1) O documento discute as relações entre letras de rap e interpretação jurídica, notando como algumas letras representam indivíduos deslegitimados pelo sistema jurídico.
2) A teoria do sociólogo Pierre Bourdieu sobre "campos" é aplicada para entender como o direito opera como um campo autônomo que legitima certos atores.
3) Algumas letras de rap do grupo Racionais MC's são analisadas para mostrar como elas debatem a ineficácia de direitos constitucionais para alguns grupos.
2013.11.02 - ZERO HORA - leitura reduz pena de condenados do presídio central...
2014.07.29- EUMED -contradiscurso e hermenêutica jurídica
1. 17/02/2015 Contradiscurso e hermenêutica jurídica
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Editor:
Juan Carlos M. Coll (CV)
ISSN: 19887833
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Contribuciones a las Ciencias Sociales
Julio 2014
CONTRADISCURSO E HERMENÊUTICA JURÍDICA:
REPRESENTAÇÃO DA ATUAÇÃO ESTATAL NAS LETRAS DE RAP
Mari Cristina de Freitas Fagundes (CV)
Ana Clara Correa Henning (CV)
Marcelo Nunes Apolinário (CV)
maricris.ff@hotmail.com
UFPEL UFSC
RESUMO: o presente texto discute possíveis relações entre letras de Rap e
interpretação do direito. Leva em conta diferenciações entre aqueles legitimados pelo
campo jurídico e aqueles cujas vozes não encontram guarida nesse campo,
especialmente por se tratarem de indivíduos deslegitimados em razão de sua etnia,
condição econômica e social. Realçase composições musicais que representam
relações de poder entre o aparato estatal e seus agentes com cidadãos integrantes
de uma parcela populacional vista com suspeita pelas autoridades. Tais letras
também debatem a ineficácia de direitos e princípios constitucionais tais como direito
à vida, à integridade física e à igualdade.
PALAVRASCHAVE: Rap, interpretação do Direito, representação estatal,
Constituição, discurso jurídico.
Resumen: El presente artículo discute posibles relaciones entre las letras de Rap e
interpretación del derecho. Lleva en cuenta distinciones entre aquellos legitimados por
el campo jurídico y aquellos cuyas voces no encuentran protección en este campo,
especialmente por se trataren de individuos deslegitimados en razón de su etnia,
condición económica y social. Se destaca composiciones musicales que representan
relaciones de poder entre el aparato estatal y sus agentes con ciudadanos integrantes
de una parcela de la población vista como sospechosa por las autoridades. Tales
letras también debaten la ineficacia de derechos y principios constitucionales tales
como derecho a la vida, a la integridad física y a la igualdad.
PALABRASCLAVE: Rap, interpretación del derecho, representación estatal,
constitución, discurso jurídico.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
de Freitas Fagundes, M., Correa Henning, A. y Nunes Apolinário, M.:
"Contradiscurso e hermenêutica jurídica: representação da atuação estatal nas letras
de RAP", en Contribuciones a las Ciencias Sociales, Julio 2014,
www.eumed.net/rev/cccss/29/discursojuridico.html
INTRODUÇÃO
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Partindo da compreensão da existência da diversidade social na contemporaneidade,
buscouse trazer algumas letras de Rap que tenham como tema principal o sistema
de justiça criminal vigente no país, contextualizando parte da realidade social dos
atores que compõem esse repertório musical e de seus ouvintes, procurando romper
com conceitos positivistas, articulando ciência e arte como forma de aproximação da
realidade.
Através desses critérios “diferentes”, buscase tornar visível a pluralidade de
experiências sociais hoje efetivadas em uma sociedade heterogênea, procurando
romper com a “vontade de sistema” e com conceitos de verdade herdados da
modernidade. Para efetivação do que aqui se propõe, se lançará mão ao referencial
teórico voltado à criminologia cultural, bem como à sociologia, apoiandose
precisamente em alguns conceitos desenvolvidos por Pierre Bourdieu. Além disso,
buscouse destacar algumas produções acadêmicas que enlaçam arte e direito.
Sendo assim, estruturalmente o texto ficou dividido em três partes, buscando,
primeiramente, destacar a teoria de Pierre Bourdieu no que diz respeito ao campo
jurídico. Posteriormente, destacouse alguns estudos que envolvem música e direito,
bem como uma breve contextualização do Rap no Brasil e a contribuição do grupo
Racionais MC’s para as questões politizadas tratadas nesse tipo de música. Por fim,
se trouxe para análise algumas letras de Rap, evidenciando a importância de lançar o
olhar a estas produções a fim de aproximar o campo jurídico da realidade vivenciada
por certos agentes sociais.
Destacase que o recorte metodológico voltouse para algumas produções do grupo
Racionais MC’s, apoiandose na revisão bibliográfica que diz respeito ao tema, bem
como pontuado acima. Sendo assim, convidase o leitor para lançar um olhar crítico à
produção do Direito a partir de algumas letras de Rap.
1. A teoria bourdiana e algumas contribuições para a compreensão do campo
jurídico
Como é possível verificar dos textos jurídicos, das produções acadêmicas e do
posicionamento que se possui do direito na contemporaneidade, sobressalta aos
olhos a autonomia que essa ciência possui nestes tempos. Mais que isso: por vezes
mostrase um dos mecanismos potentes para engendrar a “ordem” social.
É partindo dessa autonomia e dessa representatividade da ciência jurídica possui,
que o conceito bourdiano de “campo” (BOURDIEU, 2012) se apresenta pertinente e
potente para o desenvolvimento desse estudo, pois, como se verá, o conceito
desenvolvido por Pierre Bourdieu demonstra a capacidade que determinadas ciências
possuem em se apresentar como legítimas e com isso, legitimar os sujeitos
capacitados para produzir as verdades dentro do seu campo e, em contrapartida,
negar saberes que não sejam produzidos nela.
É nesse sentido que emerge o que o referido autor pontua como profanos e iniciados
(BOURDIEU, 2012). Aqueles são os que não possuem conhecimento dentro de
determinado campo, enquanto que os últimos são legitimados para falar sobre dado
assunto em determinado campo. Exemplificando: magistrados, advogados,
promotores podem ser considerados iniciados, pois o saber que desenvolvem no
campo jurídico é ali considerado legítimo; enquanto que compositores de Rap são
considerados profanos, pois embora possam se referir a esta área, a produção que
destacam não é efetuada dentro do campo do direito, logo não tão “legítima” como a
produção daqueles.
Entretanto, possibilitando a construção de questionamentos a esse saber produzido
dentro de certo campo, tendo em vista a heterogeneidade social, da qual Bourdieu
não se furta, levando em consideração as inúmeras pesquisas empíricas
desenvolvidas em seus estudos, o autor enfatiza a existência de disposições
duráveis que distinguem os sujeitos e que são mecanismos que os acompanham,
fazendo com que certas produções desenvolvidas em determinados campos não
sejam plenamente compreendidas por atores que se encontram situados em campos
diferentes (WACQUANT, 2008). Essas disposições, resumidamente, consistem no
que o autor denomina como habitus.
A importância de situar o leitor nesses dois conceitos, se dá pelo fato de habitus e
campo serem conceitos caros a Pirre Bourdieu e, além disso, por estarem
intimamente ligados.
Voltandose precisamente a este estudo, a necessidade de destacar as produções no
campo jurídico, dáse pela crítica que se desenvolve as produções efetuadas pelos
saberes nele legitimado, negando, por vezes, os saberes pulsantes no meio social.
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Destacase que o campo jurídico possui uma lógica própria e é através dela que se
legitima. Os atores que fazem parte desse campo o disputam internamente, o que
direciona ainda mais o seu fechamento para que os atores ali envolvidos
permaneçam legitimados. Nesse sentido cabe destacar:
[...] As práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento
de um campo cuja lógica específica está duplamente determinada: por um lado, pelas
relações de força específicas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as
lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele
têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em
cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções
propriamente jurídicas (BOURDIEU, 2012, p. 211).
Notase que o autor destaca a potencialidade do direito em produzir conhecimento
imbuído em suas próprias lógicas. Lógicas estas construídas historicamente,
ancoradas em certas formas de poder. Daí a dificuldade de se contrapor ao
conhecimento produzido no campo jurídico, tendo em vista as representações que se
obtém a partir dessa produção.
É nessa linha que o autor destaca a necessidade de ultrapassar, desencobrir as
estruturas mais internas nos diversos mundos sociais, assim como os mecanismos
que tendem a assegurar a reprodução e a transformação. É nesse sentido que
estudar a música, mais precisamente, o Rap, como um artefato cultural potente para
deslocar as certezas que o campo jurídico engendra socialmente, se apresenta como
mecanismo instigador para, nas palavras do autor, “desencobrir as estruturas”
entendidas como postas. Lembrando:
O campo jurídico é o lugar da concorrência pelo monopólio do direito de dizer o
direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos)ou a boa ordem, na qual se defrontam
agentes investigativos de competência ao mesmo tempo social e técnica que
consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais
ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima,
justa, do mundo social. É com esta condição que se podem dar as razões quer da
autonomia relativa do direito, quer do efeito propriamente simbólico que o
desconhecimento, que resulta da ilusão de sua autonomia absoluta em relação às
pressões externas (BOURDIEU, 2012, p. 212) [grifos do autor].
Tendo em vista a heterogeneidade social, as modificações que o campo jurídico sofre
advêm dessa mudança social. É nessa linha que o conceito de habitus tornase
potente. O habitus, como destaca Löic Wacquant, (2008) é um sistema de
disposições duráveis e transponíveis, que integrando experiências passadas,
funciona como uma matriz que percebe, aprecia e age, realizando tarefas
diversificadas. O habitus é inventivo, criativo, mas dentro das estruturas que o
limitam. Nas palavras do autor:
[...] El habitus es un mecanismo estructurante que opera desde el interior de los
agentes, sin ser estrictamente individual ni en sí mismo interamente determinante de
la conducta […] Como resultado de la internalización de estructuras externas, el
habitus reacciona a las demandas del campo de una manera aproximadamente
coherente y sistemática (WACQUANT, 2008, p. 4344) [grifos do autor].
É nessa senda que a utilização da hermenêutica interpretativa se faz potente para
compreender esta proposta. Quando se levanta a possibilidade da música servir
como um artefato importante para conectar o campo jurídico com o produzido
socialmente, não se levanta essa discussão baseandose em uma perspectiva que
“tudo pode”. Pelo contrário, é fundamentandose nos princípios constitucionais e no
construído legalmente que o intérprete jurídico deve se fundamentar, assim como na
sua percepção de habitus e campo social.
Como propõe Bourdieu, não se pretende ficar arraigado a estruturas estruturantes,
tampouco a um sujeito de conhecimento neutro que não sofreria das produções
sociais pulsantes neste tempo. Pois esse sujeito, produtor do conhecimento jurídico,
faz parte deste mundo, atravessado pelas práticas sociais nele construídas.
Importante frisar, ainda valendose do que destaca Pierre Bourdieu (2007), que a
produção de certo estudo necessita estar situado e datado numa espacialidade
temporal, tendo em vista as modificações socialmente produzidas. Dizse isso,
porque estudar o Rap neste tempo apresentase como um mecanismo potente, tendo
em vista estarmos situados em tempos onde igualdade, democracia e respeito à
dignidade humana são preceitos assegurados legalmente, isto é, enfatizados no texto
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dignidade humana são preceitos assegurados legalmente, isto é, enfatizados no texto
da Constituição brasileira de 1988, produzido e reproduzido no campo jurídico e
espraiado socialmente.
Ao ouvir gritos que insistem em denunciar o desrespeito a esses preceitos, ao
visualizar, cotidianamente, relatos midiáticos que trazem expressivos casos de
violência e de disparidade social, destacar o que certos atores produzem em
determinados meios sociais, mais precisamente, nos meios periféricos, apresentase
como mecanismo instigante na procura de engendrar fissuras às produções
efetuadas no campo jurídico.
Em que pese sejam os compositores de Rap considerados profanos frente aquele
campo, pois possuem diferente capital cultural e simbólico se comparados aos
iniciados no campo jurídico, ao retratarem em suas canções fatos que envolvem esta
produção, tornase evidente a importância de entender o que ali eles dispõem e como
apontam a disparidade vivenciada na contemporaneidade em certos meandros
sociais.
Esse se torna outro ponto relevante nesse estudo, tendo em vista a diferença entre
as classes sociais, pois, como se verá, grande parte dos compositores de Rap
constroem suas composições em periferias, visando destacar o ali vivenciado. É
nesse ponto que se apoiar nos estudos sociológicos e antropológicos se torna uma
ferramenta essencial para o aqui proposto.
Situada, superficialmente, a teoria na qual se apoia para o desenvolvimento deste
estudo, convidase o leitor para mergulhar na produção teórica que tem como escopo
a articulação da música com o direito, possibilitando, então, o levantamento de
questionamentos ao campo jurídico e a necessidade de articular os estudos culturais
a essa seara.
2. Lançando mão da hermenêutica jurídica: destacando a música e suas
potencialidades
Em épocas distintas, no Brasil, diferentes ritmos surgiram como forma de
contracultura, apontando o tratamento desigual sofrido por parcela da sociedade,
contestando a repressão do Estado. Possível exemplificar através da Música Popular
Brasileira (MPB), quando da ditadura militar no país, onde diversas músicas1 não
eram admitidas justamente por contestar as reprimendas do autoritarismo.
Através de um certo modo de contestação, o movimento de contracultura ganhou
força no país por volta dos anos 60, seja pelas roupas diferenciadas, seja pela
música. Tanto o Tropicalismo, o Samba e o Rock, tornaramse amplamente aceitos
pela sociedade em geral, em que pese tenham surgido como forma pulsante de
contestação (MAYORA, 2011, p. 51).
Ao lançar o olhar às formas de representação cultural que ainda abordam de forma
recorrente a diferenciação social através da música, os cantores de Rap emergem
como fonte permanente nesse sentido. O Rap é um dos quatro elementos do gênero
Hip Hop, sendo os outros três o grafite, o break e o DJ, (ROCHA et al., 2001). Cada
um representa determinada postura no que diz repeitos as formas de engendrar
contestação. O Hip Hop “[...] designa basicamente uma manifestação cultural das
periferias das grandes cidades, que envolve distintas representações artísticas de
cunho contestatório” (ROCHA et al., 2001, p. 18).
Ao analisar o surgimento do Rap no país em meados dos anos 80 (SILVA et al,
2004), notase que as primeiras composições musicais não tinham como foco
questões politizadas, ficando conhecido como Rap “tagarela” (GEREMIAS, 2006, p.
44). Posteriormente, nas proximidades dos anos 90, grupos como Racionais MC’s,
cantores como DJ Hum e Thaíde, começaram a produzir letras com cunho
contestatório, visando destacar o vivenciado por certos atores sociais.
Como pontuado, o Racionais MC’s foi um grupo de destaque na cena do Rap
brasileiro no quesito contestação e abordagem das discriminações sociais,
destacando a seletividade do campo jurídico, enfaticamente no que diz respeito ao
sistema de justiça criminal e os agentes incumbidos de sua aplicação. Ademais,
permanece trazendo produções nesse sentido ainda na contemporaneidade, conforme
se verá no decorrer do texto.
Em que pese a existência dos outros elementos do Hip Hop, o Rap foi escolhido para
desenvolver este estudo, por trazer em suas letras a inquietude de seus
compositores. Ademais, porque “o rap é a arte do hip hop que tem maior poder de
sedução sobre o jovem da periferia. Não há reunião de posse, disputa entre
dançarinos de break, concurso de discotecagem ou evento de grafitagem que
consigam reunir um público tão numeroso” (ROCHA et al., 2001, p. 33).
Daí a necessidade do enlace entre o campo jurídico e a manifestações sociais. Ao
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restarmos enraizado aos modelos matemáticos de ciência, reduzindo as
manifestações sociais a meras exposições, esquecemonos das teias (SANTOS,
2006) que o conhecimento cultural forma, produzindo informações que não podem
fugir à percepção das ciências, justamente por abordarem o vivenciado por parcela da
sociedade. Em que pese sejam campos diferentes – o campo da produção do Rap e
o campo jurídico – ambos acabam por se imbricarem pelo fato dos agentes sociais
serem atingidos tanto pela lógica jurídica, quanto pela produção musical que permeia
o corpo social.
Além disso, essa imbricação entre os campos permite rechaçar, ou ao menos
evidenciar, o abismo existente entre o conhecimento jurídico e o vivenciado por
parcela da população considerada outsider (BECKER, 2009) por se filiar a outras
formas de ser e estar neste tempo:
Ao longo dos séculos o Direito foi conhecido e concebido como ciência dos juristas.
Muito desse rótulo é decorrente da cultura que ainda valoriza a judicialização da vida
como alternativa à solução de conflitos. Essa realidade gerou o chamado ‘abismo
cultural’ entre o povão e uma pequena parcela da população detentora do
conhecimento jurídico que, cotidianamente, tem a possibilidade de viver a
Constituição, isto é, de exercer a cidadania ativa. (GRÜNE, 2012, p. 07) [grifos da
autora].
É nessa esteira que lançar mão à hermenêutica se apresenta como mecanismo
potente buscando articular o Rap e o campo jurídico. A necessidade de fusão entre
os horizontes (GADAMER, 2008) do sistema de justiça criminal, Constituição Federal
e música, apresentase como medida imperativa diante da atual concepção do
Direito, isto é, de que não se trata de um ramo apartado da realidade social, pois se
assim for, seu objetivo maior, assegurar ao Ser Humano a vivência saudável em
sociedade, minimizando a existência de danos, seria inalcançável.
Visando valorizar as manifestações populares, demonstrando a criatividade e as
diferentes formas de dizer o vivenciado socialmente é que a música se coloca como
um mecanismo potente. Partindo do entendimento de Pierre Bourdieu, não se
entende o sujeito apenas como algo sujeitado pelo sistema normativo, mas capaz de
captar e produzir conhecimento dentro de certos limites. Concatenando essa
produção ao que é destacado juridicamente, é que se aventa a possibilidade do
intérprete jurídico sobressair às verdades fundantes, abrindose à observação de
comportamentos (BOURDIEU; CHARTIER, 2011) e à exposição das manifestações
através da música, por exemplo.
Sendo assim, utilizase do subitem seguinte para destacar algumas estrofes de
canções do grupo Racionais MC’s, tendo como plano de fundo a contestação ao
sistema de justiça criminal, pontuando a seletividade desse sistema, evidenciando o
abismo existente entre realidade social e o campo jurídico. Isso reforça o pontuando
por Bourdieu no início deste texto no que diz respeito a produção do campo jurídico
selecionar certas lutas e nelas se fazer potente, desconsiderando, muitas vezes,
produções que a ele dizem respeito, mas que não são produzidas no seu interior e
por isso rechaçadas. Avante!
3. Uma análise pontual: o Rap e seu contradiscurso frente ao discurso jurídico
Por ser um dos fenômenos sociais mais inquietantes da sociedade atual, (GAUER et.
al., 2011), a violência é vista como algo sobrenatural. Entretanto, por estar tão
interligada ao cotidiano social, deve ser vista como “[...] um elemento estrutural,
intrínseco ao fato social, e não o resto anacrônico de uma ordem bárbara em vias de
extinção” (GAUER et. al., 2011, p. 74).
Sendo parte integrante da sociedade, a violência quando denunciada por atores
sociais diversos, também deve ser interpretada e não renegada porque não adequada
ao modelo de cientificidade moderna. A quebra de paradigmas (SANTOS, 2006) se
faz cogente nesse sentido. Por isso as letras de Rap que contextualizam o
vivenciado por parcela da sociedade, a qual é atingida pela discriminação, seja por
ser negra, seja por habitar favelas, colocase como um mecanismo capaz de
questionar as verdades produzidas no campo jurídico. Lembrando que esses atores
estão ligados a este campo porque por ele são atingidos, pois pertencente a este
mundo e não a outro, negando, assim, teorias totalizantes, ou leis universais.
Já destacado nesse texto, mas aqui cabe pontuar, um dos primeiros grupos do Rap
nacional foi os Racionais MC’s. Possível perceber que as primeiras músicas
elaboradas por este grupo contextualizavam as diferenças sociais e efetuavam essa
denúncia através da música. Cumpre pontuar que as questões abordadas pelo grupo
condiziam com fatos ocorridos na favela ou análise de conduta de determinadas
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condiziam com fatos ocorridos na favela ou análise de conduta de determinadas
pessoas, como por exemplo, presidiários ou moradores do morro.
Uma das primeiras canções do grupo, lançada em 1988, foi “Racistas Otários”, entre
outros temas, aborda a diferenciação social e expressa a discriminação por parte do
próprio Estado que aqui cabe destaque:
Justiça/Em nome disso eles são pagos/Mas a noção que se tem/É limitada e eu
sei/Que a lei/É implacável com os oprimidos/Tornam bandidos os que eram/pessoas
de bem/Pois já é tão claro que é mais fácil dizer/Que eles são os certos e o culpado
é você/Se existe ou não a culpa/Ninguém se preocupa/Pois em todo caso haverá
sempre uma desculpa/O abuso é demais/Pra eles tanto faz/Não passará de simples
fotos nos jornais/Pois gente negra e carente/Não muito influente/E pouco frequente
nas colunas sociais/Então eu digo meu rapaz/Esteja constante ou abrirão o seu
bolso/E jogarão um flagrante num presídio qualquer/Será um irmão a mais/Racistas
otários nos deixem em paz (MC’S RACIONAIS, 2014a).
Como é possível perceber da estrofe acima descrita, resta evidente o relato do
vivenciado por determinados atores sociais, que expressam através da música a
cultura de determinado local. A representação da relação de poder entre Estado,
Justiça e uma parcela de cidadãos é a de uma estrutura institucional que impõe
condutas abusivas sobre estes últimos, deslegitimandoos, uma vez que são “gente
negra e carente”.
Cumpre destacar que não se trata de uma música isolada no repertório do grupo, pelo
contrário, no decorrer dos anos as músicas do grupo em destaque foram tornandose
mais agressivas associando o cotidiano e comparando com acontecimentos pontuais
nessas comunidades.
Impossível ignorar a existência de outras formas de manifestação social que
traduzem o vivenciado pela sociedade e que apontam a importância do conhecimento
particular de certos habitus, que necessitam ser percebidos, não menos pelo Direito.
Este se traduz em uma ciência que tem reflexo imediato na sociedade e produz uma
extensa gama de leis.Logo, como destaca Alexandre Pasqualini (1999, p. 22) “o
Direito só entra em funcionamento porque, confrontado com o continuun da vida,
suscita plúrimas interpretações que, por sua vez, tornase, ad infinitum, objeto de
novas exegeses” [grifos do autor].
A compreensão do intérprete de um texto (legal ou de outro tipo, tal como a letra de
uma música) constróise pela conjugação do próprio texto, da experiência de mundo
do sujeito que o interpreta e do entorno histórico, social, cultural de ambos. É o que
Gadamer (2008) denomina de fusão de horizontes. A possibilidade de o hermeneuta
jurídico construir determinado entendimento com base no meio em que vive é
plenamente aceitável diante da realidade produzida; da mesma forma, o cantado nas
letras de músicas em análise, pois é o sentir da comunidade em que a música se
torna mais recorrente, relatando o ali vivenciado.
Entre as produções de 1992 e 1993, cumpre aqui destacar alguns refrãos da música
“Homem na Estrada”, do mesmo grupo Racionais MC’s. A composição aborda o
cotidiano de um cidadão que deixa a prisão e procura a reinserção na sociedade,
voltando a viver em sua comunidade. Entretanto, com ele há o rótulo de expresidiário
o que permanecerá ad eternum. Cabe salientar ter sido uma das músicas mais
veiculadas do grupo, tendo atingido a cifra de 1 milhão de cópias vendidas (ROCHA
et. al., 2001). Cumpre destacar o que segue:
É madrugada, parece estar tudo normal/Mas esse homem desperta, pressentindo o
mal, muito cachorro latindo/Ele acorda ouvindo barulho de carro e passos no quintal/A
vizinhança está calada e insegura, premeditando o final que já conhecem bem/Na
madrugada da favela não existem leis, talvez a lei do silêncio, a lei do cão talvez/Vão
invadir o seu barraco, "É a polícia"!/Vieram pra arregaçar, cheios de ódio e malícia,
filhos da puta, comedores de carniça!/Já deram minha sentença e eu nem tava na
"treta", não são poucos e já vieram muito loucos/Matar na crocodilagem, não vão
perder viagem, quinze caras lá fora, diversos calibres, e eu apenas com uma "treze
tiros" automática/Sou eu mesmo e eu, meu deus e o meu orixá/No primeiro barulho,
eu vou atirar/Se eles me pegam, meu filho fica sem ninguém/É o que eles querem:
mais um "pretinho" na Febem 2/Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim, a gente sonha a
vida inteira e só acorda no fim, minha verdade foi outra, não dá mais tempo pra
nada... bang! bang! bang! (MC’S RACIONAIS, 2014b).
O desfecho dessa história, segundo a música, é noticiado no jornal. Na sequência, a
letra traduz:
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"Homem mulato aparentando entre vinte e cinco e trinta anos é encontrado morto na
estrada do M'Boi Mirim sem número. Tudo indica ter sido acerto de contas entre
quadrilhas rivais, segundo a polícia, a vítima tinha "vasta ficha criminal" (MC’S
RACIONAIS, 2014b) [grifos dos autores].
Nessa música, os autores deixam claro a permanência do rótulo de um presidiário, a
inversão de papeis, a insignificância das leis estatais vigentes e a formulação das
leis informais nas comunidades. Somamse a isso a discriminação racial, a
concepção de que prisão é destinada à determinada cor, à determinado grupo social e
que a versão apresentada por agentes estatais prevalecerá, ainda mais se o sujeito
abordado já tiver ‘passagem’ pelo sistema penitenciário.
Diante disso, emerge o sistema de justiça criminal imbuído em si mesmo,
potencializado pelas suas práticas, não sendo capaz de perceber que as luzes
trazidas pela modernidade não alcançaram determinados confins. Ainda que existindo
a previsão legal quanto a igualdade, a seletividade construída no campo jurídico
rotula sujeitos antes mesmo da confirmação de práticas delitivas. Isto é, potencializa
certas vozes produzidas por atores voltados ao campo jurídico e silencia outras que,
na lógica jurídica, não estão ratificadas como pertencente a este campo.
Além disso, o grupo em questão aborda outros temas como sistema penitenciário
especificamente, expressando o cotidiano dos atores que estão sujeitados a este
meio. Nesse sentido, a música “Diário de um Detento”, lançada em 1997, aborda o
tema carcerário:
[...] Estuprador é diferente, né?/Toma soco toda hora, ajoelha e beija os pés, e
sangra até morrer na rua 10/Cada detento uma mãe, uma crença/Cada crime uma
sentença/Cada sentença um motivo, uma história de lágrima, sangue, vidas e glórias,
abandono, miséria, ódio,
sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo/Misture bem essa química/Pronto:
eis um novo detento/Lamentos no corredor, na cela, no pátio/Ao redor do campo, em
todos os cantos/Mas eu conheço o sistema, meu irmão, hã... Aqui não tem santo [...]
(MC’S RACIONAIS 2014c).
A música acima foi composta por um presidiário, recolhido no Carandiru3 e que
compunha diversas letras. Mano Brown, vocalista dos Racionais MC’s, o entrevistou
na cadeia, tomou posse da letra, com a autorização do compositor, e a publicou
(ROCHA et. al., 2001). Ora, a música foi composta dentro da cadeia, por um ator
social que está submetido ao sistema penitenciário: um lugar onde boa parcela dos
aplicadores da lei não volta seu olhar, de maneira mais precisa.
Em 2012 o mesmo grupo lançou a música “Mariguela”, homenageando um dos
principais organizadores da resistência ao regime militar brasileiro de 1964, apontando
ainda a diferenciação vivenciada por parcela da sociedade, mesmo passados mais de
vinte e quatro anos. Cabe aqui destacar a seguinte estrofe:
[...] O resto é flor, se tem festa eu vou/Eu peço, leia os meus versos, e o protesto é
show/Presta atenção que o sucesso em excesso é cão/Que se habilita a lutar, fome
grita horrível/A todo ouvido sensível que evita escutar/Acredita lutar, quanto custa
ligar?/Cidade chama vida que esvai/Clama por socorro, quem ouvirá?/Crianças,
velhos e cachorros sem temor/Clara meu eterno amor, sara minhas dores/Pra não
dizer que eu não falei das flores [...] (MC’S RCIONAIS, 2014d).
As músicas aqui referidas retratam a discriminação, a existência de rótulos e a
violência exercida pelo próprio Estado através de seus agentes. A inversão dos
papeis quanto segurança e a criação de leis próprias existe mesmo diante da
consciência da existência de leis estatais.
A necessidade de compreensão do vivido pelos atores sociais, do porquê desses
relatos, não pode fugir ao crivo do Direito, justamente por este tratar de questões que
envolvem diretamente a sociedade. Esquecer que os agentes sociais possuem uma
história, que são produtos dela (BOURDIEU; CHARTIER, 2011), que possuem
percepção do meio social através de sua cultura e que são propensos a
discriminações por sua cor, etnia e lugar que habitam, é negar o reconhecimento
dessa sociedade complexa. Leis universais e rasas não são capazes de dar conta
dessa heterogeneidade.
A necessidade de comunicação entre as diversas ciências e entre as diversas
exposições culturais permite o rompimento com as raízes positivistas, efetivando o
desenvolvimento da teia comunicativa (SANTOS, 2006) e aproximando o vivido por
parcela da sociedade.
8. 17/02/2015 Contradiscurso e hermenêutica jurídica
http://www.eumed.net/rev/cccss/29/discursojuridico.html 8/10
parcela da sociedade.
CONCLUSÃO
Viuse, através das letras aqui expostas, a necessidade de se construir um diálogo
entre o direito e outras formas de manifestações culturais, como a música. Outros
horizontes são visualizados pelo intérprete legal, percebendo a representação da
realidade de importante parcela social.
Tendo apoio, especialmente em Bourdieu, percebeuse a deslegitimação de certos
atores sociais, em beneficio de outros. Aqueles denominados como iniciados,
possuem o poder de construir conceitos e ter suas vozes ouvidas. Outros, profanos,
tem suas manifestações consideradas como inferiores. Isso se faz sentir, para os
fins deste texto, especialmente no campo do direito, onde a estrutura estatal,
produtora e executora do sistema jurídico, muitas vezes é percebida por parte da
população como violadora de direitos básicos, como a vida, liberdade e integridade
física.
Da mesma forma, princípios constitucionais como o da igualdade tem sua ineficácia
trazida à luz através de composições referidas, as quais demonstram a indignação
com o racismo, com a intolerância e o abuso, perpetrados pelo próprio Estado que
deveria garantir uma vida digna a todos. Percebese, assim, que o Rap tornase um
importante instrumento de abertura do sistema jurídico a realidades outras, mais
conectadas ao mundo cotidiano de parcelas expressivas da população.
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