O Ladrão da Tempestade leva-nos a ilha isolada de Orokos
1. Chris Wooding
O Ladrão Da Tempestade
Storm Thief
O Ladrão de Tempestades leva-nos para um local desconhecido, algures nas águas do
oceano onde existe uma ilha - Orokos - que alberga, há cerca de mil anos, uma sociedade
isolada.
Profundamente desigual, com diferentes tipos de classes, é uma cidade-prisão, governada
por Patrício, um ditador e regulada pelo Protectorado e pela polícia secreta. No centro da
ilha está uma torre onde se originam os furacões de rapina, que são emanações de energia
assentes em leis de probabilidade com perigosos poderes, como impedir alguém de
respirar, transformar as pessoas em animais e outras atrocidades. Assim, um grupo de
rebeldes tenta o impossível: libertar-se do jugo do ditador e sair da ilha.
Digitalização: Fátima Tomás
Revisão: Matias Júnior
Formatação: Gisa
2. Nota do Revisor 1:
Trata-se de uma fantasia/ficção.
Uma ilha isolada por tecnologia desconhecida pelos atuais moradores, desenvolvida
com o propósito de acabar com o tédio e a desmotivação do povo. Mas, bancar os deuses
trouxe consequencias desastrosas.
Com a transformação vieram os Invasores... a incerteza, os enganos e as mentiras
de um governo ditador confundem a todos.
O caos e a vontade de sobreviver são as únicas verdades.
Um casal de ladrões adolescentes moradores do gueto, iniciam a grande mudança
e, vivem a maior aventura de suas vidas...
**
Nota do Revisor 2:
O livro tem ação desde as primeiras linhas até as últimas.
Críticas de imprensa:
“Uma fantasia pós-apocalíptica com reminiscências do filme Waterworld.”
Booklist
“Pontos de vista alternantes, finais de capítulo que deixam tudo em aberto, evasões
alucinantes e uma traição amarga levam este livro a um desfecho impressionante e a um
final lírico e surpreendentemente comovente... Uma obra de ficção especulativa
empolgante.”
Kirkus
“Uma leitura viciante desde o início. A mistura perfeita de thriller, ficção científica e
fantasia.”
Times Educational Supplement
Esta é a história de Rail e de Moa, jovens ladrões que se esforçam por sobreviver no perigoso
mundo dos guetos. Mas é também a história de Vago, o golem que procura o seu criador, de Bane,
também chamado o Sinistro, líder da polícia secreta, e de muitas outras personagens que cruzam
este explosivamente novo universo que Chris Wooding criou para nos contar mais esta história.
Numa mistura de fantasia e de ficção científica, somos convidados a visitar Orokos, tida como
a única cidade sobrevivente à era dos Extintos. Trata-se de uma cidade cinzenta e perigosa,
assolada pelo estranho fenómeno das Tempestades de Probabilidades. Estas, ao contrário das
tempestades naturais, ao invadir a cidade com as suas faixas coloridas, transformam o mundo e os
homens e o resultado é completamente imprevisível.
3. PRIMEIRA PARTE.
O PÁSSARO MARINHO.
1.1
O pássaro marinho atravessou o céu negro, deslizando sob um manto nebuloso. As
suas penas eriçavam-se ocasionalmente, golpeadas pelas mudanças do vento.
O oceano era da cor de ardósia. Inchava e torcia-se em furiosa ondulação. Por cima,
uma luz espectral tremeluzia no interior das nuvens carregadas de tempestade e o ar
ribombava. Caía uma chuva regular, deslizando pelas penas oleosas do pássaro marinho
e pingando em gotículas.
Voava sozinho. Perdera o rumo algures na sua viagem solitária em direcção à zona
dos ninhos. Uma tempestade magnética acariciava a atmosfera superior, confundindo o
seu sentido instintivo de orientação. Fazia já três dias que aquela nuvem opressiva não
dispersava e, por isso, a ave não podia sequer guiar-se pelo sol. Ia deslizando por cima
de uma interminável extensão de vagas implacáveis, completamente perdida.
Era um ser resistente, de uma espécie que evoluíra para suportar longos voos sem
paragens. A sua migração de uma costa a outra levava muitos dias e nunca paravam de
voar durante todo esse tempo. A água escondia bestas ferozes: criaturas dentadas e
peixes rápidos e ágeis, que mordiam e atacavam em bandos. Era demasiado perigoso
pousar naquele oceano.
Uma rajada súbita atingiu o pássaro marinho, desviando-o do seu curso, mas
depois ele ajustou a inclinação das asas, enquanto o vento lhe ia agitando violentamente
a penugem branca por baixo da cabeça macia e as penas da cauda.
Há muito que suportava aquela tempestade, embora não se apercebesse de quanto
tempo passara. O tempo parecia não correr naquele vazio enorme e gritante.
O pássaro marinho apercebia-se apenas do vento a bater contra o seu corpo e da
necessidade constante de avançar. Essas eram as suas únicas preocupações.
Até que, contra todas as probabilidades, encontrou terra firme.
A princípio era uma massa cinzenta quase indiferenciável do que a rodeava. O
fatigado viajante inclinou-se nessa direcção. Não se deixou perturbar pela existência de
terra firme ali, onde ela não deveria existir. Tão pouco o perturbou a noção de que não
podia ter já atravessado meio oceano, pelo que não poderia estar sequer nas redondezas
da zona dos ninhos. A terra firme era um lugar seguro.
A sombra avultou-se enquanto o pássaro marinho lutava para vencer a tempestade.
Dilatou-se e ergueu-se, emergindo da chuva penetrante como a proa romba de um
gigantesco navio. Penhascos colossais, semeados de habitações abandonadas, eram
encimados por paredes verticais de metal rebitado e pedregulhos desgastados pelo
tempo. Viam-se postos de vigia rasteiros e de aspecto severo por cima de pilares
rochosos, ligados por pontes estreitas e escadas retorcidas. Os canos expeliam cascatas
escuras, que mergulhavam no mar lá em baixo e se misturavam num turbilhão
espumoso, enquanto as ondas fustigavam a base dos penhascos.
Era uma cidade. Uma cidade no mar, construída sobre um enorme planalto que se
erguia sobre o oceano.
Por detrás da enorme muralha que a cercava, viam-se gruas esqueléticas cujas
formas se recortavam contra o céu e chiavam ao vento. Torres estreitas erguiam-se sobre
4. templos feios e atarracados, rodeados por uma teia de frágeis passadiços. E, na
escuridão, tremeluzia um milhão de pequenas luzes, como uma rede de estrelas
sinistras na obscuridade.
Lúgubre e fustigada pela tempestade, a cidade de Orokos dominava o horizonte.
O pássaro marinho seguiu em voo descendente, pelo meio de uma série de espiras
em declive, passadiços, roldanas e patíbulos, procurando um lugar seguro onde poisar.
O ressoar de trovões atravessava o céu. Clarões de relâmpagos, no cimo das nuvens,
iluminavam enormes vultos embrulhados que, dos seus abrigos e refúgios, observavam a
passagem daquele ser. As gentes da cidade chamavam-lhes morcegos dentados, mas o
pássaro marinho sabia apenas aquilo que o seu instinto lhe dizia: eram predadores, e ele
era a presa.
Houve um abrir de asas, e algo se lançou no ar, subindo em direcção ao pássaro
marinho.
A ave sentiu o perigo e reagiu, avançando em busca de um lugar seguro. A sua
frente erguia-se uma torre de cinco faces, feita de pedras vermelhas e negras, cercada e
protegida por um ancestral leito de rocha firme. No cimo, havia uma enorme janela oval
aberta.
O pássaro marinho acelerou a sua descida e, como uma flecha, dirigiu-se para a
janela. O morcego dentado perseguiu-o, mas a ave era demasiado veloz e, por fim, a
criatura de maiores dimensões desviou-se para evitar colidir com a torre. Taciturna,
bateu as asas de volta ao seu poiso.
O pássaro marinho, ainda a voar em máxima velocidade, entrou disparado pela
janela e mergulhou nas sombras. Quando viu a obstrução na sua rota, era já demasiado
tarde para evitá-la. Tentou parar, mas seguia muito depressa. Colidiu violentamente
com um cano de ferro. Quando os seus ossos ocos estalaram, caiu pelo ar.
A desoladora luminosidade vinda do exterior salpicava o chão, espalhando-se pelo
labirinto de canos, tanques, manómetros e válvulas que dominavam o aposento. O
pássaro marinho ficou caído no chão, paralisado, com o pequeno coração a bater
descompassado devido ao choque, de asas partidas e flácidas.
Algo se moveu. Uma mão não humana aproximou-se e apanhou-o.
Meio na luz e meio na sombra, o golem observou o ser moribundo na palma da sua
mão, sem compreender o que aquilo era. Abriu os longos dedos. As hastes articuladas
que uniam a base dos seus dedos ao antebraço gemeram com aquele movimento.
Desconcertado, viu o pássaro marinho morrer, sentindo o seu coração parar de
bater através da sua pele grossa e marcada.
Permaneceu imóvel durante algum tempo, observando o pequeno corpo na sua
mão. Depois agachou-se e começou a tentar acordá-lo.
1.2
- Estás pronta? - perguntou ele.
Estavam deitados sobre uma estreita conduta de metal frio, espiando a divisão por
baixo deles através de uma grade. Tinham rastejado através das escuridão durante o
que parecia terem sido horas, arranhando e esfolando cotovelos e joelhos.
Ela não conseguiu impedir a tremura na voz:
- Sim - respondeu.
Estendeu a mão pelo espaço que os separava e o padrão da grade da conduta
5. desenhou faixas de luz no seu braço. Apertou o pulso dele.
Os seus olhares encontraram-se pelo mais breve dos instantes. Rail, com a sua pele
escura, cabelo com rastas, de rosto coberto pelo respirador. Moa, pálida como o leite,
olhos borrados de preto e lábios pintados de verde-escuro. Então ele desviou o olhar e
ela soltou-o.
Ele retirou um pequeno cilindro da sua bolsa de couro, desenroscou a tampa e
inclinou-o sobre as dobradiças ferrugentas da grade. As dobradiças começaram a chiar e
a derreter, produzindo um vapor fino com um cheiro ácido. Ela humedeceu
nervosamente os lábios, com os olhos a saltar de um lado da conduta para o outro. Ele
ergueu cuidadosamente a grade e pousou-a de lado.
- Vamos a isto - disse, e enfiou-se pela abertura. Desceram e ficaram sobre uma
viga, uma de várias que cruzavam o aposento ao nível do tecto. As vigas eram largas e
feitas de um material semelhante ao ébano, algures entre a pedra e a madeira, sem ser
realmente algum dos dois.
O aposento por baixo estava mergulhado em sombras. Outrora talvez tivesse sido
esplêndido, no tempo antes da Extinção. Agora cheirava a bafio e o bolor atacara os
cantos. Formas peculiares haviam sido esculpidas nas paredes, padrões de espirais,
repuxos e conchas. Alguns deles produziam uma débil radiação, que iluminava o
aposento.
Havia velharias por toda a parte: cadeiras partidas, fragmentos de materiais, tigelas
em cacos e uns quantos ossos roídos. Ossos humanos. Vestígios dos novos ocupantes
daquele lugar.
Rail pendurou-se da viga e deixou-se cair, aterrando no chão sem ruído. Esticou-se
e segurou em Moa pelas ancas, ajudando-a a descer enquanto ela fazia o mesmo que ele.
Havia uma única porta naquela divisão, que os levaria ao interior do edifício.
Seguiram por aí.
Rail avançou primeiro e Moa seguiu-o. Era sempre assim, desde que se tinham
conhecido no gueto, há tanto tempo atrás. Desde que ele a ensinara a ser uma ladra, tal
como ele era um ladrão. Ela tinha um talento natural para aquilo, embora
ocasionalmente fosse incomodada pela sua consciência. Ao contrário de Rail, sofria
ataques de culpa quando pensava em levar o que não era seu.
Mas desta vez não era assim. Desta vez, estavam a roubar os Mozgas. Esses
monstros não mereciam a sua piedade.
Chegaram ao topo de uma escadaria. Fora construída de modo a descer
descrevendo um semicírculo. Metal, madeira e outros materiais que nenhum deles sabia
identificar haviam sido misturados e moldados como água. Algumas partes estavam
agora lascadas, e ao longo de uma das paredes viam-se graffiti num idioma bizarro. Um
globo luminoso estava suspenso no ar, sem qualquer apoio, por cima das escadas. Uma
maravilha da tecnologia antiga, agora tão esquecida como as mãos que haviam
construído aquele lugar.
É tão triste, pensou Moa, perdida em pensamentos por um instante. É tão triste
que já tenha havido uma era em que o mundo estava cheio de maravilhas assim. É tão
triste que nos tenhamos esquecido de como fazê-las.
Rail não olhara uma segunda vez para aquilo. Descia furtivamente pelas escadas, à
escuta.
Ouviam-se vozes lá em baixo. Um murmurar arrastado de frases que, subitamente,
aceleravam até se tornarem num tagarelar agudo e guinchado, como se alguém tivesse
6. gravado uma voz e agora a acelerasse e abrandasse ao acaso, reordenando as sílabas de
diversas formas, ouvindo a gravação de trás para a frente. O falar deformado dos
Mozgas.
Rail prosseguiu um pouco mais lentamente. Conseguia escutá-los às voltas no piso
inferior. As suas passadas variavam entre baques pesados e molengões e corridas
rápidas e precipitadas.
Voltou o olhar para o cimo das escadas, fitou Moa e levou o dedo à zona onde
estariam os seus lábios, se não usasse o respirador. Era uma máscara de metal preto e
liso que assentava sobre a sua boca, cobrindo-lhe a face desde a cana do nariz até às
maçãs do rosto e ao queixo. Dois cabos passavam-lhe por cima dos ombros, indo ligar-se
à pequena mochila de ar presa entre as suas omoplatas. Moa poucas vezes vira o corpo
por debaixo daquele aparato, mas isso era perfeitamente natural. Sem o respirador, Rail
não podia respirar de todo.
Os passos e vozes extinguiram-se na altura em que os Mozgas seguiram para uma
outra parte. Rail calculou mentalmente o seu percurso, recordando a planta que lhes
tinha sido fornecida pela ladra-chefe, Anya-Jacana. O edifício era gigantesco. Isso
funcionaria a favor deles. Habitavam-no apenas algumas dúzias daquelas criaturas e, se
fossem cautelosos, conseguiriam evitá-las totalmente.
Seguiu furtivamente até ao fundo das escadas e inspeccionou os dois lados do
corredor. Era mal iluminado por focos cimeiros, e as paredes eram de metal
ornamentado que reflectia estranhamente a luz débil. Nada se movia.
Moa estava por trás dele, colada ao seu ombro. Praticamente, irradiava medo.
Tratava de fingir que tudo aquilo era um jogo, uma aventura como as que vivia nos seus
sonhos; mas não conseguia enganar-se. O coração martelava-lhe as costelas e o suor
picava-lhe o couro cabeludo.
Rail acreditava que aquele roubo era possível. E ela agarrava-se a essa ideia. Rail
acreditava que podiam ser eles a fazê-lo e ela confiava nele. Reclamou um pouco da
tranquilidade dele para si. Recordou a forma como ele reagira quando ela expressara as
suas dúvidas, na véspera. Eu olho por ti, dissera ele. Hei-de olhar sempre por ti. E isso,
para ela, era o suficiente.
Mas Moa sabia as coisas de que aquelas criaturas eram capazes. Aquele grupo em
particular andava a levar gente das ruas há já algum tempo. Essas pessoas eram
comidas. Só os sortudos eram mortos antes disso.
Afastou aqueles pensamentos. Agora já era demasiado tarde. Tinham aceitado
aquela tarefa e Anya-Jacana não gostava quando os seus ladrões fracassavam. Ficava
muito zangada. Moa não queria jamais ficar frente a frente com ela, numa dessas
ocasiões.
Tinha mais medo de Anya-Jacana do que dos monstros daquele lugar.
Rail passou silenciosamente da escada para o corredor e Moa manteve-se muito
perto dele. Foram sobressaltados por um tagarelar longínquo, que depressa se extinguiu.
Ela afastou as madeixas de cabelo preto caídas sobre o rosto e olhou em redor,
procurando algum possível movimento. Aquilo não era o mesmo que dar conta de
guardas pouco espertos na casa de um qualquer ricalhaço dono de uma fábrica.
Podiam nem chegar a ver os Mozgas a aproximarem-se. Aquelas criaturas podiam
surgir num piscar de olhos.
Rail espreitou pela ombreira de uma porta e depois fez-lhe sinal para passar.
Era uma pequena sala, com o chão salpicado de detritos e claramente já não
7. utilizada. Algo semelhante a uma mesa de operações, com o contorno da forma de um
corpo humano, fora colocado ao centro. Focos de luz em recesso haviam sido colocados a
toda a volta, nos cantos onde o tecto e as paredes se encontravam. Do outro lado da sala
havia uma porta de metal.
- Por ali - sussurrou Rail, com um aceno de cabeça.
Moa abriu caminho até à porta por entre uma pilha de caixotes velhos, varetas
dobradas e pedaços de ardósia. Empurrou-a ligeiramente mas a porta não cedeu. Uma
olhadela rápida ao mecanismo de fecho deu-lhe toda a informação de que precisava.
Mecanismo de engrenagem de inversão. Fácil.
Retirou do bolso um par de lâminas serrilhadas e finas, com que começou a
remexer no interior do buraco da fechadura triangular. Rail, parado junto da porta, ficou
a vigiar o corredor.
Moa foi trabalhando na fechadura tão rapidamente quanto conseguia, procurando
apanhar e soltar as tranquetas, uma de cada vez. Rail deixava sempre que fosse ela a
ocupar-se das fechaduras. Ela fazia isso melhor do que ele; melhor, aliás, do que
qualquer outro ladrão do gueto. Não havia fechadura que ela não abrisse, à excepção
daquelas fechaduras ao velho estilo da Era Funcional, cujo funcionamento ninguém
entendia e onde não eram usadas chaves nem tranquetas.
Mas aquela estava a ser difícil. Não era usada há muito tempo e estava enferrujada.
Moa ia apenas a meio do serviço quando Rail lhe fez um gesto rápido a pedir silêncio.
Algo se aproximava pelo corredor.
Ela cerrou os olhos, inspirou e prosseguiu. Também já ouvira os baques surdos de
passadas lentas e pesadas. Como se o que quer que os produzia pesasse uma tonelada.
Mas estavam já a acelerar, tornando-se mais agudos, transformando-se num tamborilar
de passadas de rato, cada vez mais perto.
Os passos pararam. Não estavam já muito longe. Rail recuara, estando agora junto
do ombro dela.
- Não é que queira apressar-te... - disse.
- Eu sei - sussurrou ela.
Os braços tremiam-lhe mas ela forçou as mãos a ficarem firmes. Estava já a tratar
da última tranqueta, e o raio da coisa nunca mais caía. Se ao menos conseguisse...
Escutou o estalido da tranqueta a soltar-se mas, quando isso aconteceu, uma outra
tornou a fechar-se. Um detalhe de segurança adicional. Moa praguejou entredentes.
Escutaram o ruído de passos arrastados no corredor.
- Moa... - sussurrou Rail.
- Não estás a ajudar - cantarolou ela em voz baixa. Mordiscou o lábio inferior
enquanto procurava deslocar a tranqueta com a ponta de uma das lâminas, fazendo-a
soltar-se. Imagens daquilo que se ia aproximando assai taram-lhe a mente. Nunca vira
um dos Mozgas, mas escutara histórias sobre eles. Mentalmente, ordenou à fechadura
que se abrisse, mas esta parecia decidida a fazer-se difícil.
Os passos recomeçaram. Pesados e deliberados. Avançando pelo corredor. A
qualquer momento, a qualquer instante, a coisa que produzia aqueles sons surgiria na
porta. Vê-los-ia, e então aquilo chegaria ao fim, estaria tudo acabado, seria...
A fechadura emitiu um estalido. Ela empurrou a porta e estremeceu quando as
dobradiças chiaram. Rail passou num ápice e ela seguiu-o.
Fechou a porta atrás de si e correram até ao interior de um pequeno armazém
atafulhado de caixotes, alguns dos quais estavam rasgados e iam vertendo uma papa
8. nutriente e aguada. Rail começou logo à procura do alçapão, aquele que tinham visto na
planta. Sabia tão bem como ela que o Mozga teria provavelmente escutado o som da
porta a abrir-se. Viria investigar. Era apenas uma questão de tempo. Mas, com aquelas
criaturas, o tempo era a maior das incógnitas. Podiam mover-se mais depressa do que os
olhos conseguiam acompanhar, ou tão devagar que mais parecia não se moverem de
todo. Moa podia apenas esperar desesperadamente que a sorte estivesse do seu lado.
Agacharam-se por trás de uma pilha de caixotes, e ali estava: uma porta de alçapão
de metal, meio escondida por trás de uma caixa que vertia uma substância fibrosa. Rail
empurrou a caixa para fora do caminho e puxou a porta do alçapão, esperando
encontrar resistência; mas, misericordiosamente, não estava fechada.
Moa enfiou-se no espaço apertado por baixo deles, e Rail seguiu-a. Fechou a porta
do alçapão no mesmo instante em que escutaram a porta do armazém a abrir-se e o
Mozga a entrar.
- Vai! - sussurrou ele, por trás do respirador, e Moa avançou, esgueirando-se por
entre o espaço apertado entre os pisos do edifício. Havia alguns canos, e mecanismos
antigos com uma função que eles podiam apenas adivinhar, mas havia luz e espaço
suficiente para se moverem.
Apenas descontraíram quando dobraram a esquina e o espaço estreito se abriu
para uma pequena câmara, cheia de cabos e de mostradores frios e inactivos.
Ficaram sentados lado a lado no chão duro de rede metálica e áspera, recuperando
o fôlego. Não lhes parecia que tivessem sido vistos e, de qualquer forma, o Mozga era
demasiado volumoso para entrar por ali atrás deles. Havia algumas vantagens em ser-se
pequeno, com corpos esguios resultantes de uma vida inteira de fome. Ninguém se dava
realmente ao trabalho de contar semanas, meses ou anos em Orokos, mas tanto Rail
como Moa estavam a meio caminho entre a infância e a idade adulta, nessa área
enevoada onde ocorria a adolescência. No gueto, havia pouco tempo para se ser criança.
Pareciam mais velhos do que realmente eram.
Depois de algum tempo, Moa abriu um sorriso rasgado para Rail.
- Foi por pouco - disse.
Rail devolveu-lhe o sorriso; ela sabia-o pelas rugas em volta dos seus olhos.
- Nunca estive preocupado, nem por um segundo - mentiu ele.
1.3
Foram descendo ao longo dos vários níveis, usando condutas estreitas sempre que
possível, esgueirando-se por corredores quando a isso eram obrigados. As plantas do
edifício que tinham memorizado mostravam-se, por vezes, erradas: partes do edifício
tinham sido alteradas após os desenhos serem feitos. Mas Rail e Moa tinham facilidade
de adaptação e lidavam com os problemas à medida que eles iam surgindo. Ajudando-se
mutuamente, conseguiram chegar ao piso inferior do edifício, já bastante abaixo do nível
do solo, sem serem detectados. Por vezes escutavam os habitantes daquele lugar a
tagarelar e a gemer na sua linguagem horripilante. Então, recuavam e contornavam a
zona de perigo. Mas, apesar de vários becos sem saída e de alguns riscos de encontros
com os Mozgas, acabaram por conseguir encontrar a sala de que andavam à procura.
Entraram pela parte de cima, por uma porta que levava a uma varanda que se
estendia a toda a volta da zona cimeira da câmara. A varanda, tal como a própria
câmara, era uma obra de arte: uma mistura de metais e madeiras, e plásticos estranhos
9. que remoinhavam e mergulhavam na estrutura como se tivessem germinado
naturalmente, em vez de terem sido moldados por mão humana. As paredes da câmara
haviam sido, em tempos, de cortar a respiração, revestida de vidros coloridos e
translúcidos, arcadas de madeira preta e feixes de pedras preciosas. Mas essa beleza
fora destruída pelo tempo e por vândalos. Muitas das pedras preciosas haviam sido
levadas e a madeira estava riscada. Obscenidades haviam sido escritas nas paredes.
Havia amontoados de lixo, terra e cascalho pelos cantos.
O pior de tudo era o dólmen ao centro. Os Mozgas tinham erigido uma torre de
ossos com a altura de um homem, cuidadosamente construída com os restos das suas
vítimas, colados com uma espécie de argamassa peganhenta. Pequenos fragmentos de
carne ressequida continuavam agarrados aos fémures e clavículas amarelecidos.
Muito depois de todos terem deixado de acreditar em qualquer espécie de deus,
aquelas criaturas mantinham-se fiéis ao culto de uma qualquer divindade negra.Aquilo
era o altar erigido em sua adoração. Em frente encontrava-se uma pequena urna de
metal.
- Ali está - murmurou Rail.
Pela primeira vez, começou realmente a acreditar que iam levar o plano a cabo.
Olhou para Moa, atrás dele, não deixando que o alívio que sentia transparecesse
minimamente no seu rosto. Era fácil esconder os seus sentimentos, com o respirador a
ocultar-lhe as feições. Por vezes quase se sentia grato por isso. E se Moa tivesse
percebido que ele estava muito menos seguro de si do que fingia estar? E se ela tivesse
compreendido que as suas entranhas quase se tinham liquefeito quando julgara que
estavam prestes a ser caçados? Ela buscava força nele e, se ele não a apoiasse, ir-se-ia
abaixo. Por isso mantinha a sua fachada de confiança imprudente, porque ela precisava
que assim fosse.
Conhecera-a há muito tempo, porque pensara em roubá-la. Ela vagueava pelo
gueto, observando tudo com um olhar esbugalhado. Não teria parecido mais perdida ou
indefesa se levasse um sinal ao pescoço a dizer isso mesmo.
O fato de Rail a ter visto primeiro, antes de outro mais impiedoso, fora pura sorte.
Apresentara-se e ela pedira-lhe indicações para chegar a um lado qualquer, já não se
lembrava qual. Oferecera-se para levá-la até lá.
Queria descobrir se ela teria algo que valesse a pena roubar, ou se era apenas mais
uma vagabunda sem abrigo. Fora isso o que dissera a si mesmo, pelo menos.
Ao chegarem ao local, Rail tinha a certeza de duas coisas acerca dela: em primeiro
lugar, ela era mais pobre ainda do que ele e não tinha nada que valesse a pena roubar;
em segundo, ela sobreviveria aproximadamente meio dia no gueto, antes que lhe
cortassem a garganta ou fizessem algo ainda pior. A violência não fazia parte do estilo de
Rail, mas havia muitos que começariam por matá-la, para depois a roubarem.
Ela ficara devastada porque o homem que fora ali ver - o seu tio, ficara ele a saber
depois - estava desaparecido havia muito, e o barracão onde ele vivera fora queimado e
abandonado.
Contra os seus instintos, oferecera-lhe o seu refúgio para passar a noite, até que ela
arranjasse um novo plano. Embora desconfiasse dele, Moa aceitara a oferta.
E nunca mais partira depois disso, nem ele lhe pedira que o fizesse. Apresentara-a
a Anya-Jacana, a ladra-chefe, e tinham-se tornado parceiros. A sua parceria fizera deles
os melhores ladrões do gueto.
Era um modo de ganhar a vida.
10. Encontraram um lance de escadas que descia da varanda e seguiram por aí. Rail
inspeccionou o aposento, procurando indícios de armadilhas: teias de fios que
activassem armadilhas, lançadores de dardos mecânicos, lâminas de mola e outros
artefactos semelhantes. A sua especialidade era o evitar e desarmar de mecanismos
desse tipo. Os Mozgas não eram criaturas espertas, mas era bom ser-se cauteloso.
Não viu nada mas disse a Moa que esperasse nas escadas, por precaução. Avançou
até ao repulsivo dólmen de ossos, com passos leves, alerta para a possibilidade de haver
placas de pressão no chão. Se quisesse ser meticuloso, teria avançado de mãos e joelhos
no chão, testando o piso à medida que fosse avançando;mas não acreditava que os
Mozgas fossem suficientemente sofisticados para usar tais truques e, em qualquer caso,
não tinha tempo para isso.Queria sair dali tão rapidamente quanto possível.
Chegou à urna de metal sem qualquer incidente. Depois, tratou de inspeccioná-la,
procurando algum truque escondido. Nada.
Isto é demasiado fácil, pensou. Nem sequer está fechada à chave.
Abriu a urna e examinou o interior.
Estavam ali maioritariamente células energéticas - pequenos cilindros que emitiam
uma luz verde-amarelada. Algumas deles emitiam um brilho mais fraco, mas poderiam
conseguir um bom preço por elas na mesma.
Havia sempre grande procura de células energéticas. Havia uns quantos maços de
senhas platinadas e três sacos de veludo com moedas de vários tipos, maioritariamente
triangulares e feitas de pedra polida de diversas cores. E alguns outros objectos, peças
de maquinaria que Rail não sabia identificar, e uma outra coisa.
Aquele objecto atraiu imediatamente a sua atenção. Tudo o resto era corriqueiro; o
tipo de moeda de troca usada diariamente em Orokos. Mas aquilo era diferente. Bastou-
lhe um único olhar para compreender que aquilo era tecnologia da Era Funcional,
embora o resto fosse um mistério completo. Tinha duas pequenas argolas lado a lado, de
um metal da cor do bronze e, perpendicular a estas, um disco de âmbar, com cerca de
uma polegada de diâmetro.
Era uma peça de enorme minúcia e, embora Rail não fosse perito, calculava que
fosse valiosa. Muito valiosa.
- Está tudo bem? - sussurrou-lhe Moa do outro lado da divisão.
Vira a hesitação no seu olhar.
Ele acenou afirmativamente e começou a encher a sua bolsa de couro com o
conteúdo da urna, embora a sua mente não estivesse atenta à tarefa que realizava. As
possibilidades desfilavam-lhe pelo pensamento.
Isto é ciência da Era da Extinção. Genuína e verdadeira ciência da Era da Extinção.
Deve valer uma fortuna.
Nunca encontrara algo assim. Duvidava que os Mozgas tivessem sequer noção do
que ali tinham. Mas a verdadeira questão era outra: saberia Anya-Jacana que eles
tinham aquilo ali?
A ladra-chefe oferecera-lhes aquela missão. Ficaria com a sua parcela do resgate,
como sempre fazia, e deixaria uma percentagem para Rail e Moa. Era assim que as
coisas funcionavam. Se visse aquilo, reclamá-lo-ia para si.
Mas saberia que aquilo estava ali? Ela não tinha conhecimento do conteúdo de
todos os cofres e baús em Orokos. O mais provável era que tivesse escutado rumores do
lugar onde os Mozgas guardavam o dinheiro - os valores que tiravam aos humanos que
raptavam e devoravam. Nada mais do que isso. Fora essa a razão pela qual enviara os
11. seus ladrões.
Tinha acabado de esvaziar a urna. Tudo menos o engenho da Era da Extinção, que
ficara isolado. Fitou-o por um momento.
Valerá o risco?, perguntou a si mesmo.
Agarrou-o repentinamente e enfiou-o no bolso, e depois afastou-se da urna.
Sentiu o estalido da placa de pressão sob o calcanhar um instante antes de o
alarme soar.
Era um sistema básico, sobretudo mecânico, mas o toque ensurdecedor de
campainhas que emitia era suficientemente ruidoso para acordar os mortos. Moa
estremeceu, alarmada, ao escutar aquela barulheira súbita.
O olhar de Rail encontrou o de Moa, do outro lado da câmara.
- E altura de ir - disse, e correram.
1.14
Ao longo do túnel, escutava-se o eco da água da chuva misturada com ferrugem,
pingando do tecto e formando uma correnteza superficial e suja. Fragmentos de rocha e
pedaços de madeira envelhecida tinham caído ali, juntamente com mecanismos
intrincados que outrora haviam pertencido a objectos da Era Funcional. O próprio túnel
era uma relíquia desse tempo: as suas paredes eram feitas de um metal macio e escuro
que não podia ser riscado, e viam-se enormes arcadas a toda a sua extensão. Mas
incontáveis dias e noites tinham deixado a sua marca, e a construção acabara por se
afundar e se deformar. Nada era eterno. Sobretudo em Orokos.
A princípio havia apenas silêncio, à excepção do som da água. Depois, o nítido bater
de pés em corrida, aumentando de intensidade.
Uma grade lá no alto, de um dos lados do túnel, guinchou ao abrir e Rail desceu
pela abertura, seguido de Moa, que depois correu a grade, produzindo um novo chiar
metálico.Os seus pés chapinharam na água do túnel. O rapaz agarrou-a pela mão
enluvada, forçando-a a mover-se e começaram novamente a correr.
Prosseguiram, contornando os amontoados de metal e de pedras partidas, e
baixando-se para evitar as vigas que pendiam do tecto. Ao fim de uma curta distância,
chegaram a um ponto em que o túnel bifurcava.
Rail abrandou e deteve-se, olhando para um lado e para outro.
- Sabes por onde estamos a ir? - perguntou Moa, ofegante.
Estava sem fôlego e sentia-se entontecida. Podiam ter conseguido fugir do covil dos
Mozgas - através de uma rota de fuga cuidadosamente traçada - mas os seus
perseguidores não desistiam facilmente.
- É por aqui - respondeu ele.
A sua voz produzia um ligeiro zumbido ao passar pelo respirador.
- E se mudou?
- Não mudou. Eu verifiquei.
- Quando?
- Há dez dias.
- Dez dias! - guinchou ela. Afastou-se dele, ondulando os dedos pelo ar.
- Rail, há dez dias eu era destra.
- Não mudou - repetiu ele.
Ouviu-se uma explosão de ruído vinda de atrás - o linguarejar hesitante e absurdo
12. dos seus perseguidores. Era horrível de se escutar, uma linguagem empastelada que ia
do rápido ao lento e do alto ao baixo numa mesma tirada confusa. E então escutaram o
guinchar metálico da grade, a rodar lentamente sobre as dobradiças envelhecidas. Moa
olhou para trás mas havia demasiadas pedras para se conseguir ver alguma coisa.
Rail fitou-a com os seus olhos de um castanho líquido.
- Sem barulho - disse-lhe, e seguiram pelo lado do túnel que ele decidira ser o
correcto.
Mas, na verdade, não tinha a menor ideia de qual seria a opção certa. Não houvera
qualquer bifurcação da última vez que tinha passado por ali.
Correram tão furtivamente quanto lhes era possível, mantendo-se junto das
paredes do túnel e evitando a água, mas os seus sapatos faziam barulho ao pisar a lama
e as fivelas da sacola de Rail batiam uma na outra. O túnel curvava lentamente à
medida que iam prosseguindo. As vozes dos Mozgas ecoaram pelas arcadas das paredes.
Os músculos de Moa ardiam e ela sabia que já não aguentaria muito mais tempo.
Detestava-se por ser um fardo, mas a verdade é que era fisicamente débil e sempre fora.
Não tinha resistência para uma corrida prolongada.
Chegaram a outra junção, uma encruzilhada no túnel. Por cima deles, uma enorme
ventoinha metálica com uma única pá rodava por detrás de uma grade descolorada,
cortando o ar fétido. Telheiros e pequenos barracões de utensílios atulhavam os lados da
encruzilhada, onde a água não chegava. Estava tudo abandonado.
Rail olhou para Moa em triunfo.
- Vês? - interrogou, soando mais confiante do que realmente se sentia.
Estava aliviado por reconhecer o local, mas ainda não tinha a certeza de que o
caminho que recordava era o certo. Em Orokos, era costume os túneis e ruas irem
mudando.
Moa não lhe respondeu. De qualquer forma, não tinha fôlego que chegasse para o
fazer. Estava ofegante. A face de Rail foi momentaneamente atravessada por uma
expressão de preocupação, mas depois agarrou-lhe novamente na mão e forçou-a a
continuar.
Um guincho penetrante reverberou por trás deles.
Seguiram pela direita, por um túnel que ficava mais acima de outro que o
atravessava, acima do nível da corrente de água. Avançaram um pouco, antes de Moa
começar a deixar-se arrastar pela mão de Rail e tropeçar.
- Rail, espera... - conseguiu articular.
- Não podemos esperar.
- Não posso... correr... mais.
Rail praguejou, pensando numa solução. Não havia ali nada senão detritos
arrastados de outros sítios quando, no passado, aqueles túneis tinham ficado
inundados.
- Estamos quase lá - disse ele, num tom agora mais tranquilizador. - Tu consegues.
Mas ele sabia que ela não conseguia. Se Moa se esforçasse mais, sofreria um
colapso. Estava demasiado fraca e adoentada. Apesar do medo das criaturas que os
perseguiam, não conseguia sentir-se zangado com ela. Tal como ele próprio, ela crescera
mal alimentada e cansava-se facilmente. Viu a desilusão no rosto dela, a vergonha que
sentia por estar a atrasá-los. Mesmo no meio de tudo aquilo, desejou poder consolá-la.
- Só... alguns... - disse ela, mas não terminou.
Rail rodeou-lhe o ombro com o braço e levou-a para trás de um amontoado de
13. pedras desmoronadas e pedaços de rede de metal. Dali, conseguiam espiar a
encruzilhada. Ele sentou-a e ela enroscou-se de braços em volta dos joelhos e com o
rosto tenso, inspirando e expirando intensamente.
Rail espreitou por cima das pedras, observando a encruzilhada. Os gritos das
criaturas que os perseguiam pareciam agora chegar de muito longe, mas ele sabia que
não podia fiar-se na acústica daquele lugar.
Pousou a mão sobre a sacola que levava consigo, verificando que aquilo que
roubara continuava no interior. Naquele momento, a única coisa que o assustava mais
ajnda do que os Mozgas era regressar à presença de Anya-Jacana de mãos vazias.
Apalpou depois o bolso, onde se encontrava o estranho artefacto científico da Era da
Extinção, separado do restante produto do roubo.
Vais mesmo fazer isto?, pensou ele. Vais mesmo roubar a Anya-Jacana? Ela mata-
te.
Estava tudo a acontecer demasiado depressa, demasiado abruptamente. Não era só
a questão de roubar: ele era um ladrão, que diabo; roubar estava-lhe no sangue. E não
era só a questão do dinheiro que conseguiria obter com uma peça daquelas. Era todo o
conjunto de possibilidades que aquilo representava. Era uma oportunidade. Uma
oportunidade de mudar a sua situação.
Atrever-se-ia a ficar com aquilo? Poderia viver em paz consigo se entregasse aquela
peça?
Algo se moveu ao longe. Duas das criaturas. Pareceram materializarse, literalmente,
no meio da encruzilhada. Mas Rail sabia que não fora isso o que acontecera.
Simplesmente, moviam-se mais rápido do que o olhar podia acompanhar. E, contudo,
agora mostravam-se apáticos, como se estivessem a arrastar-se sobre melaço. Olhavam
em volta, voltando as cabeças lisas, procurando determinar qual o lado por onde as suas
presas tinham seguido. As suas silhuetas tremeram novamente e trocaram de posições
sem qualquer movimento perceptível. Uma terceira criatura juntou-se-lhes, correndo até
se tornar visível e depois diminuindo de velocidade até ficar em câmara lenta. Um deles
transformara-se numa forma indistinta e tagarela, abanando a cabeça para um lado e
para outro.
Os Mozgas usavam impermeáveis pretos, de onde pendiam fivelas e longas tiras de
couro e correntes, e traziam consigo finos punhais que cintilavam como pingentes de
gelo. A sua pele era fria e completamente branca, e os corpos e membros por baixo dos
impermeáveis eram muito delgados. As suas faces eram alongadas na direcção do
focinho, como um tubarão ou uma doninha, com uma queixada inferior mais recuada do
que a superior, cheia de dentes pequenos e tortos, translúcidos como vidro fosco. Os
seus olhos eram brancos e bolbosos, enfiados em cavidades fundas.
Ninguém sabia exactamente como haviam surgido aquelas criaturas, nem como se
tinham transformado no que eram agora. Era apenas mais um mistério numa cidade de
muitos mistérios. Em Orokos, tudo era possível. Tudo, sem excepção.
Até mesmo criaturas como os Mozgas, seres que pareciam desligados do próprio
tempo, não chegando nunca a estar em verdadeira sincronia com o mundo que
habitavam. Num instante eram mais velozes do que o pensamento, no seguinte eram tão
lentos como se os seus membros fossem feitos de chumbo.
Rail engoliu em seco, desejando não ter aceitado aquele trabalho.
- Moa... - chamou baixinho, mas ela não respondeu.
Estava desorientada, de cabeça enterrada entre os joelhos.
14. As três criaturas separaram-se, tal como Rail tinha previsto. Duas afastaram-se, e a
outra, ainda obrigada a movimentos lentos pela natureza do ciclo temporal da sua
movimentação, avançou furtivamente até à boca do túnel onde Moa e Rail estavam
escondidos.
Rail sentiu o suor a inundar-lhe a testa. Se corressem agora, a criatura ouvi-los-ia.
E, com Moa no estado em que se encontrava, não chegariam longe.
Deixa-a para trás, deixa-a para trás e pronto, sussurrou uma voz dentro da sua
cabeça, a voz que o ajudara a sobreviver ao longo de uma infância dura e perigosa, para
chegar a uma adolescência mais difícil ainda. Corre!
Mas não podia abandoná-la. Não podia. No período de tempo decorrido desde que
se haviam conhecido, ela tinha-se tornado a coisa mais preciosa que ele possuía, e
jamais abdicaria disso. Precisava dela tanto quanto ela dele.
O Mozga estava agora a acelerar, aumentando o tempo de movimento para uma
velocidade normal, descendo pelo túnel numa passada constante. Os tachões nas solas
das suas botas batiam contra o metal.
Rail verificou o estado de Moa. A sua respiração era agora menos custosa. Dentro
de alguns momentos ela ficaria bem; mas eles não dispunham desse tempo. Rail
procurou uma arma, mais para afastar os pensamentos da voz dentro da sua cabeça do
que por achar que teria realmente hipótese de usá-la.
O seu olhar fixou-se numa fina vara de metal, com o comprimento aproximado do
seu braço, meio enterrada nas pedras à sua frente. Olhou para a parte dianteira do
túnel. O Mozga continuava um pouco afastado, avançando cautelosamente, à escuta.
Um dos focos luminosos no tecto produziu um silvo e apagou-se, diminuindo a
luminosidade no túnel. Um outro tremeluzia a espaços, agitando as sombras. O puxar e
expelir do ar da mochila presa às costas de Rail parecia fazer demasiado barulho.
Fechou a mão em volta da extremidade da vara de metal. Começou a puxar, e esta
soltou-se sem qualquer resistência, produzindo um raspar quase inaudível.
Ficou solta na sua mão. Algumas pedras do amontoado de detritos rolaram e
caíram ao chão. E o Mozga surgiu diante de Rail.
Ele gritou e recuou a cambalear, com a vara na mão. O choque paralisou-o por
instantes. A criatura estava a poucos centímetros de distância, de mandíbulas
entreabertas e dentes húmidos e brilhantes, um punhal erguido e pronto a cravar-se no
seu pescoço. Imobilizara-se, presa no tempo como uma figura de cera.
Rail lançou a vara contra o lado da sua cabeça, com toda a força que conseguiu.
Era como acertar numa pedra. A criatura não tremeu sequer. A vara saltou-lhe da mão,
e uma vaga de dor subiu-lhe pelo braço, até ao ombro. Recuou um passo, sem saber o
que fazer a seguir. Agarrou numa assustada Moa, forçando-a a pôr-se de pé, e correu.
Tinham-se afastado alguns passos quando ouviram um baque surdo por trás deles,
e o Mozga descreveu um voo oblíquo, colidindo com a parede e caindo ao chão. Fora
vencido pelo tempo.
Não se atreveram a esperar para ver se estava definitivamente fora de combate. O
túnel curvava para a esquerda e eles fizeram o mesmo. Moa tropeçou por diversas vezes,
mas Rail estava ali para apoiá-la.E por fim, depois do que pareceu uma eternidade,
encontraram a saída.
Os degraus, abençoadamente, estavam onde era suposto. Moa quase entrara
novamente em colapso quando chegaram aí, mas Rail não punha a hipótese de parar
agora, não com os gritos de perseguição a subirem outra vez de intensidade. Ajudou-a a
15. subir para as suas costas e ela agarrou-se a ele. Era leve como um fantasma, mas ele
não era muito forte. Só o medo do que vinha no seu encalço o fez subir pela escada de
caracol. As suas pernas doíam com o esforço, mas conseguiu chegar à porta enferrujada
no topo. Pousou Moa e batucou segundo o ritmo que lhe fora ensinado. Três pancadas,
pausa, uma pancada, pausa, quatro, pausa, três.
Nada. Ninguém respondeu.
Repetiu novamente o batimento. Tinha a certeza de que estava a fazê-lo de forma
correcta.
Mais uma vez, não houve qualquer indício de que alguém o tivesse escutado. Não
havia puxador no seu lado da porta. Pontapeou-a, mas a porta não cedeu. Praguejou e
pontapeou-a novamente.
- Rail... - chamou Moa, com a voz carregada de exaustão. Soava como se tivesse já
desistido.
- Eles vêm aí.
Os degraus eram feitos de tiras metálicas, através das quais se conseguia ver o
fundo da escadaria. Surgiram formas lá em baixo; movimentos rápidos e bruscos.
Escutou-se o bater dos tachões metálicos das botas, primeiro um restolhar rápido,
depois bem mais lento.
- Abram o raio da porta! - gritou Rail.
O respirador suavizou a nota de desespero na sua voz. Repetiu novamente a
sequência de batimentos e, um instante depois, escutou-se o rangido da fechadura a ser
destrancada. Rail ergueu novamente Moa. Lá em baixo surgiu uma explosão de
guinchos, que depois se articularam num tagarelar rápido.
A porta abriu-se e eles passaram. Moa caiu na movimentada passagem que se
estendia à sua frente. Rail fechou a porta atrás de si. Vislumbrou uma das criaturas,
correndo para ele tão rápida como uma aranha, e então a porta bateu ruidosamente.
O sistema de roldanas do fecho efectuou uma manobra brusca e sonora, e a tranca
foi ao lugar.
Rail ficou encostado ao metal por um momento, escutando os uivos frustrados dos
Mozgas. Depois, voltou-se para aquele que lhe abrira a porta. O rapaz era baixo e
pequenote, vestindo um poncho impermeável e usando um chapéu velho, e segurava
uma pequena empada meio mastigada numa mão. Afastou-se um pouco ao notar o olhar
severo de Rail. A chuva pingava da faixa de céu escuro visível por cima deles.
- Onde estavas, Fulmar? - perguntou Rail com irritação. - Por que não respondeste?
O rosto do rapaz era uma máscara assustada.
- Não vais dizer à Anya-Jacana, ou vais? Vais dizer-lhe?
Rail avançou um passo na sua direcção e arrancou-lhe a empada da mão. No final
da passagem, eram visíveis as barracas de um mercado de rua.
- Não és capaz de fazer nada em condições, pois não? - rosnou. Agachou-se junto de
Moa, ajudando-a a sentar-se.
- Toma, come isto - disse-lhe, agora numa voz suave. Moa segurou a empada com
gestos débeis.
- O que é isto? - perguntou.
- É melhor não perguntares - retorquiu ele. - Come.
- Só me afastei um instante - queixou-se Fulmar por detrás dele. - Estava com
fome. Já estava à espera há...
Rail ergueu a mão, ordenando-lhe que se calasse, não se dando sequer ao trabalho
16. de o olhar.
- Mais tarde trato de ti.
- Não lhe vais dizer, pois não? Por favor. Agora, Fulmar quase tremia.
Rail ignorou a pergunta. Observava Moa, que ia mordiscando a empada.
- Estás bem? - murmurou-lhe. - Consegues andar?
Moa engoliu e fez um assentimento. Gentilmente, ele ajudou-a a erguer-se.
- Anda - disse-lhe, como se sossegasse uma criança. - Eu disse que não deixava que
te fizessem mal. Tomo sempre conta de ti, verdade?
Ela assentiu novamente, mal parecendo escutá-lo. Os dois percorreram lentamente
a passagem até ao mercado, o braço dele em volta do ombro dela, dando-lhe apoio, a
chuva ensopando as roupas de ambos. Fulmar olhou nervosamente para a porta de
metal, onde tinham começado a ouvir-se sons de raspar, e depois seguiu
apressadamente os outros dois.
1.5
Cretch olhava pelo panóptico, sentado na sua velha cadeira de braços vermelha,
quando Ephemera entrou pela sala adentro, dizendo:
- Avô! Venha ver Vago!
Ele mostrou-se impaciente e, com um gesto, ordenou-lhe que saísse dali sem
desviar os olhos do aparelho de observação. Era um enorme periscópio de bronze que
pendia do tecto, com manípulos de ambos os lados, que ele ia rodando ansiosamente, ao
mesmo tempo que emitia suspiros de frustração.
- Por que razão fazem eles as letras tão pequenas nestas coisas? Será que não
pensam nos velhos como eu?
- É por isso que têm imagens - respondeu Ephemera, como se fosse óbvio. - Venha,
venha ver, Vago está a fazer um disparate!
- O que está ele a fazer, pequena? - suspirou Cretch.
- Tem de vir ver - exigiu ela.
Ele afastou-se do ocular blindado do panóptico. Era alto e esguio, com demasiada
estatura para a cadeira onde se sentava, e o seu cabelo era branco e fino. Estava
embrulhado num roupão pesado, cujo tecido era uma imitação de veludo. Usava um par
de óculos especiais, fixos na sua cabeça com um elástico. Eram meias-esferas de metal
negro que se ajustavam aos seus olhos, com uma pequena perfuração ao centro, onde o
vidro cintilava como a lente de um caleidoscópio.
- Antes, lê-me isto - pediu ele. Ephemera lançou-lhe um olhar mal-humorado.
- Não devia estar a olhar para aquilo com esses óculos - repreendeu. - Fica com
dores de cabeça.
Cretch não respondeu. Podia explicar-lhe que sem aqueles óculos era cego, tantas
vezes quantas entendesse, que ela não percebia. Não entendia nada de nada. Era jovem
e acreditava que seria sempre forte, saudável e bem nutrida. Não sabia o suficiente para
ficar assustada quando as tempestades de probabilidades assolavam a cidade,
reordenando todas as coisas, mudando as ruas de lugar. As tempestades podiam
arrancar uma pessoa de um lugar e ir deixá-la noutra parte qualquer, transformar
crianças em estátuas de gelo ou fazer com que um homem falasse noutra língua.
Ephemera nunca parara para pensar que poderia acordar num dos covis dos
Invasores, ou com seis dedos numa mão, ou transformada num rapaz. Sempre tivera
17. sorte e, por isso, acreditava que nada lhe podia acontecer. E talvez nunca acontecesse.
Nada era certo.
Cretch, porém, sabia muito bem aquilo de que o Ladrão da Tempestade era capaz,
como podia virar do avesso a vida de um homem, e tinha um enorme temor das
tempestades.
Tudo podia acontecer quando o Ladrão da Tempestade estava lá fora. Era uma
entidade malévola que se deliciava com a discórdia; tanto podia levar a carteira de
alguém como cobri-lo de jóias.
Podia roubar os olhos a um bebé e deixar botões em seu lugar, ou transformar uma
casa em papel de lustro.
Era uma velha lenda, criada há muito tempo para dar sentido ao que não tinha
sentido. Os pais usavam-na para explicar as tempestades de probabilidades aos seus
filhos. Mas embora fosse apenas uma lenda, eles mesmos não deixavam de acreditar
nela.
Quando falavam de todos os danos trazidos às suas vidas no seguimento de uma
tempestade, continuavam a falar numa visita do Ladrão da Tempestade.
Tinha havido uma tempestade de probabilidades havia cinco dias. Cretch passara-a
enfiado na cama a tremer. Ephemera ficara a brincar no laboratório com os seus
brinquedos. Mas a tempestade que varrera a cidade na noite anterior fora uma das
naturais, e Cretch dormira como um bebé.
Ephemera deixou escapar um suspiro exasperado e arrancou o panóptico das mãos
do avô. Fê-lo girar e espreitou pelo ocular.
A imagem, como sempre, era difícil de ver. Era acastanhada e inconstante junto dos
cantos, e parecia muito distante. Ajustou as dimensões, aumentando-a tanto quanto
possível, e então rodou o manipulo de focagem até tudo ficar nítido.
Continuava a parecer-se com uma imagem observada por um tubo comprido e de
corte rectangular, mas servia. Crescera com o panóptico e, por isso, não se maravilhava
com o aparelho como o seu avô; ele continuava a olhá-lo como um objecto mágico.
Parecia que se desenrolava uma batalha no exterior. Não havia som, mas Ephemera
conseguia ver um par de soldados do Protectorado a disparar as suas armas na esquina
de um edifício. Estava acostumada a cenas como aquela. O Protectorado lutava contra
os Invasores desde que ela nascera, e até muito antes disso.
A diferença entre as duas facções era ensinada a todas as crianças, desde tenra
idade. O Protectorado, tal como o nome sugeria, zelava pelas gentes de Orokos. Eram
chefiados pelo Patrício, o governador da enorme cidade-ilha.
Os Invasores eram monstros terríveis que matavam tudo aquilo em que tocavam.
Era uma lição simples quanto bastava, até mesmo para uma criança.
O ponto de vista do panóptico mudou e Ephemera viu uma muralha e um enorme
portão de ferro, em volta do qual se encontravam diversos cadáveres. Os soldados
disparavam raios de éter incandescente contra formas que se moviam rapidamente à
distância.
Iam surgindo legendas na base do ecrã, escritas nos caracteres pontudos e
complexos do alfabeto orokoano. Ficavam no ecrã durante alguns segundos e depois
apagavam-se, sendo substituídos por outros.
- "As forças do Protectorado obtiveram hoje uma grande vitória" - leu ela. - "A mais
recente tempestade de probabilidades possibilitou que os Invasores se introduzissem no
Complexo Mereg de Processamento de Comida. As tropas conseguiram expulsá-los após
18. vários dias de combate. Os trabalhadores regressarão ao fim do dia de hoje."
A sua voz passou de um tom monocórdico para uma exclamação de deleite
amedrontado.
- Eeh! Acertaram num agora mesmo!
A imagem passou para um homem de aspecto sujo, com feições angulosas e vestido
com um casaco. Os seus lábios moveram-se mas não se ouviram quaisquer palavras.
- "O porta-voz do Território Noroeste 43, na vizinhança, expressou a sua gratidão
para com as tropas."
Ephemera começou a falar numa voz queixosa, imitando o porta-voz:
- "Sem a ajuda deles, os habitantes do meu distrito estariam agora a morrerá fome.
Gostaríamos de agradecer ao Patrício por nos defender do terror dos Invasores. Mais
tarde. " Afastou-se do panóptico.
- O Noroeste 43 é um distrito-gueto. Quem quer saber a opinião dos estúpidos
habitantes dos guetos?
- Ephemera!
Ela fez um ar amuado.
O que foi? Eles são estúpidos. Senão, por que motivo viveriam naqueles horríveis
guetos? Será que não querem ser asseados?
Cretch estendeu os braços, chamando Ephemera para se sentar no seu colo. Ela
assim fez. Ele acariciou-lhe o cabelo com gentileza. Era uma massa de caracóis soltos,
com um dos lados tingido de negro e o outro da sua cor natural, o branco. Trazia um
vestido púrpura orlado com uma fita de renda prateada, que ela ia remexendo enquanto
ele falava.
- Algumas pessoas não são tão trabalhadoras como o teu avô - explicou ele. - Vivem
nos guetos porque não querem trabalhar, ou porque são criminosos. É por isso que o
Protectorado as leva para lá. Para que as pessoas decentes como tu e eu possam viver
em segurança.
- Mas eles são preguiçosos - protestou ela. - E estão sempre a roubar, e estamos
sempre a ler notícias no panóptico sobre os roubos que eles fazem.
- Não sejas demasiado severa para com eles, pequena - aconselhou Cretch com
benevolência. - Essa gente não tem as vantagens que nós temos. Não é de admirar que
desistam com tanta facilidade. Não é de admirar que se tornem criminosos. São seres
inferiores, e sabem disso.
Acariciou a metade do cabelo da neta que era de um branco luminoso.
- Devemos ter piedade deles.
Ephemera não se mostrou minimamente convencida.
- Devíamos deixar que os Invasores os apanhassem - sentenciou.
- Bem, quando fores tu o Patrício, poderás decidir isso, está bem? Ela riu-se.
- Tonto! Eu nunca serei o Patrício. Ele é eterno.
Cretch abriu um sorriso, mostrando os seus dentes cor de mármore, com veios
castanhos.
- E agora, o que querias mostrar-me? Ephemera fez um ar aflito bastante cómico.
- Esqueci-me! Tem de ver o que Vago fez!
Soltou-se dele e conduziu-o para fora da divisão, pelas escadas acima.
Vago habitava o topo da torre, por cima do laboratório de Cretch. kra uma enorme
câmara com cinco lados, atafulhada de cilindros metálicos e tanques que assobiavam e
batiam, e estranhas válvulas e mostradores que se moviam automaticamente.
19. O chão era de metal, morno e triste. Não havia muito espaço de manobra por entre
aquele amontoado de máquinas ruidosas. Não havia sequer espaço para colocar uma
cama mas, de qualquer forma, Vago não dormia.
Passava todo o seu tempo livre ali, quando não estava a dar assistência a Cretch.
Passeava-se amiúde pelos corredores entre as tubagens fumegantes, ou conversava com
a pintura desbotada da parede, no recanto diminuto que reservara para si. Por vezes
colocava-se ali e ficava a olhar pela enorme janela oval de onde se avistava a zona sul da
cidade. Na maior parte das vezes, ficava entregue aos seus pensamentos.
Tinha muito em que pensar, atendendo a que tinha apenas cento e vinte dias de
vida.
Certa vez, Ephemera levara para ali um espelho, para o desorientar. Depois que se
observara, Vago compreendera finalmente os reflexos distorcidos que via frequentemente
nas curvas dos cilindros metálicos. A criatura que lhe devolvia o olhar era um estranho,
com um corpo que tinha uma parte de carne e outra de metal. Era curvado e de
membros longos, de enorme estatura. Semelhante a um gato de caça, se os gatos de
caça se sustivessem nas patas traseiras. Castanho, com músculos fibrosos retesados
sobre a sua silhueta esguia, crivada de faixas lisas e prateadas, pertencentes a
maquinarias estranhas. Uma fina faixa de barbatanas metálicas, aguçadas como
lâminas, descia-lhe pelas costas, flanqueada por dois carregadores que vibravam
suavemente.
Tinha também asas: asas enormes e de um material parecido com o couro, como
asas de morcego, que nasciam dos dois lados da coluna vertebral e eram reforçadas por
várias dúzias de minúsculos ligamentos metálicos. Nunca compreendera o porquê
daquelas asas. Não tinha permissão para deixar a torre e as asas ficavam presas pelos
cantos quando se movia, tornando-o desastrado. Fora espancado mais do que uma vez
por as suas asas terem derrubado algo no laboratório do seu amo.
- O avô diz que tu és um golem - crocitara Ephemera. - Não tiveste uma mamã nem
um papá. Foste construído por alguém. És mesmo feio.
A sua cara era o pior de tudo. A pele estava muito esticada sobre o crânio,
enrugada e lívida como a de um cadáver. A maior parte da metade esquerda estava
coberta por metal, e no lugar onde deveria existir o seu olho esquerdo havia uma órbita
negra.
O seu outro olho era amarelo, com manchas de outras cores, observando o mundo
com espanto infantil.
Não havia lábios dignos desse nome na boca estreita e, quando ele falava, as suas
presas metálicas brilhavam na fraca luminosidade.
- Sou feio? - perguntara ele. - O que é ser feio?
Oh sim! - exclamara Ephemera, com uma gargalhada esfusiante. - Feio é aquilo que
tu és!
Na noite anterior, durante a tempestade, um pássaro marinho voara pelo seu
quarto adentro. Estava junto à janela, no seu pequeno recanto, quando a criatura
entrara por ali, embatendo contra um dos tubos e morrendo.
Aquele acontecimento entristecera-o. O pássaro marinho não era feio. Pelo menos,
ele não achava que fosse. Era belo, mesmo estando morto. As suas penas eram macias e
lisas, e ele gostava da textura do pequeno ser contra a sua pele.
Recordou como voara, a velocidade a que se deslocara. Afagou-lhe as asas e pensou
em como eram muito mais bonitas do que aquelas coisas pesadonas nas suas costas.
20. Flectiu as suas próprias asas, tanto quanto o espaço em volta permitia.
Era para isso que aquelas coisas serviam? Para voar? Mas como poderia ele fazê-lo?
Não sabia sequer como usá-las.
Porém, gostou do pássaro marinho. Por isso, encontrou um pedaço de corda, com
que atou as patas do pássaro marinho com os seus dedos ágeis, e pendurou-o ao
pescoço. E foi assim que Cretch o encontrou, quando chegou lá acima com a neta.
- Olha para ele! Olha para ele! - gritou a moça, agarrada à mão de Cretch,
dançando e apontando.
Vago mostrou-se confuso. Não compreendia a razão de tanta excitação por parte de
Ephemera.
- Oh, Vago, o que tens tu aí? - interrogou Cretch. Aproximou-se e inspeccionou o
pendente bizarro que o golem exibia.
Vago encolheu-se ligeiramente, embora fosse um pouco mais alto do que Cretch.
- Vamos, vamos, não vou magoar-te - disse o velho. - Quero apenas ver.
Relutante, Vago deixou que Cretch lhe retirasse o pássaro do pescoço. Nunca sabia
ao certo quando iria Cretch castigá-lo, embora a bengala nodosa que era, geralmente, o
instrumento com que Cretch o castigava não estivesse à vista.
A dor dessas tareias era suficientemente má, mas pior ainda eram os sentimentos
estranhos e terríveis que lhe provocavam. Sentimentos sombrios, irados, febris. Não
sabia de onde eles vinham mas receava o que, algum dia, poderiam levá-lo a fazer.
- Fascinante - murmurou Cretch, voltando o pássaro na mão. - Onde o
encontraste?
- Entrou a voar - retorquiu Vago.
A sua voz era um som algures entre um queixume e um rosnar,
surpreendentemente cavernosa. Quando falava, parecia sempre que lutava para fazer
sair as palavras.
- Notável. Nunca tinha visto um assim.
- Mas ele tinha-o ao pescoço! - guinchou Ephemera, desapontada por a sua
tentativa de ridicularizar Vago ter falhado.
O avô ignorou-a.
- Bem, não sendo um perito, julgo que tens contigo um exemplar bastante invulgar,
Vago - considerou. - Se não soubesse que era impossível, diria que essa criatura veio de
fora da cidade.
Soltou uma gargalhada.
- De fora da cidade?
- Esquece. E só uma piada de um velho tonto.
O desconcerto de Vago reflectiu-se no seu único olho normal.
- Não percebes? Não existe nada fora da cidade, seu golem estúpido! - disparou
Ephemera. - Orokos é tudo o que existe!
1.6
Rail e Moa regressaram ao gueto quando o dia já ia a meio. O céu era de um
cinzento monótono mas a chuva já parara, deixando a cidade húmida e cintilante.
Tinham passado a manhã a abrir caminho por entre os complicados bairros de Orokos,
evitando as áreas dominadas pelos Invasores. Tinham parado várias vezes, para falar
com os habitantes locais e confirmar que as coisas se mantinham tal como eram antes
21. da última tempestade de probabilidades. As ruas e edifícios de Orokos tinham uma
tendência desconcertante para mudar de lugar. Era sabido que até mesmo bairros
inteiros tinham mudado de lugar.
Os mais velhos ainda recordavam o dia em que Orokos fora completamente
invertida, tornando-se na imagem-espelho de si própria. Os edifícios do lado norte
tinham passado para sul, o este e o oeste tinham trocado posições, e tudo ficara
perfeitamente simétrico. Não era todos os dias que se assistia a uma sublevação dessas,
diziam eles. Em geral, as mudanças eram menos intensas, como quando Moa, que toda
a sua vida fora destra, acordara canhota uma bela manhã. Ou como quando os pulmões
de Rail tinham deixado de funcionar, durante uma tempestade de probabilidades, e o
rapaz quase morrera. Desde então, via-se obrigado a usar um respirador. O Ladrão da
Tempestade levara a sua respiração.
O gueto era um denso emaranhado de ruas e becos. Fora outrora parcialmente
protegido por uma muralha mas, como qualquer outra muralha em Orokos, também
essa não durara muito. No interior, praças varridas pela chuva, que outrora haviam sido
magníficas, estavam agora a abarrotar de barracas apodrecidas. Edifícios enormes e
elaborados erguiam-se sobre concentrações de casas e refúgios miseráveis.
As lúgubres fachadas de antigos mausoléus pareciam ameaçar-se mutuamente,
separadas por canais troantes e passagens de metal. Arqueadas e descobertas,
conduziam às profundezas subterrâneas da cidade.
Os portões existentes eram vigiados por soldados do Protectorado, que
inspeccionavam as listas identificativas tatuadas no antebraço de cada um dos
habitantes do gueto. Os residentes do gueto só podiam sair da área que lhes fora
destinada munidos de passes especiais, e embora gente como Rail e Moa
desobedecessem às regras com regularidade, esse era um jogo perigoso. Se fossem
apanhados pelos soldados seriam levados, e os residentes do gueto que eram levados
não tornavam a regressar.
Rail e Moa entraram no gueto por uma de entre dúzias de entradas secundárias.
Tinham-se separado de Fulmar havia já algum tempo. Rail prometera que iria
certamente dar parte a Anya-Jacana do erro cometido por Fulmar, a menos que ele
deixasse de andar atrás deles. Não tinha realmente intenção de fazer isso - Fulmar não
merecia o tipo de castigo que a ladra-chefe lhe aplicaria - mas Rail entendeu que o jovem
bem podia sofrer durante algum tempo. Talvez da próxima vez pensasse duas vezes
antes de abandonar o seu posto por causa de uma empada.
Rail e Moa viviam num abrigo que antes fora um depósito qualquer. Do exterior, era
pouco mais do que um pequeno alçapão redondo e enferrujado, num banco de cimento
de um canal. Ficava escondido por debaixo de uma ponte e resguardado da vista por um
pequeno barracão que Rail construíra em volta. Mas por baixo do alçapão havia uma
escada, e ao fundo da escada encontravam-se três divisões pequenas e sólidas, que Rail
e Moa tinham tomado para si. O alçapão era protegido por uma combinação de
mostradores e interruptores, que Rail encontrara certo dia completamente desarmados.
Poderia ter acontecido devido a uma tempestade de probabilidades ou a qualquer outra
coisa, nunca ficara a saber.
Memorizara os códigos de abertura e viviam lá desde então. Encontrar um lugar
assim tão seguro no gueto era um extraordinário golpe de sorte, e ocultavam a sua
localização com enorme zelo.
Foi para o seu abrigo que primeiro se dirigiram, antes de irem à presença da ladra-
22. chefe. Embora as paredes e o chão fossem de metal a descoberto, os dois tinham
juntado ali uma série de cobertores, tapetes, alcatifas, cortinas e almofadas, que usavam
como camas e como cobertura do chão.
A câmara principal tinha um pequeno fogão portátil a óleo, que usavam para
aquecer o lugar e, ocasionalmente, para cozinhar.
O espaço estava inundado de objectos de toda a espécie, que tinham roubado ou
resgatado, e com os quais tentavam montar coisas para trocar ou vender. O quarto de
Moa era o mais pequeno, e estava almofadado com tecidos macios até à altura da
cintura.
A noite, ela abria ali literalmente uma cova e dormia no ventre luxuriante que criara
para si. Moa dormia muito. Preferia dormir a estar acordada, isso porque os seus sonhos
eram sempre muito vívidos: aí, voava ou visitava reinos estranhos e místicos, e vivia
romances e aventuras. Dentro do seu casulo de peles e cobertores, podia viajar para
outra parte e, na sua imaginação, vivia uma vida cheia de maravilhas.
Desceram ruidosamente pela escada e entraram na câmara principal, fechando o
alçapão atrás de si, e cada um ajoelhou-se de um dos lados de um tapete, enquanto Rail
esvaziava cuidadosamente o conteúdo da sua bolsa de couro.
Moa sentou-se com as mãos a apertar os joelhos. Rail olhou-a de relance. O seu
cabelo era negro e liso, pela altura das maçãs do rosto, e estava sujo; a sua pele era tão
pálida que ele conseguia ver as linhas azuladas das veias nos pulsos e no pescoço dela.
Vestia um macacão verde e gasto, botas e uma camiseta de mangas compridas com a
bainha descosida. Parecia estar doente.
Rail esperava conseguir alguma comida decente para ela com o produto daquele
roubo. Talvez alguma comida saudável, em lugar da papa aguada e sem sabor que
serviam naquelas pocilgas do Protectorado, lhe trouxesse alguma cor às faces.
- A Anya-Jacana vai ficar satisfeita - disse Moa num tom neutro.
Não pensava na satisfação que a ladra-chefe iria sentir. Pensava no dinheiro que
tudo aquilo valia, e na parte que ficaria para eles. Seria uma boa quantia. Não
gigantesca mas, se a ladra-chefe fosse generosa, daria para viverem durante algum
tempo.
Isso era alguma coisa, pelo menos.
Rail observou-a com hesitação, pensando no artefacto científico da Era da Extinção
que continuava escondido no seu bolso. Tentava decidir se devia contar-lhe ou não. É
claro que partilharia os ganhos com ela; isso não estava sequer em questão. Mas, se lhe
contasse o que fizera, ela exigiria que o levassem a Anya-Jacana. Diria que era
demasiado arriscado ficarem com aquilo. Anya-Jacana ficaria a saber que a tinham
enganado. Moa diria que era melhor não agitarem o barco, que as consequências podiam
ser terríveis. E, ainda que concordasse com ele, não sabia mentir.
Acabaria por denunciá-los, se soubesse o que se passava.
Mas ela era uma sonhadora e ele era um realista. E sabia que não poderiam viver
daquela maneira para sempre, forçados a roubar só para sobreviver. Mais cedo ou mais
tarde seriam apanhados, e aí seriam mortos ou levados. Era isso o que acontecia aos
que quebravam uma das muitas leis do Protectorado, ou que discordavam das suas
ideias, ou que falavam da possibilidade de um mundo para lá de Orokos.
Não. Por mais que detestasse fazê-lo, era para o bem dela. Ela agradecer-lhe-ia por
isso um dia. Por ter tomado essa decisão.
Deixou-a a contar o produto do roubo, enquanto escondia o artefacto debaixo do
23. saco-cama que usava como almofada, e depois regressou à divisão principal.
- Vamos, então - disse, começando a recolher os pequenos objectos e a guardá-los
novamente na sacola.
Pouco depois, estavam a caminho do covil da ladra-chefe.
A corte de Anya-Jacana ficava nas profundezas da cidade e, para lá chegar, havia
que passar muitas portas e descer por vários túneis. O trajecto levou-os por pontes que
atravessavam correntes rápidas e escuras. Passaram por monstruosos flancos de
máquinas que ninguém se lembrava de alguma vez ter visto a funcionar. Olhos argutos
observavam-nos das sombras; figuras pequenas e ágeis que corriam pelas paredes como
lagartos.
A ladra-chefe repousava num quarto com um tecto de vidro negro, cruzado por
arcadas e canduras. Formas espiraladas de metal, esculturas da Era Funcional,
brotavam das paredes. Um tapete de pele curtida ia desde a porta oval até ao tablado
onde ela estava reclinada. De cada lado do seu gigantesco sofá de metal espreitava uma
multidão de servos e guarda-costas.
Rail e Moa entraram na sala, avançando pelo tapete. Estavam ali outros ladrões,
reunidos em grupos e de rostos sombrios, aguardando que lhes fosse dada alguma
tarefa ou trocando informações entre si. Rail saudou alguns deles com pequenos acenos
de cabeça, e eles retribuíram.
- Sejam bem-vindos, meus filhos! - vociferou Anya-Jacana, e eles pararam diante
dela.
Era enorme, grotescamente gorda, embrulhada em mantos de cores berrantes e que
não combinavam entre si, e estava deitada de lado no sofá.
Os seus dedos eram grossos e adornados com jóias e anéis, e dos seus braços
carnudos pendiam braceletes e pulseiras. O cabelo liso e gorduroso, pejado de
ornamentos, caía sobre uma cara de sapo. Quando sorria a sua boca escancarava-se,
revelando dentes amarelos e arredondados.
- Saudações, Mãe - responderam Rail e Moa.
Ela fazia questão de que todos os seus ladrões a tratassem por Mãe.
- Calculo que tenham aquilo que os mandei ir buscar?
- Claro que sim - retorquiu Rail. - Achou que iríamos falhar? Somos os melhores.
Os outros ladrões resmungaram ao ouvir isto, mas Anya-Jacana soltou uma
gargalhada ruidosa.
- Ah, tão atrevido para alguém tão jovem. Quanta arrogância impetuosa! Bom, não
posso negar que são talentosos, isso é óbvio. Uma habilidade quase sobrenatural para se
infiltrarem em qualquer lugar ao qual eu deseje enviar-vos.
Fitou Moa. Os seus olhos minúsculos quase desapareceram nas pregas do rosto
quando abriu o seu enorme sorriso. O seu olhar regressou a Rail.
- Vamos, então. Mostra-me o que aí trazem!
Dois dos serviçais vieram colocar-se diante de Rail, segurando uma faixa de couro
que esticaram completamente. Ele voltou a sacola sobre o couro e uma pequena
quantidade de dinheiro, células energéticas e outros objectos foram caindo. Os serviçais
subiram os degraus do tablado e levaram aquilo junto da ladra-chefe.
Ela começou a remexer nos objectos. Depois de algum tempo, disse:
- Seguiram exactamente as minhas instruções, não é verdade? Rail não gostou
daquele tom de voz.
- Sim, Mãe. Encontrámos a pequena urna de bronze e esvaziámo-la. Estava
24. exactamente onde nos disse que estaria.
Anya-Jacana observava-os agora intensamente.
- Trouxeram tudo o que havia na urna?
- Tudo - retorquiu Rail.
Estava a começar a ficar preocupado. O sorriso da ladra-chefe permanecia fixo no
seu rosto, mas o seu olhar estava a tornar-se frio.
- E está aqui tudo o que tiraram? - insistiu. - Até ao último objecto?
A sala estava agora em silêncio absoluto. Rail sentiu o coração a ribombar de
encontro às costelas. O mundo parecia ter-se encolhido, enrolando-se sobre si mesmo
até não restar nada senão ele próprio e a ladra-chefe.
Aquilo era o que ele receara acima de tudo. Anya-Jacana quisera obter algo
específico. Algo que ela sabia estar na urna de bronze. Algo que não estava agora ali.
Ela vai matar-te, pensou ele. Estava aterrorizado, mas manteve-se muito direito e
enfrentou o seu olhar.
- Tudo - ouviu-se responder.
Sabia que a ladra-chefe ficaria muito irada se acreditasse, por um minuto que
fosse, que ele lhe roubara algo. E, quando Anya-Jacana ficava irada, pessoas morriam.
O seu olhar voltou-se lentamente para Moa.
- Tudo? - repetiu.
Moa estava assustada e confusa. Não compreendia o porquê da hostilidade no tom
de Anya-Jacana. Voltou-se para Rail, em busca de apoio, mas Rail teve o cuidado de não
olhar para ela. Ela olhou novamente para Anya-Jacana.
- Tudo - respondeu.
O silêncio arrastava-se como uma unha a raspar uma pedra. Anya-Jacana fitou-os
com dureza, com o sorriso a morrer nos cantos. Eles não falaram nem tão pouco se
moveram. O momento tornou-se penoso.
- Ficarei muito desapontada se vier a saber que me mentiram, meus filhos - disse
lentamente Anya-Jacana. - Muito desapontada.
Voltou a cabeça para um dos seus servos.
- Cinquenta por cento. Divide uniformemente o dinheiro e as peças de maquinaria.
Dá-lhes a outra parte.
As pernas de Rail começaram a tremer. Tentou controlar-se, mas não conseguia
pará-las. Recebeu o que os servos lhe entregaram sem se preocupar em fazer a contagem
e, logo de seguida, saiu dali tão depressa quanto conseguia sem parecer culpado.
Moa seguiu no seu encalço.
Depois de eles partirem, a chefe obesa das crianças-ladras do gueto fez um sinal a
um dos rapazes que espreitava das sombras. Tinha o rosto pálido, com a pele atacada de
icterícia e amarelada, e os olhos eram encovados e com círculos escuros em volta,
fazendo-o parecer doente. Vestia diversas peças de roupa negra, todas muito sujas, e
alguns tufos de cabelo louro caíam por baixo do capuz que tinha enfiado na cabeça.
- Finch - murmurou ela. - Segue-os. Quero aquilo que os mandei ir buscar.
O rapaz arreganhou os dentes. Tinha as gengivas escuras e deterioradas, e os
dentes acastanhados tinham sido limados, terminando em pontas aguçadas.
- É para já, Mãe.
O que foi aquilo? - perguntou Moa, quando já estavam outra vez na rua.
Estava abalada e tremia.
- Estava a querer assustar-nos, só isso - resmungou ele, fitando as lajes húmidas
25. do chão da praça que atravessavam. - Ela faz isso de vez em quando, não faz? Para nos
manter na linha.
O seu tom não era absolutamente nada convincente.
Moa olhou a toda a volta da praça com um ar infeliz. Jovens como eles os dois
vagueavam por ali ou juntavam-se em grupos. Havia pouco que fazer no gueto. Não
havia trabalho, nem dinheiro, e quase nenhuma comida. Não podiam ir para outro lado,
não com as listas tatuadas no braço. Só mesmo para outros guetos, onde a vida não era
melhor do que ali. Parecia que amiúde alguém era levado pelo Protectorado, acusado de
conspirar contra o líder de todos eles, o Patrício. Por vezes era alguém que Rail e Moa
conheciam. Ninguém sabia quando podia ser a sua vez, o que tornava a sua existência
sombria mais desconfortável ainda.
Estavam presos ali, sem objectivos, protegidos da morte mas não de uma forma que
os fizesse sentir vivos. O único dinheiro a circular por aquele lugar era o do submundo:
serviços e bens do mercado negro, roubos, extorsões para protecção, assassínios.
Se algum rico quisesse mandar eliminar alguém, ia ao gueto. Havia ali gente
desesperada e que faria tudo, fosse o que fosse.
Rail torcia a ponta de uma das suas rastas enquanto caminhava. Estava agitado.
Moa percebia isso, mesmo com a máscara de metal liso que lhe cobria a face. Via-o nos
seus olhos grandes e castanhos. Era um rapaz verdadeiramente bonito, pensou ela, com
feições finas e delicadas, e a pele lisa e imaculada. Não era de estranhar que ele
detestasse a cidade que o transformara, forçando-o a usar aquela máscara
desfiguradora, aquela mochila às costas e os tubos que as ligavam.
- Fizeste alguma coisa, não foi? - perguntou ela. - Rail, o que fizeste?
Ele encolheu os ombros, como se pudesse retirar importância ao acto só por agir
como se não se preocupasse com isso.
- Fiquei com uma coisa.
- Tu fizeste o quê? - gritou Moa.
Rail olhou-a com fúria, e ela baixou a voz até ser pouco mais que um sibilar.
- Tiraste uma coisa? Da urna? Ele assentiu.
- Não achei que ela fosse dar pela falta daquilo. Nem pensei que ela soubesse que
aquilo estava lá.
- Oh, Rail... - começou ela, mas faltaram-lhe as palavras para expressar o que
sentia naquele momento.
Um abismo abrira-se por debaixo dos seus pés, e os dois oscilaram na beira. E,
embora fosse ele o responsável, ela não conseguiu culpá-lo. Sabia exactamente porque
fizera aquilo.
Seguiram por um caminho que os levou para fora da praça e em direcção aos becos
e ruelas estreitas que acompanhavam o canal. Enquanto caminhavam, ele falou-lhe no
artefacto. O gueto, tal como o resto de Orokos, fora construído sobre os alicerces de
antigos edifícios da Era Funcional. Construções gigantescas e estranhas, feitas de
materiais desconhecidos, erguiam-se sobre ruas de tijolo e metal ferrugento. Passadiços
indestrutíveis de rocha vulcânica cintilante cruzavam pátios sujos e atolados de
velharias. Qualquer organização que alguma vez tivesse existido no gueto fora
gradualmente destruída pelas tempestades de probabilidades, baralhando tudo até que
se tornara difícil distinguir sequer a linha divisória entre o passado e o presente.
Era um labirinto, em vários sentidos da palavra, e alterava-se de tempos a tempos.
- Fugimos - acabou Rail por dizer. - É a única solução. Fugimos.
26. - Oh, não - implorou Moa. - Talvez a Anya-Jacana quisesse realmente apenas
assustar-nos. Não podemos fingir apenas que o artefacto não estava lá? Talvez ela pense
apenas que a informação que tinha estava errada. Os Mozgas podiam tê-lo escondido
noutro lugar, antes de nós lá chegarmos. Ela não nos disse o que deveríamos procurar;
como pode culpar-nos por não o termos encontrado?
- Ela sabia - retorquiu Rail. - Eu vi que ela sabia. Moa pousou a mão enluvada no
braço dele, fazendo-o parar.
- Eu não quero ir-me embora daqui. Não podemos desfazer-nos disso? Não podemos
deitá-lo fora e pronto?
Rail olhou-a com um misto de piedade e condescendência. Ela tinha medo do
desconhecido. Mas sabia tão bem quanto ele que não importava se tinham ou não o
artefacto em sua posse.
Se Anya-Jacana suspeitasse que lho tinham roubado, as suas gargantas seriam
cortadas antes da próxima noite.
Quando se decidiu, Rail sentiu-se estranhamente empolgado.
- Isto é uma oportunidade. Uma hipótese de mudarmos a nossa sorte. Talvez.
Baixou a cabeça e olhou bem dentro dos olhos dela, como se procurasse alguma
coisa.
- Queres deitar isso fora?
- As coisas vão mudar por si mesmas, Rail. As coisas mudam sempre, se
esperarmos o suficiente.
Ele bateu na parte lateral da máscara do respirador.
- Eu vou fazer a minha própria sorte - disse amargamente. E, com isto, afastou-se,
e Moa seguiu-o.
A distância, Finch seguiu-o também, com um pequeno grupo enviado pela ladra-
chefe para recuperar o que era seu.
1.7
Rail fechou o alçapão do refúgio e não o largou até escutar o pesado bater das
trancas a fechar. Moa já descera a escada e agora abria caminho pelas coberturas que
revestiam o chão do seu quarto, recolhendo as lembranças dispersas que deixara por
entre mantas e peles. Quando finalmente considerou que estavam em segurança, Rail foi
ao seu quarto e retirou o artefacto escondido debaixo do saco-cama e guardou-o na
sacola. Quando regressou à divisão principal,
Moa estava sentada de pernas cruzadas sobre um tapete, guardando uma série de
pequenos objectos numa mochila esfarrapada.
- Para onde vamos? - perguntou ela.
- Não sei - respondeu ele. - Ainda não sei.
- Não podemos ir embora daqui se não tivermos nenhum sítio para onde ir! - gritou
Moa.
- Podemos, que diabo - gritou ele em resposta. - Ou preferes enfrentar a Anya-
Jacana?
Moa ficou em silêncio por um momento.
- Já sei para onde podemos ir - disse depois, agora calma. Rail também sabia.
Apenas não queria admiti-lo.
- Já sei para onde podemos ir - repetiu ela. - Onde estaremos em segurança, onde
27. encontraremos quem possa ajudar-nos.
Esperou que ele nomeasse o lugar. Rail gostava de ser ele a tomar aquele tipo de
decisões, e ela gostava que ele as tomasse. Isso dava uma sensação de estabilidade a
ambos. Ele precisava de ser quem controlava a situação e ela precisava de alguém a
controlar a situação. Era assim que as coisas funcionavam entre os dois.
- Muito bem - disse ele finalmente. - Iremos para Kilatas.
Moa ergueu-se de um pulo, abraçou-o e beijou-o na face, por cima do rebordo frio
do respirador que lhe cobria a boca e o nariz.
- Vou para casa! - gritou ela.
Ele afastou-se bruscamente. Moa esquecera-se: ele não gostava que as pessoas lhe
tocassem na cara. Embaraçada, resmungou um pedido de desculpas.
- Não faz mal - retorquiu ele, desviando o olhar.
Vê-lo assim deixava-a triste. Rail tinha vergonha de si mesmo, vergonha da sua
condição. Não aceitava o que lhe fora feito pela tempestade de probabilidades. Por que
não poderia ele aceitar que as mudanças ocorriam, simplesmente, e que ninguém podia
fazer nada para impedir isso? Por que lutava ele com tanta força? Qualquer um podia
passar a vida inteira a lutar para conseguir alguma coisa, para sair daquele horrível
gueto, e um dia mais tarde descobria-se atacado por alguma doença, ou transformado
num gato, ou atirado para o outro lado da cidade e sem forma de regressar. Era assim
que o mundo funcionava. Então, por que razão viver uma vida infeliz, lutando contra a
corrente?
Fazia mais sentido descontrair e esperar que a situação se tornasse favorável.
Mas Rail não estava disposto a isso. Vivia revoltado por ter de usar um respirador.
Nem sequer pensava na sorte que tivera por Anya-Jacana ter um respirador e lho ter
dado. Salvara-lhe a vida em troca dos seus serviços, mas isso não bastava a Rail.
Queria ir ver algum médico rico e queria ser curado, e ficar bom. Muito embora isso
custasse mais dinheiro do que ele alguma vez teria, muito embora nenhum médico
estivesse alguma vez disposto a ajudar alguém com as listas de habitante de gueto
tatuadas no braço. Rail queria fazer fortuna, para poder reverter aquilo que a cidade lhe
fizera.
Era o seu sonho. Moa sabia-o. E sabia que fora nisso que ele pensara ao decidir
roubar a ladra-chefe.
- Aqui está - disse ele, enfiando a mão na sacola e retirando o artefacto.
Pousou-o cuidadosamente na mão dela.
Ela olhou-o com assombro. Subitamente, compreendeu por que fora ele tão
impulsivo. O objecto era hipnótico. O trabalho de metal era inacreditável. O disco de
âmbar era feito de algo parecido com pedra polida, ou vidro, ou uma gema. Mas não era
nada disso. Reflectia a luz de uma forma curiosa, de tal forma que, de certos ângulos,
parecia ser fundo. Em vez de um disco plano, parecia ser a boca de um enorme buraco
contornada a âmbar, embora o disco em si não fosse mais espesso do que um biscoito.
Era um pequeno milagre, eco de um passado há muito esquecido, um passado no
qual Moa acreditava desesperadamente. Um tempo em que as coisas tinham sido
diferentes.
- Oh... - suspirou ela. - É maravilhoso.
- Guarda-o tu - disse ele.
- Mas é teu - retorquiu ela, embora o seu protesto não fosse convicto.
Estava fascinada.
28. - Foste tu quem o encontrou. Poderá valer uma fortuna.
- Toma conta disso. E eu tomo conta de ti. Que tal assim?
Ela olhou para ele e lançou-lhe um sorriso de partir o coração, cheio de felicidade
inocente e pura. Nunca conseguia entender por que fazia Rail aquelas pequenas coisas
por ela, aqueles pequenos gestos de companheirismo, mas amava-o por isso. Não da
forma como era suposto uma moça amar um rapaz - pelo menos, ela não pensava que
fosse esse o caso -, mas porque a fazia sentir-se desejada. Nenhum dos dois tinha
alguém que cuidasse deles, tinham-se apenas um ao outro.
- Está bem - disse ela, pousando a mão no braço dele.
Ele colocou a sua mão sobre a dela por um instante. Depois voltou-se e dirigiu-se
para o seu quarto, e foi como se ela nunca lhe tivesse tocado.
Durante algum tempo, ela estudou o artefacto científico da Era da Extinção, sob a
estranha luz do refúgio. Rail e Moa nunca tinham conseguido descobrir qual a fonte da
iluminação do seu esconderijo. Havia sempre luz, fosse dia ou noite, embora não fossem
visíveis lanternas, tubos luminosos ou qualquer outra coisa desse tipo. Parecia irradiar
das paredes, do chão e do tecto.
Também não tinham perdido demasiado tempo a pensar nisso. Não havia ninguém
de Orokos que não se tivesse já deparado com alguma maravilha da Era Funcional que o
deixava sem palavras. As pessoas aceitavam o desconhecido nas suas vidas, porque o
desconhecido as rodeava. Por muitas gerações, cientistas e inventores tinham lutado
para entender a herança da era anterior à Extinção. Qualquer pequeno avanço que
conseguiam era de uma lentidão frustrante. Gente como Rail e Moa não tinha qualquer
esperança de conseguir entender as antigas tecnologias. Eram ignorantes, sem
perspectivas, e recusavam uma coisa e outra porque cresciam nos guetos.
Consideravam-se sortudos por não terem de arranjar luz para a sua casa, e era tudo.
Mas o artefacto... isso era diferente. Moa voltou-o na mão uma vez e outra,
enquanto Rail juntava os seus poucos pertences no outro quarto. Havia duas argolas
num dos lados do disco de âmbar, perpendiculares a este último, quase como dois anéis
colados um ao outro. Moa experimentou passar os dois dedos do meio pelas argolas, e o
disco de âmbar ficou sobre a palma da sua mão. Os dedos passavam à justa pelas
argolas, mas aquela era a medida certa. Volteou a mão em várias direcções.
- Rail! Acho que descobri como isto se deve usar.
- Usar? - interrogou ele, do lado de lá da porta. Subitamente, Moa soltou um
queixume. Ele correu para junto dela, alarmado.
- Moa, o que estás...
Não terminou a frase. Moa estava transfigurada, a mão estendida e o artefacto
sobre esta. O seu antebraço estava envolto numa luz suave, véus rodopiantes de cor
púrpura, verdes e azuis que se colavam a ela como nevoeiro. Ela moveu o braço para a
esquerda e para a direita, e os véus acompanharam-na.
- Tira isso! - gritou Rail.
Aproximou-se dela mas parou, sem saber o que fazer.
- Não, está tudo bem - assegurou ela. - Não dói.
Um pequeno sorriso surgiu-lhe no rosto, agora que lhe parecia que aquilo não era
perigoso.
- Olha só para isto.
Rail estava a olhar para aquilo. Não conseguia desviar o olhar.
- Sabes o que isso parece, Moa? - perguntou. - Parece o mesmo que acontece
29. quando há uma tempestade de probabilidades.
Moa ia responder-lhe quando escutaram uma pancada no alçapão do seu refúgio, e
ela sentiu o sangue a gelar-lhe nas veias.
- Venham cá, venham cá - cantarolou uma voz abafada, vinda lá de cima. -
Queremos uma palavrinha convosco.
Rail fez-lhe sinal de silêncio, mas tão-pouco era necessário. Moa não tinha ideias de
responder. Conhecia aquela voz. Era de Finch, o favorito de Anya-Jacana. Era um
excelente ladrão mas, como assassino, era ainda melhor.
- Sei que estão aí em baixo - chamou Finch. - Segui-vos até aqui. Vão deixar-nos
entrar?
Rail olhou em volta, aflito, como se houvesse fuga possível. Mas conhecia cada
polegada daquele refúgio. Não havia outra saída senão através do alçapão. Estavam
encurralados.
- E agora? - disse Moa em voz baixa.
Rail tentou pensar, mas as respostas não surgiam. Sempre houvera um
inconveniente em relação àquele lugar: não tinha porta das traseiras. Não havia sequer
forma de se livrar do artefacto. Iam ser apanhados em flagrante, e não haveria
misericórdia para nenhum dos dois. Sentiu o pânico a crescer no seu âmago e, se
estivesse a sós, poderia até ter-se abandonado a este. Mas tinha de pensar em Moa.
Moa, sempre. Moa precisava que ele fosse forte por ela.
- Tira isso - disse-lhe novamente, referindo-se ao artefacto. Continuava a produzir
cores maravilhosas.
Ela tentou fazer o que ele dissera. O objecto não se moveu.
- Não consigo! - exclamou ela, puxando-o com força. - Não sai!
- Tem de sair! - sibilou ele, embora não se atrevesse a tocar-lhe. Receava aquelas
cores. Aquelas eram as cores que surgiam durante uma tempestade de probabilidades, e
fora uma tempestade de probabilidades que o condenara a usar um respirador.
Escutou-se um queixume vindo lá de cima, que subiu de intensidade, tornando-se
mais e mais agudo.
- Se não querem sair, ratinhos - gritou Finch -, então nós entramos.
O queixume atingiu o pico máximo de intensidade, e então a porta do alçapão foi
atingida por um impacto massivo, como se um gigante a esmurrasse do exterior.
Começou a cair terra do tecto.
- O que foi aquilo? - gritou Moa. - O que foi aquilo?
- Eles têm o raio de um aríete magnético com eles - sussurrou Rail.
Escutaram novamente o queixume.
- Estou a ouvi-los! - gritou Finch, sobrepondo a voz ao ruído. - A Mãe quer vê-los,
periquitos!
Moa guinchou ao ouvir o aríete magnético bater novamente contra a porta do
alçapão, que começou a vergar. Embora enferrujada por fora, aquela porta tinha várias
polegadas de espessura. O aríete fora colocado directamente sobre ela, apontado para
baixo. Apoiava-se em quatro pés resistentes, que se tinham afixado ao cimento em volta
do alçapão. Os pés fixavam um canhão que disparava ondas de energia magnética.
Anya-Jacana tinha muitos outros aparelhos daquela espécie, guardados nos seus
armazéns secretos. O respirador que Rail usava viera do mesmo sítio.
Correram para o quarto de Rail, para se afastarem da porta do alçapão antes que
esta desabasse. Moa continuava a tentar retirar o artefacto, mas este estava bem preso.
30. Rail pousou as mãos abertas sobre a parede de metal liso, em frustração.
O guinchar do aríete magnético recomeçou. Com mais duas investidas, os outros
poderiam entrar ali.
Não havia nada a fazer. Ele sabia-o, mas mesmo assim procurou uma forma de
escapar.
O aríete disparou, desta vez com tal força que todo o refúgio estremeceu. Moa,
procurando obsessivamente retirar o artefacto científico da Era da Extinção da sua mão,
tropeçou e foi embater contra a parede.
Ergueu as mãos instintivamente para se proteger...
... e atravessou a parede, caindo do outro lado.
Rail não quis acreditar no que acabava de ver. Subitamente, estava só. Moa
desaparecera. Vira-a atravessar metal sólido, como se fosse um fantasma. Pressionou as
mãos de encontro à área onde ela desaparecera, que era firme e inflexível.
O aríete começou novamente a carregar. A porta do alçapão estava agora bastante
deformada e as dobradiças estavam prestes a ceder. Rail sabia que a próxima investida
resolveria o assunto, e então Finch entraria ali, juntamente com a sua pandilha.
Mas ela escapou, pensou ele, embora não pudesse imaginar como tal acontecera.
Parecia um milagre, mas as gentes de Orokos estavam habituadas a milagres. Ao menos,
ela escapou. E levou aquilo com ela.
Desistiu finalmente, parando de lutar. Talvez, ao não encontrar o artefacto na posse
dele, a ladra-chefe fosse misericordiosa. Talvez não o matasse. Mas Rail não se
importava muito com isso. Onde quer que ela estivesse, Moa estava longe do alcance de
Anya-Jacana. Isso era tudo o que lhe importava.
O aríete investiu novamente e algo caiu com estrondo na outra divisão; a entrada
cedera. Voltou-se para enfrentar os rapazes que começariam agora a descer até ali.
Venham buscar-me, pensou Rail.
E então uma mão agarrou-o por trás e puxou-o violentamente. Por uma fracção de
segundo, esperou colidir com a parede de metal, mas atravessou-a como se ela não
estivesse ali. Do outro lado havia um túnel de metal húmido e frio, parcamente
iluminado por luzes de orientação que zumbiam suavemente. As paredes eram
acastanhadas, devido à deterioração. E Moa segurava-o com a mão direita. A outra -
aquela onde o artefacto estava colocado - apoiava-se na parede do túnel.
Ele olhou para trás, assombrado. O metal onde Moa estava a tocar tornara-se
transparente, um buraco inundado de cores suaves e rodopiantes. Através dele, Rail viu
o primeiro dos ladrões a entrar pelo alçapão.
Moa afastou-se, e as cores recolheram-se novamente em volta da sua mão. A parede
era agora outra vez sólida.
- Isto abre portas, Rail - sussurrou ela. - Abre portas em qualquer parte.
Ele desejou abraçá-la, mas não se atreveu. Não enquanto ela tivesse aquela coisa
colocada. Em vez disso, olhou para ambos os lados do corredor e escolheu uma direcção.
Não tinham consigo nada do que tinham recolhido, excepto a sacola cheia dos valores
que ele recebera de Anya-Jacana. Não importava.
- Vamos - disse Rail.
E começaram a correr, deixando os ladrões no seu refúgio, tentando entender como
as suas vítimas se tinham esfumado no ar.
1.8
31. Nas primeiras horas da madrugada, Vago costumava falar com o quadro encostado
à parede do seu quarto.Nessa altura havia mais silêncio: Cretch já não estava no
laboratório, e os tubos e válvulas já não ressoavam nem estalavam. A luz da lua enchia
tudo de sombras pacificadoras. Vago ficava à janela e o seu corpo longo e magricela,
feito de metal, músculo e asas, ficava meio escondido no escuro, e revelava os seus
pensamentos à pintura. Esta nunca lhe respondia. Mas prestava-lhe atenção, sem
dúvida.
Era um pequeno quadro numa moldura de bronze. Quando o encontrara, estava
tapado por um pano, esquecido e coberto de pó. Não havia mais quadros na torre. Vago
perguntava-se como chegara aquele ali, e porque deixara o seu amo uma pintura tão
interessante naquela divisão, que raramente visitava.
A cena representava uma das zonas de canais de Orokos. Em primeiro plano via-se
um curso de água, atravessando a imagem velozmente da esquerda para a direita.
Dirigia-se para uma das enormes aberturas por onde seria expelida, da beira da ilha
rochosa para o mar lá em baixo. Pontes e passadiços enchiam o lado mais afastado do
canal, e viam-se entradas e fachadas de lojas tristonhas em vários planos. Ao fundo
erguiam-se enormes espirais e um gigantesco templo sombrio. Vago julgava reconhecer a
cena mas não sabia ao certo porquê.
A moça estava na zona dos canais, à direita do quadro, encostada à vedação e
olhando lá para baixo, para a água. O cabelo branco caía-lhe sobre um dos lados da
cara. O vestido que trazia parecia ser caro: o sinal de uma ascendência de posses.
Não era uma moça do gueto, isso era certo.
Da última vez que Vago observara a imagem, a figura estava a espreitar pela montra
de uma loja com um ar aborrecido. Da vez anterior, acenava-lhe de uma das pontes,
sorrindo de felicidade. Numa ou noutra ocasião não conseguira encontrá-la, e entrara
em pânico. Pensava nela como uma companheira, e era a única que tinha. Mas a figura
acabava sempre por regressar, mais cedo ou mais tarde. E escutava-o, ainda que nunca
respondesse. Ele sabia que ela o ouvia.
- Tu sabes quem foi o meu criador? - perguntava-lhe.
As memórias de Vago relativas ao período depois da sua criação eram indistintas e
obscuras. Tinha vagas impressões de uma espécie de cela, uma divisão de metal escuro
com barras na porta. Era estudado por homens de bata escura e tinha medo deles.
Mas recordava nitidamente apenas duas coisas. Uma delas era um rosto, que o
observava através de uma janela curva de uma espécie de tanque. Era um rosto magro e
severo, mais familiar para Vago do que as suas próprias feições.
A outra coisa era um nome: Tukor Kep. Não podia ser mais ninguém senão o seu
criador. O que lhe dera a vida.
Para onde fora ele? Ou, mais precisamente, para onde fora Vago?
Não sabia quanto tempo decorrera desde que dera por si naquele quarto. Nessa
altura a sua memória ainda não tinha estabilizado e ele era como um recém-nascido,
incapaz de compreender o que via à sua volta. Cretch descobrira-o ali na manhã
seguinte a uma tempestade de probabilidades particularmente violenta. Não era difícil
adivinhar o que ocorrera. O Ladrão da Tempestade colhera-o do lugar onde ele fora
criado e colocara-o num outro.
Vago imaginava a angústia que o seu criador sentira ao descobrir que o golem
desaparecera, e isso entristecia-o. Mas não sabia como regressar.
32. Os seus longos dedos percorreram o corpo do pássaro que trazia ao pescoço.
Cretch, num pouco habitual momento de bondade, tratara o cadáver com um líquido
conservante, para impedir que apodrecesse, e devolvera-o a Vago. As asas estavam agora
recolhidas junto ao corpo e dessa forma já não o atrapalhavam em demasia. Ephemera
desistira de rir daquilo; agora apenas zombava. Mas Vago gostava do pássaro marinho e
acreditava que a moça do quadro também gostava.
Da primeira vez que lho mostrara, ela ficara boquiaberta de espanto.
Quando Cretch estava a trabalhar, mandava Ephemera ir buscar Vago, e o golem,
obediente, comparecia à sua presença. Era um bom assistente de laboratório. Quando se
esticava era muito alto e podia chegar às prateleiras mais elevadas.
Os seus dedos eram extraordinariamente ágeis e fortes, bons para tarefas delicadas.
Podia esmagar uma pedra entre o polegar e o indicador, mas conseguia também
enfiar uma linha numa agulha à primeira vez, de todas as vezes.
O laboratório era escuro e sombrio, mas alguns candeeiros, pendurados como
abutres sobre a bancada de trabalho de Cretch, desenhavam ilhas luminosas pelo
espaço. Havia um forno para cozer barro, uma serra rotativa e um torno mecânico que
guinchava continuamente, um maçarico e um pequeno dínamo que produzia pequenos
relâmpagos. E havia pequenos objectos por toda a parte: manequins, figurinhas de
porcelana, animais em miniatura e templos delicados. Havia rostos mecanizados que
copiavam a expressão de quem quer que fizesse caretas à sua frente. Havia gatos com
rodas que perseguiam ratos com rodas a toda a volta da divisão, encurralando os seus
ágeis alvos, animados por uma qualquer força mística que Vago não compreendia. Havia
robôs com a forma de morcegos dentados, que abriam e fechavam incansavelmente as
asas. Vago preocupava-se em manter sempre as suas cuidadosamente fechadas.
De cada vez que Vago lá regressava, havia um qualquer novo prodígio. Mesmo
estando apenas semiconstruídos, já eram obras-primas. Cretch era um construtor de
brinquedos, e os seus brinquedos faziam as delícias de Orokos.
- Mas aquele que te fez a ti poderia sem dúvida ensinar-me uma ou duas coisas -
dissera ele a Vago, em mais do que uma ocasião. - Adoraria desmontar-te e ver como
funcionas.
Vago não gostava de ouvir aquilo, e nunca referira Tukor Kep. Perguntara uma vez
a Cretch se sabia quem fora o seu criador, mas Cretch dissera apenas que "tinha as
suas suspeitas" e nada mais explicara. Vago não se atrevera a insistir.
Naquela manhã Cretch estava de mau humor, não tendo dormido bem na noite
anterior. Vago olhou nervosamente para a bengala encostada à bancada de trabalho. O
seu amo estava debruçado sobre uma pequena peça de joalharia, franzindo os olhos por
detrás dos seus óculos protectores enquanto mexia delicadamente na peça com um
alfinete. Vago esperou na sombra, procurando não fazer ruído. Aprendera a temer
Cretch quando ele estava assim. Naquele dia, o mais certo era ser espancado se pusesse
um pé onde não devia. Afagou o seu pássaro-pendente e observou o amo com cautela.
- Oh, os meus olhos... - resmungou Cretch, coçando a testa. Havia já algum tempo
que se queixava da sua visão em declínio, e do modo como isso estava a começar a
dificultar-lhe o ofício.
- Vago, chega aqui.
O golem aproximou-se e espreitou sobre o ombro do velho.
- Segura isto - pediu este, indicando a peça de joalharia.
Era um escaravelho feito de filamentos brilhantes, delicados como algodão-doce.