Sobrevivente da Marcha da Morte lança nova versão de livro contando seu relato do Holocausto
1. O
Fabio Rossi
6 • REVISTA O GLOBO• 25 DE MARÇO DE 2012
a conta...
DuasCoca-Colase
por Mauro Ventura
S ...com Michael Stivelman
e não fosse Steven Spielberg,
Michael Stivelman teria mantido
silêncio para sempre. Em 1996,
após três meses de insistência, a equipe
REVISTA O GLOBO: Você revelou ao mundo a marcha Fui com minha mulher, meu filho Cláudio e minha
do cineasta acabou convencendo o dono da morte, um método até então desconhecido de nora Márcia, de carro. Reconheci a vala onde me
do Banco Cédula a dar um depoimento extermínio nazista. Como você sobreviveu? escondi com minha mãe. Estivemos na aldeia
sobre o Holocausto, revelando um MICHAEL STIVELMAN: Eu tinha 13 anos. Fomos onde passei dois anos e meio abrigado na casa de
obrigados a percorrer cerca de 1.500 quilômetros, Maria, que se tornou uma segunda mãe. A casa
segredo de 53 anos, que ele não
sendo chicoteados pelos nazistas, apedrejados ainda está lá, vazia. A ideia era ficar três noites na
compartilhava nem com a mulher, os pelos camponeses. Era uma execução lenta e minha cidade, mas senti tanta tremedeira e febre,
filhos e os amigos mais íntimos. Após sádica. Dos 79 parentes que saíram da cidade, só fiquei tão triste e abalado, que chegamos às 10h
falar, esse romeno naturalizado brasileiro, sobramos eu e minha mãe. Meu pai foi afastado e saímos às 16h. O cemitério onde estão meus
de nós e fuzilado. Quem não andava era morto. antepassados achava-se em total abandono, com
nascido em Secureni e morador do Rio,
Minha mãe não conseguia mais caminhar, mas vacas e cabras pastando, e mandei restaurá-lo.
escreveu o livro “A marcha da morte”. consegui arrastá-la para uma vala, onde nos Como foi se estabelecer no Brasil?
Lançado em 1998, vendeu 68 mil escondemos. Vi casas sendo incendiadas com Cheguei ao Brasil em 1948, com 19 anos. Tí-
exemplares no Brasil, teve traduções em famílias inteiras dentro. Fui traído por meu me- nhamos parentes que vieram antes da guerra.
alemão, russo, inglês e francês, e vai sair lhor amigo, um cristão, que lançou seus cães em Comecei como ambulante. Andava com uma
cima de mim. Mas fomos salvos por duas aldeães, maleta com cordões e medalhas, e, mesmo mal
em hebraico e espanhol. A obra mostrava mãe e filha, também cristãs, que nos acolheram.
ao mundo uma nova forma de extermínio falando português, batia de porta em porta. Fui
Por que lançar uma nova versão de seu livro? crescendo como joalheiro até que criei uma
nazista: uma caminhada sem fim, que Todo sobrevivente do Holocausto é complexado, financeira. O sobrevivente traz consigo uma ba-
aniquilou milhares de judeus por fome, traz dentro de si um remorso. De uns três anos gagem de coragem. Até hoje não me assusto por
exaustão e doença. “Minha mulher, para cá, comecei a me sentir pressionado pela nada. Um dia pegou fogo no prédio. Todo mundo
Raquel, não sabia de nada, só que eu era culpa. Por que tantos morreram e eu sobrevivi? ficou com medo, gritando pelos bombeiros. Fui o
Uma lembrança não me sai da cabeça. Eu e meu primeiro a entrar e passei a apagar as chamas.
um sobrevivente. Não queria que minha pai estávamos na sinagoga destruída, ele botou a
família sofresse. E eu tinha culpa de ter Por que é tão importante lembrar o que você passou?
mão na minha cabeça e disse: “Você vai so-
Daqui a uns cinco anos, não haverá mais so-
sobrevivido”, diz ele, de 83 anos. Em breviver, e deve contar ao mundo o que acon-
breviventes do Holocausto. O único outro que
2004, o empresário refez a marcha, de teceu.” Um rabino e um psiquiatra disseram que o
resistiu à marcha, grande amigo e ex-sócio, mor-
sentimento de culpa era normal, e sugeriram fazer
carro. Na quarta-feira, às 19h, ele lança reu num assalto no Centro em 2008. Cinco pessoas
algo para descarregar. Com o livro, sinto como se
na Travessa do Leblon uma nova versão da minha cidade vieram para cá, mas só restam eu
estivesse completando algo. Vou distribuir seis
e um ex-colega de escola que vive em São Paulo.
do livro, pela Imago Editora, incorporando mil exemplares para escolas e universidades, e
Temos a obrigação de contar. O mundo pouco
o relato da volta e trechos suprimidos em fazer palestras. (O ator) Morgan Freeman está
aprendeu. O fanatismo, o terrorismo, a xenofobia
lendo e disse que vai dar um depoimento.
1998, como o massacre de Babi-Yar, continuam. Toda hora alguém afirma seu direito
onde perdeu mais de 15 parentes. Como foi refazer a marcha, mais de 60 anos depois? de existir com base na destruição do outro.
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