sala de aula como surgimento do indivíduo moderno ou como lugar de pro fissionalização docente, para citar alguns outros exemplos), mas acreditamos que esta é uma linha central na reflexão pedagógica da qual nem sempre nos encarregamos como educadores. Quan do um professor lê o recibo de seu salário ou percebe a quanti dade de instâncias que estão acima dele e que decidem sobre sua tarefa (ministérios, leis, diretores, especialistas), pode pen sar que não tem poder algum. Esta estrutura do sistema, as frus trações diárias e os poucos sucessos tornam difícil para os pro fessores pensar sobre o poder em geral e sobre seu próprio poder em particular. Em outro ponto, vimos como o poder é algo que está em todos os lugares, é onipresente; e como circula, se trans forma e se consolida.6 Em seguida, tentaremos mostrar como foi construída essa estrutura de poder particular que é o ensino na sala de aula, e se asformas da “liderança ”da sala de aula se relacionam com asformas de “liderança”na sociedade e na política. Tentaremos verificar se algumas características do governo das sociedades modernas têm algo em comum com as formas do “governo das crianças”,como alguns autores definiam a educação há 200 anos. Se durante muito tempo se falou da educação “autoritária”, terá sido porque houve ditaduras ou porque o totalitarismo também mas décadas, quando Sigmund Freud — o fundador da psicaná- |jSC__começou a refletir sobre quando deve terminar a terapia psicanalítica, e tentou formular qual seria o ponto de maturidade da ação terapêutica, encontrou-se diante de uma questão ainda mais radical. Existe realmente esse momento no qual se pode afir mar que uma pessoa está curada? Freud responde provisoriamente que sim, e acrescenta: “Detenhamo-nos por um momento para garantir ao analista nossa sincera simpatia por ter que cumpri-lo com requisitos tão difíceis no exercício de sua atividade. E até parecería que analisar seria a terceira das profissões ‘impossíveis’, em que se pode dar antecipadamente como certa a insuficiência do resulta do. ris outras duas, há muito conhecidas, são educar egovernar”(Freud, 1937; 1986, p. 249; a parte em itálico foi destacada por nós). Com esta afirmação, que voltaremos a analisar no último capítulo, Freud tenta formular algo além do simples fato de que a educação não termina nunca, que nenhum go verno é para sempre, simplesmente porque não existe gover no “completo” ou “perfeito”, ou que o final de uma terapia psicanalítica é um momento relativo. O que a afirmação de Freud parece sugerir é que talvez educação, psicanálise e gover no tenham estruturas semelhantes. As três atividades propõem- se a modificar o indivíduo em determinada direção; ao mes mo tempo, as três enfrentam a dificuldade de moldá-lo de acordo com um esquema prefixado — pois assim como não existe governo totalmente onipotente e eficaz, que consegue tudo aquilo a que se propõe, também não existe um processo educativo que garanta totalmente que o produto final seja o esperado. Em nossa abordagem genealógica, proporemos que os problemas da educação são mais bem-compreendidos quando os enfocamos como parte das relações de poder e de estruturas de governo e de organização da sociedade. 39
  • 21. cipalmente conventos e monastérios): a consciência. Ter uma cons ciência boa ou má tornou-se o elemento central da religião. Essas técnicas do eu, essas questões dirigidas a si próprio são o que chamaría mos de a base de nossa conduta, ou seja, de nossa “condução”. Ao longo desses séculos, conduzir a si próprio, controlar-se através da boa ou má consciência converteu-se em algo primordial para as pessoas (Kittsteiner, 1991, p. 357 e ss.). Do mesmo modo, o pai de família começou a questionar-se sobre suas obrigações, entre elas a educa ção de seus filhos, embora naquele momento a “educação” fosse compreendida como algo diferente daquilo que entendemos hoje. O que ocorre entre os séculos 16 e 18 é a constituição de uma moral coletiva ainda vigente entre nós, embora conviva mos com os sintomas de sua prolongada crise. Esse processo de moralização interessa imensamente aos reis e a outras autoridades da época, que vêem o mundo transformar-se diante de seus olhos. Já não se trata de impor a obediência cega sob ameaça de violência, mas de obter a obediência reflexiva, aceita como correta. A obediência com “boa consciência”, a obediência “interior”, toma-se cada vez 42 automóveis, e talvez mais próximo da “conduta” dos boletins es colares: como alguém se comporta, como se conduz. Conduziras conduções não é fácil. O primeiro requisito é que a população “sinta” que deve conduzir a si mesma, que deve cumprir as regras e que, caso não o faça, deve justificar-se e saber por que não as cumpre, e aceitar um castigo ou reprimenda. A idéia de que é preciso go vernar-se, controlar os impulsos, comportar-se de acordo com determinados códigos e refletir sobre as causas e consequências de nossos atos é um fenômeno que, embora reconheça antece dentes na Antigüidade clássica, se expandiu apenas durante os séculos que estamos analisando. O camponês da Idade Média, embora pagasse os impostos anuais, não tinha necessidade de jus tificar-se detalhadamente por seus atos, nem de “comportar-se” ou “conduzir-se” de maneira minuciosamente regrada. Isto não significa que fosse livre ou que pudesse fazer o que bem entendes se. Por um lado, não era livre em termos jurídicos, e tinha muitas obrigações para com seu senhor; por outro, sua vida tinha outras regulações, provenientes de seu relacionamento com a natureza, de sua religiosidade e de seu trabalho como camponês. O que queremos destacar com esta comparação retrospectiva é que o “poder central” (reis e senhores) não estava interessado nem pro curava justificativa para o que seu subordinado pensava, sentia e fazia, a não ser em relação às suas obrigações mínimas. Uma vez que a população aceita a necessidade de go vernar-se a si própria, o segundo requisito é agrupar, organizar e 43 embora pagasse os impostos anuais, não tinha necessidade de jus tificar-se detalhadamente por seus atos, nem de “comportar-se” ou “conduzir-se” de maneira minuciosamente regrada. Isto não significa que fosse livre ou que pudesse fazer o que bem entendes se. Por um lado, não era livre em termos jurídicos, e tinha muitas obrigações para com seu senhor; por outro, sua vida tinha outras regulações, provenientes de seu relacionamento com a natureza, de sua religiosidade e de seu trabalho como camponês. O que queremos destacar com esta comparação retrospectiva é que o “poder central” (reis e senhores) não estava interessado nem pro curava justificativa para o que seu subordinado pensava, sentia e fazia, a não ser em relação às suas obrigações mínimas. Uma vez que a população aceita a necessidade de go vernar-se a si própria, o segundo requisito é agrupar, organizar e 43 A In ven ção da Sal a de Aul a selecionar estas conduções, definindo quais dessas condutas po dem ser consideradas desejáveis e quais não o são. Por esse mo tivo, definimos governo como essas definições sobre as conduções dos súditos, essa condução das conduções individuais. A esse respeito afirmou Michel Foucault: “Em minha opinião, o ponto de con tato no qual a forma de dirigir os indivíduos está ligada a outras conduções, como a forma de condução de si próprio, pode ser chamado de governo. Em um sentido amplo da palavra, ‘gover no’ não é uma forma de forçar os homens a fazer coisas que o governante deseja; na realidade, trata-se antes de um equilíbrio móvel com agregados, e de conflitos entre as técnicas que garan tem a obediência (imposição) e os processos através dos quais uma pessoa se desenvolve e se transforma” (Foucault, 1993a, pp. 203-204). Ou seja, para criar um governo, para criar um estado de “governamentalidade” (uma mentalidade de governo, que aceite e valorize o governo), duas coisas são necessárias: em primeiro lugar, a condução de si próprio; e em segundo lugar a articulação, a união, a combinação de muitas conduções (a do pai, a do professor, inclusive a do médico) com a condução glo bal de um estado moderno. Estas duas conduções não necessa riamente coincidem: muitas vezes, o ato de autogovemar-se vai contra aquilo que a sociedade impõe, e dessas discrepâncias sur gem espaços de liberdade. Assim, o governo moderno, longe de governante deseja; na realidade, trata-se antes de um equilíbrio móvel com agregados, e de conflitos entre as técnicas que garan tem a obediência (imposição) e os processos através dos quais uma pessoa se desenvolve e se transforma” (Foucault, 1993a, pp. 203-204). Ou seja, para criar um governo, para criar um estado de “governamentalidade” (uma mentalidade de governo, que aceite e valorize o governo), duas coisas são necessárias: em primeiro lugar, a condução de si próprio; e em segundo lugar a articulação, a união, a combinação de muitas conduções (a do pai, a do professor, inclusive a do médico) com a condução glo bal de um estado moderno. Estas duas conduções não necessa riamente coincidem: muitas vezes, o ato de autogovemar-se vai contra aquilo que a sociedade impõe, e dessas discrepâncias sur gem espaços de liberdade. Assim, o governo moderno, longe de ser a antítese da liberdade, é sua condição de possibilidade — pois a condução de si próprio e dos demais implica, paradoxal mente, a administração e a regulação da liberdade: governar-se é aprender afazer uso da liberdade, de uma liberdade que nem é pura nem está livre de contaminação, mas que surge das aprendizagens sociais, das regidações e dos espaços intersticiais criados por das. * O governo deve ser produzido e, mais do que isso, deve ser produzido de maneira constante. “O conceito de ‘arte de governar’ 44 remete à ‘artificialidade’ das técnicas de condução (...)” (Lemke, 1997, p. 158; a parte em itálico foi destacada por nós). Esta artifi cialidade refere-se a uma “arte” que age sobre a natureza; é algo que deve ser inventado, provado, avaliado, modificado, uma vez que não se pode pegá-la como se pega uma maçã de uma árvore. Neste processo, a educação do príncipe que governa, ou governa rá, e a educação do governado passam a ter importância crucial. Assim sendo, ogoverno também se define pela maneira como se pensa a quem e a que se diríge a condução. Nos primórdios da modernidade — por volta de 1500 até 1700 — ,surgiram duas formas para defi nir as práticas de governo: a primeira (prevalente na Idade Média) afirmava que governar era ter a soberania sobre um território, en quanto que a segunda considerava que governar não se referia so mente a um território, mas principalmente a objetos ou pessoas. “(...) o conceito de ‘governo’não envolve uma questão de imposi ção das leis aos homens, mas de dispor as coisas: isto é, de empre gar mais táticas do que leis, e inclusive utilizar as leis como táticas em si mesmas” (Foucault, 1991, p. 95). Embora desde a Antigui dade clássica (gregos e romanos) sempre tenham existido alguns tipos de leis, códigos ou regras de validade geral, o governo mo derno, embora continue a utilizá-los, combina-os com novas formas: por exemplo, quando um governo “investe”em determinados em preendimentos econômicos, já não se trata de aplicar uma lei, mas sim de outro tipo de intervenção, que regula outros aspectos da vida social, introduzindo novos agentes e novas instituições. A es colafaz parte desses novos tipos de intewenção: a preocupação em for mar a consciência da população e de criar uma nova aceitação para as coisas quejã existiam (os impostos, por exemplo) ou para as novas in tervenções (o serviço militar obrigatório, por exemplo). Para desenvolver essas táticas, a acumulação de conhe cimentos sobre os objetos (homens e materiais) que devem ser i 4.
  • 22. A sala de aula cresce: a disciplina na era da revolução industrial parece natural, e, no entanto, aparecerá bem mais tarde na his tória das práticas de governo. Governar é, portanto, conduzir uma população (idem, p. 99). Este é o espaço central da pedagogia, uma vez que trata de educar as consciências e os corpos.8 Â sala de aula como a conhecemos e também as estruturas que a precederam são situações sociais nas quais se produzem as con duções. Em primeiro lugar, interessa que a criança conduza a si mesma, seja ficando quieta em seu banco ou conduzindo seu pró prio pensamento durante a aprendizagem. Em segundo lugar, que conduza a si mesma por meio de e com base em modelos, pautas e normas definidas pelo condutor dessas conduções: o professor e, acima dele, o Estado. Nos postulados da pedagogia com relação à sala de aula, principalmente com respeito ao método, pode-se observar como se produz uma certa “governamentalidade”, esta do que permite que sejamos governados. Em seguida, analisare mos de que maneira a sala de aula se estruturou como uma situa ção de governo na qual as crianças, os jovens e também os professores deveríam ser conduzidos. Veremos, por um lado, como surgiu na pedagogia uma condução especificamente moderna — ado professor na sala de aula onde as lições são ministradas; e como se vincula esta nova situação com a tendência a longo prazo do mundo moderno de produzir a condução de si mesmo e de combinar todas as conduções em uma condução central, ou governo.
  • 23. penetrou no contexto das grandes mudanças econômicas, sociais e políticas na Europa ocidental pouco antes de 1800. Vamos concen trar-nos nessa época cheia de novidades e de mudanças estruturais e na forma como a sala de aula, como materialidade e como forma de comunicação, foi não apenas reagindo a este desenvolvimento, mas também contribuindo para que de fato ocorresse. Vamos retomar algumas pontas soltas do capítulo an terior. Argumentamos que a pedagogia de 1700 imaginava e pro punha uma sala de aula onde a condução pastoral havia sido deslo cada, passando a dar prioridade ao grupo, e havia deixado de lado certa individualização das práticas educativas anteriores (por exem plo, a prática implícita na educação de príncipes e artesãos). Um dos motivos do sucesso dessa proposta entre os estadistas era o número de alunos que pretendia incorporar. O outro lado da moeda era o fato de privilegiar uma obediência em grupo, con siderando a individual como um resultado daquela. No entanto, as novas condições nas sociedades européias reivindicaram mu 103
  • 24. Contexto de mudanças - Revolução industrial, crescimento da massa urbana, revolução francesa, iluminismo, liberalismo clássico Neste contexto em que as transformações causavam novas demandas e inseguranças, os estados centrais começaram a demonstrar maior interesse na questão da educação primária. Lembremos que, até este momento, as iniciativas da educação popular tinham-se baseado em obras de caridade de caráter pri vado e, além disso, de forma inorgânica e pouco coordenada. A educação obrigatória apareceu como a nova ferramenta para a pro dução em massa da obediência, no contexto de populações que mi gravam, cidades que cresciam descontroladamente e ritmo de cres 108 A 5al a o e Aul a Cr esc e: a Discipl in a nos Tempo s da Rev o l u ç ão In dust r ial cimento acelerado. Em 1768, o presidente do parlamento de Pa ris dizia: é necessária a educação comum que divulgue “os mes mos princípios e as mesmas luzes (de maneira uniforme). Imbu ídos desde a infância das mesmas verdades, os jovens de todas as províncias se libertarão dos preconceitos do nascimento, de senvolverão as mesmas idéias de virtude e justiça, e aprenderão a derrubar as barreiras que os separam de seus compatriotas” (citado em Chartier e outros, 1976, p. 209). Entre 1763 e 1803, Prússia, Áustria, Saxônia e Baviera foram os primeiros estados a introduzir a obrigatoriedade escolar por um período de seis a sete anos (Manacorda, 1987, p. 391). Em alguns casos, era com plementada com a obrigatoriedade de participar de uma escola dominical de fundo religioso até os 18 anos. A escola não era A 5al a o e Aul a Cr esc e: a Discipl in a nos Tempo s da Rev o l u ç ão In dust r ial cimento acelerado. Em 1768, o presidente do parlamento de Pa ris dizia: é necessária a educação comum que divulgue “os mes mos princípios e as mesmas luzes (de maneira uniforme). Imbu ídos desde a infância das mesmas verdades, os jovens de todas as províncias se libertarão dos preconceitos do nascimento, de senvolverão as mesmas idéias de virtude e justiça, e aprenderão a derrubar as barreiras que os separam de seus compatriotas” (citado em Chartier e outros, 1976, p. 209). Entre 1763 e 1803, Prússia, Áustria, Saxônia e Baviera foram os primeiros estados a introduzir a obrigatoriedade escolar por um período de seis a sete anos (Manacorda, 1987, p. 391). Em alguns casos, era com A 5al a o e Aul a Cr esc e: a Discipl in a nos Tempo s da Rev o l u ç ão In dust r ial cimento acelerado. Em 1768, o presidente do parlamento de Pa ris dizia: é necessária a educação comum que divulgue “os mes mos princípios e as mesmas luzes (de maneira uniforme). Imbu ídos desde a infância das mesmas verdades, os jovens de todas as províncias se libertarão dos preconceitos do nascimento, de senvolverão as mesmas idéias de virtude e justiça, e aprenderão a derrubar as barreiras que os separam de seus compatriotas” (citado em Chartier e outros, 1976, p. 209). Entre 1763 e 1803, Prússia, Áustria, Saxônia e Baviera foram os primeiros estados a introduzir a obrigatoriedade escolar por um período de seis a sete anos (Manacorda, 1987, p. 391). Em alguns casos, era com plementada com a obrigatoriedade de participar de uma escola dominical de fundo religioso até os 18 anos. A escola não era gratuita e, apesar de as taxas não serem muito altas, o grande número de crianças em uma família camponesa poderia resultar em uma soma total considerável a ser paga. Por outro lado, a escolarização significava afastar as crianças do mundo do traba lho, privando as famílias de uma renda que, em muitos casos,
  • 25.
  • 26. EDUCAÇÃO PRUSSIANA IMPÉRIO PRUSSIANO 1701-1918 Tornou a educação um direito de cada cidadão e um dever do Estado em prover instalações, professores, currículos e avaliações.
  • 27. Foi o rei Frederico Guilherme I quem inaugurou o sistema de educação compulsória prussiano, o primeiro sistema nacional na Europa. Em 1717, ele ordenou a frequência obrigatória para todas as crianças nas escolas estatais e, em atos posteriores, seguiu com a disposição para a construção de mais escolas (ROTHBARD, 1999, p. 25,in “ORIGEM DA EDUCAÇÃO OBRIGATÓRIA: UM OLHAR SOBRE A PRÚSSIA” CELETI, Filipe Rangel). Samuel Theodor Gericke, 1713
  • 28. O sucessor de Frederico II também continuou com o ideal educacional. Decorrente do estabelecimento da obrigatoriedade da frequência escolar, o ministro de Frederico Guilherme III, Barão vom Stein, começou abolindo as escolas privadas semi-religiosas e colocando toda educação diretamente sob o Ministério do Interior. Em 1810, o ministro decretou a necessidade de exame estatal e certificação de todos os professores. Em 1812, o exame de graduação escolar foi retoma-do, como um requerimento necessário para o ingresso da criança na escola estatal, e foi estabelecido um sistema elaborado de burocratas para supervisionar as escolas no campo e nas cidades (ROTHBARD, 1999, p. 25, in “ORIGEM DA EDUCAÇÃO OBRIGATÓRIA: UM OLHAR SOBRE A PRÚSSIA” CELETI, Filipe Rangel). Frederico Guilherme III e rainha Luísa no jardim do Palácio Charlottenburg Friedrich Georg Weitsch, 1799
  • 29. EDUCAÇÃO PRUSSIANA Selo de Nuremberg de 1910 representando o funil de Nuremberg ("Se você perder sabedoria em alguns campos, traga o funil de Nuremberg")
  • 30. o funil de nurenberg já foi muito estimado, mas hoje as pessoas são mais inteligentes, você não precisa mais dele
  • 31. A 5al a de Aul a Cr esce a Discipl in a nos Tempo s da Dev o l u ç ão In dust r ial animalidade. Para Kant, o objetivo da escola era disciplinar os instintos animais e “humanizar”o homem. Assim, o tema da con dução das crianças era central em suas preocupações. Dizia que, inicialmente, as crianças são encaminhadas “à escola, não ainda com a intenção de que aprendam algo, mas'sim com o objetivo de habituá-las a permanecer em silêncio e a observar pontual mente o que lhes é ordenado, para que mais tarde não se deixem dominar por seus caprichos momentâneos” (Kant, 1803; 1983, p. 30). Não por acaso, Kant escolhe a metáfora das plantas e da jardinagem para falar da educação. Ao comparar o trabalho com as crianças ao trabalho com as plantas, mostra claramente as tendências disciplinadoras da época por meio da idéia de que o pensamento infantil pode ser endireitado como um galho torci do (Petrat, 1987, introdução). Entre os filósofos modernos, Kant é um dos primeiros a refletir sobre a relação entre o governo e a educação. Em suas aulas, argumentava que “a arte do governo e a arte da educação” são as duas invenções mais difíceis da humanidade, e sobre as quais sempre haverá controvérsia (Kant, 1983, p. 35). O gover no que imaginava devia basear-se na razão, e não na força; por tanto, era preciso que a obediência estivesse fundada na racio nalidade, e não na repetição de memória: “deve-se cultivar a memória desde muito cedo, sem esquecer também da compre ensão” (idem, p. 65, tradução modificada pelos autores). Con centrar-se, sentar-se em silêncio, obedecer às instruções: para Kant, eram estas as atitudes fundamentais na sala de aula. Afir são as duas invenções mais difíceis da humanidade, e sobre as quais sempre haverá controvérsia (Kant, 1983, p. 35). O gover no que imaginava devia basear-se na razão, e não na força; por tanto, era preciso que a obediência estivesse fundada na racio nalidade, e não na repetição de memória: “deve-se cultivar a memória desde muito cedo, sem esquecer também da compre ensão” (idem, p. 65, tradução modificada pelos autores). Con centrar-se, sentar-se em silêncio, obedecer às instruções: para Kant, eram estas as atitudes fundamentais na sala de aula. Afir ma: “A escola é uma cultura coercitiva” (p. 63); deve habituar a criança ao trabalho, separando a vida escolar da brincadeira e dotando-a da seriedade e da coação necessárias. Embora se ba seasse no uso da razão, a seriedade de sua pedagogia tem conti nuidade na vida escolar jesuítica, que criava um universo artifi 111 nidade. O catecismo católico (o mais famoso foi escrito por um jesuíta, Pedro Canisius) e o catecismo protestante (escrito pelo próprio Lutero) tinham uma longa trajetória de utilização nas salas de aula da escola elementar. “Catecismo” (do latim medieval catechismus) significa “instruir em viva voz” (Cucu- zza, 1997, p. 1), e era a forma corrente de instrução religiosa. No entanto, a insistência de Kant no método catequista con tinha elementos novos, uma vez que propunha resolver a ques tão da disciplina em meio a grandes mudanças sociais e políti cas. No caso alemão, a obrigatoriedade da escola — sancionada na Prússia por um regulamento para as escolas rurais de 1763, e reforçada por outro regulamento em 1794, no qual as doutri nas kantiana e iluminista de “educar o camponês” estavam na ordem do dia — não coincidia estritamente com a industriali zação, nem com a ascensão da burguesia, como nos casos in glês e francês. Naquele momento, o problema da Prússia era como “liberar” os camponeses das velhas relações de submis são à nobreza e introduzi-los nas relações mais modernas sem sofrer as turbulências revolucionárias que colocariam em risco a ordem absolutista estabelecida. Kant e os iluministas alemães- prussianos pensavam que, nesse contexto de transformações, a escola deveria desempenhar um papel estabilizador (Van Horn Melton, 1988), e por esse motivo sua pedagogia reduziu o método global à catequização, onde a dinâmica de pergunta e resposta era, na verdade, uma contrapartida na qual a resposta já estava estabelecida e deveria apenas ser reproduzida.
  • 32. A In ven ção da Sal a de Aul a da escola25. Na Alemanha, a pedagogia assumiu nesse momento o caráter de disciplina universitária. Em 1779, na Universidade da cidade de Halle, criou-se a primeira cadeira de Pedagogia em língua alemã. Essa cadeira foi ocupada por Christian Trapp (1745- 1818), que no ano seguinte publicou suas aulas com o título Ensaio de Pedagogia. Na sua obra, a didática — esse ramo da pedagogia que se ocupa do método de ensino — emergiu como uma catequização disciplinadora, como vimos em Kant. No en tanto, tinha uma preocupação crescente com a atenção do aluno e a compreensão do conteúdo, que recuperava a velha demanda de Comenio sobre a compreensão e a motivação com base no ensino (Trapp, 1977, p. 256 e 286 s.). Trapp defendia que a compreensão do aluno (e não apenas a repetição de memória) fosse incluída na estrutura de comunicação na sala de aula. O
  • 33. A Sal a de Aul a Cr esc e: a Discipl in a nos Tempo s da Rev o l u ç ão In dust r ial tratava de apenas manter as crianças quietas na sala de aula, mas também de fazer com que aprendessem. Até então, a es cola elementar tinha muito da creche disciplinar, onde as pessoas soletravam, cantavam e, às vezes, liam e contavam. 0 “ensino”em sentido estrito e moderno existiu a partir da estrutu ra do processamento didático e ocorreu a partir da preocupa ção não com uma disciplina aparente ou superficial, mas sim com um governo “profundo” das crianças, por uma internali- zação de saberes que modificava condutas e atitudes. Esta transição foi possível porque a memória perdeu o monopólio como objetivo da formação, e a compreensão ou o entendi mento passou a ocupar o centro. A nova pedagogia exigia que os “alunos (fossem) levados paulatinamente a pensar” (Petrat, 1979, p. 187). Diferentemente da obediência reflexi va de Lutero, centralizada na relação da pessoa com sua co munidade e com Deus, a idéia pós-kantiana da compreensão como objetivo do ensino centrava-se em um indivíduo carac
  • 34. Fig. I I.A aula na galeria, segundo o sistema de Wilderspin ( 1840). Observe que as crianças levantam a mão (Extraído de: D. Hamilton: Towards aTheory ofSchooling, Falmer Press, Londres, 1989). Recapitulando tudo o que foi dito sobre esta etapa da Revolução Industrial, da Revolução Francesa e da modernização do século XIX, podemos dizer que o pastorado, na maneira como foi integrado à sala de aula nos primeiros tempos da modernida de, adquiriu nessa época uma forma mais definida e minuciosa mente regulamentada. A imagem clássica do professor diante da lousa e as crianças olhando para frente — tão clássica que às vezes nos custa imaginar outra, apesar de existirem variantes, como tentamos mostrar neste capítulo — aparece como uma proposta que sintetiza os propósitos moralizadores da condução pastoral e os disciplinadores da condução industrial. Nessa época, com a lenta, porém segura expansão da obrigatoriedade da escola e com a produção de técnicas de con dução e vigilância por parte dos pedagogos, consolidou-se essa “mentalidade de governo”que chamamos “govemamentalidade”. 155 1 n m a n B n n H M A In ven ção da Sal a de Aul a De fato, as crianças foram colocadas em uma situação definida pela obediência — responder uma pergunta, não se arriscar a colar, aprender que a autoridade está centralizada e que define as coisas. A civilização industrial, não só através da sala de aula e da escola, mas também tomando-as como pilares, ampliou as formas e o alcance do governo. Tantas horas, tantos dias, tantos anos em uma situação de governo como é a sala de aula levavam as grandes massas a pensar no governo como algo “natural”, e não como algo construído pelos homens e pelos poderes. Em bora anteriormente se produzisse obediência (vimos inclusive que Lutero falava de uma obediência reflexiva), na nova ordem social que surgiu depois da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, esta obediência foi produzida em termos de um indi víduo autônomo, capaz de governar suas condutas e seus senti mentos. Isto ocorreu por meio de muitos agentes: o serviço mi litar, a autoridade médica, a adoção das línguas vulgares na missa, a legislação estatal sobre a família, nascimentos, cemitérios, etc. Nesta estratégia, a sala de aula global ou simultânea, com sua comunicação organizada em torno de uma figura centralizada, desempenhou papel fundamental. A formação do caráter e a docilidade dos corpos foram dois lados do mesmo processo; no entanto, este não fói automá tico, imediato ou completo, mas sim o resultado de muitas pro postas e de desenvolvimentos divergentes. Junto a eles, a didáti ca emergiu no meio dessas mudanças como uma tecnologia em rápida expansão. A formação docente sistematizada seguiu este desenvolvi mento e institucionalizou-se. No entanto, longe de ser um cami nho de desenvolvimento e aperfeiçoamento sem riscos, a pro dução pedagógica sobre a condução da sala de aula sofreria ainda outros questionamentos e mudanças. Serão estes os temas do próximo capítulo.