Este documento descreve a exploração do conteúdo pedagógico das marés por um professor de física no Brasil. Ele observou as marés com seus alunos e pescadores locais para entender melhor o fenômeno e como ele é afetado pelos movimentos da Lua e do Sol. Ao longo dos anos, ele desenvolveu um modelo para explicar as marés e discutiu como o estudo delas contribuiu para a revolução científica do século XVII.
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XXV JORNADES INTERNACIONALS D’HISTÒRIA DE L’EDUCACIÓ
L’atracció pedagògica vers la mar durant el segle XX
Jordi Brasó Rius, Oriol Brugarolas Bonet, Laura Fontán de Bedout, Jordi Garcia Farrero, Sergio
Irañeta Chamizo, Eric Ortega González, Àngel Pascual Martin, Karine Rivas Guzmán, Ferran
Sanchez Margalef
(Editors)
URI: http://hdl.handle.net/2445/189861
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EXPLORANDO O CONTEÚDO PEDAGÓGICO DAS MARÉS
Wojciech Andrzej Kulesza
Esta história começou no final da década de 1970 quando fui trabalhar como professor
de física da Universidade Federal da Paraíba na cidade de João Pessoa. Morando numa casa
situada próxima à orla marítima, logo me encantei com a praia, suas areias finas e ondas suaves,
contidas por uma barreira de recifes mergulhada no mar a poucas dezenas de metros da costa.
Localizada no extremo oriental do continente americano, João Pessoa, a cidade “onde o Sol nasce
primeiro”, é banhada pelo Oceano Atlântico em todo sua costa oriental, formando belíssimas
praias em seu litoral. Como físico, logo me chamou a atenção o fenômeno das marés com suas
regularidades. Partidário de um ensino contextualizado, logo projetei fazer uma abordagem
científica do fenômeno em minhas aulas para os alunos dos cursos de licenciatura em ciências da
Universidade, de modo a instrumentalizar as aulas de campo, não se limitando apenas à
observação das marés, mas fazendo medidas e testando hipóteses.
A beira do mar constituiu um espaço privilegiado, desde o início do século XX, para
professores a procura de locais adequados para realizar suas excursões escolares. Sintonizados
com a nova pedagogia ativa e amparados por prescrições higienistas, esses educadores passaram
a utilizar esses territórios então identificados com a liberdade, o lazer e a higidez.1
Um fenômeno
que, de uma ou outra forma, sempre esteve presente e desperta a atenção nessas visitas são as
marés. Sejam as grandes marés oceânicas ou as quase imperceptíveis marés dos mares interiores,
o conhecimento desse fenômeno tem sido utilizado na navegação, na pesca e até na produção de
energia, sem contar com seu uso recreativo nas praias e em esportes como os vários tipos de surf.
João Pessoa, com suas praias totalmente disponíveis para serem percorridas a pé durante a
vazante, tem atraído seus habitantes e visitantes, para usufruir destes espaços agradáveis e
normalmente salubres. Embora ainda restritas, principalmente devido à rigidez dos horários das
escolas, as excursões escolares têm se incorporado a essas atividades praianas.
1 No Brasil, lamentavelmente, tenho conhecimento de apenas uma experiência sistemática de atendimento
escolar público diversificado às comunidades pesqueiras, marítimas, comunidades que tivessem atividades
econômicas e culturais ligadas diretamente ao mar: as “Escolas Praianas” que funcionaram no Rio de
Janeiro de 1954 a 1965. Ver a respeito: QUARESMA, 2010.
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Mesmo para os passeios de lazer, o conhecimento da altura das marés, dos horários de
preamar e baixa-mar, tem de ser levado em conta pelos banhistas, especialmente, se tiverem que
passar por falésias avançadas no mar que impedem a travessia por terra. Tábuas anuais de marés
são disponibilizadas por meios impressos e digitais, não só para essas atividades de lazer, mas
também para a pesca e a pequena navegação. Por observação continuada ou por simples consulta
à tábua de marés, é fácil perceber que o intervalo de tempo aproximado entre duas marés altas
consecutivas é de 12 horas e que a cada dia as marés se atrasam de cerca de 50 minutos em relação
ao dia anterior. Será fácil também verificar a chamada desigualdade diurna das marés, isto é, a
variação na altura de duas preamares sucessivas. Note-se que esta constatação é válida para a
realidade das marés do Atlântico Sul, particularmente do litoral da cidade de João Pessoa, que
está situada próxima do Equador, o que não significa que possamos encontrar regularidades
semelhantes em outras latitudes.
A compreensão do fluxo e refluxo do mar tem desafiado ao longo da história o
pensamento científico na construção de modelos que deem conta de suas características de modo
a fazer previsões seguras sobre seu comportamento num determinado local, por exemplo, sobre o
melhor horário para um navio atracar num porto. Como a relação das marés com o movimento da
Lua é conhecida pelos mais diversos povos desde tempos imemoriais (hoje as tábuas de marés
geralmente assinalam os dias em que ocorrem as fases da Lua), começamos a construir um modelo
singelo analisando inicialmente a ação gravitacional da Lua sobre a Terra. Conseguimos dessa
maneira, utilizando a física newtoniana, de forma qualitativa, dar conta de algumas características
de nossas marés para nossos alunos de geociências. Em conjunto com o geógrafo Eduardo Pazera
Junior, elaboramos uma comunicação que foi apresentada na Reunião Anual da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada em Salvador no ano de 1981.
Atraído pelo mar, continuei explorando o litoral e então comecei a praticar a pesca de
arrastão de rede na praia, estritamente regulada pela altura das marés. Aprofundando as conversas
com os pescadores artesanais, em especial como eles relacionavam as marés com as fases da Lua,
pude reproduzir esse conhecimento por meio do meu modelo, já que essas fases são determinadas
pela ação do Sol no sistema Terra-Lua. De modo semelhante ao que fiz com a Lua, isolei o sistema
Terra-Sol para analisar a ação gravitacional do Sol sobre o mar, obtendo resultados semelhantes,
mas com efeitos menos intensos (menos da metade (5/11) em relação à Lua), devido à enorme
distância entre a Terra e o Sol. Como os efeitos gravitacionais dos dois astros se somam
vetorialmente, as marés são maiores quando os dois astros estão em conjunção (Lua nova), ou
oposição (Lua cheia), marés chamadas pelos pescadores marés de Lua ou marés vivas. Marés
menores, marés mortas ocorrerão nas quadraturas, na época dos quartos crescente e minguante.
Naturalmente, após uma maré alta de plenilúnio ou novilúnio, virá uma maré bem baixa, ótima
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para a pesca de arrastão na praia (a diferença de alturas entre marés sucessivas típica em João
Pessoa varia entre 1 e 3 metros).
Pescando não muito distante da costa, o conhecimento das marés é essencial para facilitar
a ida e a volta das jangadas (pequenos barcos movidos à vela) e determinar o momento certo para
a postura das redes de espera. Aliás, esses conhecimentos, preservados quase como “segredos”
na comunidade de pescadores são fundamentais para a sobrevivência da pesca artesanal, que teve
poucas modificações de monta nos últimos séculos. Em minhas conversas com os pescadores,
especulei que talvez outras efemérides astronômicas, como os solstícios e equinócios, pudessem
ser constatadas pela observação das marés. Ao incluir no meu modelo o movimento da Terra em
torno do Sol, pude constatar em analogia com a Lua, que a maré tende a diminuir quanto maior
for a declinação do Sol. Ou seja, teremos uma altura maior das marés durante os equinócios. Pode-
se verificar também que as marés de lua cheia são maiores do que as marés de lua nova de janeiro
a junho, enquanto ocorria o inverso nos meses de julho a dezembro. Essa transição é perceptível
nos solstícios, quando as marés são aproximadamente iguais.
Vemos assim que, através da observação das marés podemos determinar quando
começam as estações do ano, datas muito difíceis de serem determinadas nos países tropicais pela
observação de fenômenos terrestres. Com essas informações, uma vez chegando aos locais de
pesca, os chamados pesqueiros, pode-se determinar que tipos de peixes poderão ser encontrados
mais frequentemente, escolhendo-se iscas e anzóis. Não fiz nenhuma gravação de minhas
conversas como os pescadores naquela época, mas recorro a um depoimento recente de um sábio
pescador, recolhido por G.C.O Baez em sua tese de doutorado: “O pesqueiro bom também
depende da maré e da hora certa de botar a isca, porque o peixe também tem a hora certa de comer,
tem que ter conhecimento mesmo para ir e usar os pesqueiros”, afirmava o mestre João Preto,
então com 78 anos de idade (BAEZ, 2016: p. 160). Ou seja, tendo por referencial as marés e a
estação do ano, os pescadores planejam a captura de determinadas espécies, conhecimento esse
empiricamente adquirido pela comunidade pesqueira.
Inspirando-me no exemplo de Isaac Newton, que determinou pela primeira vez a massa
da Lua através da observação das marés, sistematizamos nosso modelo para publicação, dando
ênfase não à observação das marés, mas à observação astronômica por intermédio das marés, que
consideramos pedagogicamente mais relevante (KULESZA, 1988). Julgamos que, com essa ênfase,
estamos caracterizando melhor as marés como fenômeno cósmico, por envolver, ao menos, a
Terra, o Sol e a Lua. A esse fenômeno natural se dedicaram, no século XVII, pensadores do quilate
de Gilbert, Kepler, Galileu, Bacon, Descartes, dentre outros, até que Newton publicou sua
explicação nos Principia em 1687 (CLUTTON-BROCK e TOPPER, 2011). Do ponto de vista prático,
tábuas de marés empíricas já vinham sendo construídas para os principais portos e, portanto, o
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interesse pelas marés era puramente teórico, tanto é que o modelo estático apresentado por
Newton não teve nenhuma aplicação prática. Todavia, para que uma teoria das marés pudesse ser
validada, ela precisaria explicar a ocorrência do fenômeno ao redor do mundo. Por isso, Newton
se refere nos Principia a observações das marés feitas “nos mares Atlântico e Etiópico, entre a
França e o Cabo da Boa Esperança e nas costas do Chile e do Peru no Mar do Sul” (NEWTON,
1968: 255).
Um exemplo claro do caráter cósmico do fenômeno das marés foi a formulação de
Galileu, em defesa de Copérnico, de que o movimento das marés constituía uma prova do
movimento de rotação e translação da Terra. Ao analisar o argumento de Galileu, que descartava
a influência da Lua sobre o fenômeno, pude perceber a influência do contexto socioeconômico
sobre seu modelo. Vivendo afastado das rotas comerciais abertas pelas grandes navegações e
impossibilitado de ter acesso a informações relativas ao Novo Mundo, cuidadosamente mantidas
em sigilo, Galileu limitou o seu modelo ao Mediterrâneo, a espera de dados confiáveis vindos de
outras partes do mundo (KULESZA, 1989). Ou seja, o fenômeno das marés estava no próprio
cerne da Revolução Científica do século XVII e seu estudo histórico poderia assim constituir um
fio condutor significativo para compreendê-la, como procurei mostrar numa comunicação
apresentada na Reunião Latino-Americana sobre Educação em Física (KULESZA, 1992). Neste
mesmo ano, quando se comemoravam os 500 anos da “descoberta” da América, já então
entendida como “encontro” de civilizações, apresentei no congresso AMÉRICA 92, realizado em
agosto na Universidade de São Paulo, meu trabalho “Presença da América na Constituição da
Ciência Moderna”, onde aplico a outros fenômenos naturais o que aprendi sobre as marés. Essa
pesquisa se estendeu a outros pontos da América e assim eu pude recolher testemunhos como o
do padre capuchinho francês Claude d’Abbeville, que esteve no Maranhão em 1612 e dá o
seguinte testemunho: “Dão ao eclipse da Lua o nome de noite da Lua. A ela atribuem o fluxo e o
refluxo do mar e distinguem muito bem as duas marés cheias que se verificam poucos dias depois
da Lua cheia e da Lua nova” (ABBEVILLE, 1975: p. 250). Como João Pessoa foi fundada em 1585,
existindo várias edificações que remontam ao período colonial, pude integrar a cidade à minha
discussão sobre a ciência no século XVII.
O abandono da perspectiva eurocêntrica, rumo à virada decolonial, associado à dualidade
dominante/dominado estabelecida por Paulo Freire, levou-me ao campo da educação popular. Ao
participar do Encontro de Intercâmbio em Educação Popular trouxe para o debate, muito
marcado pela temática do letramento, a questão da alfabetização científica. Como resultado desse
Encontro foi organizada uma publicação na qual contribui com o trabalho Ciência e Educação
Popular, reflexão baseada nos meus diálogos com os pescadores sobre as marés (KULESZA,
1998). Como no caso das ciências não há uma língua materna na qual se baseia a alfabetização,
mas somente os chamados “conceitos alternativos”, dos quais a concepção de que o Sol gira em
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torno da Terra é a mais notável, o ensino deve muitas vezes se orientar contra as crenças dos
alunos. Explorei essa questão em minha palestra “O ensino da física e a educação popular”
apresentada no XXIII Simpósio Nacional de Ensino de Física realizado em janeiro de 2019 em
Salvador.
REFERÊNCIAS
ABBEVILLE, Claude (1975). História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão
e terras circunvizinhas.Belo Horizonte: E. Itatiaia; São Paulo: EDUSP.
BAEZ, Gustavo Cesar Ojeda (2016). Mestres, territórios e identidades pesqueiras em João
Pessoa: etnografia dos sistemas culturais da pesca artesanal nos bairros da Penha e Jacarapé. Tese
- Doutorado em Ciências Sociais, UFCG, Campina Grande.
CLUTTON-BROCK, Martin ; TOPPER, David (2011). The plausibility of Galileo’s tidal theory.
Centaurus, v.53, n.3, p. 221-235.
KULESZA, Wojciech Andrzej (1988). Previsão astronômica através da observação das marés.
Revista de Ensino de Física, v. 10, p. 3-11.
______. (1989). Nè in su, nè in giú: fluxo e refluxo da América em Galileu. Anais do Segundo
Congresso Latino-Americano da História da Ciência e da Tecnologia. São Paulo: Nova Stella, p.
515-519.
______. (1991). The discovery of America as space-time ruler. Proceedings of the International
Conference on Teaching about Reference Frames; from Copernicus to Einstein, Torun, p. 272-
274.
______. (1992). Entendendo a Revolução Copernicana através das Marés. Atas da V Reunião
Latino-Americana sobre Educação em Física. Porto Alegre: IF-UFRGS, p. 273.
______. (1998). Ciência e Educação Popular. In: COSTA, M.V.(Org.). Educação popular hoje.
São Paulo: Loyola, p. 37-62.
NEWTON, Isaac (1968). The Mathematical Principles of Natural Philosophy. London: Dawsons.
QUARESMA, Márcia da Silva (2010). As Escolas Praianas no Estado do Rio de Janeiro: o ideário
republicano dos anos 50. Dissertação - Mestrado em Educação, UERJ, Rio de Janeiro.