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O Brasil Nasceu por Engano
                                                                                Veja - Setembro de 2012
                                                                                          Augusto Nunes



        OBrasil nasceu por engano. Buscavam o caminho das Índias as caravelas que em abril de
1500 perderam o rumo tão espetacularmente que acabariam caindo nos abismos do outro lado do
mundo se não tivessem topado com aquela demasia de praias com areias finas e brancas, banhadas
por ondas verdes ou azuis, muita mata, muita flor, muito rio, muito peixe, muito bicho de carne
tenra, muita fruta sumarenta e, melhor que tudo, muita índia pelada.
        O Brasil balançou no berço da safadeza. Souberam disso tarde demais aqueles nativos cor de
cobre, sem roupas no corpo nem pelos nas partes pudendas, os homens prontos para trocar
preciosidades por quinquilharias, as mulheres prontas para abrir o sorriso e as pernas para qualquer
forasteiro, pois os nativos praticavam sem remorso o que só era pecado do outro lado do grande
mar, e não poderiam ser tementes a um Deus que desconheciam.
         O Brasil nasceu carnavalesco. Nem um Joãozinho Trinta em transe num terreiro de
candomblé pensaria em juntar na avenida, como fez o português Henrique Soares, maior autoridade
religiosa presente e celebrante da primeira missa naquelas imensidões misteriosas, um padre de
batina erguendo o cálice sagrado, navegantes fantasiados de soldados medievais, marinheiros com
roupa de domingo, índios com a genitália desnuda, que séculos depois seria banida da Sapucaí por
bicheiros respeitadores dos bons costumes, e a cruz dos cristãos no convívio amistoso com arcos,
flechas e bordunas.
         O Brasil balançou no berço da maluquice. Marujos ainda mareados pela travessia do
Atlântico, ainda atarantados com a visão do paraíso, decidiram que aquilo era uma ilha e deveria
chamar-se Ilha de Vera Cruz, e assim a chamaram até perceberem, incontáveis milhas além, que era
muito litoral para uma ilha só, e pareceu-lhes sensato rebatizar o colosso ausente de todos os mapas
com o nome de Terra de Santa Cruz, porque disso ninguém duvidava: era firme a terra que pisavam.
        O Brasil nasceu preguiçoso. Passou a infância e a adolescência na praia, e esperou 200 anos
até criar ânimo e coragem para escalar o paredão que separava o mar do Planalto, e esperou mais
um século até se aventurar pelos sertões estendidos por trás da floresta virgem, num esforço de tal
forma extenuante que ficou estabelecido que, dali por diante, os nativos da terra, os estrangeiros e
seus descendentes sempre deixariam para amanhã o que deveriam ter feito ontem.
         Tinha de dar no que deu. Coerentemente incoerente, o Brasil parido pelo equívoco
hostilizou os civilizadores holandeses para manter-se sob o jugo do império português, o Brasil
amalucado teve como primeira e única rainha uma doida de hospício, o Brasil da safadeza acolheu o
filho da rainha que roubou a matriz na vinda e a colônia na volta, o Brasil preguiçoso foi o último a
abolir a escravidão, o Brasil sem pressa foi o último a virar República, o Brasil carnavalesco
transformou a própria História num tremendo samba do crioulo doido.
        O cortejo dos presidentes, ministros, senadores, deputados federais, governadores,
deputados estaduais, prefeitos e vereadores aberto em 1889 informa que a troca de regime não
mudou a essência da coisa: o Brasil republicano é o Brasil monárquico de terno e gravata, só que
mais cafajeste. Muito mais cafajeste, informa a paisagem deste começo de século 21. Depois de 500
anos, os herdeiros dos traços mais detestáveis do DNA nacional promoveram o grande acerto dos
amorais, instalaram-se no coração do poder e vão tornando decididamente intragável a geleia geral
brasileira.
        Nascido e criado sob o signo da insensatez, o país que teve um imperador que parecia adulto
aos cinco anos de idade, foi governado por um presidente que parece moleque e, depois, por uma
avó menos ajuizada que neto de fralda. Com um menino sem pai nem mãe no trono, o Brasil não
sentiu medo. Com dois sessentões no comando, o Brasil que pensa se sente sem pai nem mãe.

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  • 1. O Brasil Nasceu por Engano Veja - Setembro de 2012 Augusto Nunes OBrasil nasceu por engano. Buscavam o caminho das Índias as caravelas que em abril de 1500 perderam o rumo tão espetacularmente que acabariam caindo nos abismos do outro lado do mundo se não tivessem topado com aquela demasia de praias com areias finas e brancas, banhadas por ondas verdes ou azuis, muita mata, muita flor, muito rio, muito peixe, muito bicho de carne tenra, muita fruta sumarenta e, melhor que tudo, muita índia pelada. O Brasil balançou no berço da safadeza. Souberam disso tarde demais aqueles nativos cor de cobre, sem roupas no corpo nem pelos nas partes pudendas, os homens prontos para trocar preciosidades por quinquilharias, as mulheres prontas para abrir o sorriso e as pernas para qualquer forasteiro, pois os nativos praticavam sem remorso o que só era pecado do outro lado do grande mar, e não poderiam ser tementes a um Deus que desconheciam. O Brasil nasceu carnavalesco. Nem um Joãozinho Trinta em transe num terreiro de candomblé pensaria em juntar na avenida, como fez o português Henrique Soares, maior autoridade religiosa presente e celebrante da primeira missa naquelas imensidões misteriosas, um padre de batina erguendo o cálice sagrado, navegantes fantasiados de soldados medievais, marinheiros com roupa de domingo, índios com a genitália desnuda, que séculos depois seria banida da Sapucaí por bicheiros respeitadores dos bons costumes, e a cruz dos cristãos no convívio amistoso com arcos, flechas e bordunas. O Brasil balançou no berço da maluquice. Marujos ainda mareados pela travessia do Atlântico, ainda atarantados com a visão do paraíso, decidiram que aquilo era uma ilha e deveria chamar-se Ilha de Vera Cruz, e assim a chamaram até perceberem, incontáveis milhas além, que era muito litoral para uma ilha só, e pareceu-lhes sensato rebatizar o colosso ausente de todos os mapas com o nome de Terra de Santa Cruz, porque disso ninguém duvidava: era firme a terra que pisavam. O Brasil nasceu preguiçoso. Passou a infância e a adolescência na praia, e esperou 200 anos até criar ânimo e coragem para escalar o paredão que separava o mar do Planalto, e esperou mais um século até se aventurar pelos sertões estendidos por trás da floresta virgem, num esforço de tal forma extenuante que ficou estabelecido que, dali por diante, os nativos da terra, os estrangeiros e seus descendentes sempre deixariam para amanhã o que deveriam ter feito ontem. Tinha de dar no que deu. Coerentemente incoerente, o Brasil parido pelo equívoco hostilizou os civilizadores holandeses para manter-se sob o jugo do império português, o Brasil amalucado teve como primeira e única rainha uma doida de hospício, o Brasil da safadeza acolheu o filho da rainha que roubou a matriz na vinda e a colônia na volta, o Brasil preguiçoso foi o último a abolir a escravidão, o Brasil sem pressa foi o último a virar República, o Brasil carnavalesco transformou a própria História num tremendo samba do crioulo doido. O cortejo dos presidentes, ministros, senadores, deputados federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores aberto em 1889 informa que a troca de regime não mudou a essência da coisa: o Brasil republicano é o Brasil monárquico de terno e gravata, só que mais cafajeste. Muito mais cafajeste, informa a paisagem deste começo de século 21. Depois de 500 anos, os herdeiros dos traços mais detestáveis do DNA nacional promoveram o grande acerto dos
  • 2. amorais, instalaram-se no coração do poder e vão tornando decididamente intragável a geleia geral brasileira. Nascido e criado sob o signo da insensatez, o país que teve um imperador que parecia adulto aos cinco anos de idade, foi governado por um presidente que parece moleque e, depois, por uma avó menos ajuizada que neto de fralda. Com um menino sem pai nem mãe no trono, o Brasil não sentiu medo. Com dois sessentões no comando, o Brasil que pensa se sente sem pai nem mãe.