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UNIVERSIDADE AUTÓNOMA DE LISBOA
LUÍS VAZ DE CAMÕES
DEPARTAMENTO DE DIREITO
MESTRADO EM CIÊNCIAS JURÍDICO-CRIMINAIS
INTERVENÇÕES E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS DO
ARTIGO 150.º DO CÓDIGO PENAL PORTUGUÊS, NUMA VISÃO
EQUIPARADA AO ANTEPROJETO DE CÓDIGO PENAL
ANGOLANO.
Dissertação para obtenção de Grau de Mestre em Direito,
Especialidade em Ciências Jurídico-Criminais
Autor: Kaipu Osvaldo de Boavida
Orientador: Prof. Doutor Fernando José Silva
Maio, 2018
Lisboa
2
UNIVERSIDADE AUTÓNOMA DE LISBOA
DEPARTAMENTO DE DIREITO
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Universidade Autónoma de Lisboa para obtenção do
grau de Mestre em Direito na Vertente de Ciências Jurídico-Criminais, elaborada
sob a Orientação do Prof. Doutor Fernando José Silva.
Autor: Kaipu Osvaldo de Boavida
Orientador: Prof. Doutor Fernando José Silva
Maio, 2018
Lisboa
3
DEDICATÓRIA
À minha Irmã, que apesar de já não se encontrar entre nós, é a ela que particularmente
dedico este esforço que tem vindo a ser feito.
Aos meus Pais, irmãos e amigos, que sempre me apoiaram nos momentos mais
turbulentos, com incentivos, correções e palavras de encorajamento.
4
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Doutor Fernando José Silva, que, dentro da sua
disponibilidade, sempre me encaminhou para que seguisse o caminho mais acertado.
À Biblioteca da Universidade Autónoma de Lisboa, à Biblioteca da Universidade
Lusófona, à Biblioteca da Universidade Nova, à Biblioteca Nacional e ao Espaço J, que
me permitiram o acesso à informação necessária, sem nunca mostrar qualquer barreira.
5
RESUMO
O presente estudo é dedicado a análise crítico-reflexiva das intervenções e
tratamentos médico-cirúrgicos do art.º 150.º do C.P. Trata-se de um exame comparativo
na perspetiva do direito penal angolano. O estudo vincula-se, em primeiro lugar, à ideia
de legitimidade e dignidade penal dos tratamentos médico-cirúrgicos das leges artis (leis
do ofício), sendo que a intervenção médica está relacionada com critérios que definem o
seu modus operandi.
Isso quer dizer que a intervenção expressa de uma pessoa que não esteja a atuar de
acordo com as leges artis, embora revelando aptidões, não pode ser responsabilizada por
via da inexistência do nexo de casualidade, atuando de forma a diminuir o risco? Em
segundo lugar, perceber se podemos, então, discutir sobre as causas de exclusão da
ilicitude para se justificar a atuação do agente.
É um caminho longo, com o intuito de perceber em que condições podem ser
aplicadas, e se vão de acordo com a aplicação do direito penal angolano. Estas situações
são conhecidas, nomeadamente, pelo Anteprojeto do Código Penal vigente em Angola.
Em determinadas situações, o sistema está fragilizado e cada vez mais precário face à
atuação daqueles a quem eu chamo de “mediadores fantasmas sem carteira profissional”,
que, após terem desistido da sua formação académica ou sem qualquer ligação à
medicina, tendem a prestar auxílio a pessoas, violando as regras das leges artis.
Encontramos a responsabilidade penal na criação de postos médicos nos seus
domicílios, bem como pelas práticas de aborto, aumentando o índice de mortalidade, que
tem subido exponencialmente. Importa melhorar o sistema de saúde e punir aqueles que,
por usura, se aproveitam do estado de necessidade de outras pessoas para a prática de atos
ilícitos.
No que concerne às intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, o tema é, ainda
hoje, alvo de alguma discussão no seio da doutrina, e, inclusive, alvo de interpretações
divergentes na jurisprudência, até à data. Cumpre-nos aqui, neste nosso modesto trabalho,
mostrar as várias correntes doutrinárias e jurisprudenciais e apresentar algumas soluções,
para que sirvam, de certa forma, de objeto de estudo futuro para os pensadores do direito
penal.
Palavras-chave: Intervenções, tratamentos médico-cirúrgicos, bem jurídico, leges artis.
6
ABSTRACT
The present study is dedicated to the critical-reflexive analysis of interventions and
medical-surgical treatments art. º 150.º of C.P. This is a comparative examination from
the perspective of Angolan criminal law. The study is related first and foremost to the
idea of legitimacy and criminal dignity of medical-surgical treatments in which the leges
artis (laws of the trade), and medical intervention is related to criteria that define its
modus operandi.
Does this mean that the express intervention of a person who is not acting in
accordance with the laws of artistry, while revealing skills, cannot be held responsible for
the inexistence of the causal link acting in a way that reduces risk? Secondly, to
understand if we can, then, discuss the causes of exclusion of illegality to justify the
agent's performance. It is a long road in order to understand in what conditions can be
applied and if they go according to the application of Angolan criminal law. But known,
in particular, by the Preliminary Draft Penal Code in force in Angola.
In certain situations, the system is fragile and increasingly precarious in the face of the
activities of those who I call "ghost mediators without a professional license" and have
given up their academic training or any connection to medicine tend to assist people in
violation of the rules of leges artis.
We find the criminal responsibility in the creation of medical posts in their homes and
the practices of abortion practiced and increased the mortality rate that has risen
exponentially, on the one hand improve the health system and punish those who by usury
take advantage of the state of necessity other people for the practice of illicit acts.
With regard to the topic of interventions and medical-surgical treatments, this subject
is still the subject of some discussion within the doctrine and even the subject of divergent
interpretations in the jurisprudence up to the present date. our modest work shows the
various doctrinal and jurisprudential currents and present some solutions so that they
serve, in a certain way, of object of future study for the thinkers of the criminal law.
Keywords: Interventions, medical-surgical treatments, legal, leges artis.
7
Índice
DEDICATÓRIA............................................................................................................... 3
AGRADECIMENTOS..................................................................................................... 4
RESUMO ......................................................................................................................... 5
ABSTRACT ..................................................................................................................... 6
LISTA DE ABREVIATURAS......................................................................................... 9
INTRODUÇÃO............................................................... Erro! Marcador não definido.
Metodologia..................................................................... Erro! Marcador não definido.
CAPÍTULO I - INTERVENÇÕES E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS
......................................................................................... Erro! Marcador não definido.
1.1 Enquadramento Histórico do artigo 150.º Intervenções e Tratamentos Médico-
Cirúrgicos..................................................................... Erro! Marcador não definido.
1.2 Uma Primeira Abordagem do Enquadramento dos Tratamentos Médico-Cirúrgicos
..................................................................................... Erro! Marcador não definido.
1.3 Regulação e Salvaguarda da Prática Ilícita do Ato MédicoErro! Marcador não
definido.
1.4 O Bem Jurídico Tutelado....................................... Erro! Marcador não definido.
1.5 A Qualificação do Agente...................................... Erro! Marcador não definido.
1.6 Finalidade Terapêutica........................................... Erro! Marcador não definido.
1.7 Indicação Médica................................................... Erro! Marcador não definido.
1.8 Observância das Leges Artis.................................. Erro! Marcador não definido.
1.9 O Tipo Objetivo e Subjetivo do Ilícito .................. Erro! Marcador não definido.
CAPÍTULO II – A AUTONOMIA DO DIREITO PENAL E A INFLUÊNCIA NOS
DEMAIS RAMOS DO DIREITO................................... Erro! Marcador não definido.
2.1 A Implicação da Intervenção dos Tratamentos Médico-Cirúrgicos Violando as
Leges Artis ................................................................... Erro! Marcador não definido.
2.2. Análise A Atividade Médica no Exercício das Suas FunçõesErro! Marcador
não definido.
2.3 Analisar a Figura da Ilicitude Como Responsabilização PenalErro! Marcador
não definido.
2.4 A Relevância Penal no artigo 150.º ....................... Erro! Marcador não definido.
CAPÍTULO III - PARADIGMA SANCIONATÓRIO APLICADO AO DIREITO
PENAL ANGOLANO..................................................... Erro! Marcador não definido.
3.1 Atipicidade das Intervenções e Tratamentos Médico-Cirúrgicos na Direção das
Ofensas Corporais........................................................ Erro! Marcador não definido.
3.2 Intervenções Médico-Cirúrgicas em Benefício da Saúde PúblicaErro! Marcador
não definido.
3.3 Crítica ao Direito Penal Angolano: Lacuna da Proteção da Liberdade Pessoal Face
ao Ato Médico ............................................................. Erro! Marcador não definido.
8
CAPÍTULO IV - A PROBLEMÁTICA DO EXERCÍCIO DOS ATOS
TERAPÊUTICOS. POSSÍVEIS SOLUÇÕES................................................................46
CONCLUSÃO................................................................. Erro! Marcador não definido.
BIBLIOGRAFIA............................................................. Erro! Marcador não definido.
FONTES DOCUMENTAIS............................................ Erro! Marcador não definido.
9
LISTA DE ABREVIATURAS
A.C - Acórdão
10
ART./ARTS - Artigo/Artigo
C.P - Código Penal
C.R.A - Constituição da República de Angola
C.P.P - Código de Processo Penal
Crf - Conforme
C.R.P - Constituição da República Portuguesa
D.L – Decreto-Lei
D.R - Diário da República
P. e P. - Previsto e Punido
ACPA - Anteprojeto do Código Penal de Angola
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo analisar o enquadramento jurídico-penal das
intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos. A escolha deste tema surgiu das
11
indagações suscitadas pelas aulas de Direito Penal, principalmente quando nos deparamos
com questões referentes adversas, que possam gerar entendimentos doutrinários diversos.
A discussão da presente temática convoca variadíssimas questões, todas elas
merecedoras de respostas dogmáticas e normativas. Por isso, não nos é possível analisar
todos os aspetos jurídico-penalmente relevantes respeitantes às intervenções e
tratamentos médico-cirúrgicos do art.º 150.º, n.º 2 do Código Penal português numa visão
equiparada ao Anteprojeto do Código Penal Angolano. Ocupar-nos-emos em saber: se a
prática de atos terapêuticos (atos curativos) levados a cabo por um não médico encontra
tutela no direito penal angolano. Isto é, saber se deve ser (ou é) tutelada no tipo legal das
ofensas à integridade física, ou se, pelo contrário, estamos diante de uma lacuna de tutela
desse bem jurídico-penal? Tendo presente que aquele tipo legal visa tutelar outro bem
jurídico, e não o ato terapêutico praticado por leigo.
Se admitirmos a ausência de proteção do presente bem jurídico-penal, qual deverá
ser o caminho a seguir? Interpretar extensivamente o tipo legal das ofensas à integridade
física, de modo a incluir nele o exercício ilegal da atividade médica? Ou propor uma nova
incriminação que venha dar a necessária tutela a quem pratique o exercício ilegal da
medicina?
Quando olhamos para a situação angolana, o interesse é ainda maior, porque nos
deparamos com questões adversas, onde existem intervenções e tratamentos médico-
cirúrgicos que não seguem os trâmites da lei. Não pretendemos apresentar soluções
acabadas e definitivas. Será, sim, uma abordagem que pretende trazer uma análise
passando pelas mais variadas posições doutrinárias e jurisprudenciais, no sentido de
apontar algumas questões mais relevantes e apontar algumas soluções, dando com isto
um modesto contributo no âmbito do Direito Penal.
Como objetivo geral, pretendemos saber se a prática de atos terapêuticos levados a cabo
por um não médico encontra tutela no direito penal angolano. Por outro lado, como
objetivos específicos iremos averiguar o exercício ilegal da atividade médica, e se haverá
necessidade de se criar um novo preceito legal, caso não se enquadre nos crimes
existentes.
12
A presente dissertação encontra-se dividida em três capítulos. O primeiro, aborda
a questão histórica do tema, o bem jurídico a ser tutelado quando se trata de intervenções
médico-cirúrgicas. O segundo capítulo, refere-se à violação das leges artis, conhecidas
como as ‘leis do ofício’. E por fim, no terceiro capítulo, falamos sobre a atipicidade das
intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos na direção das ofensas corporais,
acrescentando uma análise ao anteprojeto do código penal angolano.
CAPÍTULO I - INTERVENÇÕES E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS
1.1 Enquadramento Histórico do artigo 150.º Intervenções e Tratamentos Médico-
Cirúrgicos
O Regime vigente dos tratamentos médico-cirúrgicos conheceu a sua consagração
positiva e definitiva com a entrada em vigor do Código Penal de 1982. Até então, e na
13
vigência do Código de 1852, os autores1
e os tribunais2
portugueses propendiam a
qualificar as intervenções médicas como lesões corporais típicas, cuja ilicitude seria
dirimida em nome do “exercício de um direito”. Faz-se eco desta compreensão das coisas,
mas reportando já às soluções do código de 1982, onde CAVALEIRO FERREIRA3
afirma que “o consentimento do ofendido no art. 159º não é, assim, uma causa de
justificação, mas condição do exercício da medicina no caso concreto. Relembramos que
o projeto de EDUARDO CORREIA4
continuava a encarar a intervenção médica como
ofensa corporal típica. E, por vias disso, a punir como ofensa corporal o tratamento
efetuado contra a vontade do paciente, mesmo tratando-se de intervenção medicamente
indicada, realizada segundo as leges artis e plenamente seguida.
A modificação mais importante introduzida pela reforma de 1995 foi a eliminação
dos nº 2 e 3 do processo de preceito homólogo da versão de 1982. Recordamos que o
citado n.º 2 dispunha: “Se da violação das legis artis resultar um perigo para o corpo, a
saúde ou a vida do paciente, o agente será punido com prisão até 2 anos”. Uma infração
cujo procedimento criminal dependia de queixa, nos termos do também eliminado n.º 3.
Foi uma modificação de aplaudir. Desde logo, por razões de índole normológica, mal se
compreendendo que se inscrevesse uma incriminação autónoma num preceito de carácter
puramente definitório. O preceito era, de resto, desnecessário, uma vez que a violação das
leges artis remete, sem mais, os fatos para o âmbito das lesões corporais típicas.
O preceito legal tratava-se de uma incriminação político-criminalmente contraindicada.
Além do mais, contribuía para acentuar a desconfiança entre médicos e juristas. Apesar
de tudo, uma solução que viria a ser repristinada pelo legislador de 1998, isto é, com a
introdução do atual n.º 2. Uma decisão que, à partida, se afigura questionável acerto
político-criminal. Além do que fica exposto, está em saber se o exposto da medicina
1
Aos referidos autores... (FIGUEIREDO DIAS, O Problema da Consciência da Ilicitude 406 ss;
FIGUEIREDO DIAS/ SINDE MONTEIRO, Responsabilidade Médica 1984 ss; PAULA FARIA, Aspetos
Jurídico-Penais dos Transplantes 35 ss.)
2
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, cujo relator é José Adriano. Processo n.º 5335/2006-5,
de 30 de Janeiro de 2007. [Em linha]. [Consult. 18 Fev. 2019]. Disponível em
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/59463ae15fd7d48780257287003cd567?
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3
FERREIRA, Manuel Gonçalves Cavaleiro de, apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In
Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge
Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 304.
4
Idem.
14
reclamava a densificação do quadro normativo, ou antes a efetiva aplicação do direito
penal existente, por mais fragmentário que pudesse parecer.
O enunciado da lei portuguesa é unívoco no sentido da atipicidade das intervenções
médico-cirúrgicas na perspetiva das ofensas corporais. E é assim tanto nos casos em que
a intervenção tem sucesso, como nos casos em que ela falha. Porque não cura, antes
agrava a doença, ou mesmo porque provoca a morte do paciente. À luz do direito
português vigente, não seria pertinente a opinião daqueles autores que, na esteira de
BELING5
, sustentam a chamada teoria do resultado, segundo a qual a intervenção
médico-cirúrgica não conseguida preencheria a factualidade típica das ofensas corporais,
e a lei portuguesa assumindo que, de forma consequente, a solução doutrinal que coloca
a intervenção medicamente indicada e prosseguida segundo as leges artis fora da área de
tutela das ofensas corporais e do homicídio.
Como ENGISCH6
refere, não podem acompanhar-se representações naturais
segundo as quais um tratamento arbitrário com tão gravosas consequências não deve ficar
imune ao odium das ofensas corporais ou da morte. Isto porque a valoração da intervenção
médica terá de fazer-se ex ante, não podendo ficar dependente da possibilidade de
prejuízos e dos resultados. Resumidamente, a produção dos resultados indesejáveis que
só relevará como ofensa corporal típica quando representar a consequência adequada da
violação das leges artis.7
5
BELING, apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao
Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra,
Editora, 1999. p. 305.
6
idem
7
ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art
150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. pp.
304-306. Recordemos que para aferir a tipicidade ou atipicidade das ofensas corporais seguindo o critério
da violação das leges artis, a lei portuguesa tem-se baseado em duas posições convergentes, embora
parecendo um pouco equidistantes na prática. Uma vez que é salientado de primeira posição em que a lei
portuguesa se apoia no direito austríaco, e tomando pouco em conta o germânico. Na posição de BERTEL,
todos os procedimentos preparatórios levados a cabo na aplicação de um medicamento ou preparado são
também tratamentos no sentido da lei, ou os processos naturalistas, mesmo quando a ciência médica os
considera sem valor. Na mesma linha, considera KIENAPFEL: mesmo um tratamento realizado por um
curandeiro ou por um leigo, cai na alçada do tema. Ora, a chamada teoria do resultado cairia por terra, uma
vez que, na esteia de BELING, a factualidade do preenchimento da atipicidade não constituiria uma
preposição convincente, mas notória E a posição mais correta seria o afastamento total do não
acompanhamento das representações naturais, por questões de estar inserido no fórum das ofensas corporais
ou do homicídio. Mas, de igual modo, terminando a ideia de que só relevará como ofensa corporal típica
quando representar a consequência adequada da violação das leges artis.
15
1.2 Uma Primeira Abordagem do Enquadramento dos Tratamentos Médico-
Cirúrgicos
“1. As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da
experiência da medicina se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com
as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção
de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga
corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.
2. As pessoas indicadas no número anterior, que, em vista das finalidades nele
apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos médico-cirúrgicos violando as leges
artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo
ou para a saúde, são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240
dias, e se a pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.”8
A contextualização do Código Penal de 1982, baseado numa lesão corporal típica,
cuja ilicitude só poderia afastar-se invocando o “exercício de direito”, que o vigente artigo
38.º, nº 2, exige que corresponda a uma vontade séria, livre e esclarecida. Nas
preocupações dos juristas inscrevia-se a ideia da “justificação” de que o cirurgião, para
poder “fazer sangue” sem que o equiparassem ao ladrão que retalha a cara da vítima por
bem menos que o custo de uma operação bem-sucedida, tinha que se munir do
consentimento do paciente, ou de poder invocar uma dirimente que valesse o mesmo.
Todavia, na prática, logo se compreendeu o alcance limitado do consentimento, uma vez
que o paciente “confia, simplesmente, na qualificação profissional do médico que lhe
explica, em termos simplificados, em que consiste a operação e quais são os seus
objetivos.9
1.3 Regulação e Salvaguarda da Prática Ilícita do Ato Médico
COSTA ANDRADE apresenta ainda uma situação importante no que diz respeito ao CP
austríaco, que prescreve um regime dos tratamentos de um preceito homólogo ao art.º
150.º do CP português, apesar da lacuna com reflexos não despiciendos ao nível da
8
Neste sentido art.º 150º. Do CP.
9
MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos
Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f.
Dissertação de Mestrado em Direito.
16
interpretação e aplicação.10
E cita BERTEL quando refere: “Tratamento é toda a
aplicação de um medicamento ou preparado” e, por isso, “são também tratamentos, no
sentido da lei, os processos naturalistas, mesmo quando a ciência médica os considera
sem valor. Na mesma linha, foi considerado por KIENAPFEL: “Mesmo um tratamento
realizado por um curandeiro ou por um leigo cai na alçada do consenso de autores alemães
e austríacos como referências incontornáveis do direito penal português das intervenções
médico-cirúrgicas.11
No art.º 150.º, consagra-se atipicidade das intervenções e
tratamentos médico-cirúrgicos, “não se consideram ofensas à integridade física”, o
elemento que permite concluir pela exclusão do tipo, verificando uma intenção de
proteção das atividades médicas e do ato médico. A não consideração do facto praticado
como típico pressupõe o preenchimento cumulativo de certos requisitos. O primeiro, é a
intervenção efetuada com um fim curativo, e, assim, excluem-se desta norma as
intervenções que não tenham carácter de terapia, nomeadamente as realizadas com fins
experimentais, o emprego de novas técnicas, ou intervenções cirúrgicas com outros fins
(por exemplo, para fins estéticos).
O carácter terapêutico ou curativo, não significa necessariamente que as condutas
visem diretamente afastar a doença, ou diminui-la, mas envolve todos os atos médicos
que sejam complementares destes fins. O fim curativo pressupõe um elemento objetivo,
ou seja, que se verifique efetivamente a realização desse desiderato, mas também um
elemento subjetivo, que passa pela intenção de agir com esse propósito, o que significa
que a intervenção tenha de ser empreendida com vista a obter fins curativos. E o segundo
requisito está, então, relacionado com as caraterísticas de quem intervém. Exigindo que
seja médico ou pessoa legalmente autorizada para o desempenho de determinadas
funções, esta norma aborda especificamente a atividade médica ou analógica, exigindo
que o agente reúna qualidades, tendo como objetivo a proteção de quem desempenha tais
atividades.
Sobre a necessidade da presente norma, pode questionar-se a sua dispensa por força
das regras da imputação objetiva, nomeadamente pela via dos critérios do risco,
10
Referimo-nos a lacuna na medida em que o plano subjetivo não permite referenciar os crimes pertinentes,
os tratamentos arbitrários como delitos próprios. Deixando, assim, subsistir uma maior insegurança quanto
à extensão do conceito de intervenção e tratamento médico-cirúrgico.
11
BERTE; KIENAPFEL, apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário
Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias,
Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 303.
17
pretendendo que as situações que envolvam a autonomia da conduta do médico, de um
“curioso”, do “endireita” ou de qualquer outro que, revelando aptidões para o
desempenho dessas funções, não seja submetida à mesma apreciação. Quem não seja
médico, nem esteja habilitado para intervir, pode não ser responsabilizado, mas por via
da inexistência do nexo de causalidade, por força da diminuição do risco, ou pela exclusão
da sua ilicitude. Mas a lei exige que a atuação se faça de acordo com as leges artis, ou
seja, as leis do ofício.
FERNANDO SILVA, afirma que a não consideração do facto como típico
pressupõe o preenchimento cumulativo de certos requisitos, sendo o primeiro a
intervenção com um fim curativo, excluindo, assim, desta norma as intervenções que não
tenham carácter de terapia, as intervenções cirúrgicas com outros fins. O segundo
requisito prende-se com as características de quem intervém, exigindo-se que seja médico
ou pessoa legalmente autorizada. O consentimento não é um requisito desta norma, uma
vez que não integra o art.º 150.º, pelo que é indiferente que a intervenção se faça de
acordo, ou contra a vontade da vítima para que se exclua a tipicidade das ofensas à
integridade física.12
Posição igualmente defendida por TEREZA QUINTELA DE
BRITO, no âmbito em que a observância das leges artis, que correspondem às regras
generalizadamente conhecidas da ciência médica e aos demais e gerais deveres de
cuidado do tráfego médico. E pondera ainda que o n.º 1 não inclui o consentimento do
paciente entre os elementos característicos de intervenção ou tratamento médico-
cirúrgico, no sentido em que a exclusão do tipo de ofensas à integridade física não
depende de consentimento.13
E já BELING notava: uma ação que não configura qualquer
lesão corporal não se converte em tal pelo facto de o interessado protestar contra ela. E
uma ação que constitui uma lesão corporal não deixa de o ser pelo facto de que o
12
SILVA, Fernando. O Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas. Lisboa: Quid Iuris, Editora,
2011. p.270. apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao
Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra,
Editora, 1999. p. 303. Onde é suscitada uma certa dúvida da possibilidade da responsabilização de quem
não seja médico por via da inexistência do nexo de causalidade, por força da diminuição do risco, ou pela
exclusão da sua ilicitude. Posição compreendida, mas com certa repulsa, até ao momento em que, no
exercício dessas funções, alguma coisa acaba por correr mal e causar ofensa à integridade física, ou mesmo
ao homicídio.
13
BRITO, Tereza Quintela de. apud. PEREIRA, Victor de Sá; LAFAYETTE Alexandre. Código Penal
Anotado, 2ª. Lisboa: Quid Iuris, Editora, 2014. p. 429.
18
interessado possa estar de acordo com ela. Embora um tratamento médico que contraria
a vontade do paciente possa ser típico, doutro ponto de vista de um atentado à liberdade.14
O presente artigo ressalta o consentimento assumindo um papel como elemento da
tipicidade, sendo indispensável para considerar a conduta como típica. Os art.º 150.º e
156.º (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários) e 157.º (dever de
esclarecimento) devem ser compreendidos como complementares, retirando a ideia de
que o médico não deve intervir para proceder a tratamentos ou intervenções cirúrgicas se
não tiver o consentimento do paciente, mas também que é lícito ao médico deixar de o
fazer por ser essa a vontade do paciente. À apresentação da norma do art.º 150.º como
norma protetora da atividade dos médicos, e porque os requisitos apresentados são
cumulativos para a produção do efeito de exclusão da tipicidade, é possível estabelecer
uma delimitação negativa, a partir da qual se estipula que são considerados típicos, e
constituirão factos típicos de ofensas à integridade física, poderem estar justificadas ou
desculpadas, ou até mesmo desresponsabilizadas por via da ausência de nexo de
causalidade, as intervenções sem fim curativo, bem como as que são efetuadas para
efeitos de investigação científica, ou proceder à recolha de órgãos, ou as práticas
desenvolvidas no âmbito das denominadas medicinas alternativas.
Como se percebe, no exercício da medicina estão em causa bens jurídicos cuja tutela
é reclamada pelo direito (“bens essenciais da comunidade”), muitos dos quais com
dignidade penal, o que resultará na larga posição doutrinal assente numa conjuntura
jurídica convergentemente forte, passando agora a citar uma abordagem sui generis de
um trabalho de investigação da atuação de vários profissionais de saúde sobre o campo
operatório podem, por exemplo, surgir problemas jurídico-penalmente relevantes. É o
que acontece, por exemplo, na questão de apurar a responsabilidade individual dos
profissionais que atuam em equipas médicas. O regime jurídico-penal das intervenções
médico-cirúrgicas é um regime que se analisa em dois enunciados fundamentais: em
primeiro lugar, a proclamação da atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na
direção dos crimes das ofensas corporais e de homicídio; em segundo lugar, de que certos
crimes só podem ser cometidos por certas pessoas, às quais pertence uma certa qualidade
14
BELING, apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao
Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra,
Editora, 1999. p. 303.
19
ou sobre as quais recai um dever especial.15
No caso em análise, os tratamentos médico-
cirúrgicos contra a liberdade.16
1.4 O Bem Jurídico Tutelado
15
DIAS, Jorge Figueiredo. Questões Fundamentais da Doutrina do Crime, Parte Geral, Tomo I,
Coimbra: Coimbra, Editora, 2004. p. 304.
16
ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art
150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.
302.
20
O bem jurídico tutelado no art.º 150.º n.º 2, é a vida ou a integridade física, tratando-se
de um crime de perigo concreto (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objeto
da ação), tendo sido fundado como um crime de um perigo por violação das legis artis.
No crime de perigo concreto, o tipo inclui a colocação em perigo do bem jurídico.17
, e
está numa relação de concurso aparente (subsidiariedade expressa) com ofensa corporal
grave, prevista no artigo 144.º, al. ª d). Posição contrária é a de SILVA DIAS,
considerando tratar-se de uma relação de especialidade.18
E TEREZA QUINTELA DE
BRITO admite o concurso efetivo entre o crime previsto no art.º 150.º, n.º 2, e os crimes
previstos nos artigos 148.º ou 137.º VERA RAPOSO também admite o concurso efetivo
entre os crimes de intervenção arbitrária e de intervenções contra as leges artis ou por
ofensas à integridade física, previsto no art.º 143.º, ou mesmo por homicídio negligente,
previsto no art.º 137.º. A violação das leges artis deve ser cometida por ação. Quando for
cometida por omissão, a violação é punível nos termos do art.º 284.º. Há, pois, uma
relação de exclusão entre os dois crimes.19
O n.º 2, com intuito de alargar o arsenal de meios punitivos dos ilícitos aos médicos,
não se torna fácil, no que toca a determinar o seu âmbito de aplicação. Com efeito, a
violação dolosa das leges artis constitui uma típica ofensa à integridade física, que até
pode ser justificada por consentimento. E, por outro lado, se há criação de perigo para a
vida parece emergir como norma subsidiária. Não há lugar para a negligência. Na
verdade, trata-se de um crime doloso.20
2.1 A Qualificação do Agente
17
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À Luz da Constituição da
República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica, Editora,
2008. p. 398. Na mesma posição encontra-se SILVA, Fernando. O Direito Penal Especial, Crimes Contra
as Pessoas. Lisboa: Quid Iuris, Editora, 2011. pp.269-270.
18
DIAS, Silva, apud. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À Luz da
Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa:
Universidade Católica, Editora, 2015. p. 582.
19
Idem.
20
PEREIRA, Victor de Sá; LAFAYETTE Alexandre. Código Penal Anotado e Comentado. Lisboa: Quid
Iuris, Editora, 2014. pp. 430-431.
21
O enquadramento legal do art. 150.º requer que nas intervenções e tratamentos médico-
cirúrgicos se proceda com causa indispensável à realização necessária (e idónea21
), por
um médico ou pessoa legalmente autorizada, sendo este um requisito da atipicidade da
intervenção. O tratamento realizado por um não médico, quando ele seja movido por uma
finalidade terapêutica e a intervenção tenha sucesso, não constitui uma ofensa à
integridade física, mas poderá constituir uma usurpação de funções, enaltecendo a
posição de RUI PEREIRA, em concordância com TERESA QUINTELA DE BRITO, na
medida em que se ressalva a invalidade do consentimento não esclarecido no caso da
intervenção médico-cirúrgica por um curandeiro. Será punindo por ofensas a integridade
física o agente não médico, “ainda que revele aptidão para o desempenho do ato”.22
A
intervenção médico-cirúrgica com fim terapêutico realizada com indicação médica e em
conformidade com a leges artis não constitui um crime, sendo, desde logo, atípica.
Portanto, configura-se como requisitos da atipicidade da intervenção médico-
cirúrgica o seguinte: a qualificação do agente ou qualquer pessoa legalmente autorizada;
a finalidade terapêutica, que inclui a prevenção, diagnóstico, cura da doença; a indicação
médica que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência médica, se mostrem
indicados; a realização em conformidade com as leges artis, e o consentimento.23
2.2 Finalidade Terapêutica
A finalidade terapêutica implica que a pessoa nela destinada, que sofra intervenções e
tratamentos médico-cirúrgicos, seja, necessariamente, a pessoa beneficiária desta
intervenção, afastando, deste modo, todas as intervenções realizadas mesmo que por um
médico.24
O objetivo de curar dever ser o principal, mas não é o único. Todo o tratamento
médico comporta um coeficiente de experiência, e, por outro lado, existe a chamada
experimentação terapêutica. Isto é, no interesse do paciente e na falta de outros métodos,
o médico recorre a meios de tratamento não completamente consolidados, cujas
21
ROXIN, Claus, Problemas Fundamentais de Direito Penal, Coleção: Veja Universidade, Tradução:
Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz, 2a Ed., 1993, pp. 57-59.
22
PEREIRA, Rui; BRITO, Tereza Quintela de. apud. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do
Código Penal. À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade Católica, Editora, 2015. p. 580.
23
Ibidem.p.580.
24
ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art
150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. pp.
379-380.
22
consequências não são possíveis de antecipar e controlar com segurança. Esta
experimentação, pelo menos em casos em que se destina a remover um risco de morte
iminente, deve ser admissível a este regime das intervenções e tratamentos médico-
cirúrgicos. Já as intervenções puramente cosméticas não se enquadram neste regime,
apenas as que se destinam a corrigir situações do foro ortopédico, ou mesmo as
intervenções destinadas a eliminar a causa de limitações pessoais a nível da comunicação
intersubjetiva, suportando as correspondentes fontes de sofrimento.25
Isto inclui também
o diagnóstico e o tratamento strictu sensu de doença, lesão ou fadiga corporal, e exclui a
experimentação não terapêutica ou puramente cosmética.26
A castração e a esterilização constituem intervenções e tratamentos médico-
cirúrgicos, quando realizadas por indicação médica. No caso da castração, devido a
doenças relacionadas com um instinto sexual anormal, e no caso de esterilização, para
debelar perturbações mentais. O transexualismo não deve seguir o regime das
intervenções médico-cirúrgicas, uma vez que se trata de uma intervenção cirúrgica e
tratamento hormonal destinados a corrigir os carateres somáticos-exteriores de pertença
a um sexo com o qual o indivíduo não se identifica psiquicamente, ainda que, até certo
ponto, este tratamento não se enquadre no regime do art.º 150.º n.º 1. Caso contrário,
sendo realizada por um médico, sem o consentimento do paciente, este apenas responderá
por intervenção médico-cirúrgica arbitrária, e não por lesão da integridade física. Por
último, o caso da angiografia também deve ser afastado do regime das intervenções
médico-cirúrgicas, uma vez que se trata de um procedimento que não é feito em benefício
e no interesse do ofendido, mas antes no interesse de terceiros, eventuais beneficiários de
tecidos e órgãos para transplantes.27
2.3 Indicação Médica
25
MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos
Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f.
Dissertação de Mestrado em Direito.
26
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da República
e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade Católica,
Editora, 2015. p. 580.
27
MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos
Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f.
Dissertação de Mestrado em Direito.
23
A indicação médica consubstancia um juízo científico de idoneidade e necessidade
relativa de uma intervenção em relação a outras intervenções igualmente disponíveis, pois
“levar a cabo” é uma fórmula abrangente, incluindo a própria escolha do tratamento. A
indicação médica tem por termo de referência a medicina institucionalizada,
convencional e autorizada, ficando excluídas as práticas de medicina não convencional,
tais como a acupuntura, a homeopatia, a fisioterapia. Contudo, o artigo 18.º da Lei n.º 45/
2003, de 22 de Agosto, admitiu o carácter terapêutico das referidas práticas de medicina
não convencional ao estabelecer que aos profissionais destas práticas que lesem a saúde
dos pacientes ou realizem intervenções sem o respetivo consentimento é aplicável o
disposto na lei, em igualdade de circunstâncias com os demais profissionais de saúde.
A denotação médica configura-se como única e exclusivamente dos médicos e da sua
atividade mediante a natureza curativa, segundo o estado de conhecimentos atuais da
medicina e com intenção de prevenção e de diagnóstico. Haverá que intercalar com as
ofensas corporais, que se prendem com as regras da arte de curar, que são geralmente
entendidas como as devidas aos ensinamentos das escolas oficiais da medicina,
afastando-se as chamadas medicinas alternativas, onde se é, ainda, incapaz de estabelecer
um consenso. A conclusão estará de acordo com o inciso no n.º 1 do artigo 150.º, que se
refere expressamente ao estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, e com
a circunstância de os respetivos agentes não estarem habilitados “legalmente” a atuar.28
No entanto, a situação mudou com a inclusão da lei que estabeleceu o enquadramento
base das terapêuticas não convencionais, que estão sujeitas no regime do art. 150º, ou
seja, o que se refere às intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos no âmbito das
terapêuticas não convencionais.29
2.4 Observância das Leges Artis
28
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da República
e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade Católica,
Editora, 2015. p. 580.
29
FIDALGO, Sónia. Responsabilidade Penal por Negligência, no Exercício da Medicina em Equipa,
Coimbra: Coimbra, Editora, 2008. p. 47, sobre a Lei n.º 45/2003, de 22 de Agosto.
24
A prática das leges artis consiste na observância das regras teóricas e práticas do
diagnóstico e tratamento aplicáveis no caso concreto, em função das características do
agente e dos recursos disponíveis pelo médico. Porém, a atuação de acordo com as leges
artis, condição apresentada pelo CP, implica normas de conduta que devem ser levadas a
cabo por um médico.30
Nestes casos, o médico não necessita do consentimento da vítima,
o que não quer dizer que o médico não venha a incorrer em responsabilidade criminal,
caso vá contra a vontade da vítima e desde que a vítima a tenha expressado. No disposto
do art.º 156.º refere-se “intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários”,
incorrendo no crime contra a liberdade pessoal. Contudo as leges artis compreendem as
regras da ciência médica, e consigo os deveres de cuidado para a aplicação do tráfego
médico. Estas regras comportam o diagnóstico do paciente e a escolha da terapia,
mediante a indicação médica.
Salientando expressamente a execução do tratamento ou intervenção médico-
cirúrgica, é de ressaltar que os deveres de cuidado referenciados anteriormente estão
ligados, numa ordem sistemática, com a observação pela pessoa legalmente autorizada,
determinada por referência ao caso concreto.31
Razão pelo qual os deveres variam em
função das condições psicológicas, físicas, mentais, sociais e culturais do paciente, bem
como das condições psicossomáticas envolventes no método de tratamento aplicado.32
Isto porque a observância das regras da arte médica não se limita à fase de escolha do
tratamento, antes se estende à própria aplicação do mesmo, e também antecede a própria
indicação médica, pois que tais regras de arte devem presidir à própria elaboração do
diagnóstico e deverão continuar a marcar presença mesmo após a conclusão do tratamento
propiamente dito, isto é, no acompanhamento ou vigilância da fase do pós-operatória.33
2.5 O Tipo Objetivo e Subjetivo do Ilícito
30
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da República
e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade Católica,
Editora, 2015. p. 581.
31
BRITO, Tereza Quintela de. Responsabilidade Penal dos Médicos, “Análise dos Principais Tipos
Incriminadores”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, -A.12 n.º 3, Coimbra: Coimbra, Editora,
2002. p. 371.
32
ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art
150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.
312.
33
MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos
Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f.
Dissertação de Mestrado em Direito.
25
Nos termos do preceito indicado no n.º 2 do art 150.º, pratica o crime de intervenções e
tratamentos médico-cirúrgicos o médico ou outra pessoa legalmente autorizada que, com
intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou
fadiga corporal ou perturbação mental, realize intervenções ou tratamentos violando as
legis artis e criando, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o
corpo ou para a saúde. Em termos conceituais, trata-se de um crime específico próprio e
de um crime de perigo concreto.34
No plano objetivo, a infração configura um crime específico próprio.35
Por esta
compreensão.36
(?! A frase não faz sentido…)Posição contrária é a de PAULO PINTO
DE ALBUQUERQUE, dizendo que se trata de um crime instantâneo, quando indica que
consiste na intervenção ou tratamento médico-cirúrgico realizado por um médico ou outra
pessoa legalmente autorizada, com indicação médica, finalidade terapêutica e
consentimento do paciente, mas em violação das leges artis, pondo em perigo a vida ou
criando um perigo de ofensa à integridade física grave do paciente. O crime consuma-se
com a criação de perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo ou para a saúde37
,
em que a qualidade especial do autor ou o dever sobre ele impede fundamentar a
responsabilidade.38
Com a estrutura de um crime de perigo concreto.39
(?! A frase não
faz sentido…) O perigo faz parte do elemento do tipo, sendo que o mesmo só é
preenchido quando o bem jurídico esteja efetivamente em perigo.40
34
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26-02-2014, Processo: 1116/10.0TAGRD.C1, Relator:
Vasques Osório.
35
Idem,
36
BRANCO, Tomé relat. -Ac. Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 0717/04-1, de 03 de Maio
de 2004. [Em linha]. [Consult. 11 Jan. 2019]. Disponível em
http:www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/tpb_MA_8043.ppt. O presente acórdão esclarece que crime
específico próprio não existe crime paralelo cuja previsão (?!!A frase não se compreende…)que determine
a possibilidade de autoria por parte de um cidadão comum, que não detenha a qualidade exigida.
37
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da
República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade
Católica, Editora, 2015. p. 582.
38
MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos
Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f.
Dissertação de Mestrado em Direito.
39
ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art
150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.
313.
40
Neste sentido, DIAS, Jorge Figueiredo. Questões Fundamentais da Doutrina do Crime, Parte Geral,
Tomo I, Coimbra: Coimbra, Editora, 2004. p. 304.
26
No tipo subjetivo, só é punível o dolo, que tem de abarcar, para além da intervenção com
violação das leges artis, o perigo (para a vida, para o corpo, ou para a saúde).41
Já PAULO
PINTO DE ALBUQUERQUE admite qualquer modalidade de dolo (de perigo), tratando-
se de um crime específico impróprio, quando a qualidade do médico é comunicável aos
comparticipantes que a não possuam, nos termos do art.º 28.º do CP.42
O dolo pode ser
eventual, necessário ou direto.43
Em relação ao crime em análise, haverá dolo direto
quando o agente representa a violação das leges artis e o perigo, atuando com a intenção
de criar este perigo. Haverá dolo necessário quando o agente representa a violação das
leges artis e o perigo como uma consequência necessária da sua conduta. Haverá dolo
eventual quando o agente representa como possível a violação das leges artis e a criação
do perigo, conformando-se com a verificação de tais factos.44
41
ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art
150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.
313.
42
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da
República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade
Católica, Editora, 2015. p. 582.
43
Neste sentido art. 14º do CP.
44
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26-02-2014, Processo: 1116/10.0TAGRD.C1, Relator:
Vasques Osório.
27
CAPÍTULO II – A AUTONOMIA DO DIREITO PENAL E A INFLUÊNCIA NOS
DEMAIS RAMOS DO DIREITO
2.1 A Implicação da Intervenção dos Tratamentos Médico-Cirúrgicos Violando as
Leges Artis
A norma do art.º 150.º, n.º 2 tem em vista os médicos e as pessoas igualmente
qualificadas. No entanto, somente os agentes, ao realizarem intervenções ou tratamentos
médico-cirúrgicos violando as leges artis estão abrangidos pelo crime em apreço. A pena
aplicável exige a criação de um perigo para a vida ou perigo de ofensa para o corpo ou
para a saúde, no âmbito dos crimes de perigo concreto.45
Quando o art.º 150.º, n.º 2
apareceu, em 1998, logo se lhe apontou natureza subsidiária, ao procurar determinar-se o
seu âmbito de aplicação para a tutela da vida e da integridade física. Quando o médico
não cumpre rigorosamente as regras da ciência médica, e isso pode acontecer com a
violação dolosa das leges artis da profissão, a conduta, como logo se institui, pode caber
noutro tipo de crime. Na medida em que provoca um perigo para a vida, o facto é já
punido pelo artigo 144.º al. d), face ao qual o n.º 2 do art.º 150.º parece emergir como
norma subsidiária. Daí a conclusão de que só na parte em que provoca um perigo para o
corpo ou para a saúde terá o preceito conteúdo normativo próprio e novo.46
Daqui se pretende concluir, todavia, que cada uma das condições, sem a qual se não
verificaria o resultado (sine qua non), seria também causa, e assim, todas as condições
seriam equivalentes para o efeito de a cada uma se poder imputar o resultado. É certo,
diz, que o resultado concreto não se pode pensar sem a totalidade das condições que o
determinam. Simplesmente, o resultado é indivisível. Indo um pouco mais longe, alega-
se que o nexo causal interromper-se-ia só, logicamente, quando o resultado se tivesse
verificado, ainda, sem a atividade do agente.47
Numa ideia não muito distante, seria
enaltecido o surgimento da causalidade para preencher o espaço interrogativo e inundar,
simultaneamente, o sentido da própria resposta.
O que se diga em abono da verdade, não deixava o nexo causal a categoria do
pensamento penal, a ter a sua justificação (?! Não se percebe o sentido da frase…). Não
45
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da
República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica, Editora,
2008. p. 398
46
MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos
Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f.
Dissertação de Mestrado em Direito
47
CORREIA, Eduardo. Direito Criminal., Coimbra: Coimbra, Editora, 1963. pp. 253,255.
28
nos esqueçamos da relação causal representativa, mesmo que naturalisticamente pensada
e não obstante os exageros a que se conduziu, um manifesto arrimo pelo qual se
concretizava a ideia de segurança em matéria penal. Contudo, rapidamente foram
apercebidas as limitações inerentes a uma causalidade baseada estritamente nas regras da
doutrina da contitio sine qua non. A causalidade deixava de ser, em termos jurídico-
penais, uma categoria apreensível dentro do ser causal, para se postular no campo da
normatividade. Era o domínio da causalidade adequada que os tantos avanços trouxeram
ao direito penal e que, ainda hoje, na nossa compreensão, é um dos critérios fundamentais
para se chegar a um justo juízo de imputação objetiva.48
Existe uma exigência mínima que uma perspetiva externo-objetiva como aquela
aqui em questão tem de fazer ao relacionamento ou conexão do comportamento humano
com o resultado, para que este possa atribuir-se ou imputar-se àquele: é a da causalidade.
Por isso, durante muitas décadas, toda esta problemática foi tratada sob aquela epígrafe:
a ação há-de, pelo menos, ter sido causa do resultado. E depois ressalta o primeiro grau
constitutivo da exigência mínima (que é o mesmo, do limite máximo) que, de uma
perspetiva externo-objetiva, tem de fazer-se ao relacionamento do comportamento
humano com o aparecimento do resultado, para que este deva atribuir-se, ao menos, a ter
sido causa do resultado, aferida através da teoria das condições equivalentes.49
A
interdependência entre a cultura de uma sociedade e o crime tem sido o tópico central da
sociologia criminal de há cerca de 125 anos.
Não deixa, por isso, de ser um tanto surpreendente ler o que TAFT50
escreve no seu
capítulo sobre Law Makind and Law Breaking in the American Setting, onde os
tratamentos a radicarem na cultura geral parece ter sido relativamente negligenciado. Já
no seu livro Physique Sociale, escrito em 1835, refere que as sociedades «contêm em si
próprias os germes de todos os crimes futuros.» Igualmente recordamos a frase, também
célebre, de A. LACASSAGNE.51
«O meio social é caldo de cultura da criminalidade (le
48
COSTA, José de Faria. Direito Penal. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, Editora, 2017.pp.
248-249.
49
DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal, parte geral. Tomo I, Coimbra: Coimbra, Editora, 2004. pp.
322,323. Existe uma consonância dos 4 autores, não obstante haver uma diferenciação mínima sobre a
presentação do critério diferenciado do nexo de causalidade para a imputação objetiva do caso salientado
anteriormente.
50
TAFT. apud. MANNHEIM, Hermann; tradução de ANDRADE, Manuel da Costa; COSTA, José Faria.
Criminologia Comparada. p. 653
51
TAFT. apud. MANNHEIM, Hermann; tradução de ANDRADE, Manuel da Costa; COSTA, José Faria.
Criminologia Comparada. pp. 653,771-774.
29
milieu est le bouillon de culture de la crimenalité); o delinquente é o micróbio, que não
tem qualquer importância enquanto não encontra a cultura que provoca a sua
multiplicação…As sociedades têm os criminosos que merecem.52
Com a introdução do n.º 2 do art.º 150.º do CP, ficou apontada uma incriminação nova, a
criação de um perigo para a vida e para a integridade física por força de uma natureza
subsidiária, ao procurar estabelecer um paralelismo no âmbito de aplicação da vida ou
grave ofensa à integridade física. O legislador quis, assumidamente, indicar os meios
punitivos aos médicos. Isso dá-se com a violação das leges artis, na medida em que
provoca perigo para a vida, facto que já é punido pelo art.º 144.º al. d). Podem os médicos
responder também por um novo crime, que será o crime de perigo concreto,53
face ao qual
o n.º 2 do art.º 150.º parece emergir de forma subsidiária, extraindo-se que só no momento
em que cria perigo para o corpo, ou para a vida, ou para a saúde terá o preceito conteúdo
normativo próprio e novo.54
Chega-se a uma opinião clara sobre esta questão quando se atenta em que a própria
norma se aplica ao médico que desrespeita dolosamente critérios de intervenção
estabelecidos no art.º 150.º, n.º 1, apenas se a matéria fática não couber noutro tipo de
crime mais grave. Trata-se do crime de ofensas corporais com dolo de perigo, de que é
sujeito ativo um médico que desrespeita dolosamente regras da ciência médica. Se a
violação das leges artis é de tal modo grave que deixa de ser compatível com a finalidade
de curar, e nessa violação se deteta um dolo de dano, o agente será necessariamente
responsabilizado por outro crime que não o do art.º 150.º, n.º 2, mas, como anteriormente
abordamos, há a hipótese de ser responsabilizado pelo art.º 144.º, que, para lá da dúvida,
permite demonstrar que a aceitação do perigo não envolve necessariamente a confirmação
do dano. Ninguém dirá ao médico, que dolosamente viola as leges artis com fim de curar
o paciente, se não confirma com o perigo.55
(?! Não se percebe a frase…)
52
ibidem. pp.653, 771-774.
53
ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art
150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.
313.
54
Ibidem.313.
55
Neste sentido, BRITO, Tereza Quintela de, apud. MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico
e o Direito Penal (Principais Tipos Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís
Vaz de Camões, 2012. 134 f. Dissertação de Mestrado em Direito.
30
2.2. Analise A Atividade Médica no Exercício das Suas Funções
Após abordada a complexidade do Direito Penal, teremos o ponto de partida que se
baseará, naturalmente, na existência de um ilícito para o qual se comunicam certas
reações, que importam a aplicação estadual de um mal ao autor de um certo facto, por ter
agido como agiu.56
Relativamente à falta de consciência da ilicitude e decisão consciente pelo ilícito,
na própria formulação da primeira das três teses apontadas sobre a culpa da vontade
parece estar logo contida a solução do problema da falta de consciência da ilicitude; pois
de uma solução consciente da vontade pelo ilícito só poderá falar-se quando aquela se
formou e executou no conhecimento de que a realização intencionada se diria contra o
direito. Dirão, talvez, que não fica afastada a possibilidade de a decisão consciente, que
constitui a culpa material, não ter de se referir ao carácter ilícito do facto, mas só ao facto
objetivamente ilícito. Mas se tal possibilidade não é, em definitivo, prejudicada pelo teor
litoral da tese, é-o seguramente pelo sentido fundamental que nela está contido.
Neste sentido, há o conscientemente mau e censurável da vontade que se exprime,
a circunstância de o agente ter querido, com a sua decisão, violar o direito, quando podia
ter querido respeitá-lo. Por conseguinte, toda a culpa supõe no agente a consciência da
ilicitude, e não uma qualquer consciência, pois que só ela permitirá afirmar que o seguinte
se decidiu conscientemente contra o direito, e configurar, deste modo, o elemento
decisivo de toda a culpa da vontade. O desenvolvimento de que esta conceção dos
problemas da ilicitude é passível, quando se analise em maior profundidade o que é a
ilicitude cuja consciência se exige para afirmar a culpa, viria, porém, mostrar, segundo os
seus defensores, que a invocada aporia não subsiste na realidade.
O papel fundamental cabe aqui à ideia de que (ao menos no âmbito do chamado direito
penal de justiça) não é a punibilidade que fundamenta o ilícito material, mas este o valor
ou pôr em perigo bens jurídicos comunitariamente relevantes, e, por conseguinte, a
danosidade social que fundamenta aquela. Daí supor a culpa tão-só que o agente tome
consciência da ilicitude material, da danosidade social e conseguinte dignidade penal do
facto que pratica, e não da proibição legal que a ele está ligada. Tanto pode suceder, aliás,
que detenha a consciência da ilicitude material, sem conhecer a proibição legal ou
56
CORREIA, Eduardo. Direito Criminal. Coimbra: Coimbra, Editora, 1963. p. 20.
31
antijudicidade formal, como inversamente, que conheça esta sem deter aquela. Num caso
como no outro, porém, o agente possui a consciência da ilicitude requerida.
2.3 Analisar a Figura da Ilicitude Como Responsabilização Penal
Em primeiro lugar, o agente conhece a danosidade social do facto, e, portanto, a sua
vontade decide-se conscientemente pelo ilícito material. Em segundo lugar, o
conhecimento da antijudicidade formal já torna claro ao agente que, pelo menos da
perspetiva do direito positivo, ao facto é atribuída danosidade social. Isto só significa que
a consciência da ilicitude requerida pela culpa não exige um reconhecimento pelo agente
do “dever” que a danosidade lhe impõe, ou sequer a sua avaliação como “dever”, mas
basta-se com o seu puro e simples conhecimento, independente da posição do agente
perante ele.
Podemos acrescer uma conceção muito particular acerca das relações entre o
conhecimento do tipo (do tipo de ilícito) e conhecimento do ilícito material ou da
consciência da ilicitude. Uma vez que nos tipos de direito penal de justiça se exprime
completamente, salvo raras exceções, através dos seus elementos constitutivos, a
danosidade social do facto, teremos que o completo conhecimento do tipo (ao qual
pertence também a avaliação social, a compreensão funcional social) traz
inexoravelmente consigo o conhecimento do significado socialmente desvalioso do facto
e do consequente dever de o omitir. Numa palavra, a consciência da ilicitude material.
Por isso, tem de se concluir que, no direito penal de justiça, à parte certas exceções que
se devem fazer desaparecer, o conhecimento da totalidade dos elementos constitutivos do
tipo fornece ao agente a consciência da ilicitude necessária para se poder afirmar ter
havido uma decisão consciente da vontade pelo ilícito e, com ela, culpa material.57
Só
que a proteção segundo a técnica dos bens jurídicos (pessoais) resulta em irredutível
fragmentariedade da proteção penal da pessoa. Isto em contraste com a tutela civilística.58
O contexto normativo atrai consigo observações deixadas à interpretação do julgador.
Como se sabe, muito raramente o direito penal impõe condutas (os crimes de omissão
pura e impura são a exceção), dado que, em regra, trata-se de proibir comportamentos. O
57
DIAS, Jorge de Figueiredo. O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal. 5ª ed,
Coimbra: Coimbra, Editora, 2000. pp. 206-210.
58
ANDRADE, Manuel da Costa. Direito Penal Médico. Coimbra: Coimbra, Editora, 2004.p. 63.
32
(art.º 154.º/3/b do CP) apenas pretende esclarecer que a pessoa (médico ou outra) que
coaja outrém para evitar que este se suicide, ou que cometa qualquer outro facto ilícito,
não comete o crime de coação, mas sem que daqui decorra a obrigação de atuar em tal
sentido. Assim, será uma conduta criminosa aquela do médico que salva a vida do
paciente agindo contra o consentimento expresso deste, sem o devido consentimento, sem
que este seja informado dos aspetos do ato médico considerados relevantes no caso
concreto, ou então, estando o paciente inconsciente, quando haja motivos fundados que
impeçam que se presuma o consentimento do paciente.59
A observância das leges artis corresponde às regras generalizadamente conhecidas
da ciência médica e aos demais e gerais deveres de cuidado do tráfego médico. No
entanto, o n.º 1 não inclui o consentimento do paciente entre os elementos característicos
da intervenção ou tratamento médico-cirúrgico, no sentido de que a exclusão do tipo das
ofensas à integridade física não depende de consentimento. Na mesma ideia, debruça-se
ainda sobre o crime de violação das leges artis (art.º 150.º, n.º 2) e, observando que a
disposição em causa diz respeito a uma conduta em vista das finalidades apontadas no n.º
1, acerca da mesma conclui: pune as intervenções médicas com violação das leges artis
que não seja grave ao ponto de excluir a própria finalidade terapêutica e de impossibilitar
a parcial recondução da conduta do agente a uma intervenção médico-cirúrgica, nos
termos do art.º150º, n.º 1 e que a incriminação do n.º 2 não constituía incriminação que
vem punir os tratamentos médicos que não respeitam as regras da medicina. Casos há de
tratamentos médico-cirúrgicos violadores das leges artis puníveis ao abrigo do art. º143.º
e ss. [quando a “gravidade da violação das regras da medicina” e tornar inviável “qualquer
identificação, ainda que só parcial, da atualização do agente como uma intervenção
médico-cirúrgica”, ou seja, como uma conduta realizada em vista das finalidades
apontadas no n.º 1]. Em termos tais que impunes ficaram apenas as intervenções médicas
com violação dolosa ou negligente das regras da medicina, sem qualquer sequência de
perigo ou de dano, e as intervenções médicas de que resulte um mero perigo de ofensa ou
de dano, e ainda as intervenções de que resulte um mero perigo de ofensa à integridade
física.60
59
DIAS, Jorge de Figueiredo; MONTEIRO, Jorge Sinde. Responsabilidade Médica em Portugal.
Lisboa: in: “Boletim do Ministério da Justiça”, Editora, 1984. pp. 45,112.
60
PEREIRA, Victor de Sá; LAFAYETTE Alexandre. Código Penal Anotado e Comentado. Lisboa: Quid
Iuris, Editora, 2014. pp. 428,429.
33
Diferente posição é de MAIA GONÇALVES que, como nota introdutória, apresenta
o panorama jurídico da figura das intervenções e tratamentos, sendo que os mesmos,
segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrem indicados
e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por uma outra
pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir. O n.º 2 foi introduzido pela Lei
n.º 65/98, de 2 de Setembro. Visou-se, com a introdução desse dispositivo, resolver o caso
da violação das leges artis, cuja submissão ao regime geral da responsabilidade criminal
através das ofensas à integridade física se não afigurava satisfatória. Porque a observância
das leges artis não é configurável como um requisito da restrição típica dos crimes contra
a integridade física, operada, então, por este artigo, dotado de eficácia idêntica à exigência
de finalidade curativa.
Por leges artis deve entender-se o conjunto de regras recomendadas pela ciência e
pela técnica médica e pelos cuidados gerais. Se um médico proceder a uma intervenção
ou a um tratamento com fim curativo, violando as leges artis, passará a ser punido se se
verificar os demais pressupostos do n.º 2, o que não sucedia anteriormente. De notar que
este dispositivo não obsta à aplicação do regime geral sancionatório do homicídio e da
ofensa à integridade física, constituindo apensas um modo de antecipação e reforço da
tutela penal dos bens jurídicos em causa, e só se aplica, subsidiariamente, se a
factualidade não integrar crime mais grave. Há ainda que realçar que a criminalização da
violação das leges artis não é contraditória com a regra da dispensa facultativa da pena
consagrada na alínea a) do n.º 2 do art.º 148.º, nos casos em que do ato médico não resulte
doença ou incapacidade para o trabalho. No art.º 148.º estão em causa hipóteses em que
se requer apenas a violação dos deveres objetivos e subjetivos de cuidado, nos termos
gerais do art.º 15.º, e não uma violação dolosa das leges artis. Haveria ocasiões em que o
regime sancionatório severo poderia coatar a atividade médica e produzir efeitos
perversos para os bens jurídicos em causa, que estão protegidos. 61
Ao longo da evolução da tutela penal, sempre ouve a necessidade da autonomia do
paciente face ao ato médico adotado e inserido numa nova maneira de se ver o problema
da responsabilidade penal médica. Ora, no exercício da medicina estão em causa bens
jurídicos cuja tutela é reclamada pelo direito (“bens essenciais da comunidade”), muitos
61
GONÇALVES, Manuel Lopes Maia. Código Penal Português Anotado e Comentado, 3.ª ed, Coimbra:
Almedina, Editora, 2007. pp.530-532.
34
dos quais com dignidade penal, que podem ser lesados por várias formas. Por exemplo,
no caso de inobservância dos deveres de cuidado impostos pelo caso concreto, na
eutanásia, na ortotanásia, no aborto terapêutico, no dever de assistência ao paciente, no
segredo médico, nas questões experienciais sobre os seres humanos e outros.
Tornar punível o ato médico que atenta contra dignidade do bem jurídico não constitui
nenhum ataque à dignidade do profissional de saúde à sua atividade como profissional.
Como refere FIGUEIREDO DIAS, ao assumir o encargo de tratar um doente, o médico
aceita uma enorme responsabilidade, que advêm, desde logo, da obrigação em que se
constitui de utilizar de forma adequadas todas as medidas terapêuticas de que possa
dispor, isto é, de cumprir escrupulosamente as leges artis que regulam a sua atividade
profissional.62
A intervenção criminal do ato médico é, igualmente, o resultado da produção
dogmática, jurisprudencial e legislativa no que respeita à responsabilidade criminal por
atos médicos. Não querendo com isto dizer que não se considere a existência dos mesmos,
é reflexo do olhar atento a dois lados de uma moeda, porque se para um lado da sociedade
responsabilizar penalmente o ato médico, o que atenta contra um bem jurídico, é
inteiramente aceitável, desejável, para outro não, incluindo profissionais de saúde, atentos
à visão que não deve ser a de um jurista empenhado na promoção e na proteção de bens
jurídicos, mas vendo o direito penal na medicina como uma espécie de persona non grata.
Compreendemos que a admissão da concretização da responsabilidade penal por atos
médicos não será aceite num instante. Para isso seria preciso, por exemplo, a compreensão
da incriminação dos tratamentos médicos arbitrários levando por motivos particulares
várias dificuldades. É que em poucos domínios das relações sociais como neste, o “ético”
andará de mãos dadas com o “legal”, na determinação da responsabilização jurídica. E,
por outro lado, por vezes a responsabilização jurídico-penal do médico constitui um polo
de fricção entre médicos e juristas, de forma particularmente aguda nos nossos tempos e
nos países onde tem merecido mais atenção.63
62
LONEQUE, Domingos Adalberto. A Tutela Da Autonomia Do Paciente Face Ao Ato Médico No
Direito Penal Angolano: [Em Linha]. p.30-34. Coimbra: Faculdade de Coimbra, 2016. [Consult. 02 Out.
2018]. Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42879/1/Adalberto%20Loneque.pdf
63
LONEQUE, Domingos Adalberto. A Tutela Da Autonomia Do Paciente Face Ao Ato Médico No
Direito Penal Angolano: [Em Linha]. pp.32-34. Coimbra: Faculdade de Coimbra, 2016. [Consult. 02 Out.
2018]. Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42879/1/Adalberto%20Loneque.pdf
35
3.4 A Relevância Penal no artigo 150.º
O Código Penal Português, (intitulado CP), compreende a atividade médica um espaço
essencial na distinção da lesão corporal. Nos termos do art.º 150.º no seu n.º 1 refere que
“as intervenções e tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da
experiência da medicina, se mostrem indicados e forem levados a cabo, de acordo com
as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção
de prevenir, diagnosticar, deliberar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga
corporal, ou perturbação mental, não se considerem ofensa à integridade física.”
O regime pautado no n.º 1 conduz-nos, resumidamente, na proclamação da
atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na direção dos crimes de ofensas à
integridade e de homicídio, e, em segundo lugar, à punição dos tratamentos arbitrários
como um autónomo e específico crime contra a liberdade.64
Recorremos a FERNANDO
SILVA, que indica que a norma das intervenções pretende que sejam empreendidas de
determinada forma, mediante certos requisitos, “não se considerem ofensas a integridade
física”, sendo este o elemento que permite concluir pela exclusão do tipo, pressupondo o
não preenchimento cumulativo de certos requisitos da não consideração do facto como
típico.65
No entanto, e segundo a “jurisprudência alemã, toda a intervenção médico-
cirúrgica preenche a factualidade típica do crime de ofensas corporais, só podendo a
respetiva ilicitude ser excluída mediante consentimento”.66
E é assim tanto nos casos em
que a intervenção tem sucesso como nos casos em que ela falha: porque não cura, antes
agrava a doença ou mesmo porque provoca a morte do paciente. Para a exclusão das
intervenções médico-cirúrgicas da factualidade típica das ofensas corporais é igualmente
irrelevante a existência, ou não, de consentimento.67
No direito penal português não
64
ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art
150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. p.
303.
65
SILVA, Fernando. O Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Lisboa: Quid Iuris, Editora,
2011. p.269. apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao
Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra,
Editora, 1999. p.303
66
ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Consentimento e Acordo em Direito Penal, art 150º
parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.424
67
Posição contrária segundo a jurisprudência alemã, que assume veemente o preenchimento da
factualidade típica do crime de ofensas corporais podendo só e unicamente ser excluída pelo consentimento.
E por se considerar insuficiente e contrária à lei portuguesa que, não dispondo de um preceito homológico
ao art.º 150.º do CP português, reconduzida para uma aplicação mais favorável ao caos concreto. Com isso,
36
encontraria, por isso, arrimo uma compreensão das coisas como a que vem sendo
sistematicamente sufragada pela jurisprudência alemã,68
que subsume na factualidade
típica das ofensas corporais todas as intervenções médico-cirúrgicas: em termos tais que
só o consentimento pode afastar a pertinente ilicitude penal. Apesar de todas as
debilidades e hesitações, insistentemente apontadas pela doutrina, o entendimento da
jurisprudência sempre pode louvar-se de uma irrecusável vantagem político-criminal, no
contexto do direito alemão. Não dispondo o direito positivo alemão de uma incriminação
autónoma do tratamento médico-arbitrário, a punição a título de ofensas corporais da
intervenção não consentida resulta na única via, embora de assegurar tutela penal à
liberdade e autodeterminação do paciente.69
CAPÍTULO III - PARADIGMA SANCIONATÓRIO APLICADO AO DIREITO
PENAL ANGOLANO
3.1 Atipicidade das Intervenções e Tratamentos Médico-Cirúrgicos na Direção das
Ofensas Corporais
A atipicidade das intervenções médicas aplicadas ao sentido das ofensas corporais é,
assim, aclamada pelo n.º 1 do art.º 155.º do Anteprojeto do Código Penal Angolano, nos
termos do qual se refere que “não se considera ofensa à integridade física a intervenção
e o tratamento realizados por um médico ou por qualquer pessoa autorizada, de acordo
com os conhecimentos e práticas da medicina, com a intenção de prevenir, diagnosticar,
debelar ou diminuir doença, sofrimento, lesão, fadiga corporal ou perturbação
mental”.70
Um modelo de conspeção puramente inspirado no de COSTA ANDRADE,
que distingue e contrapõe dois distintos e autómatos bens jurídicos: a integridade física
ver ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art
150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.305.
68
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-04-2011, Processo: 456/08.3GAMMV, Relator:
Henriques Gaspar.
69
ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art
150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.306.
70
LONEQUE, Domingos Adalberto. A Tutela Da Autonomia Do Paciente Face Ao Ato Médico No
Direito Penal Angolano: [Em Linha]. pp.75-76. Coimbra: Faculdade de Coimbra, 2016. [Consult. 03 Out.
2018]. Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42879/1/Adalberto%20Loneque.pdf
37
(saúde e a vida), por um lado, e a liberdade ou a autodeterminação pessoal, por outro lado.
Tal como já vimos suceder em relação ao regime jurídico-criminal português, tanto aqui
o ato médico apenas será atípico em relação às ofensas corporais se obedecer a quatro
requisitos: dois subjetivos e os restantes objetivos. Quanto aos requisitos subjetivos para
aplicação da norma, temos assim, por um lado, a qualificação específica do agente, isto
é, o agente terá de ser um médico ou qualquer pessoa autorizada. Por outro lado, a
“intenção terapêutica”, que compreende tanto o diagnóstico como a prevenção. No plano
dos elementos objetivos, destacam-se a indicação médica, por um lado, e, por outro lado,
a realização segundo as leges artis.71
É igualmente importante, ainda quanto ao respeito das legis artis, e abraçando a
posição de MANUEL LEAL-HENRIQUES e MANUEL SIMAS SANTOS, a
imposição de que o agente execute os cuidados médicos com a técnica mais apurada,
isto é, segundo os processos e as regras oferecidas pela ciência médica, portanto, com
a perícia devida. Há uma necessidade de compreensão do termo leges artis no sentido
de perfeição técnica do tratamento ou intervenção, e também da sua oportunidade e
conveniência no caso concreto e idoneidade dos meios utilizados.72
Caso haja violação das leges artis e, em consequência, se criar perigo para a
vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou saúde, a ação, nesse momento, já será
censurável, consoante prescreve o n.º 2, ou com pena aí cominada ou com uma mais
grave que porventura conste de outra disposição. Há a exigibilidade de que os atos
médicos em causa tenham sido realizados por quem possua habilitação legal bastante,
como seja um médico, um enfermeiro, etc. Ora, “a habilitação de que se fala
pressupõe não apenas habilitação técnica bastante como também autorização de
exercício do organismo profissional competente (repare-se na expressão legal:
levados a cabo... por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada).”73
71
ibidem, p.76.
72
HENRIQUES, Manuel Leal; Santos, Manuel Simas. Código Penal Anotado. 3ª ed, Lisboa: Rei dos
Livros, Editora, 2000. p.288.
73
ibidem, p. 288. Da concatenação da situação predisposta anteriormente, em que abordamos a importância
das pessoas que agem segundo as leges artis e a violação das mesmas, é importante salientar a posição de
ANDRADE, Manuel da Costa. In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial
Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999 p. 303. Com base na tese
de BERTEL, em que se reporta na importância, primeiramente, na definição de tratamento, no âmbito das
operações cosméticas, considerando a aplicação a um procedimento levado a cabo em conformidade com
a lei os processos naturalistas, mesmo quando a ciência médica os considera sem valor. Na mesma linha de
KIENAPFE, em que mesmo um tratamento realizado por um curandeiro ou por um leigo cai na alçada do
tema.
38
Assim, nesses casos, as intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos escapam à
censura da lei, por não constituírem ilícito criminal.
A finalidade terapêutica que se reporta a uma intenção curativa onde o móbil
terapêutico tem que ser preponderante, e não mera consequência acessória de uma
conduta primordialmente orientada à experimentação”, é defendida por TERESA
QUINTELA DE BRITO.74
Mas há, entretanto, uma questão a pôr aqui, que será a de saber se a autorização legal
é, ou não, um requisito da delimitação do tipo. RUI PEREIRA defende que não é, em
toda a sua extensão: se alguém levar a cabo a intervenção ou tratamento sem a
necessária autorização legal, mas com fim curativo, o seu comportamento não será
típico desde que o fim prosseguido haja sido alcançado. Nesta hipótese, o agente terá
provocado uma diminuição do risco e a sua conduta será atípica. O que não obsta,
evidentemente, a que seja punível pela comissão do crime de usurpação de funções,
previsto no n.º 2 do art.º 358.º do CP. Ficam fora destas situações, sendo ilícitos os
atos praticados, ficando sujeitos às penalidades previstas na lei, e são criminalmente
puníveis os atos que:
-Não visem fins curativos ou terapêuticos (como sucede com as intervenções
exclusivamente estéticas; para estudo; investigação ou experiência; colheita, em
pessoa viva, de tecidos ou órgãos para transplantes, etc);
-Invadam campos ainda não dominados pela ciência (intervenções de êxito
não assegurado, por ainda não testadas);
-Desrespeitem as leges artis (como sucede quando se não utiliza a técnica
mais perfeita, estando ela ao alcance do utilizador);
-Sejam executadas por pessoas não habilitadas (por quem não seja
profissional de saúde devidamente credenciado).75
Acompanhando a posição de
TERESA QUINTELA DE BRITO, que aborda a uma expressa afirmação de
atipicidade e que deve notar-se que as coisas passam-se assim, tanto nos casos em
que a intervenção tem sucesso, como nos casos em que ela falha (?! Não se
compreende o sentido…). Como ENGISCH refere, não podem acompanhar-se as
“representações naturais” segundo as quais “um tratamento arbitrário com tão
gravosas consequências não deve ficar imune ao odium das ofensas corporais ou da
74
PEREIRA, Victor de Sá; LAFAYETTE Alexandre. Código Penal Anotado Lisboa: Quid Iuris, Editora,
2014. p. 429.
75
PEREIRA, Victor de Sá; LAFAYETTE Alexandre. Código Penal Anotado. p. 429.
39
morte”, seguro como a valoração da intervenção médica terá de fazer-se ex ante, não
podemos ficar dependentes da álea dos resultados.76
O teor literal do regime aqui em causa distingue-se ligeiramente do conceito
jurídico-penal de ato médico constante do Código Penal português. Sobretudo no que
respeita ao elemento subjetivo “qualificação específica do agente”. Isto é, enquanto
o Código Penal português (artigo 150.o) estabelece que o agente deve ser médico ou
pessoa legalmente autorizada, o artigo 155.o do ACPa diz-nos que o agente deverá
ser médico ou qualquer pessoa autorizada. Coloca-se a questão de saber quem deverá
autorizar o agente a praticar um ato médico? A lei? Também o costume? Um
regulamento administrativo? Questões que carecem de reposta do legislador. Ao ter
como um dos seus elementos a indicação médica, o artigo 155.o do ACPa revela-se
de grande importância para a compreensão prática, no contexto angolano, do regime
relativo às intervenções médicas.
Ao ter como um dos elementos a indicação médica, o art.º 155.º do ACPa, reveste-se
de grande importância para a compreensão prática, no contexto angolano, do regime
relativo às intervenções médicas. A medicina não institucionalizada tem, assim, forte
expressão na realidade social angolana. Os pacientes procuram por diversas vezes a
medicina alternativa. O Anteprojeto não proíbe estas práticas, apenas nos diz que o
mesmo não abrange e não beneficia o aludido preceito do estatuto especial. “Por isso,
só por isso”, serão tidas como ofensas corporais, justificáveis pelo consentimento.
Concordamos com a posição de ADALBERTO LONEQUE, quando é abordada
a solução que também não nos parece ser a mais acertada, visto que o legislador peca
por defeito ao não atribuir um estatuto especial aos tratamentos efetuados por
terapeutas tradicionais (com as devidas adaptações). É demasiado ampla a
denominada medicina alternativa na sociedade angolana.77
A mesma é solicitada por
uma parte doravante significativa da população. A verdade é que o enquadramento
76
Ibidem, p. 430.
77
Algumas posições contrárias que especulam a qualidade da necessidade de haver um estatuto próprio e
idóneo, pronto para assumir a responsabilidade pela não adaptação por parte do legislador angolano e, por
outro lado, se poderia ser incluído por via de um despacho, ou ainda, se inserido no Código Deontológico
dos Médicos. CATUYO, Bento Chimboto. Responsabilidade Penal nos Ordenamentos Português e
Angolano: Intervenções e Tratamentos-Médico Cirúrgicos: [Em Linha]. pp.57-61. Coimbra:
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2016. [Consult. 16 Out. 2018]. Disponível em
https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/35130
40
legal da lei não se adapta ao contexto sociocultural do seu povo, o que, por segurança,
devia acontecer, para eficácia a assimilação cultural.
Em concordância com a posição anteriormente apresentada, o legislador deveria
adaptar o presente contexto à realidade angolana, de modo a incluir determinados
atos efetuados na medicina alternativa (medicina tradicional). Prática enraizada pelo
costume, que é fortemente presente em Angola, e que não deve, assim, ser
negligenciada pelo legislador constituinte. Portanto, o preceito deve ser constituído
no sentido de incluir determinados atos efetuados na medicina tradicional.78
O
legislador devia, a nosso ver, adaptar o presente conceito à realidade angolana.
Uma solução que deve ser importada pelo plano formal, não devendo estar
dependente da subjetividade do intérprete e do aplicador do direito.79
3.2 Intervenções Médico-Cirúrgicas em Benefício da Saúde Pública
A centralização do homem no pensamento e na decisão política, mesmo que imbuída de
absolutismo ou de totalitarismo, é uma consequência própria dos Descobrimentos, feito
igualável à chegada do homem à lua. A razão humana ultrapassa a barreira do aceitável
como legítimo e como contínuo à cortina da subjugação a vetores de pensamento
esmagado pela ideia de que o verificacionismo é o caminho a percorrer. Contudo,
dolorosamente sentimos que, face à apologia de uma demanda securitária e de um direito
bélico, o “eu” escraviza-se ou esvazia-se de direitos em prol da máxima segurança,
baseada na convicção de que a restrição de direitos, liberdades e garantias é a estrada
adequada e exigível na construção de um pilar de prevenção criminal.
Sabendo de antemão dos sobressaltos inerentes às plataformas cortadas nos morros,
de espaço a espaço, para que formem degraus, causados pela tripulação dos que lutam e
acreditam que é na liberdade que se realiza o Homem, e que é certamente o mais alto
78
A medicina tradicional é, na definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), “a soma de
conhecimentos, habilidades e práticas baseadas nas teorias, crenças e experiências indígenas de diferentes
culturas, que são usados para manter a saúde, bem como para prevenir, diagnosticar, melhorar ou tratar as
doenças físicas e mentais”.
79
Apud LONEQUE, Domingos Adalberto. A Tutela Da Autonomia Do Paciente Face Ao Ato Médico
No Direito Penal Angolano: [Em Linha]. pp.76-77. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade
Coimbra, 2016. [Consult. 19 Out. 2018]. Disponível em
https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42879/1/Adalberto%20Loneque.pdf
41
valor da justiça humana.80
Ora, os caminhos da verdade trilham-se e marcam-se pela
incessante busca da realidade perfeita construída em liberdade. A investigação corre atrás
do verídico, muitas vezes intangível pela sua complexidade ou, quantas vezes, pela sua
tão plausível simplicidade. Muitos fatos são, apenas, acompanhados de meios e técnicas
que transformam a investigação em um motor capaz de promover finalidades do processo
penal: descoberta da verdade e realização da justiça, defesa dos direitos fundamentais do
cidadão no alcance da paz e a concordância prática.81
Ao Estado compete, desta forma,
institucionalizar uma força coletiva organizada jurídica e funcionalmente, que tenha por
fim realizar os interesses gerais e os princípios socialmente aceites, coadjuvada por meios
de ação coerciva capazes de resolver o maior número de conflitos.
A segurança, nessa perspetiva, não pode ser encarada unicamente como coação
jurídica material, mas, primordialmente, como uma garantia de exercício seguro e
tranquilo de direitos, quer na sua dimensão negativa, que diz respeito ao direito subjetivo,
à segurança que comporta a defesa face às agressões dos poderes públicos, quer na sua
dimensão positiva: direito à proteção exercida pelos poderes públicos contra quaisquer
agressores.82
Para uma realidade em que as conceções (de polícia), no ensinamento de
MARCELO CAETANO, cingem-se aos destinatários de preceitos legais: se normativos,
estávamos perante agentes administrativos; se reguladores de condutas individuais, os
órgãos e serviços do estado apresentam-se como garantes da eficácia do direito, da sanção
da violação da conduta gerando uma contraordenação, e, como instrumento, receber a
denúncia de um crime, ajudar a vítima a dirigir-se ao hospital, levantar o auto da
contraordenação. (?! Incompreensível o que se pretende dizer…)
Neste sentido, o saudoso Mestre concebia a polícia como “modo de atuar da
autoridade administrativa, que consiste em intervir no exercício das atividades
suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que se produzam,
ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram prevenir.83
Prosseguindo
este raciocínio, e tendo sido a segurança consagrada como direito fundamental, os
80
VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria Geral do Direito Policial Tomo I. Coimbra: Almedina,
Editora, 2005. pp. 206-207.
81
Ibidem. 221.
82
VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Dos Órgãos de Polícia Criminal. Lisboa: Almedina, Editora,
2004. p.78.
83
VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria Geral do Direito Tomo I. Coimbra: Almedina, Editora,
2005. Op. Cit., p.16. a caracterização contextual a que se aplica aqui é de tal forma adversa aos meios
concecionais de polícia para a segurança, de um modo geral, a ordem e a tranquilidade pública.
42
Digníssimos MARCELO CAETANO e DIOGO FREITAS DO AMARAL ensinam-nos
que a segurança é uma das necessidades cuja satisfação regular e contínua deve ser
provida pela atividade típica dos organismos e indivíduos da Administração Pública, nos
termos estabelecidos pela legislação aplicável, devendo aqueles obter para o efeito os
recursos mais adequados e utilizar as formas mais convenientes, quer sob direção ou
fiscalização do poder político, quer sob o controle dos tribunais. De importante integração
é a posição defendida por MARCELO REBELO DE SOUSA, quando refere que “a
função jurisdicional é aquela que é exercida através de órgãos entre si independentes,
colocados numa posição de imparcialidade e de juridicidade que recorre ou suscita”.84
Como tarefa fundamental do Estado, a segurança impõe não só a organização de uma
força capaz de servir os interesses vitais da comunidade política, a garantia da estabilidade
dos bens, mas também a durabilidade credível das normas e a irrevogabilidade das
decisões do poder que respeitem interesses justos e comuns.85
Na esteia dos ilustres
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, que referem a conceção do estado
enquanto Estado constitucional, submetido à Constituição e comprometido na realização
dos objetivos constitucionais. E que o estado está constitucionalmente vinculado quanto
aos meios e quanto aos fins. Nem o Estado mínimo, ou subsidiário, dado o leque de
incumbências aqui enunciadas, nem Estado máximo, dado o princípio da liberdade e de
separação entre (…?!) e a sociedade que ao modelo constitucional, muito menos o Estado
discricionário, dado o elenco de tarefas constitucionalmente enunciadas, que não está na
liberdade de executar ou deixar de executar por parte dos poderes públicos, sem prejuízo
da margem de conformação na concretização das mesmas.86
De proibição defeito87
e
proibição de excesso que comporta três subprincípios autónomos que são os subprincípios
da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
No que concerne ao plano da interdisciplinaridade com o poder judicial, alastra-se o
exercício daquele para os seus devidos titulares, manifestando-se, assim, a sua verificação
em vários planos. No âmbito civil, participando em fatos que lhe são comunicados, assim
84
CAETANO, Marcelo; AMARAL, Diogo Feitas do, Sousa, Marcelo Rebelo de. apud, MIRANDA, Jorge;
MEDEIROS, Rui. CONSTITUIÇÃO, da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra:
Coimbra, Editora, 2007.p. 19
85
VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Dos Órgãos de Polícia Criminal. Lisboa: Almedina, Editora,
2004. p.79.
86
CONOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa, 4ª ed. Coimbra;
Coimbra, Editora, 2014. pp. 275-276.
87
Acórdão do TC, n.º 75/2010
43
como as diligências processuais, como apreensões de bens ordenadas pelo tribunal,
acompanhamento nos arrestos e nas penhoras judiciais. No âmbito administrativo, prestar
informações a legalmente interessados, encerramento de espetáculos e de uma via ao
trânsito e o levantamento do auto de notícia por contraordenação. No âmbito criminal, na
prossecução das funções da defesa da legalidade, previne e reprime o crime facto humano
ilícito, típico e culposo, cuja realização da representação parte pelo Direito Penal
substantivo, que protege bens jurídicos fundamentais.88
Depois desta viagem exaustiva,
achamos útil dizer que na formulação exata da tese apresentada anteriormente culmina,
com efusiva probabilidade, na descoberta de que quem comete delitos provoca no seio da
comunidade, principalmente no âmago dos criminosos, um sentimento de receio, um
sentimento de insegurança quanto aos atos delituosos que pretendem efetuar, porque
sabem que a máquina investigadora é eficaz na sua atuação e eficiente na descoberta dos
autores dos crimes, prosseguindo-se, assim, a prevenção geral negativa e positiva e a
prevenção especial do direito punitivo.
3.3 Crítica ao Direito Penal Angolano: lacuna da proteção da liberdade pessoal face
ao ato médico
Sem prejuízo da identidade jurídico-cultural do Direito Penal Angolano, este é,
certamente, influenciado pela experiência jurídica portuguesa e alemã. A racionalidade
jurídica construída por estas realidades pode, e bem, ajudar-nos na construção de um novo
paradigma. Há a pretensão para tutelar a autonomia do paciente no tipo das ofensas
corporais, sempre considerando que esta incriminação visa tutelar dois bens jurídicos (na
medida em que a integridade física já abrange a autonomia pessoal do doente).
Há, como pode ser notado, uma dissemelhança de bens jurídicos, e que, por isso,
reclamam por uma tutela autónoma. E, por outro lado, encontramos a integridade física
protegida pelo tipo das ofensas corporais, e por outro lado ainda, a liberdade de dispor do
corpo e da própria vida, que não é tutelada pela lei pena vigente. Não podemos, por isso,
seguir o pensamento de KRAUSS quando se considera que o bem jurídico tutelado pelas
ofensas corporais já abrange a liberdade do paciente, não sendo necessário tutelar
autonomamente tal bem jurídico. De igual modo, a recusa deliberada do pensamento de
HORN, quando intercede que o tipo das ofensas corporais tutela dois bens jurídicos.
88
VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria Geral do Direito Policial Tomo I. Coimbra: Almedina,
Editora, 2005. pp. 71-72.
44
Segundo COSTA ANDRADE, o pensamento proposto por KRAUSS “revela duma
interpretação errónea, ao nosso ver, no que diz respeito à evolução dogmática irrecusável,
e cada vez maior peso dos valores da liberdade e da autonomia na direção da integridade
física”.89
Para COSTA ANDRADE, “esta compreensão de integridade física, enriquecida
com a dimensão da autonomia pessoal, tem, porém, como reflexo imediato, a redução do
alcance jurídico-penal desta data. E passa a relevar apenas na medida consentida pela
tutela da integridade física. A integridade física e a autonomia pessoal, configurando-se
a reciprocidade no âmbito de relevância jurídico-penal, tendo, em qualquer caso, os
limites da área da tutela da incriminação das ofensas corporais. A critica é extensiva ao
pensamento apresentado por HORN. Segundo COSTA ANDRADE, “a relativa
solvabilidade política criminal da doutrina de HORN tem como contrapartida o
agravamento dos custos dogmático-jurídicos. Desde logo, ela tem de suportar o lastro da
ilegitimidade constitucional, nomeadamente na direção do princípio da legalidade: só é
possível elevado praeter ou sine lege, a liberdade de dispor do próprio corpo à
constelação dos bens jurídicos diretamente protegidos pelo direito penal positivo.
O intérprete e o aplicador da normatividade jurídico-criminal angolana, preocupado
em tutelar a autonomia pessoal do paciente, não deverá, a nosso ver, seguir a linha
hermenêutica advogada pela jurisprudência alemã. Caso contrário, estaria em contradição
para além das exigências resultantes dos ensinamentos de COSTA ANDRADE. Segundo
este autor, os resultados avançados pela jurisprudência alemã apenas são alcançados “à
custa do alargamento da área da tutela da incriminação das ofensas corporais e da
qualificação indiscriminada como atentado à integridade física e à saúde de todas as
intervenções médicas com dignidade penal. Um caminho minado de escolhas, na medida
em que colide com o significado do ato médico e com a autorrepresentação dos próprios
médicos.90
A posição resulta da sistematização do Código Penal. Nos crimes reservados
aos “crimes contra as pessoas”, o código penal tutela, no Capítulo I, “a liberdade das
pessoas”. Ou seja, legislador para a bem jurídica liberdade das pessoas e integridade
física. São bens jurídicos tutelados em capítulos destintos. Porém, apesar de reconhecer
e titular a liberdade das pessoas, não encontramos no respetivo capítulo qualquer
89
HORN; KRAUSS, apud. LONEQUE, Domingos Adalberto. A Tutela Da Autonomia Do Paciente
Face Ao Ato Médico No Direito Penal Angolano: [Em Linha]. pp.72-73. Coimbra: Faculdade de Direito
da Universidade Coimbra, 2016. [Consult. 19 Out. 2018]. Disponível em
https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42879/1/Adalberto%20Loneque.pdf apud ANDRADE,
Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal. p. 432
90
ibidem. pp.73-74.
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  • 1. UNIVERSIDADE AUTÓNOMA DE LISBOA LUÍS VAZ DE CAMÕES DEPARTAMENTO DE DIREITO MESTRADO EM CIÊNCIAS JURÍDICO-CRIMINAIS INTERVENÇÕES E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS DO ARTIGO 150.º DO CÓDIGO PENAL PORTUGUÊS, NUMA VISÃO EQUIPARADA AO ANTEPROJETO DE CÓDIGO PENAL ANGOLANO. Dissertação para obtenção de Grau de Mestre em Direito, Especialidade em Ciências Jurídico-Criminais Autor: Kaipu Osvaldo de Boavida Orientador: Prof. Doutor Fernando José Silva Maio, 2018 Lisboa
  • 2. 2 UNIVERSIDADE AUTÓNOMA DE LISBOA DEPARTAMENTO DE DIREITO MESTRADO EM DIREITO Dissertação apresentada à Universidade Autónoma de Lisboa para obtenção do grau de Mestre em Direito na Vertente de Ciências Jurídico-Criminais, elaborada sob a Orientação do Prof. Doutor Fernando José Silva. Autor: Kaipu Osvaldo de Boavida Orientador: Prof. Doutor Fernando José Silva Maio, 2018 Lisboa
  • 3. 3 DEDICATÓRIA À minha Irmã, que apesar de já não se encontrar entre nós, é a ela que particularmente dedico este esforço que tem vindo a ser feito. Aos meus Pais, irmãos e amigos, que sempre me apoiaram nos momentos mais turbulentos, com incentivos, correções e palavras de encorajamento.
  • 4. 4 AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Prof. Doutor Fernando José Silva, que, dentro da sua disponibilidade, sempre me encaminhou para que seguisse o caminho mais acertado. À Biblioteca da Universidade Autónoma de Lisboa, à Biblioteca da Universidade Lusófona, à Biblioteca da Universidade Nova, à Biblioteca Nacional e ao Espaço J, que me permitiram o acesso à informação necessária, sem nunca mostrar qualquer barreira.
  • 5. 5 RESUMO O presente estudo é dedicado a análise crítico-reflexiva das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos do art.º 150.º do C.P. Trata-se de um exame comparativo na perspetiva do direito penal angolano. O estudo vincula-se, em primeiro lugar, à ideia de legitimidade e dignidade penal dos tratamentos médico-cirúrgicos das leges artis (leis do ofício), sendo que a intervenção médica está relacionada com critérios que definem o seu modus operandi. Isso quer dizer que a intervenção expressa de uma pessoa que não esteja a atuar de acordo com as leges artis, embora revelando aptidões, não pode ser responsabilizada por via da inexistência do nexo de casualidade, atuando de forma a diminuir o risco? Em segundo lugar, perceber se podemos, então, discutir sobre as causas de exclusão da ilicitude para se justificar a atuação do agente. É um caminho longo, com o intuito de perceber em que condições podem ser aplicadas, e se vão de acordo com a aplicação do direito penal angolano. Estas situações são conhecidas, nomeadamente, pelo Anteprojeto do Código Penal vigente em Angola. Em determinadas situações, o sistema está fragilizado e cada vez mais precário face à atuação daqueles a quem eu chamo de “mediadores fantasmas sem carteira profissional”, que, após terem desistido da sua formação académica ou sem qualquer ligação à medicina, tendem a prestar auxílio a pessoas, violando as regras das leges artis. Encontramos a responsabilidade penal na criação de postos médicos nos seus domicílios, bem como pelas práticas de aborto, aumentando o índice de mortalidade, que tem subido exponencialmente. Importa melhorar o sistema de saúde e punir aqueles que, por usura, se aproveitam do estado de necessidade de outras pessoas para a prática de atos ilícitos. No que concerne às intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, o tema é, ainda hoje, alvo de alguma discussão no seio da doutrina, e, inclusive, alvo de interpretações divergentes na jurisprudência, até à data. Cumpre-nos aqui, neste nosso modesto trabalho, mostrar as várias correntes doutrinárias e jurisprudenciais e apresentar algumas soluções, para que sirvam, de certa forma, de objeto de estudo futuro para os pensadores do direito penal. Palavras-chave: Intervenções, tratamentos médico-cirúrgicos, bem jurídico, leges artis.
  • 6. 6 ABSTRACT The present study is dedicated to the critical-reflexive analysis of interventions and medical-surgical treatments art. º 150.º of C.P. This is a comparative examination from the perspective of Angolan criminal law. The study is related first and foremost to the idea of legitimacy and criminal dignity of medical-surgical treatments in which the leges artis (laws of the trade), and medical intervention is related to criteria that define its modus operandi. Does this mean that the express intervention of a person who is not acting in accordance with the laws of artistry, while revealing skills, cannot be held responsible for the inexistence of the causal link acting in a way that reduces risk? Secondly, to understand if we can, then, discuss the causes of exclusion of illegality to justify the agent's performance. It is a long road in order to understand in what conditions can be applied and if they go according to the application of Angolan criminal law. But known, in particular, by the Preliminary Draft Penal Code in force in Angola. In certain situations, the system is fragile and increasingly precarious in the face of the activities of those who I call "ghost mediators without a professional license" and have given up their academic training or any connection to medicine tend to assist people in violation of the rules of leges artis. We find the criminal responsibility in the creation of medical posts in their homes and the practices of abortion practiced and increased the mortality rate that has risen exponentially, on the one hand improve the health system and punish those who by usury take advantage of the state of necessity other people for the practice of illicit acts. With regard to the topic of interventions and medical-surgical treatments, this subject is still the subject of some discussion within the doctrine and even the subject of divergent interpretations in the jurisprudence up to the present date. our modest work shows the various doctrinal and jurisprudential currents and present some solutions so that they serve, in a certain way, of object of future study for the thinkers of the criminal law. Keywords: Interventions, medical-surgical treatments, legal, leges artis.
  • 7. 7 Índice DEDICATÓRIA............................................................................................................... 3 AGRADECIMENTOS..................................................................................................... 4 RESUMO ......................................................................................................................... 5 ABSTRACT ..................................................................................................................... 6 LISTA DE ABREVIATURAS......................................................................................... 9 INTRODUÇÃO............................................................... Erro! Marcador não definido. Metodologia..................................................................... Erro! Marcador não definido. CAPÍTULO I - INTERVENÇÕES E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS ......................................................................................... Erro! Marcador não definido. 1.1 Enquadramento Histórico do artigo 150.º Intervenções e Tratamentos Médico- Cirúrgicos..................................................................... Erro! Marcador não definido. 1.2 Uma Primeira Abordagem do Enquadramento dos Tratamentos Médico-Cirúrgicos ..................................................................................... Erro! Marcador não definido. 1.3 Regulação e Salvaguarda da Prática Ilícita do Ato MédicoErro! Marcador não definido. 1.4 O Bem Jurídico Tutelado....................................... Erro! Marcador não definido. 1.5 A Qualificação do Agente...................................... Erro! Marcador não definido. 1.6 Finalidade Terapêutica........................................... Erro! Marcador não definido. 1.7 Indicação Médica................................................... Erro! Marcador não definido. 1.8 Observância das Leges Artis.................................. Erro! Marcador não definido. 1.9 O Tipo Objetivo e Subjetivo do Ilícito .................. Erro! Marcador não definido. CAPÍTULO II – A AUTONOMIA DO DIREITO PENAL E A INFLUÊNCIA NOS DEMAIS RAMOS DO DIREITO................................... Erro! Marcador não definido. 2.1 A Implicação da Intervenção dos Tratamentos Médico-Cirúrgicos Violando as Leges Artis ................................................................... Erro! Marcador não definido. 2.2. Análise A Atividade Médica no Exercício das Suas FunçõesErro! Marcador não definido. 2.3 Analisar a Figura da Ilicitude Como Responsabilização PenalErro! Marcador não definido. 2.4 A Relevância Penal no artigo 150.º ....................... Erro! Marcador não definido. CAPÍTULO III - PARADIGMA SANCIONATÓRIO APLICADO AO DIREITO PENAL ANGOLANO..................................................... Erro! Marcador não definido. 3.1 Atipicidade das Intervenções e Tratamentos Médico-Cirúrgicos na Direção das Ofensas Corporais........................................................ Erro! Marcador não definido. 3.2 Intervenções Médico-Cirúrgicas em Benefício da Saúde PúblicaErro! Marcador não definido. 3.3 Crítica ao Direito Penal Angolano: Lacuna da Proteção da Liberdade Pessoal Face ao Ato Médico ............................................................. Erro! Marcador não definido.
  • 8. 8 CAPÍTULO IV - A PROBLEMÁTICA DO EXERCÍCIO DOS ATOS TERAPÊUTICOS. POSSÍVEIS SOLUÇÕES................................................................46 CONCLUSÃO................................................................. Erro! Marcador não definido. BIBLIOGRAFIA............................................................. Erro! Marcador não definido. FONTES DOCUMENTAIS............................................ Erro! Marcador não definido.
  • 10. 10 ART./ARTS - Artigo/Artigo C.P - Código Penal C.R.A - Constituição da República de Angola C.P.P - Código de Processo Penal Crf - Conforme C.R.P - Constituição da República Portuguesa D.L – Decreto-Lei D.R - Diário da República P. e P. - Previsto e Punido ACPA - Anteprojeto do Código Penal de Angola INTRODUÇÃO O presente estudo tem como objetivo analisar o enquadramento jurídico-penal das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos. A escolha deste tema surgiu das
  • 11. 11 indagações suscitadas pelas aulas de Direito Penal, principalmente quando nos deparamos com questões referentes adversas, que possam gerar entendimentos doutrinários diversos. A discussão da presente temática convoca variadíssimas questões, todas elas merecedoras de respostas dogmáticas e normativas. Por isso, não nos é possível analisar todos os aspetos jurídico-penalmente relevantes respeitantes às intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos do art.º 150.º, n.º 2 do Código Penal português numa visão equiparada ao Anteprojeto do Código Penal Angolano. Ocupar-nos-emos em saber: se a prática de atos terapêuticos (atos curativos) levados a cabo por um não médico encontra tutela no direito penal angolano. Isto é, saber se deve ser (ou é) tutelada no tipo legal das ofensas à integridade física, ou se, pelo contrário, estamos diante de uma lacuna de tutela desse bem jurídico-penal? Tendo presente que aquele tipo legal visa tutelar outro bem jurídico, e não o ato terapêutico praticado por leigo. Se admitirmos a ausência de proteção do presente bem jurídico-penal, qual deverá ser o caminho a seguir? Interpretar extensivamente o tipo legal das ofensas à integridade física, de modo a incluir nele o exercício ilegal da atividade médica? Ou propor uma nova incriminação que venha dar a necessária tutela a quem pratique o exercício ilegal da medicina? Quando olhamos para a situação angolana, o interesse é ainda maior, porque nos deparamos com questões adversas, onde existem intervenções e tratamentos médico- cirúrgicos que não seguem os trâmites da lei. Não pretendemos apresentar soluções acabadas e definitivas. Será, sim, uma abordagem que pretende trazer uma análise passando pelas mais variadas posições doutrinárias e jurisprudenciais, no sentido de apontar algumas questões mais relevantes e apontar algumas soluções, dando com isto um modesto contributo no âmbito do Direito Penal. Como objetivo geral, pretendemos saber se a prática de atos terapêuticos levados a cabo por um não médico encontra tutela no direito penal angolano. Por outro lado, como objetivos específicos iremos averiguar o exercício ilegal da atividade médica, e se haverá necessidade de se criar um novo preceito legal, caso não se enquadre nos crimes existentes.
  • 12. 12 A presente dissertação encontra-se dividida em três capítulos. O primeiro, aborda a questão histórica do tema, o bem jurídico a ser tutelado quando se trata de intervenções médico-cirúrgicas. O segundo capítulo, refere-se à violação das leges artis, conhecidas como as ‘leis do ofício’. E por fim, no terceiro capítulo, falamos sobre a atipicidade das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos na direção das ofensas corporais, acrescentando uma análise ao anteprojeto do código penal angolano. CAPÍTULO I - INTERVENÇÕES E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS 1.1 Enquadramento Histórico do artigo 150.º Intervenções e Tratamentos Médico- Cirúrgicos O Regime vigente dos tratamentos médico-cirúrgicos conheceu a sua consagração positiva e definitiva com a entrada em vigor do Código Penal de 1982. Até então, e na
  • 13. 13 vigência do Código de 1852, os autores1 e os tribunais2 portugueses propendiam a qualificar as intervenções médicas como lesões corporais típicas, cuja ilicitude seria dirimida em nome do “exercício de um direito”. Faz-se eco desta compreensão das coisas, mas reportando já às soluções do código de 1982, onde CAVALEIRO FERREIRA3 afirma que “o consentimento do ofendido no art. 159º não é, assim, uma causa de justificação, mas condição do exercício da medicina no caso concreto. Relembramos que o projeto de EDUARDO CORREIA4 continuava a encarar a intervenção médica como ofensa corporal típica. E, por vias disso, a punir como ofensa corporal o tratamento efetuado contra a vontade do paciente, mesmo tratando-se de intervenção medicamente indicada, realizada segundo as leges artis e plenamente seguida. A modificação mais importante introduzida pela reforma de 1995 foi a eliminação dos nº 2 e 3 do processo de preceito homólogo da versão de 1982. Recordamos que o citado n.º 2 dispunha: “Se da violação das legis artis resultar um perigo para o corpo, a saúde ou a vida do paciente, o agente será punido com prisão até 2 anos”. Uma infração cujo procedimento criminal dependia de queixa, nos termos do também eliminado n.º 3. Foi uma modificação de aplaudir. Desde logo, por razões de índole normológica, mal se compreendendo que se inscrevesse uma incriminação autónoma num preceito de carácter puramente definitório. O preceito era, de resto, desnecessário, uma vez que a violação das leges artis remete, sem mais, os fatos para o âmbito das lesões corporais típicas. O preceito legal tratava-se de uma incriminação político-criminalmente contraindicada. Além do mais, contribuía para acentuar a desconfiança entre médicos e juristas. Apesar de tudo, uma solução que viria a ser repristinada pelo legislador de 1998, isto é, com a introdução do atual n.º 2. Uma decisão que, à partida, se afigura questionável acerto político-criminal. Além do que fica exposto, está em saber se o exposto da medicina 1 Aos referidos autores... (FIGUEIREDO DIAS, O Problema da Consciência da Ilicitude 406 ss; FIGUEIREDO DIAS/ SINDE MONTEIRO, Responsabilidade Médica 1984 ss; PAULA FARIA, Aspetos Jurídico-Penais dos Transplantes 35 ss.) 2 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, cujo relator é José Adriano. Processo n.º 5335/2006-5, de 30 de Janeiro de 2007. [Em linha]. [Consult. 18 Fev. 2019]. Disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/59463ae15fd7d48780257287003cd567? openDocument 3 FERREIRA, Manuel Gonçalves Cavaleiro de, apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 304. 4 Idem.
  • 14. 14 reclamava a densificação do quadro normativo, ou antes a efetiva aplicação do direito penal existente, por mais fragmentário que pudesse parecer. O enunciado da lei portuguesa é unívoco no sentido da atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na perspetiva das ofensas corporais. E é assim tanto nos casos em que a intervenção tem sucesso, como nos casos em que ela falha. Porque não cura, antes agrava a doença, ou mesmo porque provoca a morte do paciente. À luz do direito português vigente, não seria pertinente a opinião daqueles autores que, na esteira de BELING5 , sustentam a chamada teoria do resultado, segundo a qual a intervenção médico-cirúrgica não conseguida preencheria a factualidade típica das ofensas corporais, e a lei portuguesa assumindo que, de forma consequente, a solução doutrinal que coloca a intervenção medicamente indicada e prosseguida segundo as leges artis fora da área de tutela das ofensas corporais e do homicídio. Como ENGISCH6 refere, não podem acompanhar-se representações naturais segundo as quais um tratamento arbitrário com tão gravosas consequências não deve ficar imune ao odium das ofensas corporais ou da morte. Isto porque a valoração da intervenção médica terá de fazer-se ex ante, não podendo ficar dependente da possibilidade de prejuízos e dos resultados. Resumidamente, a produção dos resultados indesejáveis que só relevará como ofensa corporal típica quando representar a consequência adequada da violação das leges artis.7 5 BELING, apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 305. 6 idem 7 ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. pp. 304-306. Recordemos que para aferir a tipicidade ou atipicidade das ofensas corporais seguindo o critério da violação das leges artis, a lei portuguesa tem-se baseado em duas posições convergentes, embora parecendo um pouco equidistantes na prática. Uma vez que é salientado de primeira posição em que a lei portuguesa se apoia no direito austríaco, e tomando pouco em conta o germânico. Na posição de BERTEL, todos os procedimentos preparatórios levados a cabo na aplicação de um medicamento ou preparado são também tratamentos no sentido da lei, ou os processos naturalistas, mesmo quando a ciência médica os considera sem valor. Na mesma linha, considera KIENAPFEL: mesmo um tratamento realizado por um curandeiro ou por um leigo, cai na alçada do tema. Ora, a chamada teoria do resultado cairia por terra, uma vez que, na esteia de BELING, a factualidade do preenchimento da atipicidade não constituiria uma preposição convincente, mas notória E a posição mais correta seria o afastamento total do não acompanhamento das representações naturais, por questões de estar inserido no fórum das ofensas corporais ou do homicídio. Mas, de igual modo, terminando a ideia de que só relevará como ofensa corporal típica quando representar a consequência adequada da violação das leges artis.
  • 15. 15 1.2 Uma Primeira Abordagem do Enquadramento dos Tratamentos Médico- Cirúrgicos “1. As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física. 2. As pessoas indicadas no número anterior, que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos médico-cirúrgicos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, e se a pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.”8 A contextualização do Código Penal de 1982, baseado numa lesão corporal típica, cuja ilicitude só poderia afastar-se invocando o “exercício de direito”, que o vigente artigo 38.º, nº 2, exige que corresponda a uma vontade séria, livre e esclarecida. Nas preocupações dos juristas inscrevia-se a ideia da “justificação” de que o cirurgião, para poder “fazer sangue” sem que o equiparassem ao ladrão que retalha a cara da vítima por bem menos que o custo de uma operação bem-sucedida, tinha que se munir do consentimento do paciente, ou de poder invocar uma dirimente que valesse o mesmo. Todavia, na prática, logo se compreendeu o alcance limitado do consentimento, uma vez que o paciente “confia, simplesmente, na qualificação profissional do médico que lhe explica, em termos simplificados, em que consiste a operação e quais são os seus objetivos.9 1.3 Regulação e Salvaguarda da Prática Ilícita do Ato Médico COSTA ANDRADE apresenta ainda uma situação importante no que diz respeito ao CP austríaco, que prescreve um regime dos tratamentos de um preceito homólogo ao art.º 150.º do CP português, apesar da lacuna com reflexos não despiciendos ao nível da 8 Neste sentido art.º 150º. Do CP. 9 MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f. Dissertação de Mestrado em Direito.
  • 16. 16 interpretação e aplicação.10 E cita BERTEL quando refere: “Tratamento é toda a aplicação de um medicamento ou preparado” e, por isso, “são também tratamentos, no sentido da lei, os processos naturalistas, mesmo quando a ciência médica os considera sem valor. Na mesma linha, foi considerado por KIENAPFEL: “Mesmo um tratamento realizado por um curandeiro ou por um leigo cai na alçada do consenso de autores alemães e austríacos como referências incontornáveis do direito penal português das intervenções médico-cirúrgicas.11 No art.º 150.º, consagra-se atipicidade das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, “não se consideram ofensas à integridade física”, o elemento que permite concluir pela exclusão do tipo, verificando uma intenção de proteção das atividades médicas e do ato médico. A não consideração do facto praticado como típico pressupõe o preenchimento cumulativo de certos requisitos. O primeiro, é a intervenção efetuada com um fim curativo, e, assim, excluem-se desta norma as intervenções que não tenham carácter de terapia, nomeadamente as realizadas com fins experimentais, o emprego de novas técnicas, ou intervenções cirúrgicas com outros fins (por exemplo, para fins estéticos). O carácter terapêutico ou curativo, não significa necessariamente que as condutas visem diretamente afastar a doença, ou diminui-la, mas envolve todos os atos médicos que sejam complementares destes fins. O fim curativo pressupõe um elemento objetivo, ou seja, que se verifique efetivamente a realização desse desiderato, mas também um elemento subjetivo, que passa pela intenção de agir com esse propósito, o que significa que a intervenção tenha de ser empreendida com vista a obter fins curativos. E o segundo requisito está, então, relacionado com as caraterísticas de quem intervém. Exigindo que seja médico ou pessoa legalmente autorizada para o desempenho de determinadas funções, esta norma aborda especificamente a atividade médica ou analógica, exigindo que o agente reúna qualidades, tendo como objetivo a proteção de quem desempenha tais atividades. Sobre a necessidade da presente norma, pode questionar-se a sua dispensa por força das regras da imputação objetiva, nomeadamente pela via dos critérios do risco, 10 Referimo-nos a lacuna na medida em que o plano subjetivo não permite referenciar os crimes pertinentes, os tratamentos arbitrários como delitos próprios. Deixando, assim, subsistir uma maior insegurança quanto à extensão do conceito de intervenção e tratamento médico-cirúrgico. 11 BERTE; KIENAPFEL, apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 303.
  • 17. 17 pretendendo que as situações que envolvam a autonomia da conduta do médico, de um “curioso”, do “endireita” ou de qualquer outro que, revelando aptidões para o desempenho dessas funções, não seja submetida à mesma apreciação. Quem não seja médico, nem esteja habilitado para intervir, pode não ser responsabilizado, mas por via da inexistência do nexo de causalidade, por força da diminuição do risco, ou pela exclusão da sua ilicitude. Mas a lei exige que a atuação se faça de acordo com as leges artis, ou seja, as leis do ofício. FERNANDO SILVA, afirma que a não consideração do facto como típico pressupõe o preenchimento cumulativo de certos requisitos, sendo o primeiro a intervenção com um fim curativo, excluindo, assim, desta norma as intervenções que não tenham carácter de terapia, as intervenções cirúrgicas com outros fins. O segundo requisito prende-se com as características de quem intervém, exigindo-se que seja médico ou pessoa legalmente autorizada. O consentimento não é um requisito desta norma, uma vez que não integra o art.º 150.º, pelo que é indiferente que a intervenção se faça de acordo, ou contra a vontade da vítima para que se exclua a tipicidade das ofensas à integridade física.12 Posição igualmente defendida por TEREZA QUINTELA DE BRITO, no âmbito em que a observância das leges artis, que correspondem às regras generalizadamente conhecidas da ciência médica e aos demais e gerais deveres de cuidado do tráfego médico. E pondera ainda que o n.º 1 não inclui o consentimento do paciente entre os elementos característicos de intervenção ou tratamento médico- cirúrgico, no sentido em que a exclusão do tipo de ofensas à integridade física não depende de consentimento.13 E já BELING notava: uma ação que não configura qualquer lesão corporal não se converte em tal pelo facto de o interessado protestar contra ela. E uma ação que constitui uma lesão corporal não deixa de o ser pelo facto de que o 12 SILVA, Fernando. O Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas. Lisboa: Quid Iuris, Editora, 2011. p.270. apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 303. Onde é suscitada uma certa dúvida da possibilidade da responsabilização de quem não seja médico por via da inexistência do nexo de causalidade, por força da diminuição do risco, ou pela exclusão da sua ilicitude. Posição compreendida, mas com certa repulsa, até ao momento em que, no exercício dessas funções, alguma coisa acaba por correr mal e causar ofensa à integridade física, ou mesmo ao homicídio. 13 BRITO, Tereza Quintela de. apud. PEREIRA, Victor de Sá; LAFAYETTE Alexandre. Código Penal Anotado, 2ª. Lisboa: Quid Iuris, Editora, 2014. p. 429.
  • 18. 18 interessado possa estar de acordo com ela. Embora um tratamento médico que contraria a vontade do paciente possa ser típico, doutro ponto de vista de um atentado à liberdade.14 O presente artigo ressalta o consentimento assumindo um papel como elemento da tipicidade, sendo indispensável para considerar a conduta como típica. Os art.º 150.º e 156.º (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários) e 157.º (dever de esclarecimento) devem ser compreendidos como complementares, retirando a ideia de que o médico não deve intervir para proceder a tratamentos ou intervenções cirúrgicas se não tiver o consentimento do paciente, mas também que é lícito ao médico deixar de o fazer por ser essa a vontade do paciente. À apresentação da norma do art.º 150.º como norma protetora da atividade dos médicos, e porque os requisitos apresentados são cumulativos para a produção do efeito de exclusão da tipicidade, é possível estabelecer uma delimitação negativa, a partir da qual se estipula que são considerados típicos, e constituirão factos típicos de ofensas à integridade física, poderem estar justificadas ou desculpadas, ou até mesmo desresponsabilizadas por via da ausência de nexo de causalidade, as intervenções sem fim curativo, bem como as que são efetuadas para efeitos de investigação científica, ou proceder à recolha de órgãos, ou as práticas desenvolvidas no âmbito das denominadas medicinas alternativas. Como se percebe, no exercício da medicina estão em causa bens jurídicos cuja tutela é reclamada pelo direito (“bens essenciais da comunidade”), muitos dos quais com dignidade penal, o que resultará na larga posição doutrinal assente numa conjuntura jurídica convergentemente forte, passando agora a citar uma abordagem sui generis de um trabalho de investigação da atuação de vários profissionais de saúde sobre o campo operatório podem, por exemplo, surgir problemas jurídico-penalmente relevantes. É o que acontece, por exemplo, na questão de apurar a responsabilidade individual dos profissionais que atuam em equipas médicas. O regime jurídico-penal das intervenções médico-cirúrgicas é um regime que se analisa em dois enunciados fundamentais: em primeiro lugar, a proclamação da atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na direção dos crimes das ofensas corporais e de homicídio; em segundo lugar, de que certos crimes só podem ser cometidos por certas pessoas, às quais pertence uma certa qualidade 14 BELING, apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 303.
  • 19. 19 ou sobre as quais recai um dever especial.15 No caso em análise, os tratamentos médico- cirúrgicos contra a liberdade.16 1.4 O Bem Jurídico Tutelado 15 DIAS, Jorge Figueiredo. Questões Fundamentais da Doutrina do Crime, Parte Geral, Tomo I, Coimbra: Coimbra, Editora, 2004. p. 304. 16 ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 302.
  • 20. 20 O bem jurídico tutelado no art.º 150.º n.º 2, é a vida ou a integridade física, tratando-se de um crime de perigo concreto (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objeto da ação), tendo sido fundado como um crime de um perigo por violação das legis artis. No crime de perigo concreto, o tipo inclui a colocação em perigo do bem jurídico.17 , e está numa relação de concurso aparente (subsidiariedade expressa) com ofensa corporal grave, prevista no artigo 144.º, al. ª d). Posição contrária é a de SILVA DIAS, considerando tratar-se de uma relação de especialidade.18 E TEREZA QUINTELA DE BRITO admite o concurso efetivo entre o crime previsto no art.º 150.º, n.º 2, e os crimes previstos nos artigos 148.º ou 137.º VERA RAPOSO também admite o concurso efetivo entre os crimes de intervenção arbitrária e de intervenções contra as leges artis ou por ofensas à integridade física, previsto no art.º 143.º, ou mesmo por homicídio negligente, previsto no art.º 137.º. A violação das leges artis deve ser cometida por ação. Quando for cometida por omissão, a violação é punível nos termos do art.º 284.º. Há, pois, uma relação de exclusão entre os dois crimes.19 O n.º 2, com intuito de alargar o arsenal de meios punitivos dos ilícitos aos médicos, não se torna fácil, no que toca a determinar o seu âmbito de aplicação. Com efeito, a violação dolosa das leges artis constitui uma típica ofensa à integridade física, que até pode ser justificada por consentimento. E, por outro lado, se há criação de perigo para a vida parece emergir como norma subsidiária. Não há lugar para a negligência. Na verdade, trata-se de um crime doloso.20 2.1 A Qualificação do Agente 17 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica, Editora, 2008. p. 398. Na mesma posição encontra-se SILVA, Fernando. O Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas. Lisboa: Quid Iuris, Editora, 2011. pp.269-270. 18 DIAS, Silva, apud. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade Católica, Editora, 2015. p. 582. 19 Idem. 20 PEREIRA, Victor de Sá; LAFAYETTE Alexandre. Código Penal Anotado e Comentado. Lisboa: Quid Iuris, Editora, 2014. pp. 430-431.
  • 21. 21 O enquadramento legal do art. 150.º requer que nas intervenções e tratamentos médico- cirúrgicos se proceda com causa indispensável à realização necessária (e idónea21 ), por um médico ou pessoa legalmente autorizada, sendo este um requisito da atipicidade da intervenção. O tratamento realizado por um não médico, quando ele seja movido por uma finalidade terapêutica e a intervenção tenha sucesso, não constitui uma ofensa à integridade física, mas poderá constituir uma usurpação de funções, enaltecendo a posição de RUI PEREIRA, em concordância com TERESA QUINTELA DE BRITO, na medida em que se ressalva a invalidade do consentimento não esclarecido no caso da intervenção médico-cirúrgica por um curandeiro. Será punindo por ofensas a integridade física o agente não médico, “ainda que revele aptidão para o desempenho do ato”.22 A intervenção médico-cirúrgica com fim terapêutico realizada com indicação médica e em conformidade com a leges artis não constitui um crime, sendo, desde logo, atípica. Portanto, configura-se como requisitos da atipicidade da intervenção médico- cirúrgica o seguinte: a qualificação do agente ou qualquer pessoa legalmente autorizada; a finalidade terapêutica, que inclui a prevenção, diagnóstico, cura da doença; a indicação médica que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência médica, se mostrem indicados; a realização em conformidade com as leges artis, e o consentimento.23 2.2 Finalidade Terapêutica A finalidade terapêutica implica que a pessoa nela destinada, que sofra intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, seja, necessariamente, a pessoa beneficiária desta intervenção, afastando, deste modo, todas as intervenções realizadas mesmo que por um médico.24 O objetivo de curar dever ser o principal, mas não é o único. Todo o tratamento médico comporta um coeficiente de experiência, e, por outro lado, existe a chamada experimentação terapêutica. Isto é, no interesse do paciente e na falta de outros métodos, o médico recorre a meios de tratamento não completamente consolidados, cujas 21 ROXIN, Claus, Problemas Fundamentais de Direito Penal, Coleção: Veja Universidade, Tradução: Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz, 2a Ed., 1993, pp. 57-59. 22 PEREIRA, Rui; BRITO, Tereza Quintela de. apud. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade Católica, Editora, 2015. p. 580. 23 Ibidem.p.580. 24 ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. pp. 379-380.
  • 22. 22 consequências não são possíveis de antecipar e controlar com segurança. Esta experimentação, pelo menos em casos em que se destina a remover um risco de morte iminente, deve ser admissível a este regime das intervenções e tratamentos médico- cirúrgicos. Já as intervenções puramente cosméticas não se enquadram neste regime, apenas as que se destinam a corrigir situações do foro ortopédico, ou mesmo as intervenções destinadas a eliminar a causa de limitações pessoais a nível da comunicação intersubjetiva, suportando as correspondentes fontes de sofrimento.25 Isto inclui também o diagnóstico e o tratamento strictu sensu de doença, lesão ou fadiga corporal, e exclui a experimentação não terapêutica ou puramente cosmética.26 A castração e a esterilização constituem intervenções e tratamentos médico- cirúrgicos, quando realizadas por indicação médica. No caso da castração, devido a doenças relacionadas com um instinto sexual anormal, e no caso de esterilização, para debelar perturbações mentais. O transexualismo não deve seguir o regime das intervenções médico-cirúrgicas, uma vez que se trata de uma intervenção cirúrgica e tratamento hormonal destinados a corrigir os carateres somáticos-exteriores de pertença a um sexo com o qual o indivíduo não se identifica psiquicamente, ainda que, até certo ponto, este tratamento não se enquadre no regime do art.º 150.º n.º 1. Caso contrário, sendo realizada por um médico, sem o consentimento do paciente, este apenas responderá por intervenção médico-cirúrgica arbitrária, e não por lesão da integridade física. Por último, o caso da angiografia também deve ser afastado do regime das intervenções médico-cirúrgicas, uma vez que se trata de um procedimento que não é feito em benefício e no interesse do ofendido, mas antes no interesse de terceiros, eventuais beneficiários de tecidos e órgãos para transplantes.27 2.3 Indicação Médica 25 MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f. Dissertação de Mestrado em Direito. 26 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade Católica, Editora, 2015. p. 580. 27 MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f. Dissertação de Mestrado em Direito.
  • 23. 23 A indicação médica consubstancia um juízo científico de idoneidade e necessidade relativa de uma intervenção em relação a outras intervenções igualmente disponíveis, pois “levar a cabo” é uma fórmula abrangente, incluindo a própria escolha do tratamento. A indicação médica tem por termo de referência a medicina institucionalizada, convencional e autorizada, ficando excluídas as práticas de medicina não convencional, tais como a acupuntura, a homeopatia, a fisioterapia. Contudo, o artigo 18.º da Lei n.º 45/ 2003, de 22 de Agosto, admitiu o carácter terapêutico das referidas práticas de medicina não convencional ao estabelecer que aos profissionais destas práticas que lesem a saúde dos pacientes ou realizem intervenções sem o respetivo consentimento é aplicável o disposto na lei, em igualdade de circunstâncias com os demais profissionais de saúde. A denotação médica configura-se como única e exclusivamente dos médicos e da sua atividade mediante a natureza curativa, segundo o estado de conhecimentos atuais da medicina e com intenção de prevenção e de diagnóstico. Haverá que intercalar com as ofensas corporais, que se prendem com as regras da arte de curar, que são geralmente entendidas como as devidas aos ensinamentos das escolas oficiais da medicina, afastando-se as chamadas medicinas alternativas, onde se é, ainda, incapaz de estabelecer um consenso. A conclusão estará de acordo com o inciso no n.º 1 do artigo 150.º, que se refere expressamente ao estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, e com a circunstância de os respetivos agentes não estarem habilitados “legalmente” a atuar.28 No entanto, a situação mudou com a inclusão da lei que estabeleceu o enquadramento base das terapêuticas não convencionais, que estão sujeitas no regime do art. 150º, ou seja, o que se refere às intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos no âmbito das terapêuticas não convencionais.29 2.4 Observância das Leges Artis 28 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade Católica, Editora, 2015. p. 580. 29 FIDALGO, Sónia. Responsabilidade Penal por Negligência, no Exercício da Medicina em Equipa, Coimbra: Coimbra, Editora, 2008. p. 47, sobre a Lei n.º 45/2003, de 22 de Agosto.
  • 24. 24 A prática das leges artis consiste na observância das regras teóricas e práticas do diagnóstico e tratamento aplicáveis no caso concreto, em função das características do agente e dos recursos disponíveis pelo médico. Porém, a atuação de acordo com as leges artis, condição apresentada pelo CP, implica normas de conduta que devem ser levadas a cabo por um médico.30 Nestes casos, o médico não necessita do consentimento da vítima, o que não quer dizer que o médico não venha a incorrer em responsabilidade criminal, caso vá contra a vontade da vítima e desde que a vítima a tenha expressado. No disposto do art.º 156.º refere-se “intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários”, incorrendo no crime contra a liberdade pessoal. Contudo as leges artis compreendem as regras da ciência médica, e consigo os deveres de cuidado para a aplicação do tráfego médico. Estas regras comportam o diagnóstico do paciente e a escolha da terapia, mediante a indicação médica. Salientando expressamente a execução do tratamento ou intervenção médico- cirúrgica, é de ressaltar que os deveres de cuidado referenciados anteriormente estão ligados, numa ordem sistemática, com a observação pela pessoa legalmente autorizada, determinada por referência ao caso concreto.31 Razão pelo qual os deveres variam em função das condições psicológicas, físicas, mentais, sociais e culturais do paciente, bem como das condições psicossomáticas envolventes no método de tratamento aplicado.32 Isto porque a observância das regras da arte médica não se limita à fase de escolha do tratamento, antes se estende à própria aplicação do mesmo, e também antecede a própria indicação médica, pois que tais regras de arte devem presidir à própria elaboração do diagnóstico e deverão continuar a marcar presença mesmo após a conclusão do tratamento propiamente dito, isto é, no acompanhamento ou vigilância da fase do pós-operatória.33 2.5 O Tipo Objetivo e Subjetivo do Ilícito 30 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade Católica, Editora, 2015. p. 581. 31 BRITO, Tereza Quintela de. Responsabilidade Penal dos Médicos, “Análise dos Principais Tipos Incriminadores”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, -A.12 n.º 3, Coimbra: Coimbra, Editora, 2002. p. 371. 32 ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 312. 33 MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f. Dissertação de Mestrado em Direito.
  • 25. 25 Nos termos do preceito indicado no n.º 2 do art 150.º, pratica o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos o médico ou outra pessoa legalmente autorizada que, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal ou perturbação mental, realize intervenções ou tratamentos violando as legis artis e criando, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde. Em termos conceituais, trata-se de um crime específico próprio e de um crime de perigo concreto.34 No plano objetivo, a infração configura um crime específico próprio.35 Por esta compreensão.36 (?! A frase não faz sentido…)Posição contrária é a de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, dizendo que se trata de um crime instantâneo, quando indica que consiste na intervenção ou tratamento médico-cirúrgico realizado por um médico ou outra pessoa legalmente autorizada, com indicação médica, finalidade terapêutica e consentimento do paciente, mas em violação das leges artis, pondo em perigo a vida ou criando um perigo de ofensa à integridade física grave do paciente. O crime consuma-se com a criação de perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo ou para a saúde37 , em que a qualidade especial do autor ou o dever sobre ele impede fundamentar a responsabilidade.38 Com a estrutura de um crime de perigo concreto.39 (?! A frase não faz sentido…) O perigo faz parte do elemento do tipo, sendo que o mesmo só é preenchido quando o bem jurídico esteja efetivamente em perigo.40 34 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26-02-2014, Processo: 1116/10.0TAGRD.C1, Relator: Vasques Osório. 35 Idem, 36 BRANCO, Tomé relat. -Ac. Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 0717/04-1, de 03 de Maio de 2004. [Em linha]. [Consult. 11 Jan. 2019]. Disponível em http:www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/tpb_MA_8043.ppt. O presente acórdão esclarece que crime específico próprio não existe crime paralelo cuja previsão (?!!A frase não se compreende…)que determine a possibilidade de autoria por parte de um cidadão comum, que não detenha a qualidade exigida. 37 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade Católica, Editora, 2015. p. 582. 38 MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f. Dissertação de Mestrado em Direito. 39 ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 313. 40 Neste sentido, DIAS, Jorge Figueiredo. Questões Fundamentais da Doutrina do Crime, Parte Geral, Tomo I, Coimbra: Coimbra, Editora, 2004. p. 304.
  • 26. 26 No tipo subjetivo, só é punível o dolo, que tem de abarcar, para além da intervenção com violação das leges artis, o perigo (para a vida, para o corpo, ou para a saúde).41 Já PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE admite qualquer modalidade de dolo (de perigo), tratando- se de um crime específico impróprio, quando a qualidade do médico é comunicável aos comparticipantes que a não possuam, nos termos do art.º 28.º do CP.42 O dolo pode ser eventual, necessário ou direto.43 Em relação ao crime em análise, haverá dolo direto quando o agente representa a violação das leges artis e o perigo, atuando com a intenção de criar este perigo. Haverá dolo necessário quando o agente representa a violação das leges artis e o perigo como uma consequência necessária da sua conduta. Haverá dolo eventual quando o agente representa como possível a violação das leges artis e a criação do perigo, conformando-se com a verificação de tais factos.44 41 ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 313. 42 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed atualizada, Lisboa: Universidade Católica, Editora, 2015. p. 582. 43 Neste sentido art. 14º do CP. 44 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26-02-2014, Processo: 1116/10.0TAGRD.C1, Relator: Vasques Osório.
  • 27. 27 CAPÍTULO II – A AUTONOMIA DO DIREITO PENAL E A INFLUÊNCIA NOS DEMAIS RAMOS DO DIREITO 2.1 A Implicação da Intervenção dos Tratamentos Médico-Cirúrgicos Violando as Leges Artis A norma do art.º 150.º, n.º 2 tem em vista os médicos e as pessoas igualmente qualificadas. No entanto, somente os agentes, ao realizarem intervenções ou tratamentos médico-cirúrgicos violando as leges artis estão abrangidos pelo crime em apreço. A pena aplicável exige a criação de um perigo para a vida ou perigo de ofensa para o corpo ou para a saúde, no âmbito dos crimes de perigo concreto.45 Quando o art.º 150.º, n.º 2 apareceu, em 1998, logo se lhe apontou natureza subsidiária, ao procurar determinar-se o seu âmbito de aplicação para a tutela da vida e da integridade física. Quando o médico não cumpre rigorosamente as regras da ciência médica, e isso pode acontecer com a violação dolosa das leges artis da profissão, a conduta, como logo se institui, pode caber noutro tipo de crime. Na medida em que provoca um perigo para a vida, o facto é já punido pelo artigo 144.º al. d), face ao qual o n.º 2 do art.º 150.º parece emergir como norma subsidiária. Daí a conclusão de que só na parte em que provoca um perigo para o corpo ou para a saúde terá o preceito conteúdo normativo próprio e novo.46 Daqui se pretende concluir, todavia, que cada uma das condições, sem a qual se não verificaria o resultado (sine qua non), seria também causa, e assim, todas as condições seriam equivalentes para o efeito de a cada uma se poder imputar o resultado. É certo, diz, que o resultado concreto não se pode pensar sem a totalidade das condições que o determinam. Simplesmente, o resultado é indivisível. Indo um pouco mais longe, alega- se que o nexo causal interromper-se-ia só, logicamente, quando o resultado se tivesse verificado, ainda, sem a atividade do agente.47 Numa ideia não muito distante, seria enaltecido o surgimento da causalidade para preencher o espaço interrogativo e inundar, simultaneamente, o sentido da própria resposta. O que se diga em abono da verdade, não deixava o nexo causal a categoria do pensamento penal, a ter a sua justificação (?! Não se percebe o sentido da frase…). Não 45 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal. À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica, Editora, 2008. p. 398 46 MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f. Dissertação de Mestrado em Direito 47 CORREIA, Eduardo. Direito Criminal., Coimbra: Coimbra, Editora, 1963. pp. 253,255.
  • 28. 28 nos esqueçamos da relação causal representativa, mesmo que naturalisticamente pensada e não obstante os exageros a que se conduziu, um manifesto arrimo pelo qual se concretizava a ideia de segurança em matéria penal. Contudo, rapidamente foram apercebidas as limitações inerentes a uma causalidade baseada estritamente nas regras da doutrina da contitio sine qua non. A causalidade deixava de ser, em termos jurídico- penais, uma categoria apreensível dentro do ser causal, para se postular no campo da normatividade. Era o domínio da causalidade adequada que os tantos avanços trouxeram ao direito penal e que, ainda hoje, na nossa compreensão, é um dos critérios fundamentais para se chegar a um justo juízo de imputação objetiva.48 Existe uma exigência mínima que uma perspetiva externo-objetiva como aquela aqui em questão tem de fazer ao relacionamento ou conexão do comportamento humano com o resultado, para que este possa atribuir-se ou imputar-se àquele: é a da causalidade. Por isso, durante muitas décadas, toda esta problemática foi tratada sob aquela epígrafe: a ação há-de, pelo menos, ter sido causa do resultado. E depois ressalta o primeiro grau constitutivo da exigência mínima (que é o mesmo, do limite máximo) que, de uma perspetiva externo-objetiva, tem de fazer-se ao relacionamento do comportamento humano com o aparecimento do resultado, para que este deva atribuir-se, ao menos, a ter sido causa do resultado, aferida através da teoria das condições equivalentes.49 A interdependência entre a cultura de uma sociedade e o crime tem sido o tópico central da sociologia criminal de há cerca de 125 anos. Não deixa, por isso, de ser um tanto surpreendente ler o que TAFT50 escreve no seu capítulo sobre Law Makind and Law Breaking in the American Setting, onde os tratamentos a radicarem na cultura geral parece ter sido relativamente negligenciado. Já no seu livro Physique Sociale, escrito em 1835, refere que as sociedades «contêm em si próprias os germes de todos os crimes futuros.» Igualmente recordamos a frase, também célebre, de A. LACASSAGNE.51 «O meio social é caldo de cultura da criminalidade (le 48 COSTA, José de Faria. Direito Penal. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, Editora, 2017.pp. 248-249. 49 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal, parte geral. Tomo I, Coimbra: Coimbra, Editora, 2004. pp. 322,323. Existe uma consonância dos 4 autores, não obstante haver uma diferenciação mínima sobre a presentação do critério diferenciado do nexo de causalidade para a imputação objetiva do caso salientado anteriormente. 50 TAFT. apud. MANNHEIM, Hermann; tradução de ANDRADE, Manuel da Costa; COSTA, José Faria. Criminologia Comparada. p. 653 51 TAFT. apud. MANNHEIM, Hermann; tradução de ANDRADE, Manuel da Costa; COSTA, José Faria. Criminologia Comparada. pp. 653,771-774.
  • 29. 29 milieu est le bouillon de culture de la crimenalité); o delinquente é o micróbio, que não tem qualquer importância enquanto não encontra a cultura que provoca a sua multiplicação…As sociedades têm os criminosos que merecem.52 Com a introdução do n.º 2 do art.º 150.º do CP, ficou apontada uma incriminação nova, a criação de um perigo para a vida e para a integridade física por força de uma natureza subsidiária, ao procurar estabelecer um paralelismo no âmbito de aplicação da vida ou grave ofensa à integridade física. O legislador quis, assumidamente, indicar os meios punitivos aos médicos. Isso dá-se com a violação das leges artis, na medida em que provoca perigo para a vida, facto que já é punido pelo art.º 144.º al. d). Podem os médicos responder também por um novo crime, que será o crime de perigo concreto,53 face ao qual o n.º 2 do art.º 150.º parece emergir de forma subsidiária, extraindo-se que só no momento em que cria perigo para o corpo, ou para a vida, ou para a saúde terá o preceito conteúdo normativo próprio e novo.54 Chega-se a uma opinião clara sobre esta questão quando se atenta em que a própria norma se aplica ao médico que desrespeita dolosamente critérios de intervenção estabelecidos no art.º 150.º, n.º 1, apenas se a matéria fática não couber noutro tipo de crime mais grave. Trata-se do crime de ofensas corporais com dolo de perigo, de que é sujeito ativo um médico que desrespeita dolosamente regras da ciência médica. Se a violação das leges artis é de tal modo grave que deixa de ser compatível com a finalidade de curar, e nessa violação se deteta um dolo de dano, o agente será necessariamente responsabilizado por outro crime que não o do art.º 150.º, n.º 2, mas, como anteriormente abordamos, há a hipótese de ser responsabilizado pelo art.º 144.º, que, para lá da dúvida, permite demonstrar que a aceitação do perigo não envolve necessariamente a confirmação do dano. Ninguém dirá ao médico, que dolosamente viola as leges artis com fim de curar o paciente, se não confirma com o perigo.55 (?! Não se percebe a frase…) 52 ibidem. pp.653, 771-774. 53 ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. 313. 54 Ibidem.313. 55 Neste sentido, BRITO, Tereza Quintela de, apud. MONTEIRO, Ana Margarida Antunes. O Ato Médico e o Direito Penal (Principais Tipos Incriminadores). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa Luís Vaz de Camões, 2012. 134 f. Dissertação de Mestrado em Direito.
  • 30. 30 2.2. Analise A Atividade Médica no Exercício das Suas Funções Após abordada a complexidade do Direito Penal, teremos o ponto de partida que se baseará, naturalmente, na existência de um ilícito para o qual se comunicam certas reações, que importam a aplicação estadual de um mal ao autor de um certo facto, por ter agido como agiu.56 Relativamente à falta de consciência da ilicitude e decisão consciente pelo ilícito, na própria formulação da primeira das três teses apontadas sobre a culpa da vontade parece estar logo contida a solução do problema da falta de consciência da ilicitude; pois de uma solução consciente da vontade pelo ilícito só poderá falar-se quando aquela se formou e executou no conhecimento de que a realização intencionada se diria contra o direito. Dirão, talvez, que não fica afastada a possibilidade de a decisão consciente, que constitui a culpa material, não ter de se referir ao carácter ilícito do facto, mas só ao facto objetivamente ilícito. Mas se tal possibilidade não é, em definitivo, prejudicada pelo teor litoral da tese, é-o seguramente pelo sentido fundamental que nela está contido. Neste sentido, há o conscientemente mau e censurável da vontade que se exprime, a circunstância de o agente ter querido, com a sua decisão, violar o direito, quando podia ter querido respeitá-lo. Por conseguinte, toda a culpa supõe no agente a consciência da ilicitude, e não uma qualquer consciência, pois que só ela permitirá afirmar que o seguinte se decidiu conscientemente contra o direito, e configurar, deste modo, o elemento decisivo de toda a culpa da vontade. O desenvolvimento de que esta conceção dos problemas da ilicitude é passível, quando se analise em maior profundidade o que é a ilicitude cuja consciência se exige para afirmar a culpa, viria, porém, mostrar, segundo os seus defensores, que a invocada aporia não subsiste na realidade. O papel fundamental cabe aqui à ideia de que (ao menos no âmbito do chamado direito penal de justiça) não é a punibilidade que fundamenta o ilícito material, mas este o valor ou pôr em perigo bens jurídicos comunitariamente relevantes, e, por conseguinte, a danosidade social que fundamenta aquela. Daí supor a culpa tão-só que o agente tome consciência da ilicitude material, da danosidade social e conseguinte dignidade penal do facto que pratica, e não da proibição legal que a ele está ligada. Tanto pode suceder, aliás, que detenha a consciência da ilicitude material, sem conhecer a proibição legal ou 56 CORREIA, Eduardo. Direito Criminal. Coimbra: Coimbra, Editora, 1963. p. 20.
  • 31. 31 antijudicidade formal, como inversamente, que conheça esta sem deter aquela. Num caso como no outro, porém, o agente possui a consciência da ilicitude requerida. 2.3 Analisar a Figura da Ilicitude Como Responsabilização Penal Em primeiro lugar, o agente conhece a danosidade social do facto, e, portanto, a sua vontade decide-se conscientemente pelo ilícito material. Em segundo lugar, o conhecimento da antijudicidade formal já torna claro ao agente que, pelo menos da perspetiva do direito positivo, ao facto é atribuída danosidade social. Isto só significa que a consciência da ilicitude requerida pela culpa não exige um reconhecimento pelo agente do “dever” que a danosidade lhe impõe, ou sequer a sua avaliação como “dever”, mas basta-se com o seu puro e simples conhecimento, independente da posição do agente perante ele. Podemos acrescer uma conceção muito particular acerca das relações entre o conhecimento do tipo (do tipo de ilícito) e conhecimento do ilícito material ou da consciência da ilicitude. Uma vez que nos tipos de direito penal de justiça se exprime completamente, salvo raras exceções, através dos seus elementos constitutivos, a danosidade social do facto, teremos que o completo conhecimento do tipo (ao qual pertence também a avaliação social, a compreensão funcional social) traz inexoravelmente consigo o conhecimento do significado socialmente desvalioso do facto e do consequente dever de o omitir. Numa palavra, a consciência da ilicitude material. Por isso, tem de se concluir que, no direito penal de justiça, à parte certas exceções que se devem fazer desaparecer, o conhecimento da totalidade dos elementos constitutivos do tipo fornece ao agente a consciência da ilicitude necessária para se poder afirmar ter havido uma decisão consciente da vontade pelo ilícito e, com ela, culpa material.57 Só que a proteção segundo a técnica dos bens jurídicos (pessoais) resulta em irredutível fragmentariedade da proteção penal da pessoa. Isto em contraste com a tutela civilística.58 O contexto normativo atrai consigo observações deixadas à interpretação do julgador. Como se sabe, muito raramente o direito penal impõe condutas (os crimes de omissão pura e impura são a exceção), dado que, em regra, trata-se de proibir comportamentos. O 57 DIAS, Jorge de Figueiredo. O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal. 5ª ed, Coimbra: Coimbra, Editora, 2000. pp. 206-210. 58 ANDRADE, Manuel da Costa. Direito Penal Médico. Coimbra: Coimbra, Editora, 2004.p. 63.
  • 32. 32 (art.º 154.º/3/b do CP) apenas pretende esclarecer que a pessoa (médico ou outra) que coaja outrém para evitar que este se suicide, ou que cometa qualquer outro facto ilícito, não comete o crime de coação, mas sem que daqui decorra a obrigação de atuar em tal sentido. Assim, será uma conduta criminosa aquela do médico que salva a vida do paciente agindo contra o consentimento expresso deste, sem o devido consentimento, sem que este seja informado dos aspetos do ato médico considerados relevantes no caso concreto, ou então, estando o paciente inconsciente, quando haja motivos fundados que impeçam que se presuma o consentimento do paciente.59 A observância das leges artis corresponde às regras generalizadamente conhecidas da ciência médica e aos demais e gerais deveres de cuidado do tráfego médico. No entanto, o n.º 1 não inclui o consentimento do paciente entre os elementos característicos da intervenção ou tratamento médico-cirúrgico, no sentido de que a exclusão do tipo das ofensas à integridade física não depende de consentimento. Na mesma ideia, debruça-se ainda sobre o crime de violação das leges artis (art.º 150.º, n.º 2) e, observando que a disposição em causa diz respeito a uma conduta em vista das finalidades apontadas no n.º 1, acerca da mesma conclui: pune as intervenções médicas com violação das leges artis que não seja grave ao ponto de excluir a própria finalidade terapêutica e de impossibilitar a parcial recondução da conduta do agente a uma intervenção médico-cirúrgica, nos termos do art.º150º, n.º 1 e que a incriminação do n.º 2 não constituía incriminação que vem punir os tratamentos médicos que não respeitam as regras da medicina. Casos há de tratamentos médico-cirúrgicos violadores das leges artis puníveis ao abrigo do art. º143.º e ss. [quando a “gravidade da violação das regras da medicina” e tornar inviável “qualquer identificação, ainda que só parcial, da atualização do agente como uma intervenção médico-cirúrgica”, ou seja, como uma conduta realizada em vista das finalidades apontadas no n.º 1]. Em termos tais que impunes ficaram apenas as intervenções médicas com violação dolosa ou negligente das regras da medicina, sem qualquer sequência de perigo ou de dano, e as intervenções médicas de que resulte um mero perigo de ofensa ou de dano, e ainda as intervenções de que resulte um mero perigo de ofensa à integridade física.60 59 DIAS, Jorge de Figueiredo; MONTEIRO, Jorge Sinde. Responsabilidade Médica em Portugal. Lisboa: in: “Boletim do Ministério da Justiça”, Editora, 1984. pp. 45,112. 60 PEREIRA, Victor de Sá; LAFAYETTE Alexandre. Código Penal Anotado e Comentado. Lisboa: Quid Iuris, Editora, 2014. pp. 428,429.
  • 33. 33 Diferente posição é de MAIA GONÇALVES que, como nota introdutória, apresenta o panorama jurídico da figura das intervenções e tratamentos, sendo que os mesmos, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por uma outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir. O n.º 2 foi introduzido pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro. Visou-se, com a introdução desse dispositivo, resolver o caso da violação das leges artis, cuja submissão ao regime geral da responsabilidade criminal através das ofensas à integridade física se não afigurava satisfatória. Porque a observância das leges artis não é configurável como um requisito da restrição típica dos crimes contra a integridade física, operada, então, por este artigo, dotado de eficácia idêntica à exigência de finalidade curativa. Por leges artis deve entender-se o conjunto de regras recomendadas pela ciência e pela técnica médica e pelos cuidados gerais. Se um médico proceder a uma intervenção ou a um tratamento com fim curativo, violando as leges artis, passará a ser punido se se verificar os demais pressupostos do n.º 2, o que não sucedia anteriormente. De notar que este dispositivo não obsta à aplicação do regime geral sancionatório do homicídio e da ofensa à integridade física, constituindo apensas um modo de antecipação e reforço da tutela penal dos bens jurídicos em causa, e só se aplica, subsidiariamente, se a factualidade não integrar crime mais grave. Há ainda que realçar que a criminalização da violação das leges artis não é contraditória com a regra da dispensa facultativa da pena consagrada na alínea a) do n.º 2 do art.º 148.º, nos casos em que do ato médico não resulte doença ou incapacidade para o trabalho. No art.º 148.º estão em causa hipóteses em que se requer apenas a violação dos deveres objetivos e subjetivos de cuidado, nos termos gerais do art.º 15.º, e não uma violação dolosa das leges artis. Haveria ocasiões em que o regime sancionatório severo poderia coatar a atividade médica e produzir efeitos perversos para os bens jurídicos em causa, que estão protegidos. 61 Ao longo da evolução da tutela penal, sempre ouve a necessidade da autonomia do paciente face ao ato médico adotado e inserido numa nova maneira de se ver o problema da responsabilidade penal médica. Ora, no exercício da medicina estão em causa bens jurídicos cuja tutela é reclamada pelo direito (“bens essenciais da comunidade”), muitos 61 GONÇALVES, Manuel Lopes Maia. Código Penal Português Anotado e Comentado, 3.ª ed, Coimbra: Almedina, Editora, 2007. pp.530-532.
  • 34. 34 dos quais com dignidade penal, que podem ser lesados por várias formas. Por exemplo, no caso de inobservância dos deveres de cuidado impostos pelo caso concreto, na eutanásia, na ortotanásia, no aborto terapêutico, no dever de assistência ao paciente, no segredo médico, nas questões experienciais sobre os seres humanos e outros. Tornar punível o ato médico que atenta contra dignidade do bem jurídico não constitui nenhum ataque à dignidade do profissional de saúde à sua atividade como profissional. Como refere FIGUEIREDO DIAS, ao assumir o encargo de tratar um doente, o médico aceita uma enorme responsabilidade, que advêm, desde logo, da obrigação em que se constitui de utilizar de forma adequadas todas as medidas terapêuticas de que possa dispor, isto é, de cumprir escrupulosamente as leges artis que regulam a sua atividade profissional.62 A intervenção criminal do ato médico é, igualmente, o resultado da produção dogmática, jurisprudencial e legislativa no que respeita à responsabilidade criminal por atos médicos. Não querendo com isto dizer que não se considere a existência dos mesmos, é reflexo do olhar atento a dois lados de uma moeda, porque se para um lado da sociedade responsabilizar penalmente o ato médico, o que atenta contra um bem jurídico, é inteiramente aceitável, desejável, para outro não, incluindo profissionais de saúde, atentos à visão que não deve ser a de um jurista empenhado na promoção e na proteção de bens jurídicos, mas vendo o direito penal na medicina como uma espécie de persona non grata. Compreendemos que a admissão da concretização da responsabilidade penal por atos médicos não será aceite num instante. Para isso seria preciso, por exemplo, a compreensão da incriminação dos tratamentos médicos arbitrários levando por motivos particulares várias dificuldades. É que em poucos domínios das relações sociais como neste, o “ético” andará de mãos dadas com o “legal”, na determinação da responsabilização jurídica. E, por outro lado, por vezes a responsabilização jurídico-penal do médico constitui um polo de fricção entre médicos e juristas, de forma particularmente aguda nos nossos tempos e nos países onde tem merecido mais atenção.63 62 LONEQUE, Domingos Adalberto. A Tutela Da Autonomia Do Paciente Face Ao Ato Médico No Direito Penal Angolano: [Em Linha]. p.30-34. Coimbra: Faculdade de Coimbra, 2016. [Consult. 02 Out. 2018]. Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42879/1/Adalberto%20Loneque.pdf 63 LONEQUE, Domingos Adalberto. A Tutela Da Autonomia Do Paciente Face Ao Ato Médico No Direito Penal Angolano: [Em Linha]. pp.32-34. Coimbra: Faculdade de Coimbra, 2016. [Consult. 02 Out. 2018]. Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42879/1/Adalberto%20Loneque.pdf
  • 35. 35 3.4 A Relevância Penal no artigo 150.º O Código Penal Português, (intitulado CP), compreende a atividade médica um espaço essencial na distinção da lesão corporal. Nos termos do art.º 150.º no seu n.º 1 refere que “as intervenções e tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, deliberar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se considerem ofensa à integridade física.” O regime pautado no n.º 1 conduz-nos, resumidamente, na proclamação da atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na direção dos crimes de ofensas à integridade e de homicídio, e, em segundo lugar, à punição dos tratamentos arbitrários como um autónomo e específico crime contra a liberdade.64 Recorremos a FERNANDO SILVA, que indica que a norma das intervenções pretende que sejam empreendidas de determinada forma, mediante certos requisitos, “não se considerem ofensas a integridade física”, sendo este o elemento que permite concluir pela exclusão do tipo, pressupondo o não preenchimento cumulativo de certos requisitos da não consideração do facto como típico.65 No entanto, e segundo a “jurisprudência alemã, toda a intervenção médico- cirúrgica preenche a factualidade típica do crime de ofensas corporais, só podendo a respetiva ilicitude ser excluída mediante consentimento”.66 E é assim tanto nos casos em que a intervenção tem sucesso como nos casos em que ela falha: porque não cura, antes agrava a doença ou mesmo porque provoca a morte do paciente. Para a exclusão das intervenções médico-cirúrgicas da factualidade típica das ofensas corporais é igualmente irrelevante a existência, ou não, de consentimento.67 No direito penal português não 64 ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p. p. 303. 65 SILVA, Fernando. O Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Lisboa: Quid Iuris, Editora, 2011. p.269. apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.303 66 ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Consentimento e Acordo em Direito Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.424 67 Posição contrária segundo a jurisprudência alemã, que assume veemente o preenchimento da factualidade típica do crime de ofensas corporais podendo só e unicamente ser excluída pelo consentimento. E por se considerar insuficiente e contrária à lei portuguesa que, não dispondo de um preceito homológico ao art.º 150.º do CP português, reconduzida para uma aplicação mais favorável ao caos concreto. Com isso,
  • 36. 36 encontraria, por isso, arrimo uma compreensão das coisas como a que vem sendo sistematicamente sufragada pela jurisprudência alemã,68 que subsume na factualidade típica das ofensas corporais todas as intervenções médico-cirúrgicas: em termos tais que só o consentimento pode afastar a pertinente ilicitude penal. Apesar de todas as debilidades e hesitações, insistentemente apontadas pela doutrina, o entendimento da jurisprudência sempre pode louvar-se de uma irrecusável vantagem político-criminal, no contexto do direito alemão. Não dispondo o direito positivo alemão de uma incriminação autónoma do tratamento médico-arbitrário, a punição a título de ofensas corporais da intervenção não consentida resulta na única via, embora de assegurar tutela penal à liberdade e autodeterminação do paciente.69 CAPÍTULO III - PARADIGMA SANCIONATÓRIO APLICADO AO DIREITO PENAL ANGOLANO 3.1 Atipicidade das Intervenções e Tratamentos Médico-Cirúrgicos na Direção das Ofensas Corporais A atipicidade das intervenções médicas aplicadas ao sentido das ofensas corporais é, assim, aclamada pelo n.º 1 do art.º 155.º do Anteprojeto do Código Penal Angolano, nos termos do qual se refere que “não se considera ofensa à integridade física a intervenção e o tratamento realizados por um médico ou por qualquer pessoa autorizada, de acordo com os conhecimentos e práticas da medicina, com a intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou diminuir doença, sofrimento, lesão, fadiga corporal ou perturbação mental”.70 Um modelo de conspeção puramente inspirado no de COSTA ANDRADE, que distingue e contrapõe dois distintos e autómatos bens jurídicos: a integridade física ver ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.305. 68 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-04-2011, Processo: 456/08.3GAMMV, Relator: Henriques Gaspar. 69 ANDRADE, Manuel da Costa. Artigo.º 150.º, In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999. p.306. 70 LONEQUE, Domingos Adalberto. A Tutela Da Autonomia Do Paciente Face Ao Ato Médico No Direito Penal Angolano: [Em Linha]. pp.75-76. Coimbra: Faculdade de Coimbra, 2016. [Consult. 03 Out. 2018]. Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42879/1/Adalberto%20Loneque.pdf
  • 37. 37 (saúde e a vida), por um lado, e a liberdade ou a autodeterminação pessoal, por outro lado. Tal como já vimos suceder em relação ao regime jurídico-criminal português, tanto aqui o ato médico apenas será atípico em relação às ofensas corporais se obedecer a quatro requisitos: dois subjetivos e os restantes objetivos. Quanto aos requisitos subjetivos para aplicação da norma, temos assim, por um lado, a qualificação específica do agente, isto é, o agente terá de ser um médico ou qualquer pessoa autorizada. Por outro lado, a “intenção terapêutica”, que compreende tanto o diagnóstico como a prevenção. No plano dos elementos objetivos, destacam-se a indicação médica, por um lado, e, por outro lado, a realização segundo as leges artis.71 É igualmente importante, ainda quanto ao respeito das legis artis, e abraçando a posição de MANUEL LEAL-HENRIQUES e MANUEL SIMAS SANTOS, a imposição de que o agente execute os cuidados médicos com a técnica mais apurada, isto é, segundo os processos e as regras oferecidas pela ciência médica, portanto, com a perícia devida. Há uma necessidade de compreensão do termo leges artis no sentido de perfeição técnica do tratamento ou intervenção, e também da sua oportunidade e conveniência no caso concreto e idoneidade dos meios utilizados.72 Caso haja violação das leges artis e, em consequência, se criar perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou saúde, a ação, nesse momento, já será censurável, consoante prescreve o n.º 2, ou com pena aí cominada ou com uma mais grave que porventura conste de outra disposição. Há a exigibilidade de que os atos médicos em causa tenham sido realizados por quem possua habilitação legal bastante, como seja um médico, um enfermeiro, etc. Ora, “a habilitação de que se fala pressupõe não apenas habilitação técnica bastante como também autorização de exercício do organismo profissional competente (repare-se na expressão legal: levados a cabo... por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada).”73 71 ibidem, p.76. 72 HENRIQUES, Manuel Leal; Santos, Manuel Simas. Código Penal Anotado. 3ª ed, Lisboa: Rei dos Livros, Editora, 2000. p.288. 73 ibidem, p. 288. Da concatenação da situação predisposta anteriormente, em que abordamos a importância das pessoas que agem segundo as leges artis e a violação das mesmas, é importante salientar a posição de ANDRADE, Manuel da Costa. In Comentário Conimbricense ao Código Penal, art 150º parte especial Tomo I dirigido por Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra, Editora, 1999 p. 303. Com base na tese de BERTEL, em que se reporta na importância, primeiramente, na definição de tratamento, no âmbito das operações cosméticas, considerando a aplicação a um procedimento levado a cabo em conformidade com a lei os processos naturalistas, mesmo quando a ciência médica os considera sem valor. Na mesma linha de KIENAPFE, em que mesmo um tratamento realizado por um curandeiro ou por um leigo cai na alçada do tema.
  • 38. 38 Assim, nesses casos, as intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos escapam à censura da lei, por não constituírem ilícito criminal. A finalidade terapêutica que se reporta a uma intenção curativa onde o móbil terapêutico tem que ser preponderante, e não mera consequência acessória de uma conduta primordialmente orientada à experimentação”, é defendida por TERESA QUINTELA DE BRITO.74 Mas há, entretanto, uma questão a pôr aqui, que será a de saber se a autorização legal é, ou não, um requisito da delimitação do tipo. RUI PEREIRA defende que não é, em toda a sua extensão: se alguém levar a cabo a intervenção ou tratamento sem a necessária autorização legal, mas com fim curativo, o seu comportamento não será típico desde que o fim prosseguido haja sido alcançado. Nesta hipótese, o agente terá provocado uma diminuição do risco e a sua conduta será atípica. O que não obsta, evidentemente, a que seja punível pela comissão do crime de usurpação de funções, previsto no n.º 2 do art.º 358.º do CP. Ficam fora destas situações, sendo ilícitos os atos praticados, ficando sujeitos às penalidades previstas na lei, e são criminalmente puníveis os atos que: -Não visem fins curativos ou terapêuticos (como sucede com as intervenções exclusivamente estéticas; para estudo; investigação ou experiência; colheita, em pessoa viva, de tecidos ou órgãos para transplantes, etc); -Invadam campos ainda não dominados pela ciência (intervenções de êxito não assegurado, por ainda não testadas); -Desrespeitem as leges artis (como sucede quando se não utiliza a técnica mais perfeita, estando ela ao alcance do utilizador); -Sejam executadas por pessoas não habilitadas (por quem não seja profissional de saúde devidamente credenciado).75 Acompanhando a posição de TERESA QUINTELA DE BRITO, que aborda a uma expressa afirmação de atipicidade e que deve notar-se que as coisas passam-se assim, tanto nos casos em que a intervenção tem sucesso, como nos casos em que ela falha (?! Não se compreende o sentido…). Como ENGISCH refere, não podem acompanhar-se as “representações naturais” segundo as quais “um tratamento arbitrário com tão gravosas consequências não deve ficar imune ao odium das ofensas corporais ou da 74 PEREIRA, Victor de Sá; LAFAYETTE Alexandre. Código Penal Anotado Lisboa: Quid Iuris, Editora, 2014. p. 429. 75 PEREIRA, Victor de Sá; LAFAYETTE Alexandre. Código Penal Anotado. p. 429.
  • 39. 39 morte”, seguro como a valoração da intervenção médica terá de fazer-se ex ante, não podemos ficar dependentes da álea dos resultados.76 O teor literal do regime aqui em causa distingue-se ligeiramente do conceito jurídico-penal de ato médico constante do Código Penal português. Sobretudo no que respeita ao elemento subjetivo “qualificação específica do agente”. Isto é, enquanto o Código Penal português (artigo 150.o) estabelece que o agente deve ser médico ou pessoa legalmente autorizada, o artigo 155.o do ACPa diz-nos que o agente deverá ser médico ou qualquer pessoa autorizada. Coloca-se a questão de saber quem deverá autorizar o agente a praticar um ato médico? A lei? Também o costume? Um regulamento administrativo? Questões que carecem de reposta do legislador. Ao ter como um dos seus elementos a indicação médica, o artigo 155.o do ACPa revela-se de grande importância para a compreensão prática, no contexto angolano, do regime relativo às intervenções médicas. Ao ter como um dos elementos a indicação médica, o art.º 155.º do ACPa, reveste-se de grande importância para a compreensão prática, no contexto angolano, do regime relativo às intervenções médicas. A medicina não institucionalizada tem, assim, forte expressão na realidade social angolana. Os pacientes procuram por diversas vezes a medicina alternativa. O Anteprojeto não proíbe estas práticas, apenas nos diz que o mesmo não abrange e não beneficia o aludido preceito do estatuto especial. “Por isso, só por isso”, serão tidas como ofensas corporais, justificáveis pelo consentimento. Concordamos com a posição de ADALBERTO LONEQUE, quando é abordada a solução que também não nos parece ser a mais acertada, visto que o legislador peca por defeito ao não atribuir um estatuto especial aos tratamentos efetuados por terapeutas tradicionais (com as devidas adaptações). É demasiado ampla a denominada medicina alternativa na sociedade angolana.77 A mesma é solicitada por uma parte doravante significativa da população. A verdade é que o enquadramento 76 Ibidem, p. 430. 77 Algumas posições contrárias que especulam a qualidade da necessidade de haver um estatuto próprio e idóneo, pronto para assumir a responsabilidade pela não adaptação por parte do legislador angolano e, por outro lado, se poderia ser incluído por via de um despacho, ou ainda, se inserido no Código Deontológico dos Médicos. CATUYO, Bento Chimboto. Responsabilidade Penal nos Ordenamentos Português e Angolano: Intervenções e Tratamentos-Médico Cirúrgicos: [Em Linha]. pp.57-61. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2016. [Consult. 16 Out. 2018]. Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/35130
  • 40. 40 legal da lei não se adapta ao contexto sociocultural do seu povo, o que, por segurança, devia acontecer, para eficácia a assimilação cultural. Em concordância com a posição anteriormente apresentada, o legislador deveria adaptar o presente contexto à realidade angolana, de modo a incluir determinados atos efetuados na medicina alternativa (medicina tradicional). Prática enraizada pelo costume, que é fortemente presente em Angola, e que não deve, assim, ser negligenciada pelo legislador constituinte. Portanto, o preceito deve ser constituído no sentido de incluir determinados atos efetuados na medicina tradicional.78 O legislador devia, a nosso ver, adaptar o presente conceito à realidade angolana. Uma solução que deve ser importada pelo plano formal, não devendo estar dependente da subjetividade do intérprete e do aplicador do direito.79 3.2 Intervenções Médico-Cirúrgicas em Benefício da Saúde Pública A centralização do homem no pensamento e na decisão política, mesmo que imbuída de absolutismo ou de totalitarismo, é uma consequência própria dos Descobrimentos, feito igualável à chegada do homem à lua. A razão humana ultrapassa a barreira do aceitável como legítimo e como contínuo à cortina da subjugação a vetores de pensamento esmagado pela ideia de que o verificacionismo é o caminho a percorrer. Contudo, dolorosamente sentimos que, face à apologia de uma demanda securitária e de um direito bélico, o “eu” escraviza-se ou esvazia-se de direitos em prol da máxima segurança, baseada na convicção de que a restrição de direitos, liberdades e garantias é a estrada adequada e exigível na construção de um pilar de prevenção criminal. Sabendo de antemão dos sobressaltos inerentes às plataformas cortadas nos morros, de espaço a espaço, para que formem degraus, causados pela tripulação dos que lutam e acreditam que é na liberdade que se realiza o Homem, e que é certamente o mais alto 78 A medicina tradicional é, na definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), “a soma de conhecimentos, habilidades e práticas baseadas nas teorias, crenças e experiências indígenas de diferentes culturas, que são usados para manter a saúde, bem como para prevenir, diagnosticar, melhorar ou tratar as doenças físicas e mentais”. 79 Apud LONEQUE, Domingos Adalberto. A Tutela Da Autonomia Do Paciente Face Ao Ato Médico No Direito Penal Angolano: [Em Linha]. pp.76-77. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade Coimbra, 2016. [Consult. 19 Out. 2018]. Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42879/1/Adalberto%20Loneque.pdf
  • 41. 41 valor da justiça humana.80 Ora, os caminhos da verdade trilham-se e marcam-se pela incessante busca da realidade perfeita construída em liberdade. A investigação corre atrás do verídico, muitas vezes intangível pela sua complexidade ou, quantas vezes, pela sua tão plausível simplicidade. Muitos fatos são, apenas, acompanhados de meios e técnicas que transformam a investigação em um motor capaz de promover finalidades do processo penal: descoberta da verdade e realização da justiça, defesa dos direitos fundamentais do cidadão no alcance da paz e a concordância prática.81 Ao Estado compete, desta forma, institucionalizar uma força coletiva organizada jurídica e funcionalmente, que tenha por fim realizar os interesses gerais e os princípios socialmente aceites, coadjuvada por meios de ação coerciva capazes de resolver o maior número de conflitos. A segurança, nessa perspetiva, não pode ser encarada unicamente como coação jurídica material, mas, primordialmente, como uma garantia de exercício seguro e tranquilo de direitos, quer na sua dimensão negativa, que diz respeito ao direito subjetivo, à segurança que comporta a defesa face às agressões dos poderes públicos, quer na sua dimensão positiva: direito à proteção exercida pelos poderes públicos contra quaisquer agressores.82 Para uma realidade em que as conceções (de polícia), no ensinamento de MARCELO CAETANO, cingem-se aos destinatários de preceitos legais: se normativos, estávamos perante agentes administrativos; se reguladores de condutas individuais, os órgãos e serviços do estado apresentam-se como garantes da eficácia do direito, da sanção da violação da conduta gerando uma contraordenação, e, como instrumento, receber a denúncia de um crime, ajudar a vítima a dirigir-se ao hospital, levantar o auto da contraordenação. (?! Incompreensível o que se pretende dizer…) Neste sentido, o saudoso Mestre concebia a polícia como “modo de atuar da autoridade administrativa, que consiste em intervir no exercício das atividades suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram prevenir.83 Prosseguindo este raciocínio, e tendo sido a segurança consagrada como direito fundamental, os 80 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria Geral do Direito Policial Tomo I. Coimbra: Almedina, Editora, 2005. pp. 206-207. 81 Ibidem. 221. 82 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Dos Órgãos de Polícia Criminal. Lisboa: Almedina, Editora, 2004. p.78. 83 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria Geral do Direito Tomo I. Coimbra: Almedina, Editora, 2005. Op. Cit., p.16. a caracterização contextual a que se aplica aqui é de tal forma adversa aos meios concecionais de polícia para a segurança, de um modo geral, a ordem e a tranquilidade pública.
  • 42. 42 Digníssimos MARCELO CAETANO e DIOGO FREITAS DO AMARAL ensinam-nos que a segurança é uma das necessidades cuja satisfação regular e contínua deve ser provida pela atividade típica dos organismos e indivíduos da Administração Pública, nos termos estabelecidos pela legislação aplicável, devendo aqueles obter para o efeito os recursos mais adequados e utilizar as formas mais convenientes, quer sob direção ou fiscalização do poder político, quer sob o controle dos tribunais. De importante integração é a posição defendida por MARCELO REBELO DE SOUSA, quando refere que “a função jurisdicional é aquela que é exercida através de órgãos entre si independentes, colocados numa posição de imparcialidade e de juridicidade que recorre ou suscita”.84 Como tarefa fundamental do Estado, a segurança impõe não só a organização de uma força capaz de servir os interesses vitais da comunidade política, a garantia da estabilidade dos bens, mas também a durabilidade credível das normas e a irrevogabilidade das decisões do poder que respeitem interesses justos e comuns.85 Na esteia dos ilustres GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, que referem a conceção do estado enquanto Estado constitucional, submetido à Constituição e comprometido na realização dos objetivos constitucionais. E que o estado está constitucionalmente vinculado quanto aos meios e quanto aos fins. Nem o Estado mínimo, ou subsidiário, dado o leque de incumbências aqui enunciadas, nem Estado máximo, dado o princípio da liberdade e de separação entre (…?!) e a sociedade que ao modelo constitucional, muito menos o Estado discricionário, dado o elenco de tarefas constitucionalmente enunciadas, que não está na liberdade de executar ou deixar de executar por parte dos poderes públicos, sem prejuízo da margem de conformação na concretização das mesmas.86 De proibição defeito87 e proibição de excesso que comporta três subprincípios autónomos que são os subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. No que concerne ao plano da interdisciplinaridade com o poder judicial, alastra-se o exercício daquele para os seus devidos titulares, manifestando-se, assim, a sua verificação em vários planos. No âmbito civil, participando em fatos que lhe são comunicados, assim 84 CAETANO, Marcelo; AMARAL, Diogo Feitas do, Sousa, Marcelo Rebelo de. apud, MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui. CONSTITUIÇÃO, da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra: Coimbra, Editora, 2007.p. 19 85 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Dos Órgãos de Polícia Criminal. Lisboa: Almedina, Editora, 2004. p.79. 86 CONOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa, 4ª ed. Coimbra; Coimbra, Editora, 2014. pp. 275-276. 87 Acórdão do TC, n.º 75/2010
  • 43. 43 como as diligências processuais, como apreensões de bens ordenadas pelo tribunal, acompanhamento nos arrestos e nas penhoras judiciais. No âmbito administrativo, prestar informações a legalmente interessados, encerramento de espetáculos e de uma via ao trânsito e o levantamento do auto de notícia por contraordenação. No âmbito criminal, na prossecução das funções da defesa da legalidade, previne e reprime o crime facto humano ilícito, típico e culposo, cuja realização da representação parte pelo Direito Penal substantivo, que protege bens jurídicos fundamentais.88 Depois desta viagem exaustiva, achamos útil dizer que na formulação exata da tese apresentada anteriormente culmina, com efusiva probabilidade, na descoberta de que quem comete delitos provoca no seio da comunidade, principalmente no âmago dos criminosos, um sentimento de receio, um sentimento de insegurança quanto aos atos delituosos que pretendem efetuar, porque sabem que a máquina investigadora é eficaz na sua atuação e eficiente na descoberta dos autores dos crimes, prosseguindo-se, assim, a prevenção geral negativa e positiva e a prevenção especial do direito punitivo. 3.3 Crítica ao Direito Penal Angolano: lacuna da proteção da liberdade pessoal face ao ato médico Sem prejuízo da identidade jurídico-cultural do Direito Penal Angolano, este é, certamente, influenciado pela experiência jurídica portuguesa e alemã. A racionalidade jurídica construída por estas realidades pode, e bem, ajudar-nos na construção de um novo paradigma. Há a pretensão para tutelar a autonomia do paciente no tipo das ofensas corporais, sempre considerando que esta incriminação visa tutelar dois bens jurídicos (na medida em que a integridade física já abrange a autonomia pessoal do doente). Há, como pode ser notado, uma dissemelhança de bens jurídicos, e que, por isso, reclamam por uma tutela autónoma. E, por outro lado, encontramos a integridade física protegida pelo tipo das ofensas corporais, e por outro lado ainda, a liberdade de dispor do corpo e da própria vida, que não é tutelada pela lei pena vigente. Não podemos, por isso, seguir o pensamento de KRAUSS quando se considera que o bem jurídico tutelado pelas ofensas corporais já abrange a liberdade do paciente, não sendo necessário tutelar autonomamente tal bem jurídico. De igual modo, a recusa deliberada do pensamento de HORN, quando intercede que o tipo das ofensas corporais tutela dois bens jurídicos. 88 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria Geral do Direito Policial Tomo I. Coimbra: Almedina, Editora, 2005. pp. 71-72.
  • 44. 44 Segundo COSTA ANDRADE, o pensamento proposto por KRAUSS “revela duma interpretação errónea, ao nosso ver, no que diz respeito à evolução dogmática irrecusável, e cada vez maior peso dos valores da liberdade e da autonomia na direção da integridade física”.89 Para COSTA ANDRADE, “esta compreensão de integridade física, enriquecida com a dimensão da autonomia pessoal, tem, porém, como reflexo imediato, a redução do alcance jurídico-penal desta data. E passa a relevar apenas na medida consentida pela tutela da integridade física. A integridade física e a autonomia pessoal, configurando-se a reciprocidade no âmbito de relevância jurídico-penal, tendo, em qualquer caso, os limites da área da tutela da incriminação das ofensas corporais. A critica é extensiva ao pensamento apresentado por HORN. Segundo COSTA ANDRADE, “a relativa solvabilidade política criminal da doutrina de HORN tem como contrapartida o agravamento dos custos dogmático-jurídicos. Desde logo, ela tem de suportar o lastro da ilegitimidade constitucional, nomeadamente na direção do princípio da legalidade: só é possível elevado praeter ou sine lege, a liberdade de dispor do próprio corpo à constelação dos bens jurídicos diretamente protegidos pelo direito penal positivo. O intérprete e o aplicador da normatividade jurídico-criminal angolana, preocupado em tutelar a autonomia pessoal do paciente, não deverá, a nosso ver, seguir a linha hermenêutica advogada pela jurisprudência alemã. Caso contrário, estaria em contradição para além das exigências resultantes dos ensinamentos de COSTA ANDRADE. Segundo este autor, os resultados avançados pela jurisprudência alemã apenas são alcançados “à custa do alargamento da área da tutela da incriminação das ofensas corporais e da qualificação indiscriminada como atentado à integridade física e à saúde de todas as intervenções médicas com dignidade penal. Um caminho minado de escolhas, na medida em que colide com o significado do ato médico e com a autorrepresentação dos próprios médicos.90 A posição resulta da sistematização do Código Penal. Nos crimes reservados aos “crimes contra as pessoas”, o código penal tutela, no Capítulo I, “a liberdade das pessoas”. Ou seja, legislador para a bem jurídica liberdade das pessoas e integridade física. São bens jurídicos tutelados em capítulos destintos. Porém, apesar de reconhecer e titular a liberdade das pessoas, não encontramos no respetivo capítulo qualquer 89 HORN; KRAUSS, apud. LONEQUE, Domingos Adalberto. A Tutela Da Autonomia Do Paciente Face Ao Ato Médico No Direito Penal Angolano: [Em Linha]. pp.72-73. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade Coimbra, 2016. [Consult. 19 Out. 2018]. Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42879/1/Adalberto%20Loneque.pdf apud ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal. p. 432 90 ibidem. pp.73-74.