Recomendações para projeto de interfaces em barragens de terra
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5 - PERCOLAÇÃO POR INTERFACES
5.1 - Junções entre Aterros e Muros
A barragem de Davis (Justin, 1932), construída em 1914 em Turlock, EUA, rompeu por
entubamento, ao longo da interface entre o aterro e o muro do vertedouro, durante o
primeiro enchimento. Como mostrado na figura 5.1, o muro do vertedouro tinha paredes
lisas e verticais e o re-enchimento da escavação foi feito com solo arenoso apenas
lançado. O maciço, praticamente sem compactação, possuía uma membrana de
concreto, na face de montante, que se solidarizava ao vertedouro. Apenas 7 horas
transcorreram entre os primeiros sinais de percolação excessiva e a perda total da
barragem.
O projeto de Davis é claramente inadequado. Hoje em dia não seria utilizado um muro
liso e vertical, não se lançaria areia para preenchimento da cava de fundação junto ao
muro e, ainda, não se colocaria uma laje de concreto sobre aterro (muito menos, se
este aterro não fosse compactado). A interface, vertical e lisa, representa um "plano de
fraqueza" quanto à percolação porque o aterro pode se separar do muro (retração,
deslocamentos devidos a recalques, etc.). A areia ligando montante a jusante é um
óbvio convite ao entubamento. A laje sobre aterro mal compactado trincou como seria
de se esperar. Ou seja, as posturas de projeto utilizadas na barragem de Davis, no
início do século passado, seriam rejeitadas hoje em dia.
Quanto ao que é considerado adequado, como postura de projeto para as junções entre
aterros e muros, há várias posturas. O que se deseja é evitar que a interface (o contato
entre o aterro e o muro, também denominado "junção") se constitua numa rota
preferencial de percolação, ao longo da qual exista risco de carreamento. Para tanto,
utilizam-se diferentes formas geométricas para a superfície de contato e projetam-se
sistemas de drenagem interna reforçados, de maneira que a percolação seja
disciplinada.
Uma das geometrias usuais consiste em apoio plano direto do aterro no muro (também
chamada de “junção chapada”), com uma protuberância que sai do muro e penetra no
aterro (o chamado "muro corta-águas"). Esta postura de projeto é utilizada em obras até
uma certa altura. A protuberância consiste, normalmente, de uma parede de concreto
que penetra no aterro (em geral, nas proximidades do eixo da barragem). Um exemplo
de muro corta águas está mostrado na figura 5.2. Às vezes opta-se por geometrias mais
elaboradas para o corta águas, como foi o caso da junção mostrada na figura 5.3,
utilizada na barragem de Itaipú. Observe-se, neste caso, o alargamento do núcleo nas
imediações da interface e a inclinação em planta que foi dada à face do muro
(supostamente para favorecer a compressão do aterro contra o muro sob a pressão do
reservatório, postura esta rara e sem aceitação geral).
No caso de barragens altas (digamos, com altura superior a 35 metros), a junção em
apoio plano do aterro no muro da estrutura, pode se tornar anti-econômica, por exigir
muros de contenção que se prolongam muito para montante e para jusante. Nestes
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casos costuma ser mais econômica a chamada junção "em abraço", como aquela
mostrada esquematicamente na figura 5.4.
Qualquer que seja a geometria escolhida para a junção, cuidado especial deve ser
dedicado à drenagem interna, que deve ser reforçada e concebida de forma a cobrir
(com ampla margem de segurança) todas as rotas de percolação imagináveis além de,
obviamente, atender rigidamente aos critérios de filtragem.
É interessante notar que são raros os casos reportados de acidentes de percolação em
junções aterro-muro (nenhum importante no Brasil). Isto se deve, provavelmente, à
particular atenção e aos cuidados especiais que se costuma dedicar a essas partes das
obras de barramento.
5.2 - Junções entre Aterros e Galerias
A barragem de Table Rock Cove (Justin, 1932; ICOLD, 1974), em Greenville, EUA,
sofreu um grave acidente durante o primeiro enchimento. O projeto continha uma
tubulação de ferro fundido com diâmetro de 1,05 metros destinada a atuar como galeria
de desvio durante a construção e como descarga de fundo durante a operação. Como
mostrado na figura 5,5 a tubulação foi implantada em uma trincheira aberta na rocha e
apoiava-se em 13 colares de concreto. Sob a tubulação, numa altura de cerca de 45cm,
a trincheira foi preenchida com terra compactada manualmente. Durante a construção a
tubulação foi fortemente flexionada pelo peso do aterro (cuja altura era da ordem de 40
metros) pois os colares de apoio eram muito mais rígidos do que o preenchimento de
solo. O reservatório ainda não estava completamente cheio quando, em 4 de maio de
1928, ocorreu uma súbita surgência de água um pouco acima da extremidade de
jusante da tubulação que, rapidamente, foi erodindo internamente o maciço terroso.
Cerca de 10% do maciço foram erodidos mas, não adveio o desastre porque o nível de
montante não foi atingido pelo processo de erosão. A tubulação só tinha válvula de
controle a jusante, de forma que não foi possível interromper o processo. Após
rebaixamento do reservatório, foi examinado o trecho remanescente da tubulação,
evidenciando-se que os tubos haviam sofrido quebras, trincamentos e abertura de
juntas, como indicado na figura 5.5.
O desastre por entubamento no aterro ocorrido em 1981 na barragem de Mulungú em
Buíque, PE, deveu-se ao fluxo ao longo da interface entre o aterro homogêneo (não
dotado de sistemas adequados de drenagem interna) e a galeria de concreto cuja altura
(4 a 6m) era muito grande em relação à largura (1,65m). Esta geometria incomum,
mostrada esquematicamente na figura 5.6, parece ter resultado do fato do material de
fundação encontrado quando da escavação para a galeria ser pior do que o desejado.
Na busca (desprovida de adequada adaptação) de “atender ao projeto”, a posição de
apoio da galeria foi aprofundada até encontrar terreno duro, sem que se tomasse
qualquer outra medida. A resultante protuberância, que penetrava no aterro como uma
faca, certamente gerou tensões de tração nas imediações da galeria. Durante o
primeiro enchimento observou-se a formação, a partir de jusante, de dois "tubos" de
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erosão interna com intenso carreamento de sólidos nas quinas superiores da galeria.
Em poucas horas o aterro foi brechado.
A seguir são apresentadas algumas recomendações básicas para o projeto de galerias
e tubulações sob aterros de barragens:
(a) forma da galeria: é preferível ter o contorno adoçado mostrado na parte inferior da
figura 5.7 do que forma retangular com quinas vivas;
(b) a escolha do material de apoio (e do tipo de elemento de fundação, se for o caso)
deve ser tal que galeria não sofra contrastes bruscos de recalques;
(c) a drenagem interna do aterro deve envolver totalmente a galeria, como mostrado na
figura 5.8. O sistema de "anéis interceptadores de fluxo", mostrado na parte de cima da
figura 5.7, vem caindo em desuso;
(d) na junção entre o aterro impermeável e a galeria, a montante do sistema de
drenagem interna, deve ser utilizado solo mais úmido (digamos 2% acima da ótima).
5.3 - Interfaces entre Aterros e Fundações
Para apoio de barragens de terra sobre solo (resguardadas as questões de estabilidade
e recalque, não abordadas aqui), após a remoção (“expurgo”) da camada superficial
orgânica, escarifica-se e recompacta-se a superficial do terreno.
Para apoio de barragens de terra sobre rocha sã de fundação, atenta-se para a limpeza
da superfície, remoção de blocos soltos, proteção contra a penetração de material do
aterro em fraturas superficiais da rocha (utilizando tratamentos com “pintura” com calda
de cimento e concreto de enchimento de fraturas).
Quando a barragem de terra se apóia em ombreira muito íngreme e com irregularidades
na rocha de apoio, costuma-se adoçar por escavação e/ou utilizar preenchimentos com
concreto (“concreto dental”). Pode-se utilizar solo mais úmido no contato entre a
barragem e a ombreira, como ilustrado pelo caso (extremo) da barragem de Chicoasen,
figura 3.7.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ICOLD (1974), "Lessons from Dam Incidents", Comitê Internacional de Grandes
Barragens.
JUSTIN, J.D. (1932), "Earth dam projects", John Wiley & Sons.
SIMPÓSIO DA BACIA DO ALTO PARANÁ (19??) – “Tratamento superficial de
fundações”, ABMS.