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O cx>tídíano
da república
O Editora
da Universidade
Universidade Federaldo RioGrandedo Sul
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o cotidiano da república
Universidade
Federal
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Sandra Jatahy Pesavento
O cotidiano
da república
elite e povo na virada do século
Terceira edição
Editora
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© de Sandra Jatahy Pesavento
r edição: 1990
Direitos reservados desta edição:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Capa: Paulo Antonio da Silveira
Ilustração da capa: Família porto-alegrense no final do século
Editoração: Geraldo F. Huff
Revisão: Marli de Jesus Rodrigues dos Santos
Anajara Carbonell Closs
Maria da Graça Storti Féres
Mônica Ballejo Canto
Montagem: Rubens Renato Abreu
Administração: Júlio César de Souza Dias
Sandra Jatahy Pesavento
Professora no Departamento de História da UFRGS. Mestra em
História pela PUCRS. Doutora em História pela USP. Publicações:
República Velha Gaúcha: charqueadas, frigoríficos e criadores —RS
1889'J930; História do Rio Grande do Sul; RS: a economia e o poder
dos anos 30; RS: agropecuária colonial e industrialização; A Re
volução Federalista; A Revolução Farroupilha; História da indústria
sul-rio-grandense; Pecuária e indústria. Formas de realização do
capitalismo na sociedade gaúcha no século XIX; Burguesia gaúcha.
Dominação de capital e disciplina de trabalho, RS: 1889-1930; Emer
gência dos subalternos: trabalho livre e ordem burguesa; Cem anos
de República; Porto Alegre: espaços e vivências; Borges de Medeiros;
Memória da indústria gaúcha: RS 1889-1930; De escravo a liberto:
um dificil caminho; República verso e reverso; O cotidiano da Repú
blica: elite e povo na virada do século; O Brasil contemporâneo; Os
industriais da República; O espetáculo da rua; 500 anos de América:
imaginário e utopia; História da Assembléia Legislativa do Rio
Grande do Sul: a trajetória do parlamento gaúcho; Porto Alegre cari-
raía: a imagem conta a história; Os pobres da cidade: vida e trabalho
-1880-1920.
P472 Pesavento, Sandra Jatahy
O cotidiano da república: elite e povo na virada do
século / 3.ed. /Sandra Jatahy Pesavento. - Porto Alegre :
Ed. da Universidade/UFRGS, 1995.
(Síntese Rio-Grandense; 3)
1, República — Forma de governo — Rio Grande do
Sul. 2. Rio Grande do Sul — História — Período
republicano. I. Título.
CDU981.65.07/.08
321.728(816.5)
Catalogação na publicação: Zaida Maria Moraes Preussler. CRB-10/203
ISBN 85-7025-202-1
SUMARIO
Qual repdblica? 7
A república do progresso: trabalho livre,
máquinas e riqueza 14
O progresso na ordem: as condições
de trabalho 22
O espetáculo da cidade: assimetria social
e ocupação do espaço 32
Cidadania em questão: zé povinho reclama
e exige 41
Os perigos da cidade: ó da polícia 55
Bêbados, jogadores, prostitutas e vagabundos:
as ameaças à moral e aos bons costumes 62
Homem e mulher, criança e casamento 72
Educação do povo e das elites:
a distinção dos saberes 79
QUALREPÚBLICA?
Em 1979, o senador da Aliança Renovadora
Nacional (ARENA) Francelino Pereira perguntava a
uma nação que enveredava pelo tortuoso e difícil
caminho da abertura: "que país é este?"
A indagação, que induz perplexidade, questio
namento e reflexão, foi retomada literalmente no
ano seguinte por Affonso Romano de Santana na
obra do mesmo nome.
Sem maior indagação sobre os condicionamen
tos pessoais ou políticos que levaram o senador
piauiense a pronunciar frase tão instigante, a ques
tão ressurge com força quando se pensa que a Re
pública brasileira conta já com um século de exis
tência: que país é este? qual República?
Não se trata em absoluto de enveredar pelo ca
minho do endosso da lendária e contraversa expres
são atribuída a De Gaulle de que este não seria um
"país sério".
Pelo contrário, um regime que completa 100
anos, mesmo com altos e baixos, direitos e avessos,
é digno de séria reflexão; o fato de pais e filhos
votarem juntos para presidente da República pela
primeira vez é uma questão seríssima; pensar que há
séculos atrás emergiam questões, discriminações e
problemas com os quais nos debatemos hoje pode
ser até assustador.
Ao longo destes cem anos, a República tem si
do pensada de forma diferente. Em obra já clássica,
Emília Viotti da Costa (JDa Monarquia à República:
momentos decisivos. 1977) realizou um excelente
balanço das diferentes visões historiográficas sobre
o tema.
Os contemporâneos ao evento, animados por
um "espírito de partido" que os posicionava contra
ou a favor do novo regime, tenderam a interpretar o
15 de Novembro ou como "obra do acaso", numa
postura nitidamente monarquista, ou como um "re
sultado inevitável", segundo um ponto de vista re
publicano. Embora contraditórias, tais abordagens
convergem para um mesmo tipo de enfoque idealis
ta, marcado pelo subjetivismo e pela ênfase na atua
ção dos personagens envolvidos. As versões dos
monarquistas (Afonso Celso, Visconde de Ouro
Preto) ou dos republicanos (Felicio Buarque) obe
deceram a uma postura emocional de quem viven-
ciara os acontecimentos nos primeiros e conturba
dos anos da implantação do regime.
No início da década de 20, quando as crises,
tensões e conflitos se avolumavam, não mais na
contestação do regime em si, mas "daquela Repú
blica", a historiografia apresentou um avanço com a
obra de Oliveira Viana (O ocaso do Império, 1923).
Numa postura de tendência positivista, orientada
pelas idéias de evolução, do progresso linear e do
mecanismo causa-efeito. Oliveira Viana definiu uma
visão até hoje veiculada em livros didáticos. Tocado
por um certo saudosismo da Monarquia, o autor
realizou uma revisão da transição do regime me
diante o estabelecimento de certas "causas funda
mentais": a questão servil, a questão religiosa, a
questão militar, a questão federal. Trata-se, sem dú
vida, de um esforço explicativo na direção das mo
tivações dos agentes históricos (os fazendeiros es
cravocratas, os padres, os militares e os cafeiculto-
res paulistas) envolvidos, mas constitui-se ainda
numa visão mecânica, da qual estão ausentes as no
ções de processo, sistema, classe social ou mesmo
de capitalismo.
Novo avanço no campo da interpretação histo-
riográfica da República foi dadocoma contribuição
dos autores marxistas das décadas de 30, 40 e 50
(Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré, Leôncio
Basbaun) que, sob a orientação do materialismo
histórico, buscaram explicar a queda do regime mo
nárquico pela sua inadequação ao desenvolvimento
econômico-social do país. Ou seja, a República se
ria o resultado de um desajuste entre a infra e a su-
perestrutura. A partir de um contexto econômico-
social em transformação (trabalho livre, expansão
do café, indústria, urbanização, etc.), buscaram dis
tinguir os interesses das classes sociais envolvidas,
concluindo que a República teria se dado pela
aliança entre setores progressistas do latifúndio ca-
feicultor e as classes médias urbanas, sendo os mi
litares seus porta-vozes.
O enfoque é, contudo, ainda simplista e mecâ
nico, reduzindo a realidade a um modelo preesta-
belecido, mas tem o mérito de introduzir categorias
como "sistema" e classes sociais" na análise, en
tendendo a implantação da República como uma das
facetas de um processo de transformações em curso
na sociedade brasileira.
No decorrer dos anos 60 e 70, face ao próprio
amadurecimento da sociedade urbano-industrial no
país e os rumos empreendidos pelo desenvolvimento
econômico brasileiro, o eixo das análises no campo
das ciências humanas tendeu a concentrar-se em
torno das origens e da trajetória seguida pelo capi
talismo no Brasil. Desta forma, houve uma tendên
cia dos estudos realizados se concentrarem no pe
ríodo entre 1850 e 1930, quando o sistema capita
lista teria se gerado e desenvolvido intensamente a
partir do complexo agrário cafeicultor nucleado em
São Paulo. Neste contexto, as numerosas análises
sobre a cafeicultura, a imigração, a desagregação do
escravismo, a formação da indústria e da classe tra
balhadora forneceram uma base para o entendi
mento da transição da Monarquia para a República.
Embora realizados sob distintos recortes temáti
cos e de ênfase metodológica, os autores tenderam a
confluir para um mesmo tipo de conclusão: a Repú
blica viria corresponder, enquanto regime político,
às variadas aspirações por progresso, representati-
vicíade política, riqueza, estabilidade e ideal de ci
vilização apresentados pelos diferentes grupos da
sociedade que, por motivos variados, se encontra-
vam em desajuste com a Monarquia. Este tipo de vi
são estaria presente, de forma mais ou menos explí
cita, na obra de historiadores como Bmflia Viotti da
Costa, já citada, Edgard^ Carone (A República ve
lha. 1970, 1971), José Ênio Casalecchi (A procla-
mação da República. 1981). As "causas" ou
''questões" tradicionais seriam nestas obras retoma
das à luz da noção de processo, das tranformações
econômico-sociais do Império e da ação e motiva
ção das classes sociais.
O entendimento da Republica como uma das fa
cetas de um processo mais amplo de realização do
capitalismo no pais encontrou novo apoio com as
análises de Florestan Fernandes sobre a revolução
burguesa (A revolução burguesa no Brasil. 1975).
O autor entende a revolução burguesa não como um
movimento político de "assalto" ao controle do
Estado pela burguesia, mas como um processo mais
amplo, ao mesmo tempo de transformações econô
mico-sociais - novas relações de produção, novas
técnicas e formas de organização do trabalho, novas
classes sociais - e de construção de estruturas polí-
tico-administrativas e concepções ideológicas con-
solidadoras do poder burguês. Com esse enfoque,
Florestan Fernandes abre espaço para o entendi
mento de República como uma das facetas deste
processo amplo.
Na década de 80, o tema da revolução burguesa
seria retomado com as análises de Décio Saes (A
formação do estado burguês no Brasil, 1888-1891.
1985) para quem tanto a Abolição quanto a Repú
blica seriam momentos de realização da revolução
burguesa. A proclamação da República correspon
deria à dimensão propriamente política daquele pro
cesso: a da construção de um Estado burguês, ou da
constituição dos aparatos jurídico-institucionais
através dos quais a dominação e o poder burguês se
instalariam no Brasil.
Como diria Iraci G. Salles (^Trabalho, progres
so e a sociedade civilizada. 1986), "a república
colocou-se então como a alternativa concreta de
10
estabelecer uma ação através do Estado que assegu
rasse a ampliação e a reprodução do capital". Ou
seja, a República apresentava-se como o regime po
lítico que melhor encarnava as propostas de pro
gresso, trabalho livre, ampliação da participação
política, desenvolvimento econômico, maiores
oportunidades de emprego, avanço tecnológico,
acesso à educação, princípios todos adequados à
instalação de uma ordem burguesa. Neste sentido, o
republicanismo dos cafeicultores paulistas consti-
tmu-se numa espécie de projeto burguês para o Bra
sil, asSim como a proposta dos republicanos gaú
chos, apoiados nos princípios do positivismo, repre
sentou também uma vertente regional da ordem bur
guesa no Sul. A diferença residia na forma do regi
me republicano: para os cafeicultores paulistas,
pensava-se numa República liberal, inspirada no li
beralismo clássico do século 19; para os positivistas
gaúchos, tratava-se de impor uma República auto
ritária, baseada nos principios de Augusto Comte.
Na prática, o que vigorou foi o estabelecimento,
no plano nacional, de um Estado burguês baseado
num liberalismo excludente, controlado pelas elites,
enquanto que, no Rio Grande do Sul a Constituição
estadual implantou um regime autoritário, altamente
hierarquizado e fundamentado numa rígida estrutura
partidária.
"Liberal-democrática'" ou "autoritária" na for
ma, a República de 1889 foi um projeto burguês de
realização política que assimilou a internalização do
capitalismo no país que, contudo, tem um verso e
um reverso.
Ao mesmo tempo que o poder burguês se es
truturava, consolidava-se política e administrativa
mente, criava instituições, difundia normas e valo
res, criava leis e pautava a conduta dos cidadãos,
ocupava terras e erguia fábricas, remodelava cida
des e propunha novos moldes deeducação, erguia-
se também uma outra República, a dos cortiços e
dos porões superlotados, das longas jornadas de
trabalho, das greves, dos botequins, das brigas de
navalha, dos subalternos, enfim.
Trabalho livre, igualdade perante a lei e cida
dania eram as palavras de ordem do novo regime.
Para os^ trabalhadores livres e cidadãos, a "sua Re
pública haveria de ser amesma eao mesmo tempo
Dem diferente daquela proposta pela burguesia
emergente que procurava acertar o passo com a
História.
1 duas repúblicas, numa visão
polarizada. Um mesmo processo histórico éque dá
margem a diferentes experiências e diversos olhares
^ realidade. Doutores, proprietários de terra,
polfücos de casaca, capitães de indústria, imigran
tes, operários e Zé Povinho são todos atores sociais
que se movimentam e vivenciam de forma diferente
o processo de instalação da República.
Com esta idéia, não se quer também dizer que
eles pensem e ajam de forma completamente isolada
e sem influencias recíprocas. Pelo contrário, se o
processo de dominação/subordinação engloba tam
bém a dimensão da resistência, ocorre uma circula-
ridade entre formas de agir e de pensar. Se a bur
guesia toma decisões e impõe seus valores, é oor
sua vez também pressionada e influenciada pelo
comportamento dos subalternos. Estes, por sua vez,
12
metabolizam as normas e padrões de conduta que
lhes são impostos e reagem em manifestações já
aculturadas.
Em suma, quando se indaga "qual Repiíblica",
o que se busca é resgatar as diferentes vivências de
um mesmo processo, que são ao mesmo tempo par
ticulares ou específicas do grupo social a que per
tencem, mas também se interpenetram mutuamente.
Buscar-se-á, pois, contrapor ao projeto burguês de
Repdblica outras formas de sentir e olhar esta reali
dade vivenciada pelos subalternos.
O resgate destas outras dimensões do processo
histórico republicano já foi, de alguma forma, abor
dado pelas argutas análises de José Murilo de Car
valho (05- bestializados, O Rio de Janeiro e a Re
publica que não foi, 1987) e também por Eduardo
Silva (Ay queixasdopovo, 1988).
Tais estudos centram-se na realidade do Rio de
Janeiro, palco privilegiado dos acontecimentos da
transição do regime, maior centro urbano da época.
A problemática é contudo, universal - a da realiza
ção histórica do capitalismo e da sua viabilização
política através de um regime determinado, contra
pondo a vivência burguesa à proletária - , tomada
na sua dimensão nacional latino-americana.
O recorte espacial já pressupõe, em si, uma es
pecificidade dentro de um marco geral capitalista.
Admitida, pois, esta especificidade, não seria possí
vel aprofundá-la através da análise do regional, per
seguindo a mesma temática? Como teria se com
portado um dos recortes geopolíticos da nação
frente o processo em curso? Em outras palavras,
como uma das regiões do país —o Rio Grande do
Sul —teria vivenciado a implantação da Repdblica
na passagem do século 19 para o século 20?
13
A REPUBLICA DO PROGRESSO:
TRABALHO LIVRE, MÁQUINAS E RIQUEZA
A instalação da Republica deu-se, pois, numa
conjuntura balizada, por um lado, pelo assenta
mento das bases materiais do desenvolvimento ca
pitalista no país e, por outro, pela estruturação de
bases político-administrativas e ideológicas de rea
lização do poder burguês.
Entre os anos de 1880 e 1900 - portanto, nas
décadas que antecederam e se seguiram à proclama-
ção da República —, a lavoura exportadora capita
lista do café comandou o espetáculo da modernida
de. Com abundância de terras e de mão-de-obra
promovida pela imigração estrangeira, produzindo
*muito" e "barato" para o mercado internacional, a
cafeicultura brasileira mantinha o monopólio do
fornecimento deste artigo e garantia a entrada de
divisas no país.
A acumulação do capital proporcionada pelo
café fazia comque as idéiasde progresso e civiliza
ção que vinham da Europa adquirissem um sentido
preciso no Brasil. Emfunção do complexo cafeeiro,
aparelharam-se portos, construíram-se vias férreas,
adquiriram-se máquinas e produtos europeus para
uma sociedade que se modernizava e acertava o
passo com a História. As cidades cresciam e tran-
fomiavam-se, criavam-se bancos para atender as ne
cessidades de uma economia em expansão e para
fazer frente à massa de salários num país que deixa
va para trás a escravidão. As chaminés das fábricas
nascentes passaram a alterar, pouco a pouco, a fi
sionomia de uma nação predominantemente agrária.
Café, trabalho livre, indústria e urbanização torna
ram-se sinônimos do progresso, riqueza, civilização
e regime republicano. Embora as atividades agrárias
- pecuária e agricultura - possam constituir-se de
14
forma capitalista, a concepção do capitalismo en
quanto modo de produção plenamente configurado
tende a identificar-se com o surgimento da fábrica
ou indústria moderna. Com a República teria fim "o
agrarismo exclusivo do Império" (Raymundo Faoro.
Os donos do poder. 1969). Estruturalmente, a in
dústria surgiu no país condicionada pela herança
colonial escravista, pela situação de dependência
em relação ao mercado externo e pelo predomínio
do capital mercantil. Conjunturalmente, o primeiro
surto industrial deu-se a partir da década de 80, no
Centro-Sul do país, sob a hegemonia do capital
agrário e mercantil e sob a subordinação ao capital
comercial e financeiro internacional. Como se disse,
este processo teve o seu centro deflagrador no com
plexo cafeeiro do centro econômico do país, mas as
demais regiões se viam também agitadas, em maior
ou menor grau, por este surto de tranformação. No
Rio Grande do Sul, a internalização do capitalismo
ocorreu praticamente ao mesmo tempo que em São
Paulo, mas a partir de uma base qualitativa e quan
titativamente diferente.
Enquanto que São Paulo partiu de uma base li
gada ao setor de ponta da economia brasileira - o
café o Rio Grande do Sul dependeu de uma acu
mulação de capital comercial obtida pela venda dos
gêneros agropecuários da região colonial imigrante
para o mercado interno brasileiro. Logo, a disponi
bilidade de capital para as inversões capitalistas foi
menor no Rio Grande do Sul, assim como menor
também seria o contingente de mão-de-obra livre
passível de assalariar-se. Para o Rio Grande vieram
colonos imigrantes para ser pequenos proprietários
e não para atuar como trabalhadores livres na lavou
ra, como em São Paulo. Portanto, a massa de imi
grantes que deixou o campo para assalariar-se na
cidade foi menor no Rio Grande do Sul do que em
São Paulo.
Sendo menores as disponibilidades de capital,
menores seriam também as possibilidades de im
portação de tecnologia estrangeira para as indústrias
15
nascentes. Da mesma forma, o Rio Grande não foi
um pólo de investimento de capitais estrangeiros e
seu mercado interno, embora expressivo para a épo
ca se comparado a outras unidades da Federação,
também era de menores dimensões que o paulista.
Entretanto, esta "pequenez" comparativa ao centro
econômico do país não isolou ou privou a região de
participar daquele processo global de transforma
ções que o país atravessava.
Analisando, pois, a realidade rio-grandense,
constata-se que no fin de siècle a renovação capita
lista partiu do complexo colonial imigrante e não do
complexo da pecuária tradicional. Ou seja, não
houve no Rio Grande do Sul uma atividade agrária
de conotação capitalista que antecedesse ou servisse
de base para a emergi ncia de uma ordem urbano-
industrial. Pelo contrário, o capital que permitiu a
inversão em indústrias proveio, predominantemente,
da comercialização dos produtos coloniais ou das
reservas de alguns poucos "burgueses imigrantes"
que, vindos da Europa com um certo capital, aqui
passavam a investir. Mesmo no caso de empresas
que se formaram em Pelotas ou em Rio Grande, ci
dades integradas ao complexo da pecuária tradicio
nal, o capital inicial foi acumulado através da co
mercialização dos produtos pecuários, mas por ação
de imigrantes que naquela regiãose estabeleceram.
Ao longo das duas últimas décadas do século
19, várias empresas industriais surgiram no Rio
Grande do Sul, nucleadas em torno de Porto Alegre,
Pelotas, Rio Grande, São Leopoldo e Caxias do
Sul.
Já neste período é possivel delinear o tipo espe
cífico de indústria que caracterizaria o Rio Grande
do Sul: as "indústrias naturais", que utilizavam a
matéria-prima local de origem agropecuária, com o
que o Rio Grande do Sul confirmava a sua vocação
de "celeiro do país", ou seja, além de produzir para
o mercado regional, o estado especializava-se no
fornecimento ao mercado interno brasileiro de gêne
ros de subsistência, in natura ou beneficiados. Ao
16
lado destas "industrias naturais", estabeleceu-se no
estado um modesto porém estável ramo de "indús
trias artificiais": o metal-mecânico, que se utilizava
de matéria-prima importada para fabricar máquinas
e peças para o serviço da lavoura e da industria.
O governo gaúcho republicano de feição positi
vista que assumiu o poder político em 1889 tinha,
pois, como programa de ação básica no campo eco
nômico, a defesa de um modelo diversificado e in
tegrado, onde os setores agrário e secundário se in-
ter-relacionavam, dando ao estado um cunho mo
derno, progressista e de auto-suficiência.
Apoiando-se nas idéias de Comte, o "autorita
rismo ilustrado" que governava o Rio Grande re
presentou uma aliança entre setores agrários e não-
agrários da burguesia local que se estruturava. En
tendiam, à luz dos princípios positivistas, que o
progresso seria dado pelo desenvolvimento indus
trial, pelo primado da ciência, pela educação e pela
moral. A ciência e a indústria assegurariam o pro
gresso, enquanto que a moral e a educação mante
riam a ordem. Ordem e progresso, máximas burgue
sas concebidas numa realidade européia a partir de
um capitalismo maduro, foram adaptadas para sua
execução numa realidade regional distinta. Tratava-
se antes de promover a constituição do capitalismo
do que de desenvolvê-lo. Por outro lado, em condi
ções latino-americanas e brasileiras, o caminho para
a industrialização passava forçosamente pela mo
dernização agrária. Assim, o governo tinha uma
proposta de defesa da indústria sem formalizar um
projeto industrializante. A defesa do setor secundá
rio só tinha sentido conjugada ao apoio do setor
primário.
Assim, se o programa do Partido Republicano
Rio-Grandense contava entre os seus postulados a
proteção às indústrias do país, ao mesmo tempo
propunha-se a animar o desenvolvimento da agri
cultura, da criação e das indústrias rurais. Em defe
sa da indústria nacional e regional ameaçada se le
vantariam os deputados gaúchos no Congresso Na-
17
cional em 1891, denunciando o convênio assinado
entre o governo federal e os Estados Unidos, o
qual, em troca da entrada do café no mercado norte-
americano, deixava entrar no Brasil, livre de direi
tos, produtos provenientes daquele país, tais como
farinha, banha, máquinas, etc. Ainda em defesa da
industria, os deputados rio-grandenses no Congres
so advogariam medidas de benefício às empresas
brasileiras em geral e não a concessão de privilégios
a fábricas específicas (Deputado Homero Batista.
Anais da Câmara dos Deputados. 1892. v. 5, p. 18-
9). Da mesma forma, quando parlamentares de ou
tros estados lembravam que o Tesouro Nacional
sustentara a guerra civil de 1893-95 no Rio Grande
contra os federalistas e que isso fizera progredir as
indústrias no estado, o deputado Pinto da Rocha de
fendeu-se dizendo que o Rio Grande nunca pedira
nada aos cofres da União para proteção de suas in
dústrias e que, se elas estavam prósperas, isso se
devia "à inteligência e aos capitais dos próprios in-
dustrialistas" (Deputado Pinto da Rocha. Anais da
Câmara dos Deputados. 1895. v. 6, p. 449).
Da mesma forma, o deputado Victorino Montei
ro, em 1895, argumentava na Câmara que o pro
gresso industrial do Rio Grande do Sul não poderia
ser atribuído ao encilhamento. O encilhamento., po
lítica econômico-financeira levada a efeito pelo go
verno federal entre os anos de 1891 e 1894, caracte
rizara-se pela ampliação do meio circulante do país
através da emissão de dinheiro e pela ampliação do
crédito, medidas estas postas em prática para satis
fazer as necessidades do café e de uma economia
que passava a basear-se no trabalho assalariado. Di
zia o deputado gaúcho no Congresso: "Não partici
pamos destes favores e ninguém poderá contestar
que o surpreendente progresso industrial rio-gran-
dense seja exclusivamente devido à iniciativa e ao
esforço dos filhos daquela terra" {Anais da Câmara
dos Deputados. 1895. v. 2, p. 536).
Na Assembléia de Representantes, os deputa
dos, para favorecer as indústrias, estabeleciam uma
18
tática de redução alternada dos impostos de expor
tação para beneficiar igualmente todos os ramos in
dustriais e ao mesmo tempo não reduzir de forma
drástica as receitas do governo no que dizia respeito
à arrecadação de impostos {Anais da Assembléia
dos Representantes. 1894-1898). Da mesma forma,
procuravam incentivar a racionalização e o aperfei
çoamento dos processos produtivos, estabelecendo
delegacias de higiene para fiscalizar a qualidade da
fabricação, de molde a obter bons produtos com
aceitação no mercado {Relatórios de Presidentes do
Estado, anos 1899-1900).
Em 1896, o imposto de indústrias e profissões
já ocupava o 3- lugar entre as fontes de receita do
estado, o que faria o secretário da Fazenda comen
tar em seu relatório: "este fato, que desde si é bas
tante significativo, nos deve merecer maior reparo
[•••] A rentabilidade que trata tem ido sempre em
progresso crescente, atestando por tal forma o de
senvolvimento de nossa atividade e progresso in
dustrial" {Relatório da Secretaria da Fazen
da. 1896. p. 23).
E claro que tais medidas protecionistas da parte
do governo não podem ser tomadas no sentido de
que o Rio Grande do Sul vivenciava um processo
Operário da Fundação Becker, 1903
de industrialização fabril, mas é também inegável
que tanto a preocupação com o setor secundário se
inseria nas metas do governo republicano quanto
uma ordem urbano-industrial emergia lentamente.
Numa época em que são falhas as estatísticas e
outros dados quantitativos que atestem ou compro
vem o surgimento das fábricas, uma comparação
entre os catálogos das exposições realizadas no Rio
Grande do Sul em 1875, 1881 e 1901 pode fornecer
um quadro da evolução industrial da região. En
quanto que em 1875 predominavam as empresas de
pequeno porte, que empregavam reduzido niSmero
de trabalhadores e precária tecnologia, baseando-se
muito mais nas ferramentas do que nas máquinas,
em 1881 já há um crescimento significativo do nú
mero e da qualidade de empresas maiores, geral
mente localizadas nos maiores centros urbanos da
época. Embora apresentando ainda um baixo capital
por unidade de produção e combinando o uso de
ferramentas simples com máquinas importadas -
mecânicas, a vapor ou elétricas -, estas empresas
representaram uma centralização de recursos nas
mãos de empresários capitalistas.
Em 1897, o Almanack Litterário e Estatístico
do Rio Grande do Sul comentava que a indústria
fabril estava próspera e se desenvolvia "a olhos
vistos de ano para ano". O Almanack destacava,
basicamente, as importantes inovações tecnológicas
presentes nas maiores empresas, constando de má
quinas vindas da Alemanha ou Inglaterra, via de re
gra acompanhadas de técnicos para fazê-las funcio
nar. O trabalho dividia-se em várias secções e essas
empresas destacavam-se das demais pelo elevado
capital, valor de produção anual e significativo nú
mero de operários. Em 1901, na grande exposição
realizada em Porto Alegre na virada do século,
apresentaram seus produtos aquelas que viriam a ser
as maiores indústrias durante a República Velha:
Berta, Becker e Ullner (fundição). Companhia Fia
ção e Tecidos Porto-Alegrense, Companhia Fabril
Porto-Alegrense, Companhia Tecelagem Ítalo-Bra-
20
sileira. Companhia União Fabril, sucessora de
Rheingantz (têxtil e vestuário), Steigleder (carpinta-
ria), Rodolpho França (banha), Neugebauer (cho
colates), Christoffel e Ritter (cervejaria). Os jornais
da época atestam a dinâmica das necessidades de
uma economia em expansão baseada no trabalho li
vre: são numerosos os anúncios de oferta e procura
de empregos e serviços que cobrem uma múltipla
gama de atividades.
Defendendo o regime republicano e os "novos
tempos", o jornal rio-grandense A Federeção (9
jun. 1981) declarava: "A indústria protegida efi
cazmente afirma-se; o trabalho nacional favorecido
concorre com o estrangeiro e o vence. Em vez da
mesquinha condição de outrora, em que muitas ve
zes, sem ter o que fazer, cruzavam os braços deses
perados e impotentes, enquanto os filhos gemiam de
fome, os proletários vêem hoje a mão-de-obra re
putada, as fábricas abrindo, florescendo as existen
tes e proporcionando-lhes trabalho e pão. O transi
tório sacrifício que fazem é largamente compensa
do, e amanhã deixará de existir, porque as indús
trias que se estabelecem suprirão em breve, a preços
reduzidos e ao alcance de todos, o necessário, aqui
mesmo fabricado".
Os republicanos rio-grandenses faziam a apolo
gia da atividade industrial, símbolo do progresso, e
pregavam a harmonia entre o capital e o trabalho
como fundamento da ordem social.
Os operários, contudo, tinham uma outra leitura
do processo.
21
o PROGRESSO NA ORDEM: AS CONDIÇÕES
DETRABALHO
Em 1893, o jornal operário de Pelotas Demo
cracia Social (3 set. 1897) fazia uma reflexão sobre
"a organização da sociedade atual": "Sempre que
se diz que a sociedade atual não está bem organiza
da, não é raro encontrar-se quem a defenda, afir
mando que a Repdblica nos deu muitos melhora
mentos-e garantias nas reformas políticas que reali
zou, as quais nos proporcionaram muita liberdade, e
que ainda poderão ser ampliadas à medida que as
necessidades o forem exigindo. Dizem mais que as
indústrias e a agricultura muito se têm desenvolvi
do, o que demonstra que há muito trabalho e como
tal não há razão para se falar em reformas sociais,
querendo mostrar com isso que estamos navegando
em mar de rosas, ou desfrutando de grande felicida
de. [...] E se assim não é, precisamos então saber
quais são as garantias que a sociedade atual oferece
aos trabalhadores. Será obrigando-os a trabalharem
durante vinte, trinta ou mais anos, sujeitos a mais
cruel exploração e sofrendo privações as mais hor
ríveis, para depois irem acabar num asilo de mendi-
cidade, quando não morrer desprezados e ignorados
em qualquer canto, como se fossem irracionais, dei
xando as famílias entregues ao mais completo aban
dono. Ou será consentindo que os menores de 14
anos vão para as fábricas sujeitarem-se a fazer tra
balhos que não estão em harmonia com as suas for
ças, aniquilando-se assim física e moralmente, ao
passo que deviam aproveitar este tempo nas esco
las?"
O quadro era, pois, revestido das cores mais
negras e contrastava com a proposta burguesa de
um progresso ilimitado e de benefícios que se am
pliariam pela coletividade em geral. Uma vez de-
22
nunciada a sua condição de explorado pelo sistema
e desassistido pelo regime republicano, o operário
procurava contrapor-se a este tratamento injusto
pela divulgação de uma imagem positiva da classe:
''O proletário é o mineiro que penetra as entranhas
da terra para de lá tirar o combustível com que se
alimentam as máquinas [...]. O proletário é o povo,
é a nação, é a humanidade [...]. Sem ele nada pro
gride, as principais fontes produtoras do capital -
agricultura, indústria e comércio - não poderão
existir [...].O proletário é forte, possante, e é gi
gante cujos ombros são as bases de toda a organiza
ção governamental, produtora e financiadora das
nações, suporta entretanto o desprezo da sociedade"
(O ProletáHOy Porto Alegre, 5 jul. 1896).
O jornal operário, que se atribuía à defesa dos
interesses desta classe, definia os trabalhadores sob
um duplo ângulo: obreiros do progresso, peça es
sencial da vida moderna, indispensáveis à socieda
de, dotados de um valor intrínseco enquanto classe,
eram contudo aviltados e humilhados pela mesma
sociedade para a qual tanto labutavam.
Independente da postura política de tais perió
dicos - fossem eles socialistas, anarquistas ou sem
filiação ideológica definida -, havia unanimidade
quanto ao fato de que, embora trabalhando dura
mente, os operários se viam privados dos benefícios
trazidos pelo progresso. Reivindicava-se, pois,
''fraternidade e justiça para aqueles a quem sempre
se reserva o pior lugar no banquete geral da vida,
cujas comodidades e confortos são feituras de suas
calejadas mãos" (Q Operário^ Cruz Alta, 1- dez.
1902).
Não se trata em absoluto de considerar que, nas
duas últimas décadas do século 19, o proletariado
urbano-industrial fosse totalmente politizado ou
apresentasse uma consciência generalizada de sua
situação de classe. Inclusive as idéias de progresso
e evolução da sociedade caras aos positivistas e di
fundidas entre a burguesia da época, estava também
presente no meio operário. O que os periódicos ope-
23
rários questionavam, contudo, era que no momento
em que a humanidade atingia um desenvolvimento
notável tão grande, a desigualdade social também se
manifestasse de forma tão violenta. Como referia o
versinho reivindicatório, bem dentro do linguajar da
época:
Proletários! Unidos brademos:
Liberdade, progresso e união:
Igualdade na pátria queremos
Baixe a força e impere a razão.
fO Proletário, Porto Alegre, 12 jul. 1896).
Em suma, o que se quer destacar é que nos jor
nais operários se encontrava o contraponto do dis
curso burguês e positivista segundo o qual o gover
no republicano promovia a "harmonia entre o capi
tal e o trabalho" e a "incorporação do proletariado
à sociedade moderna" sem traumas, de forma ordei
ra e pacífica... Neste sentido, os testemunhos são
vários, contrastando com o relato das fontes oficiais
que enumeravam o movimento ascendente das no
vas empresas surgidas no Rio Grande do Sul, com
suas novas máquinas importadas, descritas com de
talhes, seus técnicos estrangeiros, seu crescente
ndmero de trabalhadores assalariados.
Em pleno período de vigência da política eco-
nômico-financeira do encilhamento, de 1890 a
1894, que se caracterizou pela emissão e ampliação
do crédito e por medidas protecionistas que dificul
taram as importações, o jornal Democracia Social
(Pelotas, 9 jul. 1893) fornecia um quadro demons
trativo das despesas de um operário fabril compara
das com sua renda, concluindo que, ao fim de um
mês de trabalho, sobrava-lhes 840 réis! Concluía
o jornal: "O governo, decretando leis protecionis
tas, protege de fato, mas protege meia dúzia, des
protegendo milhares protege os que não precisam de
proteção, deixando os que precisam entregues ao
acaso. Dizem: o protecionismo trouxe muito traba
lho, muita extração à indústria nacional, muito in
centivo à exploração de novas indústrias, etc. etc.
24
[...] Quem ganha com isto? A grande indústria e o
grosso comércio. O povo é o eterno burro desta bis-
ca política".
Por outro lado, por efeito do encarecimento da
matéria-prima importada, face à desvalorização da
moeda, algumas fábricas foram obrigadas a suspen
der temporariamente o trabalho, como a fábrica de
velas estearinas da Companhia Industrial e Mercan
til de Rio Grande, por falta de pavios, deixando sem
emprego grande número de operários (Democracia
Social^ Pelotas, 22 out. 1893).
Portanto, o propalado protecionismo industrial
revelava-se sob uma nova faceta: inflação, elevação
do custo de vida e dos impostos indiretos, pagos por
todos, decréscimo da qualidade dos produtos e fa
bricantes estimulados pela avidez dos lucros e pela
eliminação da concorrência estrangeira.
O fim da política do encilhamento e a implanta
ção do saneamento financeiro a partir de 1894, com
a restrição ao crédito e às emissões, inauguraram
um período de concentração industrial e de melhoria
das condições de câmbio, facilitando as importa
ções. As pequenas empresas que haviam proliferado
no período anterior faliram e foram absorvidas pelas
empresas maiores que, face à valorização externa da
moeda, puderam mais facilmente investir em tecno
logia estrangeira.
Para os operários, contudo, a situação tendeu a
agravar-se, a julgar pelos depoimentos e registros
de seus jornais. Em 1896, a Gazetinha (Porto Ale
gre, 10 dez. 1896) denunciava que os patrões esta
vam reduzindo os salários dos operários, sem que
com isso reduzissem também o preço dos artigos fa
bricados. Desta forma, o patrão ampliava seus lu
cros, enquanto que a população trabalhadora tinha
duplicadas as suas perdas. Por outro lado, por efei
tos recessivos da política de saneamento financeiro,
muitas fábricas fecharam, deixando os operários
sem trabalho e sem salário (Gazetinha, Porto Ale
gre, 4 mar. 1897), em situação de desemprego e de-
25
sassistência que se prolongava por mais de um
ano.. {Gazetinha, Porto Alegre, 17 dez. 1898).
Descrevendo a situação do proletariado urbano-
industrial no Rio Grande do Sul, o Echo Operário
(Rio Grande, 23 jan. 1898) registrava: "Ganhando
salários insuficientíssimos, lutando com uma crise
de trabalho que se prolonga interminavelmente e
que já vem de longa data, o operário vê-se assober
bado pelas necessidades as quais não pode debelar
porque em tudo são superiores às suas forças".
Fazendo também uma comparação entre as des
pesas mensais de uma família operária com a sua
receita, b periódico concluía pela existência de um
déficit de 5$ para o trabalhador... Feita a compara
ção com os dados da Democracia Social para 1893,
a situação do proletariado teria piorado. Natural
mente, não podem ser tomados tais cálculos ao pé
da letra, devendo o historiador sempre precaver-se
contra a "falsa segurança" dos números... Entre
tanto, são registros significativos que, tomados em
conjunto com os demais, formam um quadro indica
tivo em que, pelo menos, conclui-se que a situação
dos operários não deva ter melhorado no fim do sé
culo. Mesmo jornais que não eram porta-vozes da
classe operária registravam que o embrutecimento e
desespero do povo se devia à miséria crescente a
que se via submetido {Gazeta da Tarde, Porto Ale
gre, 2 dez. 1897). Dentre todas as categorias profis
sionais operárias, aquela que era considerada a mais
explorada era a dos alfaiates. Fazendo serão, traba
lhando em casa ou na alfaiataria, recebiam os mais
baixos salários, numa longa jornada que se estendia
das 6 horas da manhã até as 9, 11 ou meia-noite {O
Alfaiate, Porto Alegre, 12 out. 1907). Neste con
texto, quais eram, pois, as condições de trabalho
nas fábricas no fim do século?
"Os operários em sua maior parte vivem como
que seqüestrados do mundo dos movimentos livres,
adstrictos a movimentos rítmicos reiterados; em al
gumas industrias principalmente, as condições se
dentárias da vida, reunidas às circunstâncas deleté-
26
rias do meio-ambiente e à privação do exercício ne
cessário ao gozo de uma saúde perfeita, constituem
um atentado à vida dos infelizes trabalhadores. Os
alfaiates, sapateiros, costureiras, tecelões são os que
estão mais sujeitos a esses esgotamentos de vida
pelas circunstâncias acima citadas, cujas conse
qüências são o aumento das estatísticas dos anêmi
cos, tísicos e escrofulosos, porque está plenamente
provado que a monotonia de muitos gêneros de tra
balho origina o aborrecimento e, conseqüentemente,
com o tédio provoca a anemia, a mais clara das ma
nifestações dela. Daí pois, chegar-se à conclusãode
que os trabalhos musculares parciais [...] podem
prejudicar a normalidade das formas, alterar a har
monia do sistema osteológico, produzindo defeitos,
tais como o crescimento das mãos, pernas e braços,
como se notam nos operários de certas profissões''
(A Voz do Operário, Porto Alegre, 1- abr. 1899).
O registro é particularmente interessante porque
constitui uma contra-argumentação aos princípios
tayloristas, que, elaborados a partir da observação
do trabalho dos operários nas fábricas americanas,
buscou instalar critérios de administração científica
nas empresas para obter maior eficiência industrial.
Nesse sentido, o método taylorista buscava extrair o
máximo de rendimento do trabalho, racionalizando
as tarefas pela sua decomposição em movimentos
ritmados, regulares, encadeados, visando economi
zar tempo e tornar o operário quase um autômato,
tal o seu condicionamento. Difundidos entre os em
presários ao longo das primeiras décadas do século
20, os princípios da administração científica do tra
balho concebido por Taylor viriam atrair também os
governos republicanos interessados em racionalizar
a produção.
Prosseguindo na sua crítica às condições de tra
balho nas fábricas, os jornais operários denuncia
vam: "a todos os males acima mencionados, reúna-
se as más condições higiênicas das oficinas com at
mosfera geralmente impregnada de vapores deleté
rios, de poeira nociva, de gérmens nefetínicos, o
27
traumatismo cirúrgico sob todas as formas e teremos
o quadro negro de que sofre o operário e que Karl
Marx assim descreveu" (A Voz do Operário^ Porto
Alegre, abr. 1899).
Dentro de uma postura socialista, o jornal ope
rário buscava encontrar no Rio Grande as "fábricas
satânicas" descritas por Marx na Inglaterra algumas
décadas antes. Trata-se, sem duvida, de um discurso
ideológico, politizado e com o objetivo de despertar
no operário a consciência de pertencer a uma classe
explorada e dominada mundialmente pelo capital.
Para os líderes operários da época, esta meta políti
ca ou este procedimento estratégico tanto mais se
fazia necessário quanto mais se verificava que parte
do proletariado era cooptado pelo governo e pelos
empresários.
Muitas vezes, ao serem entrevistados, os traba
lhadores afirmavam ter respeito e admiração pelo
"bom patrão" (entrevista com operário da Rhein-
gantz, de Rio Grande; Democracia Social^ Pelotas,
31 dez. 1893), numa clara demonstração de que as
práticas de assistência social promovidas pela em
presa (caixa de socorros, casas para operários) esta
vam tendo êxito. Numa época em que o próprio em
presário se encontrava presente dentro da fábrica, à
vista dos empregados, o paternalismo nas relações
capital/trabalho tinha um vasto campo de ação. Por
vezes, o mito do enriquecimento pelo trabalho ou a
saga do imigrante perseverante que vencera na vida
com o seu suor se impunham ideologicamente, di
fundidos pelos próprios empresários que se esforça
vam por relembrar que eles, nas suas origens, eram
pobres e haviam chegado como imigrantes também
(P Operário^ Cruz Alta, 1- jan. 1903).
O fato de haver operários cooptados pelo siste
ma não invalida a existência de vozes discordantes
que, embora inflamadas por uma clara ideologia de
contestação à ordem burguesa, apontam para a
existência de condições de trabalho e de vida dis
tintas daquelas alardeadas pela burguesia e pelo go
verno.
28
Deve-se ter em conta ainda que, se as condições
fossem tão boas ao nível das empresas, não ocorre
riam greves operárias reivindicando melhores con
dições de trabalho, higiene das fábricas, melhor
tratamento dos mestres e fiscais para com os operá
rios, elevação de salário, diminuição da jornada de
trabalho, etc. Ocorreram neste período várias greves
de trabalhadores: em abril de 1890, os tipógrafos de
Pelotas rebelaram-se em função das condições de
pagamento de trabalho; em julho de 1890, em Rio
Grande, 400 empregados da Rheingantz entraram
em greve, exigindo a retirada do inspetor da fábrica;
em agosto de 1893, chapeleiros de Pelotas fizeram
greve por aumento salarial; em outubro de 1893,
declaram-se em greve os carroceiros de Pelotas
contra a Câmara Municipal, que ordenara o paga
mento de um imposto de rodagem sobre carroças
sem molas; em 1895, declararam-se em greve os
trabalhadores da Alfândega, da capital, pelo fato de
a polícia ter prendido alguns funcionários suspeitos
de roubo; no mesmo ano, pararam os operários da
Companhia Fiação e Tecidos Porto-Alegrense, rei
vindicando aumento de salário; por igual motivo le
vantaram-se em greve, no mesmo ano, os emprega
dos da estrada de ferro de Porto Alegre a Uruguaia-
na; ainda em 1895, tornaram a declarar greve os
operários da Rheingantz, reclamando uma hora e
meia para almoço; em 1897, ocorreram em Porto
Alegre greves dos trabalhadores da Companhia Fá
brica de Móveis contra os maus tratos do mestre da
fábrica; do pessoal operário da fábrica de chapéus
de Guilherme Eggers, por aumento salarial, e dos
trabalhadores da Tecelagem Ítalo-Brasileira, de Rio
Grande, contra a retenção dos salários pela empre
sa, a redução do pagamento dos operários que tra
balhavam em dois teares e o aumento da jornada de
trabalho em uma hora e meia; em 1898, retornavam
à greve os carroceiros da capital e o pessoal de des
carga na estação de Cacequi da estrada de ferro
Porto Alegre a Uruguaina. Ainda em 1898, traba
lhadores do Centro Telefônico de Pelotas pararam
29
em solidariedade a um companheiro dispensado e
em Rio Grande os descarregadores da praia entra
ram em greve por aumento salarial. Note-se que,
entre as greves citadas, que atingem não só o âm
bito fabril como também o setor de serviços, se en
contram as dos trabalhadores da Rheingantz, empre
sa onde alguns operários haviam emitido opiniões
favoráveis ao patrão... Paralelamente às greves
ocorridas nessa empresa, as queixas dos seus tra
balhadores se avolumavam sem chegar a constituir-
se em paralisação. Reiteravam-se, por exemplo, as
queixas contra as multas cobradas pela fábrica aos
operários que estragavam peças ou instrumentos de
trabalho ou contra a proibição de que se ensinasse
na escola da fábrica aos filhos dos operários algo
siérn das quatro operações, leitura e escrita (Echo
Operário^ Rio Grande, 12 set. 1897).
Baixos salários, longas jornadas, maus tratos de
superiores e más condições de trabalho nas fábricas
eram queixas freqüentes do trabalhador do sexo
masculino e adulto. A situção se agravava quando
se tratava de mulheres e crianças. Já em 1897
constatava-se a presença de mulheres e menores na
industria, fazendo concorrência ao trabalho dos ho
mens, tendo em vista os baixos salários pagos a es
tas categorias (Echo Operário^ Rio Grande,17 out.
1897).
Ao referir a preferência das empresas em em
pregar mulheres, o Echo Operário (Rio Grande, 7
nov. 1897) comentava: "a vantagem está em que as
mulheres sujeitam-se mais à exploração que os ho
mens por trabalharem sempre mais barato que estes.
[...] Até agora só as mulheres do proletariado é que
temos visto exercer todas as profissões por pesado
que seja o exercício delas, e isso é devido à miséria
da classe a que pertencem".
A. esses argumentos acrescentavam-se outros,
de natureza moral, como, por exemplo, o fato das
mulheres serem desta forma retiradas do convívio
do lar para serem arrastadas à promiscuidade das
fábricas. Igualmente os menores, arrancados da
30
guarda dos pais, eram levados a realizar tarefas mal
pagas, sendo os primeiros a sofrerem com os aci
dentes no trabalho, tornando-se cedo inválidos.
As mulheres se viam ainda sujeitas às investidas
amorosas dos patrões, capatazes e mestres {Echo
Operário^ Rio Grande, 26 set. 1897) ou, uma vez
grávidas, eram obrigadas a realizar o mesmo traba
lho das demais, sob pena de multas e de sanções ou
mesmo o risco de serem mandadas embora (Gazeti-
nha. Porto Alegre, 24 set. 1898). Determinadas pro
fissões, exercidas preferencialmente por mulheres,
eram ainda as que sofriam maiores penalidades. O
caso das costureiras é digno de nota. Tanto eram
obrigadas a pagar com seus salários todo o material
que gastavam no serviço (linha, agulhas, grude,
etc.) quanto o produto final do seu trabalho podia
ser recusado pelo patrão, sob a alegação de que não
tinha qualidade! (JDemocracia Social, Pelotas, 19
nov. 1893). Fora tais condições, ainda se viam
obrigadas a descontos salariais como pagamento de
multas e penas caso houvesse algum dano na produ
ção, atraso na hora de entrada na fábrica ou falta ao
serviço. Aquelas que realizavam suas tarefas no lar,
sob encomenda das instituições ou empresa (como é
o caso das vidvas que costuravam para o Arsenal de
Guerra) eram freqüentemente ludibriadas no paga
mento (Gazeta da Tarde, Porto Alegre, 23 maio
1895).
A fábrica era, contudo, apenas um dos espaços
onde se desenrolavam as tranformações do fim do
século. Fora de seus muros, a ordem burguesa se
estruturava na cidade emergente.
31
o ESPETÁCULO DA CIDADE:
ASSIMETRIA SOCIAL
EOCUPAÇÃO DO ESPAÇO
O crescimento de um setor industrial manufatu-
reiro encontra-se intimamente associado ao cresci
mento das cidades. Estas, evidentemente, preexis-
tiam ao desenvolvimento industrial, mas é no bojo
da transformação capitalista da sociedade brasileira
que se deu a emergência paralela do crescimento
urbano. Foi nas cidades que a economia de mercado
se realizou historicamente, tornando-se o locus pri
vilegiado de uma série de processos ao mesmo tem
po econômicos, sociais, políticos, culturais e ideo
lógicos de afirmação e consolidação do capitalismo
enquanto sistema. Em outras palavras, a emergência
da urbanização associada ao capitalismo represen
tou muito mais do que inovações na organização da
produção, inaugurando novas formas de comporta
mento e novos valores.
Numa primeira instância, a expansão urbana
que acompanhou o desenvolvimento industrial im
plicou uma reordenação da vida econômica e do es
paço, manifesta no aprofundamento da divisão so
cial do trabalho, na concentração de recursos, das
técnicas e dos bens, no nucleamento espacial da in
dústria e numa concentração populacional sem pre
cedentes. Ora, a ocupação do espaço urbano, por
seu lado, tendeu a reproduzir a assimetria presente
nas relações sociais, impondo mecanismos de se
gregação, discriminação e confinamento.
Além disso, a concentração populacional favo
receu a comunicação entre os indivíduos, fortale
cendo a solidariedade vicinal, a troca de opiniões e
a circulação de idéias, bem como reforçou as formas
organizatórias da sociedade civil. Enquanto unidade
32
de realização da economia de mercado, a sociedade
urbana é eminentemente uma sociedade de consu
mo, na qual os meios de comunicação desencadeiam
entre a população um mecanismo de efeito-demons-
tração ao divulgarem os produtos industriais. En
tretanto, esta capacidade de consumo não pode se
efetivar de maneira uniforme, pois a cidade, embora
aja como um foco de esperança de promoção social,
é um pólo concentrador de pobreza, assim como o é
de riqueza.
O "viver em cidades" introduz uma nova con
cepção de tempo, não mais marcada pelas estações,
pelas variações climáticas. Inaugura-se uma nova
concepção de "tempo util", marcada pelo relógio,
tfpica do capitalismo e estranha à sociedade agrária.
Esta noção, uma vez introjetada no habitante da ur-
be, estabelece um "relógio moral" no interior de
cada indivíduo, compelindo-o ao trabalho e à neces
sidade de utilizar racionalmente o tempo para pro
duzir, promover o seu sustento e de sua família e
fazer face às novas necessidades trazidas pela vida
urbana. Tais transformações alteram significativa
mente os padrões de conduta. A inddstria e a urba
nização, embora eatabeleçam um processo cumula
tivo contínuo de transformações sociais e de con
centração de recursos, acabam por destruir também
progressivamente a natureza, impondo a necessida
de de repor os elementos ameaçados. Em suma, o
fenômeno urbano proporciona a emergência de no
vos problemas e põe em pauta uma série de ques
tões concretas a resolver, tais como a produção da
energia, o saneamento urbano, a habitação popular,
a racional utilização dos recursos naturais, a educa
ção e o lazer, os efeitos da tecnologia sobre o tra
balho industrial, a necessidade de organizar o mer
cado de trabalho, a definição de regras e institui
ções de controle social, a satisfação das necessida
des de abastecimento, o enfrentamento das greves,
etc.
Teoricamente estabelecida a correlação entre a
organização do espaço urbano, o desenvolvimento
33
do capitalismo e os mecanismos de controle social,
deve-se ter emconta as condições concretas objeti
vas em que essa gama de processos tiveram, ou não,
lugar no Rio Grande do Sul. Estabelecendo uma
comparação entre a população e a taxa de cresci
mento populacional do Rio de Janeiro, de São Paulo
e de Porto Alegre em três momentos diferentes, é
possível formar o seguinte quadro:
POPULAÇÃO E TAXAS DE CRESCIMENTO DOS
MUNICÍPIOS DAS CAPITAIS
Capitais População recenseada Crescimento
médio anual
1872 1890 1900
1872
a 1890
1890
a 1900
Rio de Janeiro
São Paulo
Porto Alegre
274.972
31.385
43.998
522.651
64.934
52.421
691.565*
239.820
73.674
0,0363
0,0412
0,0098
0,0284
0,1396
0,0346
*Calculada.
Fonte: SQ^ai2iX2í-àoAnuário Estatístico do Brasil, 1930/1940.
Pelos dados pode-se ver que o Rio de Janeiro
manteve a sua posição de maior centro urbano do
país, mas coube a São Paulo o salto mais espetacu
lar ocorrido justamente no período republicano, o
que sem ddvida alguma se explica pela dinamicida-
de do complexo cafeeiro ora em expansão. Entre
tanto, o caso do Rio Grande do Sul, deve também
merecer reparos. Se, em números absolutos, a po-
lulação recenseada guarda ainda certa distância em
relação àqueles apresentados pelos centros urbanos
maiores do Rio e de São Paulo, por outro lado o
crescimento médio anual é extremamente significa
tivo, comparando a primeira década republicana
com as duas ultimas décadas do Império.
O crescimento populacional de Porto Alegre
deve-se, muito provavelmente, ao desenvolvimento
do complexo colonial imigrante, no sentido de ex
portar alimentos e gêneros manufaturados simples
para o mercado central cafeeiro. Em função da di-
namização da cidade como centro comercial escoa-
dor da produção colonial, ampliaram-se as pwDssibi-
34
lidades de emprego dentro de uma economia que
transitava para o trabalho livre. Não se trata, é bem
verdade, de uma maior possibilidade de rotação de
mão-de-obra do campo para a cidade, tal como
acontecia em São Paulo, onde os imigrantes vinham
para assalariar-se e não como colonos proprietários.
Como se viu, esse processo de êxodo rural é mais
lento no Rio Grande do Sul, o que inclusive evi
dencia uma taxa de crescimento populacional urba
no mais baixa. Todavia, não é possível esquecer as
migrações cidade-cidade (do interior para a capital),
os imigrantes que já vinham diretamente para a urbe
ou ainda os efeitos da abolição da escravatura,
quando os libertos, surgida a possibilidade, tende
ram a dirigir-se para os centros urbanos maiores,
onde tinham melhores chances de ganhar a vida.
O crescimento da cidade nos primeiros anos da
República levaria a Intendência de Porto Alegre a
fixar os limites urbanos da capital pelo Ato n- 12,
de 31 de dezembro de 1892, com o objetivo de, sob
o novo regime que se inaugurara, "estender a todos
os núcleos de populações esparsos nas proximida
des da capital os benefícios da vida, administração e
policiamento da cidade", providências estas que
deviam ficar a cargo da municipalidade (Jntendên-
cia Municipal. Leis Municipais de 1892 a 1900).
A organização do espaço urbano oferecia à
burguesia emergente novas oportunidades de inves
timento de capitais. Os terrenos se valorizavam,
particularmente naquelas que eram consideradas as
zonas nobres da cidade, onde as elites, de preferên
cia, fixavam suas residências: Rua Duque de Caxias
e Avenida Independência. Mas não só de palacetes
de feição aristocrata mas habitados por burgueses
que a cidade crescia: fábricas, armazéns, oficinas,
prédios públicos se erguiam para o desempenho de
diferentes funções e para corresponderem às neces
sidades de uma cidade em expansão. Em 1893, ha
viam sido concedidas licenças para a construção de
300 casas térreas, 10 trapiches, 2 oficinas, 5 fábri
cas e 18 armazéns {Relatório do Conselho MunicL
35
pai de Porto Alegre de 1893), O governo municipal
estimulava as construções e a utilização e aprovei
tamento do solo urbano, como se pode ver nas me
didas tomadas em 1896 da criação de um imposto
adicional sobre os terrenos baldios que ainda exis
tiam no centro da cidade {Anais do Conselho Muni
cipal de Porto Alegre de 1896),
Caberia lembrar que Rudolf Ahrons, o famoso
engenheiro responsável por um grande número de
edificações em Porto Alegre no início do século,
particularmente de prédios públicos, mas também de
fábricas e residências burguesas, abria seu escritório
de engenharia e arquitetura em 1895.
A valorização do solo urbano abria caminho pa
ra a especulação imobiliária. Formaram-se compa
nhias loteadoras que, arrematando terrenos por bai
xo preço, passaram a vendê-los à população, ex
pandindo a urbanização da cidade para zonas até
então inabitadas.
Em particular, um problema se configurava para
a burguesia emergente: o do assentamento de uma
população pobre, trabalhadora das fábricas e que,
por conveniência e controle, deveria habitar próxi
ma dos locais de trabalho. Nesse sentido, surgiu a
Companhia Territorial Porto-Alegrense, responsável
pelo loteamento dos bairros operários Navegantes e
São João em 1895, sob a direção do capitalista José
Lins Moura de Azevedo. Na mesma época, sob a
iniciativa de Manoel Py, comerciante e industrialista
da capital, realizava-se o loteamento do bairro Au
xiliadora. Surgia assim, com o crescimento da cida
de, o "problema habitacional". Se, para o pobre,
ele se configurava em termos de encontrar um lugar
onde morar a baixo preço, para a elite e o governo a
questão apresentava outras conotações. Habitação
para as classes menos afortunadas podia se conver
ter numa fonte de renda para aqueles proprietários
de casarões no centro da cidade, assim como tam
bém lotear zonas periféricas da cidade, afastadas do
centro mas próximas às fábricas, se apresentava
como um negócio lucrativo para a burguesia emer-
36
Passava a investir na especulação imobi
liária. ara a opinião publica em geral, de tendência
conserva ora, a existência de cortiços, porões, ca
sebres e barracos sem ar e sem luz, infectados e su
perlotados, era Um problema a ser atacado. Pobres
no centro a cidade, à vista de todos, em antros de
promiscuidade e sujeira, implicavam sobretudo uma
questão moral que devia ser solucionada.
Mais do que a todos, entretanto, era ao poder
pdblico que cabia apresentar soluções. A Repáblica
fora procl^ada sob os auspícios do progresso e do
trabalho livre, mas dentro de ordem, e populações
pobres sem teto convertiam-se em focos de tensão
social, que era preciso evitar. Quando da proclama-
ção da República, registravam-se 5.996 prédios em
Porto Alegre, 4.692 casa térreas, 464 assobradadas
e 634 sobrados, 65 fora da divisa da cidade, e ainda
141 cortiços. Se para as demais edificações a esta
tística calculava uma população de 8 a 12 pessoas
por casa, nos cortiços '*a aglomeração é tal que di
ficilmente se chegará a um bom recenseamento en
tre seus habitantes, a maior parte sem família e vi
vendo em promiscuidade repugnante" (Armário do
Estado do Rio Grande do Sul. 1892).
A este quadro ainda poderiam ser acrescentadas
certas "heranças" do regime monárquico que a Re
pública deveria resolver: em 1889, os colonos imi
grantes não aceitaram as terras a eles destinadas e
voltaram à capital, ficando a perambular pelo Mer
cado Público, sem teto e sem trabalho, a esmolar ou
a biscatear, sujeitos a doenças (Mercantil^ Porto
Alegre, fev.-mar. 1889). A Intendência Municipal
tinha, pois, como atribuição tentar resolver o pro
blema habitacional das classes populares. O jornal
Gazeta da Tarde (Porto Alegre, 13 mar. 1896), de
tendência conservadora e moralista, recomendava
que competia aos poderes públicos criar habitações
baratas para os pobres, como meio de "sossego e
moralização", com o que os afastava da taberna, e
os concitava à vida familiar, regrada e parcimonio-
sa. Portanto, tal como a questão era apresentada.
37
aquilo que era problema do trabalhador apresenta
va-se também como problema do patrão: sem casa
própria, o operário descambava para a promiscuida
de, a bebida, o vício, e os empregadores e o próprio
Estado só teriam a lucrar com a efetivação de medi
das que eram não apenas econômicas, como sobre
tudo moralizadoras. Como vantagem adicional, o
periódico lembrava que o operário, uma vez deten
tor de casa própria e integrado a uma vida familiar
tranqüila, poderia viver feliz mesmo com um salário
modesto.
A opinião publica conservadora recriminava a
existência de cortiços, porões, casebres e barracos
que, superlotados e infectados, sem ar e sem luz,
eram antros de promiscuidade e sujeira. Argumen
tava a Gazeta da Tarde (Peto Alegre, 17 jan.
1898): "A moradia em porões, é de necessidade ur
gente proibir, mas de modo terminante, sem transi-
gências. Os pseudo-filantropos, proprietários de po
rões e cortiços, perguntariam logo: mas onde irá
morar esta gente pobre? É fácil a resposta. [...] Os
arrabaldes estão aí e devem ser habitados pelos
proletários. Na cidade propriamente dita, só devem
residir os que podem sujeitar-se às regras e precei
tos da higiene". "Quem é pobre não tem luxo [...]
more na cidade quem tiver condições de cidadão"
(Gazeta da Tarde^ Porto Alegre, 12 abr. 1897).
Portanto, os moradores dos cortiços, "indiví
duos sujos, sem escrúpulos de ordem alguma" (Ga
zeta da Tarde^ Porto Alegre, 17 jan. 1898), "gente
de ínfima classe social" (Gazeta da Tarde^ Porto
Alegre, 15 fev. 1896), com "caras patibulares", de
veriam ser retirados do convívio dos cidadãos e
ocultos da vista das famílias de bem. O povo das
ruas era pois um conjunto de indivíduos "feios, su
jos e malvados", que, a bem da ordem e do progres
so, urgia que se retirassem do centro da cidade. A
Intendência tomava providências no sentido de im
pedir a superlotação dos cortiços, multando os pro
prietários (Gazeta da Tardey 4 dez. 1896). E apre-
sentavam-se sugestões para proibir a moradia em
38
porões e elevar o pagamento da décima naquelas
que não apresentassem boas condições ... Solicita
va-se à Intendência que adotasse um tipo mínimo
para as edificações no perímetro urbano da cidade,
evitando a proliferação de casas de cômodos que
surgiam, fruto da exploração imobiliária dos "usuá
rios da terra" {Gazeta da Tarde, Porto Alegre, 12
abr. 1897).
Em suma, com a ocupação do espaço urbano e a
valorização dos imóveis, a especulação imobiliária
havia se revelado uma nova forma de acumulação
capitalista. Por outro lado, numa cidade que preten
dia assumir contornos modernos e urbanizar-se, a
presença de cortiços superlotados, pouco higiênicos
e promíscuos era uma triste imagem que se deveria
afastar. Na divisão do espaço que obedecia à assi
metria social, os subalternos deveriam ser varridos
da área central, levados aos subúrbios, aos arrabal
des, às novas áreas que eram loteadas, sob o influxo
da mesma atividade imobiliária que remodelava o
velho centro da cidade. Para essa operação, ao
mesmo tempo saneadora, moralizante e especulativa
mas sempre baseada em critérios classistas, conver
giam as opiniões dos homens de governo e daqueles
mais situados socialmente. Naturalmente, as ações
do governo e a opinião pública iriam se chocar com
Rua Marechal FSoriano, final do século. Porto Alegre
a especulação realizada contra os proprietários dos
cortiços e porões onde moravam os pobres, mas este
seria um conflito a ser resolvido quando se tratasse
de botar abaixo a velha moradia para dar lugar às
novas construções. Nesse caso, a valorização dos
imóveis nas zonas mais centrais daria novamente
lucros aos proprietários.
A questão habitacional, como não poderia dei
xar de ser, era também sentida por aqueles mais di
retamente atingidos pelo problema, que, contudo,
tinham uma leitura diferente da realidade. Para os
moradores dos cortiços, culpados eram os proprietá
rios das casas, que elevavam o preço dos aluguéis
a níveis exorbitantes e dividiam o espaço em cu
bículos cada vez menores para aproveitar o espaço;
culpada era ainda a Intendência, que não punha em
prática os artigos do código de posturas municipais,
multando aqueles proprietários que não zelavam
pela conservação dos prédios; a Intendência era
ainda culpada porque estimulava o aumento dos
aluguéis naquelas casas que apresentavam condi
ções razoáveis de locação e permitia a proliferação
desordenada de construções destinadas àqueles que,
sem ter recursos, eram obrigados a habitar tais lo
cais {Gazetinha^ Porto Alegre, 25 ago. 1895; 20
ago. 1898). Finalmente - e aqui residia a grande di
ferença -, se poder publico e proprietários assim
agiam, era porque o sistema político implantado
permitia que as diferenças sociais se ampliassem e
estabelecera duas classes de cidadãos: os que ti
nham direitos e os que só tinham deveres.
40
CIDADANIA EM QUESTÃO:
ZÉ POVINHO RECLAMA E EXIGE
Ao Zé Povinho:
['..] Tu sabes, ó meu Zé, o quanto custa o café,
o-pesar da mistura, a lenha e a carne que engoles.
Ciente e consciente de que, por isto, a vida te é ca-
^a., não tens mais a fazer do que dirigir-te, em
companhia do restante da população, ao nosso
ilustrado intendente municipal e pedir-lhe que não
consinta que sejamos ludibriados pelo senhorio. É
o caso: pagamos honradamente os aluguéis das ca
sas em que moramos, e portanto, vivemos ou su
pomos viver descansados de não ser incomodados
por eles, mas engano completo. Chega-lhe um su
jeito, oferece-lhe mais dez ou vinte mil réis sobre o
aluguel da sua casa e vai ele, ZÁSIChega-se com a
cara meio suja pelo acanhamento e diz-nos — o
aluguel, deste mês em diante —custa-lhe TANTO.
Se lhe serve tem a preferência, se não, desocupe a
casa. QUANTO ANTES, pois tenho quem me dê
muito mais. E sobre este arbítrio que deves recla
mar providências ao nosso ilustrado e criterioso
co-estaduano [o Prefeito]
E disse.
Zé Pedro.
(Gazetinha, Porío Alegre, 16 jan. 1896).
Zé Povinho, caricatura bastante conhecida da
época, aparecia nos jornais como o símbolo do po
vo: magro, enfezado, sofredor, desassistido pelas
autoridades, deserdado pelo sistema, reclamando
sempre. Joguete nas mãos dos políticos.
Entretanto, a República foi proclamada em no
me também da abolição dos privilégios do nasci
mento e a palavra cidadania tinha um sentido preci
so de extensão de direitos ao povo, estabelecendo
41
uma relação entre os governados, que pagavam im
postos, obedeciam às leis e votavam, e o Estado,
que administrava os serviços públicos e controlava
a política. Ora, a prática da cidadania revelava-se
uma tarefa difícil, pois, se as diferenças de nasci
mento haviam sido extintas com a Monarquia, per
maneciam aquelas advindas das diferenças sociais,
fazendo com que existissem dois tipos de cidadão.
Como refere José Murillo de Carvalho {Os bestiali-
zados, 1987): "Embora proclamado sem a iniciativa
popular, o novo regime despertaria entre os excluí
dos do sistema anterior certo entusiasmo quanto às
novas possibilidades de participação".
Esta participação almejada via-se, na maior
parte das vezes, frustrada quanto à possibilidade de
uma verdadeira "troca" ou reciprocidade na relação
cidadão/Estado. O povo via-se como um cidadão de
segunda classe, a quem só competiam deveres. E
bem verdade que constatações desta natureza já
ocorriam antes mesmo da Repdblica. Em 1880, por
exemplo, por iniciativa do Partido Liberal, fora
aprovada a Lei Saraiva, que concedia direito de
votar e ser votado aos católicos e estrangeiros natu
ralizados, assim como aos libertos, ao mesmo tempo
que realizava alterações nos critérios censitários:
dobrava a renda líquida para os cargos eletivos e
reduzia a renda necessária para ser eleitor, com o
claro propósito de garantir o voto dos colonos ale
mães. O Jornal O Século (Porto Alegre, 2 dez. 1880)
extremamente crítico frente às articulações políticas
dos partidos monarquistas, concluía que a renda lí
quida anual de 200$0C)0 para ser eleitor tirava "o di
reito de votar à ciasse menos favorecida da fortuna,
aquela a quem pertence o Zé Povinho". Um ano
depois, criticando a "afilhadagem" entre os dois
partidos, O Século (Porto Alegre, 25 set. 1881) co
mentava: "As coisas são sempre assim: brigam, de
compõem-se, esfolam-se, e por fim das contas quem
perde é o pobre Zé Povinho que paga impostos es
candalosos para serem distribuídos com os pimpo-
Ihos".
42
Republica recém-proclamada, os reclamos não
se fizeram esperar: "Onde estão estas promessas de
bem-estar, de abundância e de liberdade que a cada
passo se fazia com palavrões cheios de uma retórica
que hoje consideramos ridícula por parte deste go
verno que dirige atualmente os destinos do Estado?
[...] Esta política intolerável, imprestável mesmo,
rouba-lhe o necessário tempo para cuidar dos inte
resses do povo, deste mísero e infeliz povo que, no
entanto, é a alma do Estado, a alavanca do progres
so, o motor da riqueza pdblica" {Gazetinha, Porto
Alegre, 3 abr. 1892).
Alguns anos mais tarde, já na virada do século,
o mesmo periódico viria expressar novamente o seu
desencanto: "Nove anos faz amanhã que o trono
rnonárquico brasileiro, cedendo ao ingente esforço
dum punhado de bravos, desmoronou, caiu. [...]
Benjamin Constant, Silva Jardim e outros, convictos
e convencendo que a República era a única forma
de governo compatível com o progresso de um povo
conseguir, por meio daquele verbo eloqüente, duma
dedicação sem limites, despertar pouco a pouco no
coração frio dos indiferentes a felicidade da Pátria,
um sentimento nobre, elevadíssimo, que em breve
transformou-se em convicção arraigada. [.. ] O Bra
sil, em 15 de novembro de 1889, deixou de ser uma
monarquia republicana para ser uma República mo
nárquica. E desgraçadamente, é esta a verdade, foi
antes uma mudança de título do que uma mudança
de forma. Os abusos, os privilégios, as honrarias e
preconceitos permitidos pela constituição monárqui
ca continuavam a ser postos em prática como antes,
com a única diferença que antigamente se faziam
em nome da lei e hoje se faz desrespeitando-a so
mente. Como dantes, existem classes privilegiadas,
como dantes se fazem 'os homens para a lei e não a
lei para os homens" (Gazetinha, Porto Alegre, 14
nov. 1898).
Ambos os depoimentos refletem a reversão das
expectativas do povo em relação às promessas do
novo regime e a deturpação dos seus princípios.
43
Não se tratava de assumir uma posição reacionária,
de um "saudosismo monárquico"; o próprio perió
dico afirmava que a República era um "fato consu
mado" e que era através dele que as soluções deve
riam ser buscadas. Entendia-se, contudo, que, se a
República estabelecera o princípio de que todos os
cidadãos eram iguais perante a lei, era deplorável
que só ocupassem cargos "homens pergaminhados
ou com bens de fortuna, em detrimento dos interes
ses da massa anônima que constitui a verdadeira
opinião popular de um país, visto como é a maio
ria" {Gazetinha, Porto Alegre, 10 nov. 1898).
O operariado era um instrumento inconsciente
do jogo de poder e os pleitos eleitorais não lhe di
ziam respeito uma vez que os trabalhadores não ti
nham representantes seus no meio político (Gazeti-
nha. Porto Alegre, 17 abr. 1892).
Entretanto, se o jogo político era vicioso e o re
gime traíra suas promessas, o poder público era o
responsável pelas condições de vida e de trabalho e
pelos serviços urbanos que eram sustentados pelos
impostos pagos pelos contribuintes. Em síntese, a
cidadania era invocada como direito e não apenas
dever para os desfavorecidos. O habitante das cida
des, eleitor e pagador de impostos, considerava-se
com competência para reclamar e exigir do poder
público aquilo que lhe cabia prover e realizar. Natu
ralmente, em se tratando de serviços públicos urba
nos, o questionamento se dava em termos de admi
nistração municipal.
Acusava-se o governo do município responsá
vel pela não aplicação da receita arrecadada através
dos impostos. Em vez de revertê-la na melhoria dos
serviços urbanos que beneficiariam a própria comu
nidade, o governo ampliava os quadros do funcio
nalismo estadual para dar empregos aos seus parti
dários e simpatizantes {Gazetinhaj Porto Alegre, 29
nov. 1898). Neste sentido, caberia lembrar que o
Partido Republicano Rio-Grandense era formado
por uma coalizão de setores agrários e não-agrários
da burguesia local, que estendia sua ação em busca
44
do apoio do colonato e das classes médias urbanas.
Com relação aos setores médios, a tática essencial
era a ampliação do numero de empregos no funcio
nalismo publico, fórmula clássica de cooptação da
pequena burguesia pelo Estado.
A má aplicação dos recursos públicos era, pois,
causa de Porto Alegre não poder comparar-se a ou
tras capitais do país, como Rio de Janeiro, São
Paulo, Salvador e Recife {Gazetinha, Porto Alegre,
19 ago. 1898). Na opinião do periódico operário.
Porto Alegre se ressentia da falta de esgotos, de
transportes públicos adequados e do precário cal
çamento das ruas, além de ser pouco ajardinada,
mal abastecida de água, fracamente iluminada, etc.
A principiar pelo código de posturas munici
pais, constatava-se que os cidadãos deveriam cum
prir à risca a execução das posturas, mas não tinham
o direito de queixar-se da inobservância de determi
nadas disposições. Ou seja, em determinada situa
ção, o governo era rigoroso na aplicação das leis e
na prática de obrigar o cidadão a observá-las; nou
tros casos, deixava de fiscalizar a aplicação das leis,
justamente nos casos em que os cidadãos eram pre
judicados... Com isso, as leis da Republica caíam
em descrédito, gerando confusão e anarquia. A lei
só era aplicada "aos pequenos" e desaparecia
diante "da casaca e da luva" (Gazetinha, Porto
Alegre, 6 ago. 1898).
Uma outra queixa, bastante antiga mas que se
renovava continuamente através dos anos, com o
que se constata que não era de fácil solução, era a
relativa ao saneamento da cidade. As ruas não eram
limpas, a cidade não tinha esgotos cloacais, o reco
lhimento do lixo era mal feito e, como coroamento
destes "descasos das autoridades", as epidemias
encontravam um ambiente propício para se desen
volver. Entendia-se, segundo os conhecimentos da
época, que os locais sujos e putrefatos exalavam
emanações conhecidas como miasmas, que transmi
tiam doenças. As pesquisas de Pasteur e Koch
questionaram a concepção de que as doenças se
45
transmitissem através do ar contaminado, esponta
neamente, a partir de substâncias em fermentação,
mas sim através de bactérias presentes no ar e que
deveriam ser combatidas por uma vacina adequada.
No caso do Brasil, ambas as idéias se justapunham.
Para combater as doenças, tanto se apelava para a
teoria dos miasmas, com o que se bradava por ar,
luz e desodorização dos ambientes infectos habita
dos pelos pobres, quanto se principiou a difundir o
uso das vacinas como grande novidade do fim do
século para acabar com as doenças e garantir um
povo saudável e com aptidão para o trabalho.
Para as classes dominantes, a higienização das
zonas proletárias da cidade fazia parte de uma es
tratégia mais ampla de disciplinarização das classes
trabalhadoras. Trata-se de um conjunto de práticas
burguesas que se interligam a outras, presentes
dentro da fábrica e fora dela e que se relacionam
com a própria conformação do mercado de trabalho
livre no país e na elaboração de instrumentos de
controle sobre a classe subalterna. Na empresa este
processo se viabilizava através da divisão do traba
lho, da introdução de máquinas, da utilização de
fiscais para controlar a produção, da imposição de
códigos de disciplina, da aplicação de multas, etc.
Fora dos muros da fábrica, o processo de domina
ção do capital sobre o trabalho se expressava pela
tentativa de reordenação da vida dos operários nos
seus múltiplos aspectos: habitação, educação, lazer,
saúde, etc. O sentido último deste movimento era
circunscrever espaços, hábitos e atitudes segundo
um padrão desejado; conformar um proletariado tra
balhador, dócil, morigerado, saudável, satisfeito,
adaptado; era ainda contornar os focos de tensão
social pela imposição de uma ética e uma ordem
burguesas, norteadas pelos ideais de higiene, pou
pança, trabalho livre e ordem social. O povo das
ruas, habitante dos cortiços, era o objeto preferen
cial da "desodorização".
Mas o Zé Povinho apelava também aos miasmas
para reclamar por seus direitos, mostrando na práti-
46
ca que a circularidade da cultura fazia com que
conceitos científicos difundidos na época atingissem
também a classe trabalhadora. Pensando no seu
bem-estar, Zé Povinho reclamava por seus direitos
Usando os mesmos argumentos dos médicos higie-
nistas e das autoridades: era preciso asseio e provi
dências do governo. Neste sentido, embora movido
pela convicção de que perseguia seus direitos, em
certa medida o povo das ruas colaborava e até
apressava uma estratégia de higienização da cidade.
As medidas de saneamento urbano foram em
preendidas progressivamente pelos governos ao
longo da Repdblica Velha. A tarefa, contudo, não
era fácil, pois demandava dinheiro, derrubada de
Velhos hábitos, agilização da máquina estatal e em
prego de tecnologias até então desconhecidas, pre
conceitos e resistências. Desde o Império que os
serviços de limpeza pública da capital eram objeto
de muita discussão. O recolhimento do lixo urbano
era feito por empresas particulares mediante con
trato de empreitadas. O código de posturas munici
pais determinava que o lixo fosse depositado em va
silhames apropriados para serem recolhidos pelas
carroças destinadas para tal fim, sendo cobradas
multas aos infratores. Do mesmo modo, era proibido
que se atirassem às ruas as águas servidas e os de
jetos fecais. O asseio público - recolhimento dos
dejetos fecais - era realizado também por firmas
particulares, que despejavam o material em alguns
pontos do Guaíba.
O aspecto sanitário da cidade, contudo, deixava
a desejar: "inúmeras ruas há cujo trânsito repugna a
população, devido aos miasmas que exalam as sar
jetas, motivados pelos despejos feitos pelos canos e
ainda pelo lixo e águas servidas atiradas à rua"
{Mercantil, Porto Alegre, 11 jan. 1884).
Ligado à questão da insalubridade dos cortiços,
do asseio público e do recolhimento do lixo, acha
va-se o problema das epidemias, que tendiam a au
mentar durante os meses de verão. Desde o Império
que o temor das doenças afetava a opinião pública.
47
Ora era a varfola que fazia as suas vítimas {Gazeta
de Porto Alegre^ Porto Alegre, 1- jan. 1879), ora
era o cólera morbus que ameaçava a população da
capital {Democracia, Porto Alegre, 14 de jan.
1887). Naturalmente, a maior parte das vítimas se
registravam no meio da população pobre. O novo
governo republicano teve, pois, como uma de suas
tarefas urgentes encarar o saneamento da cidade. O
destino do lixo coletado, por exemplo, teve encami
nhamento através da incineração. Ja~em 1888, o go
verno provincial abria um crédito em nome da mu
nicipalidade para a construção de um forno crema-
tório. Com a República, foi aberto um novo crédito
pelo governo estadual para a Intendéncia aplicar em
tal fim, resultando a construção do forno do lixo no
bairro da Azenha.
O estado sanitário da cidade foi matéria de dis
cussão no Conselho Municipal em 1893, sendo
alertado que, segundo dados estatísticos. Porto Ale
gre era uma das cidades que relativamente apresen
tava maior número de óbitos diários, o que sem dú
vida alguma se devia ao despejo de materiais fecais
ao lado da cadeia civil, em local próximo ao centro
urbano. Foi sugerida a sua remoção para a Ponta do
Dionísio, em local mais afastado, havendo contudo
necessidade de discutir qual o mais prático meio de
transportar os dejetos até aquele ponto {Conselho
Municipal de Porto Alegre, 1893). Referiam os
anais do Conselho que "o que mais incomoda aos
vizinhos não é o despejo ao lado da cadeia, é a bal-
deação dos 'cubos' dos carros para o trapiche", es
petáculo particularmente desagradável à vista e ao
olfato...
Referia a Gazetinha em 24 de janeiro de 1892:
"Uma vez que se declara, como agora acontece,
uma epidemia num centro populoso como o nosso,
as autoridades devem tomar medidas de higiene im
portantes e higiênicas para atenuar o mal. A saúde
de uma população deve ser tratada com todo o crité
rio, com todo o zelo. Ele é e há de ser sempre a ba
se de todas as grandes causas. Limpar as ruas, regá-
48
Ias escrupulosamente, obrigar, com a lei, aos mora
dores a terem as suas habitações em estado de as-
seio, para isso fazendo-se representar as autoridades
encarregadas dessas obrigações; urgentemente es
tender, não uma, porém mais de uma casa em con
dições especiais para poder receber os enfermos e
tratá-los cuidadosamente, pensamos, isto é o que
devem fazer".
Identificava-se basicamente a Intendência Mu
nicipal como responsável pelo desleixo, sujeira e
abandono das ruas (22 dez. 1895) e pela condes
cendência com as enmresas que deveriam retirar o
lixo (20 fev. 1896). Águas paradas e lixo acumula
do eram focos de miasmas e o estado sanitário já
péssimo da cidade tendeu a agravar-se em 1897,
com o surto de varíola trazido pelas tropas que ha
viam regressado de Canudos e que já havia feito ví
timas na rua Baronesa do Gravataí (12 dez. 1897)
{Gazetinha^ Porto Alegre). Reclamava-se contra o
Intendente, os funcionários da limpeza urbana e os
fiscais que relaxavam a vigilância. Em suma, ataca-
va-se a estrutura administrativa municipal em seu
conjunto e aventavam-se inclusive sérias suspeitas:
"Supomos que por intervenção ou ordem de Junta
de Higiene foi adotado o sistema de não publicar-se
nos obituários insertos na imprensas as causas das
mortes havidas nesta cidade; quanto esta medida
tem de prejudicial estamos verificando agora que,
grassando, segundo nos consta, o tifo e outras mo
léstias congêneres, avultada parte da população, ig
norando isso, não toma as precauções necessárias"
(Gazetinha^ Porto Alegre, 12 dez. 1897). No exer
cício de sua cidadania, ao reclamar, o povo dava
estímulo à ação higienista e remodeladora do espaço
urbano por parte das autoridades.
Desde 1895, o governo do estado criara labo
ratórios de bacteriologia e química para melhoria da
saúde pública {Mensagem do presidente do Estado,
1895) e, a partir de 1898, a Intendência de Porto
Alegre municipalizou o serviço de recolhimento do
lixo. Formou-se, no mesmo ano, uma comissão para
49
a implantação dos esgotos, o que, contudo, só se
efetivou em 1898. A Diretoria de Higiene, por seu
turno, intensificou a sua ação fiscalizadora, nota-
damente nos bairros pobres, fiscalizando os corti-
ços. No mesmo ano de 1898, foi criada a Assistên
cia Publica, espécie de serviço médico de pronto-
socorro para atender a população da capital.
Viver em cidades e exercer a cidadania tinha,
contudo, outras facetas, além da controversa e difí
cil questão da sadde pública. A cidade crescia, ex-
pandia-se, e surgia a questão dos transportes coleti
vos urbanos. Desde 1873, a Companhia Carris de
Ferro Porto-Alegrense passou a operar as primeiras
linhas de bondes puxados a burro e a partir de 1893
entrou em funcionamento outra empresa do gênero,
a Companhia Carris Urbanos. Tais companhias
apresentavam-se como uma nova alternativa para o
emprego de capitais da burguesia emergente e
acompanharam a expansão da cidade em direção aos
bairros. Com relação aos subúrbios operários, sua
instalação foi decisiva para a ocupação destas zonas
da cidade pelos trabalhadores. Logo de início, os
bairros de São João e Navegantes foram servidos
por linhas de bonde, uma vez que um dos diretores
da Companhia Carris de Ferro era também diretor
da Companhia Territorial Porto-Alegrense, respon
sável pelo loteamento daqueles bairros. Portanto, a
ação empresarial conjugava-se no sentido de pro
mover a valorização do solo urbano e o loteamento
de zonas operárias, ao mesmo tempo que as dotava
da infra-estrutura necessária para a locomoção dos
trabalhadores de suas casas para o serviço.
Os serviços, contudo, deixavam muito a dese
jar: a imundície dos carros, as demoras excessivas,
a superlotação que gerava constrangimentos, os da-
saforos dos funcionários da empresa aos passageiros
ou seus gracejos inconvenientes eram algumas das
reclamações ouvidas contra esta sorte de transporte
público urbano. No mais das vezes alcunhados de
"quebra-ossos", os bondes não raro faziam vítimas
fatais devido ao descuido dos condutores, pelo que
50
^ Companhia Carris de Ferro Porto-Alegrense me
recia o epfteto de "assassina" (Gazetinha, Porto
^l^gre, 20 dez. 1898) e a Companhia Carris Urba
nos era acusada de fazer da viagem em seus carros
uma símile do caminho do calvário: "São descarri
lamentos, esbarradas, travas que falham. Não é sem
estar com o coração opresso que muita gente sub
mete-se à necessidade de fazer o percurso em tais
bondes" {Gazeta da Tarde^ Porto Alegre, 11 jul.
1895).
A população era instada a entrar com processos
contra a companhia responsável pelos desastres,
considerados serem estes os únicos meios que pode
riam evitar tais abusos, uma vez que implicavam
gastos para a empresa...
Outro serviço pdblico urbano bastante precário
na capital do estado dizia respeito ao fornecimento
da água. Desde a década de 60 a cidade era abaste
cida pela Companhia Hidráulica Porto-Alegrense,
empresa esta também ligada à rede de serviços pú
blicos que se apresentava como uma atraente área
para o investimento de capitais. O capitalista José
Lins Moura de Azevedo era presidente desta com
panhia, assim como era diretor-gerente da já citada
Companhia Territorial Porto-Alegrense e da Com
panhia Carris de Ferro Porto-Alegrense. Esta diver
sificação de aplicações, repetindo o mesmo empre
sário à testa de numerosas empresas, vem demons
trar a efervescência especulativa proporcionada pelo
crescimento da cidade. Esta rede de interesses era
percebida e denunciada não apenas pelo proletaria
do da cidade, através de seus jornais, mas também
por um público de extração social média e opinião
conservadora, leitor da Gazeta da Tarde, e que, tal
como as camadas mais pobres, sofria com a falta de
água e a desorganização geral dos serviços urbanos
e obras públicas. Denunciava-se que tais obras e
serviços eram monopólio de um grupo de capitalis
tas que, com a aprovação da Intendência, consegui
ram grandes lucros {Gazeta da Tarde, Porto Alegre,
17 ago. 1897).
51
Comprovando esta rede de "amparo mutuo"
entre poder e empresários que se verificava desde o
Império, vê-se que a segunda companhia autorizada
para operar no fornecimento de água à cidade -
Companhia Hidráulica Guaibense, que passou a
operar em 1891 - teve como seu primeiro gerente o
intendente da capital, Alfredo Augusto de Azevedo.
Ambas as empresas, contudo, não satisfaziam a
demanda, pelo que as reclamações persistiam: "Me
rece-nos algumas considerações as nossas atuais
companhias hidráulicas. Em todas as grandes capi
tais, é questão magna para o governo municipal que
as companhias estendam seus encanamentos para
todas as ruas da cidade de modo que todos os habi
tantes sejam fornecidos desse grande e indispensá
vel elemento [...] Entre nós, porém, onde a água é
fornecida por duas companhias, nenhuma destas sa
tisfaz a necessidade do povo. [...] Ruas há onde não
passa nenhum encanamento de qualquer das duas;
outras há em que o encanamento vai só até uma
parte das mesmas, de modo que o seu centro comer
cial e populoso ressente-se da falta d'água. Temos
outras ruas em que o encanamento é feito por parti
culares, e estes, com autorização da companhia, ce
dem aos moradores um ramal mediante alto preço.
[...] A quem cumpre remediar o mal? - à intendên-
cia municipal" (O Independente, Porto Alegre, 24
mar. 1901).
Os problemas da cidade não paravam, contudo,
por aí. A iluminação publica era outro assunto pal
pitante para as reclamações dos cidadãos que paga
vam impostos. A época da implantação da Repúbli
ca, a zona central da cidade era abastecida pelo ga-
sômetro da Praia do Riacho, explorado pela conces
sionária Companhia Riograndense de Iluminação a
Gás, enquanto que nos subúrbios predominavam os
lampiões a querosene instalados pelo município. Em
1893, a Intendência municipalizou o serviço de for
necimento de iluminação pública a gás para a capi
tal (Sérgio da Costa Franco. Porto Alegre: Guia
Histórico. 1988), sem que, contudo, resolvesse os
52
problemas neste setor, uma vez que a expansão da
rede esbarrava no alto preço do combustível neces
sário ao sistema empregado. O carvão inglês, im
portado, era de alto custo e o similar nacional, pro
veniente de São Jerônimo, não era de boa qualida
de. O resultado podia se apreciar nas numerosas re
clamações contra a escuridão das ruas, tanto nos ar
rabaldes, onde os lampiões a querosene apagavam
muito cedo, quanto no centro da cidade, onde os
combustores a gás eram insuficientes. As queixas
eram previsíveis: a população pagava os impostos
por esses serviços, mas não era bem atendida, com
prejuízos sensíveis para a segurança dos cidadãos
numa cidade às escuras... {Gazetinha^ Porto Alegre,
4 jun. 1896). Naturalmente, a crítica da Gazetinha
(Porto Alegre, 26 ago. 1898) se centrava na falta de
iluminação dos arrabaldes, habitados pela popula
ção de mais baixa renda e que contribuía, tal como
os moradores do centro, para o pagamento dos im
postos decretados para esses serviços pelo Conselho
Municipal: "a iluminação dos arrabaldes deve ser
como a do centro da cidade e ainda melhor, para
que à luz em profusão o transeunte atravesse seguro
estes compridos caminhos que conduzem aos pontos
mais extremos da cidade, livre de cair em algum
medonho precipício ou então de ser assaltado trai
çoeiramente nos sombrios barrancos de que estão
cheios as ruas dos arrabaldes".
Apesar das reclamações dos contribuintes de
que pagavam impostos para atender a tais serviços,
a Intendência alegava carência de fundos para fazer
frente a todas as necessidades, chegando a ser auto
rizada pelo Conselho Municipal a contrair um em
préstimo por meio de apólice que atendesse à defi
ciência das verbas orçamentárias (Anais do Canse-
lha Municipal de Porto Alegre. 1897). Paralela
mente a tais medidas, a Intendência voltou-se para a
alternativa da energia elétrica.
Desde 1889 que havia sido concedido o privilé
gio para explorar a iluminação elétrica ao cidadão
francês Aimable Jouvin, comerciante estabelecido
53
em Porto Alegre. Embora não tenha tido sucesso em
seus empreendimentos no interior do estado, em
Porto Alegre o fornecimento de luz elétrica para ca
sas comerciais, com ampla aceitação, estimulou um
grupo de capitalistas a adquirirem a concessão de
Jouvin e formarem uma nova empresa. A Compa
nhia Fiat Lux, fundada em 11 de maio de 1891, sob
a presidência de Graciano Alves de Azambuja e
contando com Jouvin entre seus diretores, passou a
fornecer iluminação elétrica para casas particulares
e prédios públicos, como ocorreu com o Palácio do
Governo em 1893.
O governo do estado e a Companhia Fiat Lux
entraram num acordo em 1898 a respeito das áreas
de atuação para o serviço de iluminação pública, fi
cando resguardado para a companhia o privilégio de
atender à zona central da cidade por 20 anos, a
contar de 1889, e permanecendo fora de sua atuação
o serviço de iluminação pública e repartições esta
duais (Relatório dos negócios de obras públicas,
1898/1899).
Portanto, a meta da Intendência, na virada do
século, foi buscar o difícil caminho da implantação
de uma usina elétrica que atendesse à área fora da
jurisdição da Fiat Lux, processo este que só se ulti
mou em 1908, com a criação da Usina Municipal,
que no ano seguinte permitiu a extensão da luz elé
trica aos bairros. Até lá, contudo, os reclamos dos
cidadãos continuaram a se fazer sentir, pois a ilumi
nação da cidade relacionava-se com um dos maiores
problemas apontados pelo povo: a segurança.
54
os PERIGOS DA CIDADE: Ó DA POLÍCIA!
O aumento dos crimes e das contravenções de
toda a ordem foi um dos maiores problemas da ad
ministração urbana do fim do século, assim como
também se constituiu numa das maiores preocupa
ções dos habitantes das cidades e uma das formas
mais incontestáveis da angústia social (Louis Che-
valier. Classes laborieuses et classes dangereuses.
1978). Um dos elementos centrais deste fenômeno
foi a identificação que se fez, no imaginário bur
guês, das classes trabalhadoras como classes peri
gosas ou pelo menos como potencialmente perigo
sas. Esta identificação sem dúvida deriva daquela
que era a questão central para a burguesia: garantir
a dominação do capital sobre o trabalho, mantendo
os subalternos atrelados a uma cadeia de laços ao
mesmo tempo econômicos, sociais, institucionais e
morais. Em uma sociedade como a brasileira, que
emergia da escravidão para o trabalho livre, encon
trar uma "alternativa ao chicote" (Ademir Gebara.
A formação do mercado de trabalho livre no Brasil,
1986) para compelir os subalternos ao trabalho era
uma questão mais séria ainda. Tratava-se não mais
do emprego da coersão física, mas do recurso a me
canismos ideológicos e morais que acompanhassem
e mesmo velassem a dominação do capital. Velados
ou não, tratava-se de mecanismos de dominação que
deveriam ter uma contrapartida na subordinação dos
trabalhadores, eliminando possibilidades de resis
tência a este processo.
Daí, por si só, a visualização dos subalternos
como perigosos: pobres, mal vestidos e mal ali-
mentâdõs, morando em habitações apertadas, dis
tantes e pouco higiênicas, obrigados a trabalhar
longas jornadas em troca de baixos salários, eram
55
potencialmente um perigo para a ordem burguesa e
seu corolário de progresso. Some-se a esta situação
a aglomeração populacional nas cidades, onde os
laços de convivência se tornavam mais estreitos e o
acesso às informações se fazia mais rápido, e tem-se
o espectro da turbulência, da tensão social e da re
belião convivendo com a sociedade burguesa e
obrigando a desenvolver variados mecanismos de
controle. A este contexto deve-se agregar o fato de
as cidades atuarem como ponto de atração para os
indivíduos, tendo em vista concentrarem maiores
possibilidades de trabalho e também permitirem, em
certa medida, o anonimato para certas infrações. O
resultado é não apenas o crime e as variadas contra
venções serem um elemento do cotidiano da vida
nas cidades, como também se transformarem em as
sunto de interesse particular de seus cidadãos. Se a
necessidade da maior segurança nas ruas era uma
das queixas principais do povo, a leitura das pági
nas criminais dos jornais da época era um hábito
dos cidadãos ricos, remediados e pobres.
A ordenação burguesa da realidade, numa cu
riosa combinação, realizava a apologia do trabalho
e a condenação da ociosidade ao mesmo tempo que
identificava as classes trabalhadoras como perigo
sas. Entenda-se, contudo, que não havia, segundo a
mentalidade da elite, nenhuma confusão de concei
tos: o pobre só deixava de ser perigoso pelo traba
lho continuado, ordeiro e honesto, caso contrário a
sua pobreza o levaria ao crime, à contravenção e à
vagabundagem. Logo, o papel da sociedade era im
pedir através de mecanismos de controle social, que
isso ocorresse.
A falta de segurança nas cidades se expressava
através de crimes, roubos e arruaças, que ameaça
vam a vida, a propriedade e a ordem burguesa. Os
praticantes contumazes de tais contravenções eram,
segundo a imprensa, vagabundos, bêbados e des
classificados que, sem ocupação física, viviam de
biscates e de furtos, entregues aos vícios e afetos
aos crimes, gente de ínfima qualidade que era inclu-
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  • 1. síntese k rio-grandense SandraJatahyFfesavento O cx>tídíano da república O Editora da Universidade Universidade Federaldo RioGrandedo Sul Wi A . t
  • 2.
  • 3. o cotidiano da república
  • 4. Universidade Federal ) do Rio Grande do Sul Reitor HélgioTrindade Vice-Reitor Sérgio Nicolaiewsky Pró-Reitora de Extensão Ana Maria de Mattos Guimarães EDITORA DA UNIVERSIDADE Diretor Sergiüs Gonzaga CONSELHO EDITORIAL Pina Celeste Araújo Barberena Homero Dewes Irion Nolasco Luiz Osvaldo Leite Maria da Glória Bordini Newton Braga Rosa Renato Paulo Saul Ricardo Schneiders da Silva Rômulo Krafta Zita Catarina Prates de Oliveira Sergius Gonzaga, presidente Editorada UnIversidade/UFRGS •Av. João Pessoa, 415 • 90040-000 -Porto Alegre RS Fone(051) 224-8821 • Fax(051) 227-2295 '
  • 5. Sandra Jatahy Pesavento O cotidiano da república elite e povo na virada do século Terceira edição Editora _ J daUniversidade iwv8nid«toFed«nidoRioGiindedosii Sífitese rio-grandense/3
  • 6. © de Sandra Jatahy Pesavento r edição: 1990 Direitos reservados desta edição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Capa: Paulo Antonio da Silveira Ilustração da capa: Família porto-alegrense no final do século Editoração: Geraldo F. Huff Revisão: Marli de Jesus Rodrigues dos Santos Anajara Carbonell Closs Maria da Graça Storti Féres Mônica Ballejo Canto Montagem: Rubens Renato Abreu Administração: Júlio César de Souza Dias Sandra Jatahy Pesavento Professora no Departamento de História da UFRGS. Mestra em História pela PUCRS. Doutora em História pela USP. Publicações: República Velha Gaúcha: charqueadas, frigoríficos e criadores —RS 1889'J930; História do Rio Grande do Sul; RS: a economia e o poder dos anos 30; RS: agropecuária colonial e industrialização; A Re volução Federalista; A Revolução Farroupilha; História da indústria sul-rio-grandense; Pecuária e indústria. Formas de realização do capitalismo na sociedade gaúcha no século XIX; Burguesia gaúcha. Dominação de capital e disciplina de trabalho, RS: 1889-1930; Emer gência dos subalternos: trabalho livre e ordem burguesa; Cem anos de República; Porto Alegre: espaços e vivências; Borges de Medeiros; Memória da indústria gaúcha: RS 1889-1930; De escravo a liberto: um dificil caminho; República verso e reverso; O cotidiano da Repú blica: elite e povo na virada do século; O Brasil contemporâneo; Os industriais da República; O espetáculo da rua; 500 anos de América: imaginário e utopia; História da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul: a trajetória do parlamento gaúcho; Porto Alegre cari- raía: a imagem conta a história; Os pobres da cidade: vida e trabalho -1880-1920. P472 Pesavento, Sandra Jatahy O cotidiano da república: elite e povo na virada do século / 3.ed. /Sandra Jatahy Pesavento. - Porto Alegre : Ed. da Universidade/UFRGS, 1995. (Síntese Rio-Grandense; 3) 1, República — Forma de governo — Rio Grande do Sul. 2. Rio Grande do Sul — História — Período republicano. I. Título. CDU981.65.07/.08 321.728(816.5) Catalogação na publicação: Zaida Maria Moraes Preussler. CRB-10/203 ISBN 85-7025-202-1
  • 7. SUMARIO Qual repdblica? 7 A república do progresso: trabalho livre, máquinas e riqueza 14 O progresso na ordem: as condições de trabalho 22 O espetáculo da cidade: assimetria social e ocupação do espaço 32 Cidadania em questão: zé povinho reclama e exige 41 Os perigos da cidade: ó da polícia 55 Bêbados, jogadores, prostitutas e vagabundos: as ameaças à moral e aos bons costumes 62 Homem e mulher, criança e casamento 72 Educação do povo e das elites: a distinção dos saberes 79
  • 8.
  • 9. QUALREPÚBLICA? Em 1979, o senador da Aliança Renovadora Nacional (ARENA) Francelino Pereira perguntava a uma nação que enveredava pelo tortuoso e difícil caminho da abertura: "que país é este?" A indagação, que induz perplexidade, questio namento e reflexão, foi retomada literalmente no ano seguinte por Affonso Romano de Santana na obra do mesmo nome. Sem maior indagação sobre os condicionamen tos pessoais ou políticos que levaram o senador piauiense a pronunciar frase tão instigante, a ques tão ressurge com força quando se pensa que a Re pública brasileira conta já com um século de exis tência: que país é este? qual República? Não se trata em absoluto de enveredar pelo ca minho do endosso da lendária e contraversa expres são atribuída a De Gaulle de que este não seria um "país sério". Pelo contrário, um regime que completa 100 anos, mesmo com altos e baixos, direitos e avessos, é digno de séria reflexão; o fato de pais e filhos votarem juntos para presidente da República pela primeira vez é uma questão seríssima; pensar que há séculos atrás emergiam questões, discriminações e problemas com os quais nos debatemos hoje pode ser até assustador. Ao longo destes cem anos, a República tem si do pensada de forma diferente. Em obra já clássica, Emília Viotti da Costa (JDa Monarquia à República: momentos decisivos. 1977) realizou um excelente balanço das diferentes visões historiográficas sobre o tema. Os contemporâneos ao evento, animados por um "espírito de partido" que os posicionava contra
  • 10. ou a favor do novo regime, tenderam a interpretar o 15 de Novembro ou como "obra do acaso", numa postura nitidamente monarquista, ou como um "re sultado inevitável", segundo um ponto de vista re publicano. Embora contraditórias, tais abordagens convergem para um mesmo tipo de enfoque idealis ta, marcado pelo subjetivismo e pela ênfase na atua ção dos personagens envolvidos. As versões dos monarquistas (Afonso Celso, Visconde de Ouro Preto) ou dos republicanos (Felicio Buarque) obe deceram a uma postura emocional de quem viven- ciara os acontecimentos nos primeiros e conturba dos anos da implantação do regime. No início da década de 20, quando as crises, tensões e conflitos se avolumavam, não mais na contestação do regime em si, mas "daquela Repú blica", a historiografia apresentou um avanço com a obra de Oliveira Viana (O ocaso do Império, 1923). Numa postura de tendência positivista, orientada pelas idéias de evolução, do progresso linear e do mecanismo causa-efeito. Oliveira Viana definiu uma visão até hoje veiculada em livros didáticos. Tocado por um certo saudosismo da Monarquia, o autor realizou uma revisão da transição do regime me diante o estabelecimento de certas "causas funda mentais": a questão servil, a questão religiosa, a questão militar, a questão federal. Trata-se, sem dú vida, de um esforço explicativo na direção das mo tivações dos agentes históricos (os fazendeiros es cravocratas, os padres, os militares e os cafeiculto- res paulistas) envolvidos, mas constitui-se ainda numa visão mecânica, da qual estão ausentes as no ções de processo, sistema, classe social ou mesmo de capitalismo. Novo avanço no campo da interpretação histo- riográfica da República foi dadocoma contribuição dos autores marxistas das décadas de 30, 40 e 50 (Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré, Leôncio Basbaun) que, sob a orientação do materialismo histórico, buscaram explicar a queda do regime mo nárquico pela sua inadequação ao desenvolvimento
  • 11. econômico-social do país. Ou seja, a República se ria o resultado de um desajuste entre a infra e a su- perestrutura. A partir de um contexto econômico- social em transformação (trabalho livre, expansão do café, indústria, urbanização, etc.), buscaram dis tinguir os interesses das classes sociais envolvidas, concluindo que a República teria se dado pela aliança entre setores progressistas do latifúndio ca- feicultor e as classes médias urbanas, sendo os mi litares seus porta-vozes. O enfoque é, contudo, ainda simplista e mecâ nico, reduzindo a realidade a um modelo preesta- belecido, mas tem o mérito de introduzir categorias como "sistema" e classes sociais" na análise, en tendendo a implantação da República como uma das facetas de um processo de transformações em curso na sociedade brasileira. No decorrer dos anos 60 e 70, face ao próprio amadurecimento da sociedade urbano-industrial no país e os rumos empreendidos pelo desenvolvimento econômico brasileiro, o eixo das análises no campo das ciências humanas tendeu a concentrar-se em torno das origens e da trajetória seguida pelo capi talismo no Brasil. Desta forma, houve uma tendên cia dos estudos realizados se concentrarem no pe ríodo entre 1850 e 1930, quando o sistema capita lista teria se gerado e desenvolvido intensamente a partir do complexo agrário cafeicultor nucleado em São Paulo. Neste contexto, as numerosas análises sobre a cafeicultura, a imigração, a desagregação do escravismo, a formação da indústria e da classe tra balhadora forneceram uma base para o entendi mento da transição da Monarquia para a República. Embora realizados sob distintos recortes temáti cos e de ênfase metodológica, os autores tenderam a confluir para um mesmo tipo de conclusão: a Repú blica viria corresponder, enquanto regime político, às variadas aspirações por progresso, representati- vicíade política, riqueza, estabilidade e ideal de ci vilização apresentados pelos diferentes grupos da sociedade que, por motivos variados, se encontra-
  • 12. vam em desajuste com a Monarquia. Este tipo de vi são estaria presente, de forma mais ou menos explí cita, na obra de historiadores como Bmflia Viotti da Costa, já citada, Edgard^ Carone (A República ve lha. 1970, 1971), José Ênio Casalecchi (A procla- mação da República. 1981). As "causas" ou ''questões" tradicionais seriam nestas obras retoma das à luz da noção de processo, das tranformações econômico-sociais do Império e da ação e motiva ção das classes sociais. O entendimento da Republica como uma das fa cetas de um processo mais amplo de realização do capitalismo no pais encontrou novo apoio com as análises de Florestan Fernandes sobre a revolução burguesa (A revolução burguesa no Brasil. 1975). O autor entende a revolução burguesa não como um movimento político de "assalto" ao controle do Estado pela burguesia, mas como um processo mais amplo, ao mesmo tempo de transformações econô mico-sociais - novas relações de produção, novas técnicas e formas de organização do trabalho, novas classes sociais - e de construção de estruturas polí- tico-administrativas e concepções ideológicas con- solidadoras do poder burguês. Com esse enfoque, Florestan Fernandes abre espaço para o entendi mento de República como uma das facetas deste processo amplo. Na década de 80, o tema da revolução burguesa seria retomado com as análises de Décio Saes (A formação do estado burguês no Brasil, 1888-1891. 1985) para quem tanto a Abolição quanto a Repú blica seriam momentos de realização da revolução burguesa. A proclamação da República correspon deria à dimensão propriamente política daquele pro cesso: a da construção de um Estado burguês, ou da constituição dos aparatos jurídico-institucionais através dos quais a dominação e o poder burguês se instalariam no Brasil. Como diria Iraci G. Salles (^Trabalho, progres so e a sociedade civilizada. 1986), "a república colocou-se então como a alternativa concreta de 10
  • 13. estabelecer uma ação através do Estado que assegu rasse a ampliação e a reprodução do capital". Ou seja, a República apresentava-se como o regime po lítico que melhor encarnava as propostas de pro gresso, trabalho livre, ampliação da participação política, desenvolvimento econômico, maiores oportunidades de emprego, avanço tecnológico, acesso à educação, princípios todos adequados à instalação de uma ordem burguesa. Neste sentido, o republicanismo dos cafeicultores paulistas consti- tmu-se numa espécie de projeto burguês para o Bra sil, asSim como a proposta dos republicanos gaú chos, apoiados nos princípios do positivismo, repre sentou também uma vertente regional da ordem bur guesa no Sul. A diferença residia na forma do regi me republicano: para os cafeicultores paulistas, pensava-se numa República liberal, inspirada no li beralismo clássico do século 19; para os positivistas gaúchos, tratava-se de impor uma República auto ritária, baseada nos principios de Augusto Comte. Na prática, o que vigorou foi o estabelecimento, no plano nacional, de um Estado burguês baseado num liberalismo excludente, controlado pelas elites, enquanto que, no Rio Grande do Sul a Constituição estadual implantou um regime autoritário, altamente
  • 14. hierarquizado e fundamentado numa rígida estrutura partidária. "Liberal-democrática'" ou "autoritária" na for ma, a República de 1889 foi um projeto burguês de realização política que assimilou a internalização do capitalismo no país que, contudo, tem um verso e um reverso. Ao mesmo tempo que o poder burguês se es truturava, consolidava-se política e administrativa mente, criava instituições, difundia normas e valo res, criava leis e pautava a conduta dos cidadãos, ocupava terras e erguia fábricas, remodelava cida des e propunha novos moldes deeducação, erguia- se também uma outra República, a dos cortiços e dos porões superlotados, das longas jornadas de trabalho, das greves, dos botequins, das brigas de navalha, dos subalternos, enfim. Trabalho livre, igualdade perante a lei e cida dania eram as palavras de ordem do novo regime. Para os^ trabalhadores livres e cidadãos, a "sua Re pública haveria de ser amesma eao mesmo tempo Dem diferente daquela proposta pela burguesia emergente que procurava acertar o passo com a História. 1 duas repúblicas, numa visão polarizada. Um mesmo processo histórico éque dá margem a diferentes experiências e diversos olhares ^ realidade. Doutores, proprietários de terra, polfücos de casaca, capitães de indústria, imigran tes, operários e Zé Povinho são todos atores sociais que se movimentam e vivenciam de forma diferente o processo de instalação da República. Com esta idéia, não se quer também dizer que eles pensem e ajam de forma completamente isolada e sem influencias recíprocas. Pelo contrário, se o processo de dominação/subordinação engloba tam bém a dimensão da resistência, ocorre uma circula- ridade entre formas de agir e de pensar. Se a bur guesia toma decisões e impõe seus valores, é oor sua vez também pressionada e influenciada pelo comportamento dos subalternos. Estes, por sua vez, 12
  • 15. metabolizam as normas e padrões de conduta que lhes são impostos e reagem em manifestações já aculturadas. Em suma, quando se indaga "qual Repiíblica", o que se busca é resgatar as diferentes vivências de um mesmo processo, que são ao mesmo tempo par ticulares ou específicas do grupo social a que per tencem, mas também se interpenetram mutuamente. Buscar-se-á, pois, contrapor ao projeto burguês de Repdblica outras formas de sentir e olhar esta reali dade vivenciada pelos subalternos. O resgate destas outras dimensões do processo histórico republicano já foi, de alguma forma, abor dado pelas argutas análises de José Murilo de Car valho (05- bestializados, O Rio de Janeiro e a Re publica que não foi, 1987) e também por Eduardo Silva (Ay queixasdopovo, 1988). Tais estudos centram-se na realidade do Rio de Janeiro, palco privilegiado dos acontecimentos da transição do regime, maior centro urbano da época. A problemática é contudo, universal - a da realiza ção histórica do capitalismo e da sua viabilização política através de um regime determinado, contra pondo a vivência burguesa à proletária - , tomada na sua dimensão nacional latino-americana. O recorte espacial já pressupõe, em si, uma es pecificidade dentro de um marco geral capitalista. Admitida, pois, esta especificidade, não seria possí vel aprofundá-la através da análise do regional, per seguindo a mesma temática? Como teria se com portado um dos recortes geopolíticos da nação frente o processo em curso? Em outras palavras, como uma das regiões do país —o Rio Grande do Sul —teria vivenciado a implantação da Repdblica na passagem do século 19 para o século 20? 13
  • 16. A REPUBLICA DO PROGRESSO: TRABALHO LIVRE, MÁQUINAS E RIQUEZA A instalação da Republica deu-se, pois, numa conjuntura balizada, por um lado, pelo assenta mento das bases materiais do desenvolvimento ca pitalista no país e, por outro, pela estruturação de bases político-administrativas e ideológicas de rea lização do poder burguês. Entre os anos de 1880 e 1900 - portanto, nas décadas que antecederam e se seguiram à proclama- ção da República —, a lavoura exportadora capita lista do café comandou o espetáculo da modernida de. Com abundância de terras e de mão-de-obra promovida pela imigração estrangeira, produzindo *muito" e "barato" para o mercado internacional, a cafeicultura brasileira mantinha o monopólio do fornecimento deste artigo e garantia a entrada de divisas no país. A acumulação do capital proporcionada pelo café fazia comque as idéiasde progresso e civiliza ção que vinham da Europa adquirissem um sentido preciso no Brasil. Emfunção do complexo cafeeiro, aparelharam-se portos, construíram-se vias férreas, adquiriram-se máquinas e produtos europeus para uma sociedade que se modernizava e acertava o passo com a História. As cidades cresciam e tran- fomiavam-se, criavam-se bancos para atender as ne cessidades de uma economia em expansão e para fazer frente à massa de salários num país que deixa va para trás a escravidão. As chaminés das fábricas nascentes passaram a alterar, pouco a pouco, a fi sionomia de uma nação predominantemente agrária. Café, trabalho livre, indústria e urbanização torna ram-se sinônimos do progresso, riqueza, civilização e regime republicano. Embora as atividades agrárias - pecuária e agricultura - possam constituir-se de 14
  • 17. forma capitalista, a concepção do capitalismo en quanto modo de produção plenamente configurado tende a identificar-se com o surgimento da fábrica ou indústria moderna. Com a República teria fim "o agrarismo exclusivo do Império" (Raymundo Faoro. Os donos do poder. 1969). Estruturalmente, a in dústria surgiu no país condicionada pela herança colonial escravista, pela situação de dependência em relação ao mercado externo e pelo predomínio do capital mercantil. Conjunturalmente, o primeiro surto industrial deu-se a partir da década de 80, no Centro-Sul do país, sob a hegemonia do capital agrário e mercantil e sob a subordinação ao capital comercial e financeiro internacional. Como se disse, este processo teve o seu centro deflagrador no com plexo cafeeiro do centro econômico do país, mas as demais regiões se viam também agitadas, em maior ou menor grau, por este surto de tranformação. No Rio Grande do Sul, a internalização do capitalismo ocorreu praticamente ao mesmo tempo que em São Paulo, mas a partir de uma base qualitativa e quan titativamente diferente. Enquanto que São Paulo partiu de uma base li gada ao setor de ponta da economia brasileira - o café o Rio Grande do Sul dependeu de uma acu mulação de capital comercial obtida pela venda dos gêneros agropecuários da região colonial imigrante para o mercado interno brasileiro. Logo, a disponi bilidade de capital para as inversões capitalistas foi menor no Rio Grande do Sul, assim como menor também seria o contingente de mão-de-obra livre passível de assalariar-se. Para o Rio Grande vieram colonos imigrantes para ser pequenos proprietários e não para atuar como trabalhadores livres na lavou ra, como em São Paulo. Portanto, a massa de imi grantes que deixou o campo para assalariar-se na cidade foi menor no Rio Grande do Sul do que em São Paulo. Sendo menores as disponibilidades de capital, menores seriam também as possibilidades de im portação de tecnologia estrangeira para as indústrias 15
  • 18. nascentes. Da mesma forma, o Rio Grande não foi um pólo de investimento de capitais estrangeiros e seu mercado interno, embora expressivo para a épo ca se comparado a outras unidades da Federação, também era de menores dimensões que o paulista. Entretanto, esta "pequenez" comparativa ao centro econômico do país não isolou ou privou a região de participar daquele processo global de transforma ções que o país atravessava. Analisando, pois, a realidade rio-grandense, constata-se que no fin de siècle a renovação capita lista partiu do complexo colonial imigrante e não do complexo da pecuária tradicional. Ou seja, não houve no Rio Grande do Sul uma atividade agrária de conotação capitalista que antecedesse ou servisse de base para a emergi ncia de uma ordem urbano- industrial. Pelo contrário, o capital que permitiu a inversão em indústrias proveio, predominantemente, da comercialização dos produtos coloniais ou das reservas de alguns poucos "burgueses imigrantes" que, vindos da Europa com um certo capital, aqui passavam a investir. Mesmo no caso de empresas que se formaram em Pelotas ou em Rio Grande, ci dades integradas ao complexo da pecuária tradicio nal, o capital inicial foi acumulado através da co mercialização dos produtos pecuários, mas por ação de imigrantes que naquela regiãose estabeleceram. Ao longo das duas últimas décadas do século 19, várias empresas industriais surgiram no Rio Grande do Sul, nucleadas em torno de Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande, São Leopoldo e Caxias do Sul. Já neste período é possivel delinear o tipo espe cífico de indústria que caracterizaria o Rio Grande do Sul: as "indústrias naturais", que utilizavam a matéria-prima local de origem agropecuária, com o que o Rio Grande do Sul confirmava a sua vocação de "celeiro do país", ou seja, além de produzir para o mercado regional, o estado especializava-se no fornecimento ao mercado interno brasileiro de gêne ros de subsistência, in natura ou beneficiados. Ao 16
  • 19. lado destas "industrias naturais", estabeleceu-se no estado um modesto porém estável ramo de "indús trias artificiais": o metal-mecânico, que se utilizava de matéria-prima importada para fabricar máquinas e peças para o serviço da lavoura e da industria. O governo gaúcho republicano de feição positi vista que assumiu o poder político em 1889 tinha, pois, como programa de ação básica no campo eco nômico, a defesa de um modelo diversificado e in tegrado, onde os setores agrário e secundário se in- ter-relacionavam, dando ao estado um cunho mo derno, progressista e de auto-suficiência. Apoiando-se nas idéias de Comte, o "autorita rismo ilustrado" que governava o Rio Grande re presentou uma aliança entre setores agrários e não- agrários da burguesia local que se estruturava. En tendiam, à luz dos princípios positivistas, que o progresso seria dado pelo desenvolvimento indus trial, pelo primado da ciência, pela educação e pela moral. A ciência e a indústria assegurariam o pro gresso, enquanto que a moral e a educação mante riam a ordem. Ordem e progresso, máximas burgue sas concebidas numa realidade européia a partir de um capitalismo maduro, foram adaptadas para sua execução numa realidade regional distinta. Tratava- se antes de promover a constituição do capitalismo do que de desenvolvê-lo. Por outro lado, em condi ções latino-americanas e brasileiras, o caminho para a industrialização passava forçosamente pela mo dernização agrária. Assim, o governo tinha uma proposta de defesa da indústria sem formalizar um projeto industrializante. A defesa do setor secundá rio só tinha sentido conjugada ao apoio do setor primário. Assim, se o programa do Partido Republicano Rio-Grandense contava entre os seus postulados a proteção às indústrias do país, ao mesmo tempo propunha-se a animar o desenvolvimento da agri cultura, da criação e das indústrias rurais. Em defe sa da indústria nacional e regional ameaçada se le vantariam os deputados gaúchos no Congresso Na- 17
  • 20. cional em 1891, denunciando o convênio assinado entre o governo federal e os Estados Unidos, o qual, em troca da entrada do café no mercado norte- americano, deixava entrar no Brasil, livre de direi tos, produtos provenientes daquele país, tais como farinha, banha, máquinas, etc. Ainda em defesa da industria, os deputados rio-grandenses no Congres so advogariam medidas de benefício às empresas brasileiras em geral e não a concessão de privilégios a fábricas específicas (Deputado Homero Batista. Anais da Câmara dos Deputados. 1892. v. 5, p. 18- 9). Da mesma forma, quando parlamentares de ou tros estados lembravam que o Tesouro Nacional sustentara a guerra civil de 1893-95 no Rio Grande contra os federalistas e que isso fizera progredir as indústrias no estado, o deputado Pinto da Rocha de fendeu-se dizendo que o Rio Grande nunca pedira nada aos cofres da União para proteção de suas in dústrias e que, se elas estavam prósperas, isso se devia "à inteligência e aos capitais dos próprios in- dustrialistas" (Deputado Pinto da Rocha. Anais da Câmara dos Deputados. 1895. v. 6, p. 449). Da mesma forma, o deputado Victorino Montei ro, em 1895, argumentava na Câmara que o pro gresso industrial do Rio Grande do Sul não poderia ser atribuído ao encilhamento. O encilhamento., po lítica econômico-financeira levada a efeito pelo go verno federal entre os anos de 1891 e 1894, caracte rizara-se pela ampliação do meio circulante do país através da emissão de dinheiro e pela ampliação do crédito, medidas estas postas em prática para satis fazer as necessidades do café e de uma economia que passava a basear-se no trabalho assalariado. Di zia o deputado gaúcho no Congresso: "Não partici pamos destes favores e ninguém poderá contestar que o surpreendente progresso industrial rio-gran- dense seja exclusivamente devido à iniciativa e ao esforço dos filhos daquela terra" {Anais da Câmara dos Deputados. 1895. v. 2, p. 536). Na Assembléia de Representantes, os deputa dos, para favorecer as indústrias, estabeleciam uma 18
  • 21. tática de redução alternada dos impostos de expor tação para beneficiar igualmente todos os ramos in dustriais e ao mesmo tempo não reduzir de forma drástica as receitas do governo no que dizia respeito à arrecadação de impostos {Anais da Assembléia dos Representantes. 1894-1898). Da mesma forma, procuravam incentivar a racionalização e o aperfei çoamento dos processos produtivos, estabelecendo delegacias de higiene para fiscalizar a qualidade da fabricação, de molde a obter bons produtos com aceitação no mercado {Relatórios de Presidentes do Estado, anos 1899-1900). Em 1896, o imposto de indústrias e profissões já ocupava o 3- lugar entre as fontes de receita do estado, o que faria o secretário da Fazenda comen tar em seu relatório: "este fato, que desde si é bas tante significativo, nos deve merecer maior reparo [•••] A rentabilidade que trata tem ido sempre em progresso crescente, atestando por tal forma o de senvolvimento de nossa atividade e progresso in dustrial" {Relatório da Secretaria da Fazen da. 1896. p. 23). E claro que tais medidas protecionistas da parte do governo não podem ser tomadas no sentido de que o Rio Grande do Sul vivenciava um processo Operário da Fundação Becker, 1903
  • 22. de industrialização fabril, mas é também inegável que tanto a preocupação com o setor secundário se inseria nas metas do governo republicano quanto uma ordem urbano-industrial emergia lentamente. Numa época em que são falhas as estatísticas e outros dados quantitativos que atestem ou compro vem o surgimento das fábricas, uma comparação entre os catálogos das exposições realizadas no Rio Grande do Sul em 1875, 1881 e 1901 pode fornecer um quadro da evolução industrial da região. En quanto que em 1875 predominavam as empresas de pequeno porte, que empregavam reduzido niSmero de trabalhadores e precária tecnologia, baseando-se muito mais nas ferramentas do que nas máquinas, em 1881 já há um crescimento significativo do nú mero e da qualidade de empresas maiores, geral mente localizadas nos maiores centros urbanos da época. Embora apresentando ainda um baixo capital por unidade de produção e combinando o uso de ferramentas simples com máquinas importadas - mecânicas, a vapor ou elétricas -, estas empresas representaram uma centralização de recursos nas mãos de empresários capitalistas. Em 1897, o Almanack Litterário e Estatístico do Rio Grande do Sul comentava que a indústria fabril estava próspera e se desenvolvia "a olhos vistos de ano para ano". O Almanack destacava, basicamente, as importantes inovações tecnológicas presentes nas maiores empresas, constando de má quinas vindas da Alemanha ou Inglaterra, via de re gra acompanhadas de técnicos para fazê-las funcio nar. O trabalho dividia-se em várias secções e essas empresas destacavam-se das demais pelo elevado capital, valor de produção anual e significativo nú mero de operários. Em 1901, na grande exposição realizada em Porto Alegre na virada do século, apresentaram seus produtos aquelas que viriam a ser as maiores indústrias durante a República Velha: Berta, Becker e Ullner (fundição). Companhia Fia ção e Tecidos Porto-Alegrense, Companhia Fabril Porto-Alegrense, Companhia Tecelagem Ítalo-Bra- 20
  • 23. sileira. Companhia União Fabril, sucessora de Rheingantz (têxtil e vestuário), Steigleder (carpinta- ria), Rodolpho França (banha), Neugebauer (cho colates), Christoffel e Ritter (cervejaria). Os jornais da época atestam a dinâmica das necessidades de uma economia em expansão baseada no trabalho li vre: são numerosos os anúncios de oferta e procura de empregos e serviços que cobrem uma múltipla gama de atividades. Defendendo o regime republicano e os "novos tempos", o jornal rio-grandense A Federeção (9 jun. 1981) declarava: "A indústria protegida efi cazmente afirma-se; o trabalho nacional favorecido concorre com o estrangeiro e o vence. Em vez da mesquinha condição de outrora, em que muitas ve zes, sem ter o que fazer, cruzavam os braços deses perados e impotentes, enquanto os filhos gemiam de fome, os proletários vêem hoje a mão-de-obra re putada, as fábricas abrindo, florescendo as existen tes e proporcionando-lhes trabalho e pão. O transi tório sacrifício que fazem é largamente compensa do, e amanhã deixará de existir, porque as indús trias que se estabelecem suprirão em breve, a preços reduzidos e ao alcance de todos, o necessário, aqui mesmo fabricado". Os republicanos rio-grandenses faziam a apolo gia da atividade industrial, símbolo do progresso, e pregavam a harmonia entre o capital e o trabalho como fundamento da ordem social. Os operários, contudo, tinham uma outra leitura do processo. 21
  • 24. o PROGRESSO NA ORDEM: AS CONDIÇÕES DETRABALHO Em 1893, o jornal operário de Pelotas Demo cracia Social (3 set. 1897) fazia uma reflexão sobre "a organização da sociedade atual": "Sempre que se diz que a sociedade atual não está bem organiza da, não é raro encontrar-se quem a defenda, afir mando que a Repdblica nos deu muitos melhora mentos-e garantias nas reformas políticas que reali zou, as quais nos proporcionaram muita liberdade, e que ainda poderão ser ampliadas à medida que as necessidades o forem exigindo. Dizem mais que as indústrias e a agricultura muito se têm desenvolvi do, o que demonstra que há muito trabalho e como tal não há razão para se falar em reformas sociais, querendo mostrar com isso que estamos navegando em mar de rosas, ou desfrutando de grande felicida de. [...] E se assim não é, precisamos então saber quais são as garantias que a sociedade atual oferece aos trabalhadores. Será obrigando-os a trabalharem durante vinte, trinta ou mais anos, sujeitos a mais cruel exploração e sofrendo privações as mais hor ríveis, para depois irem acabar num asilo de mendi- cidade, quando não morrer desprezados e ignorados em qualquer canto, como se fossem irracionais, dei xando as famílias entregues ao mais completo aban dono. Ou será consentindo que os menores de 14 anos vão para as fábricas sujeitarem-se a fazer tra balhos que não estão em harmonia com as suas for ças, aniquilando-se assim física e moralmente, ao passo que deviam aproveitar este tempo nas esco las?" O quadro era, pois, revestido das cores mais negras e contrastava com a proposta burguesa de um progresso ilimitado e de benefícios que se am pliariam pela coletividade em geral. Uma vez de- 22
  • 25. nunciada a sua condição de explorado pelo sistema e desassistido pelo regime republicano, o operário procurava contrapor-se a este tratamento injusto pela divulgação de uma imagem positiva da classe: ''O proletário é o mineiro que penetra as entranhas da terra para de lá tirar o combustível com que se alimentam as máquinas [...]. O proletário é o povo, é a nação, é a humanidade [...]. Sem ele nada pro gride, as principais fontes produtoras do capital - agricultura, indústria e comércio - não poderão existir [...].O proletário é forte, possante, e é gi gante cujos ombros são as bases de toda a organiza ção governamental, produtora e financiadora das nações, suporta entretanto o desprezo da sociedade" (O ProletáHOy Porto Alegre, 5 jul. 1896). O jornal operário, que se atribuía à defesa dos interesses desta classe, definia os trabalhadores sob um duplo ângulo: obreiros do progresso, peça es sencial da vida moderna, indispensáveis à socieda de, dotados de um valor intrínseco enquanto classe, eram contudo aviltados e humilhados pela mesma sociedade para a qual tanto labutavam. Independente da postura política de tais perió dicos - fossem eles socialistas, anarquistas ou sem filiação ideológica definida -, havia unanimidade quanto ao fato de que, embora trabalhando dura mente, os operários se viam privados dos benefícios trazidos pelo progresso. Reivindicava-se, pois, ''fraternidade e justiça para aqueles a quem sempre se reserva o pior lugar no banquete geral da vida, cujas comodidades e confortos são feituras de suas calejadas mãos" (Q Operário^ Cruz Alta, 1- dez. 1902). Não se trata em absoluto de considerar que, nas duas últimas décadas do século 19, o proletariado urbano-industrial fosse totalmente politizado ou apresentasse uma consciência generalizada de sua situação de classe. Inclusive as idéias de progresso e evolução da sociedade caras aos positivistas e di fundidas entre a burguesia da época, estava também presente no meio operário. O que os periódicos ope- 23
  • 26. rários questionavam, contudo, era que no momento em que a humanidade atingia um desenvolvimento notável tão grande, a desigualdade social também se manifestasse de forma tão violenta. Como referia o versinho reivindicatório, bem dentro do linguajar da época: Proletários! Unidos brademos: Liberdade, progresso e união: Igualdade na pátria queremos Baixe a força e impere a razão. fO Proletário, Porto Alegre, 12 jul. 1896). Em suma, o que se quer destacar é que nos jor nais operários se encontrava o contraponto do dis curso burguês e positivista segundo o qual o gover no republicano promovia a "harmonia entre o capi tal e o trabalho" e a "incorporação do proletariado à sociedade moderna" sem traumas, de forma ordei ra e pacífica... Neste sentido, os testemunhos são vários, contrastando com o relato das fontes oficiais que enumeravam o movimento ascendente das no vas empresas surgidas no Rio Grande do Sul, com suas novas máquinas importadas, descritas com de talhes, seus técnicos estrangeiros, seu crescente ndmero de trabalhadores assalariados. Em pleno período de vigência da política eco- nômico-financeira do encilhamento, de 1890 a 1894, que se caracterizou pela emissão e ampliação do crédito e por medidas protecionistas que dificul taram as importações, o jornal Democracia Social (Pelotas, 9 jul. 1893) fornecia um quadro demons trativo das despesas de um operário fabril compara das com sua renda, concluindo que, ao fim de um mês de trabalho, sobrava-lhes 840 réis! Concluía o jornal: "O governo, decretando leis protecionis tas, protege de fato, mas protege meia dúzia, des protegendo milhares protege os que não precisam de proteção, deixando os que precisam entregues ao acaso. Dizem: o protecionismo trouxe muito traba lho, muita extração à indústria nacional, muito in centivo à exploração de novas indústrias, etc. etc. 24
  • 27. [...] Quem ganha com isto? A grande indústria e o grosso comércio. O povo é o eterno burro desta bis- ca política". Por outro lado, por efeito do encarecimento da matéria-prima importada, face à desvalorização da moeda, algumas fábricas foram obrigadas a suspen der temporariamente o trabalho, como a fábrica de velas estearinas da Companhia Industrial e Mercan til de Rio Grande, por falta de pavios, deixando sem emprego grande número de operários (Democracia Social^ Pelotas, 22 out. 1893). Portanto, o propalado protecionismo industrial revelava-se sob uma nova faceta: inflação, elevação do custo de vida e dos impostos indiretos, pagos por todos, decréscimo da qualidade dos produtos e fa bricantes estimulados pela avidez dos lucros e pela eliminação da concorrência estrangeira. O fim da política do encilhamento e a implanta ção do saneamento financeiro a partir de 1894, com a restrição ao crédito e às emissões, inauguraram um período de concentração industrial e de melhoria das condições de câmbio, facilitando as importa ções. As pequenas empresas que haviam proliferado no período anterior faliram e foram absorvidas pelas empresas maiores que, face à valorização externa da moeda, puderam mais facilmente investir em tecno logia estrangeira. Para os operários, contudo, a situação tendeu a agravar-se, a julgar pelos depoimentos e registros de seus jornais. Em 1896, a Gazetinha (Porto Ale gre, 10 dez. 1896) denunciava que os patrões esta vam reduzindo os salários dos operários, sem que com isso reduzissem também o preço dos artigos fa bricados. Desta forma, o patrão ampliava seus lu cros, enquanto que a população trabalhadora tinha duplicadas as suas perdas. Por outro lado, por efei tos recessivos da política de saneamento financeiro, muitas fábricas fecharam, deixando os operários sem trabalho e sem salário (Gazetinha, Porto Ale gre, 4 mar. 1897), em situação de desemprego e de- 25
  • 28. sassistência que se prolongava por mais de um ano.. {Gazetinha, Porto Alegre, 17 dez. 1898). Descrevendo a situação do proletariado urbano- industrial no Rio Grande do Sul, o Echo Operário (Rio Grande, 23 jan. 1898) registrava: "Ganhando salários insuficientíssimos, lutando com uma crise de trabalho que se prolonga interminavelmente e que já vem de longa data, o operário vê-se assober bado pelas necessidades as quais não pode debelar porque em tudo são superiores às suas forças". Fazendo também uma comparação entre as des pesas mensais de uma família operária com a sua receita, b periódico concluía pela existência de um déficit de 5$ para o trabalhador... Feita a compara ção com os dados da Democracia Social para 1893, a situação do proletariado teria piorado. Natural mente, não podem ser tomados tais cálculos ao pé da letra, devendo o historiador sempre precaver-se contra a "falsa segurança" dos números... Entre tanto, são registros significativos que, tomados em conjunto com os demais, formam um quadro indica tivo em que, pelo menos, conclui-se que a situação dos operários não deva ter melhorado no fim do sé culo. Mesmo jornais que não eram porta-vozes da classe operária registravam que o embrutecimento e desespero do povo se devia à miséria crescente a que se via submetido {Gazeta da Tarde, Porto Ale gre, 2 dez. 1897). Dentre todas as categorias profis sionais operárias, aquela que era considerada a mais explorada era a dos alfaiates. Fazendo serão, traba lhando em casa ou na alfaiataria, recebiam os mais baixos salários, numa longa jornada que se estendia das 6 horas da manhã até as 9, 11 ou meia-noite {O Alfaiate, Porto Alegre, 12 out. 1907). Neste con texto, quais eram, pois, as condições de trabalho nas fábricas no fim do século? "Os operários em sua maior parte vivem como que seqüestrados do mundo dos movimentos livres, adstrictos a movimentos rítmicos reiterados; em al gumas industrias principalmente, as condições se dentárias da vida, reunidas às circunstâncas deleté- 26
  • 29. rias do meio-ambiente e à privação do exercício ne cessário ao gozo de uma saúde perfeita, constituem um atentado à vida dos infelizes trabalhadores. Os alfaiates, sapateiros, costureiras, tecelões são os que estão mais sujeitos a esses esgotamentos de vida pelas circunstâncias acima citadas, cujas conse qüências são o aumento das estatísticas dos anêmi cos, tísicos e escrofulosos, porque está plenamente provado que a monotonia de muitos gêneros de tra balho origina o aborrecimento e, conseqüentemente, com o tédio provoca a anemia, a mais clara das ma nifestações dela. Daí pois, chegar-se à conclusãode que os trabalhos musculares parciais [...] podem prejudicar a normalidade das formas, alterar a har monia do sistema osteológico, produzindo defeitos, tais como o crescimento das mãos, pernas e braços, como se notam nos operários de certas profissões'' (A Voz do Operário, Porto Alegre, 1- abr. 1899). O registro é particularmente interessante porque constitui uma contra-argumentação aos princípios tayloristas, que, elaborados a partir da observação do trabalho dos operários nas fábricas americanas, buscou instalar critérios de administração científica nas empresas para obter maior eficiência industrial. Nesse sentido, o método taylorista buscava extrair o máximo de rendimento do trabalho, racionalizando as tarefas pela sua decomposição em movimentos ritmados, regulares, encadeados, visando economi zar tempo e tornar o operário quase um autômato, tal o seu condicionamento. Difundidos entre os em presários ao longo das primeiras décadas do século 20, os princípios da administração científica do tra balho concebido por Taylor viriam atrair também os governos republicanos interessados em racionalizar a produção. Prosseguindo na sua crítica às condições de tra balho nas fábricas, os jornais operários denuncia vam: "a todos os males acima mencionados, reúna- se as más condições higiênicas das oficinas com at mosfera geralmente impregnada de vapores deleté rios, de poeira nociva, de gérmens nefetínicos, o 27
  • 30. traumatismo cirúrgico sob todas as formas e teremos o quadro negro de que sofre o operário e que Karl Marx assim descreveu" (A Voz do Operário^ Porto Alegre, abr. 1899). Dentro de uma postura socialista, o jornal ope rário buscava encontrar no Rio Grande as "fábricas satânicas" descritas por Marx na Inglaterra algumas décadas antes. Trata-se, sem duvida, de um discurso ideológico, politizado e com o objetivo de despertar no operário a consciência de pertencer a uma classe explorada e dominada mundialmente pelo capital. Para os líderes operários da época, esta meta políti ca ou este procedimento estratégico tanto mais se fazia necessário quanto mais se verificava que parte do proletariado era cooptado pelo governo e pelos empresários. Muitas vezes, ao serem entrevistados, os traba lhadores afirmavam ter respeito e admiração pelo "bom patrão" (entrevista com operário da Rhein- gantz, de Rio Grande; Democracia Social^ Pelotas, 31 dez. 1893), numa clara demonstração de que as práticas de assistência social promovidas pela em presa (caixa de socorros, casas para operários) esta vam tendo êxito. Numa época em que o próprio em presário se encontrava presente dentro da fábrica, à vista dos empregados, o paternalismo nas relações capital/trabalho tinha um vasto campo de ação. Por vezes, o mito do enriquecimento pelo trabalho ou a saga do imigrante perseverante que vencera na vida com o seu suor se impunham ideologicamente, di fundidos pelos próprios empresários que se esforça vam por relembrar que eles, nas suas origens, eram pobres e haviam chegado como imigrantes também (P Operário^ Cruz Alta, 1- jan. 1903). O fato de haver operários cooptados pelo siste ma não invalida a existência de vozes discordantes que, embora inflamadas por uma clara ideologia de contestação à ordem burguesa, apontam para a existência de condições de trabalho e de vida dis tintas daquelas alardeadas pela burguesia e pelo go verno. 28
  • 31. Deve-se ter em conta ainda que, se as condições fossem tão boas ao nível das empresas, não ocorre riam greves operárias reivindicando melhores con dições de trabalho, higiene das fábricas, melhor tratamento dos mestres e fiscais para com os operá rios, elevação de salário, diminuição da jornada de trabalho, etc. Ocorreram neste período várias greves de trabalhadores: em abril de 1890, os tipógrafos de Pelotas rebelaram-se em função das condições de pagamento de trabalho; em julho de 1890, em Rio Grande, 400 empregados da Rheingantz entraram em greve, exigindo a retirada do inspetor da fábrica; em agosto de 1893, chapeleiros de Pelotas fizeram greve por aumento salarial; em outubro de 1893, declaram-se em greve os carroceiros de Pelotas contra a Câmara Municipal, que ordenara o paga mento de um imposto de rodagem sobre carroças sem molas; em 1895, declararam-se em greve os trabalhadores da Alfândega, da capital, pelo fato de a polícia ter prendido alguns funcionários suspeitos de roubo; no mesmo ano, pararam os operários da Companhia Fiação e Tecidos Porto-Alegrense, rei vindicando aumento de salário; por igual motivo le vantaram-se em greve, no mesmo ano, os emprega dos da estrada de ferro de Porto Alegre a Uruguaia- na; ainda em 1895, tornaram a declarar greve os operários da Rheingantz, reclamando uma hora e meia para almoço; em 1897, ocorreram em Porto Alegre greves dos trabalhadores da Companhia Fá brica de Móveis contra os maus tratos do mestre da fábrica; do pessoal operário da fábrica de chapéus de Guilherme Eggers, por aumento salarial, e dos trabalhadores da Tecelagem Ítalo-Brasileira, de Rio Grande, contra a retenção dos salários pela empre sa, a redução do pagamento dos operários que tra balhavam em dois teares e o aumento da jornada de trabalho em uma hora e meia; em 1898, retornavam à greve os carroceiros da capital e o pessoal de des carga na estação de Cacequi da estrada de ferro Porto Alegre a Uruguaina. Ainda em 1898, traba lhadores do Centro Telefônico de Pelotas pararam 29
  • 32. em solidariedade a um companheiro dispensado e em Rio Grande os descarregadores da praia entra ram em greve por aumento salarial. Note-se que, entre as greves citadas, que atingem não só o âm bito fabril como também o setor de serviços, se en contram as dos trabalhadores da Rheingantz, empre sa onde alguns operários haviam emitido opiniões favoráveis ao patrão... Paralelamente às greves ocorridas nessa empresa, as queixas dos seus tra balhadores se avolumavam sem chegar a constituir- se em paralisação. Reiteravam-se, por exemplo, as queixas contra as multas cobradas pela fábrica aos operários que estragavam peças ou instrumentos de trabalho ou contra a proibição de que se ensinasse na escola da fábrica aos filhos dos operários algo siérn das quatro operações, leitura e escrita (Echo Operário^ Rio Grande, 12 set. 1897). Baixos salários, longas jornadas, maus tratos de superiores e más condições de trabalho nas fábricas eram queixas freqüentes do trabalhador do sexo masculino e adulto. A situção se agravava quando se tratava de mulheres e crianças. Já em 1897 constatava-se a presença de mulheres e menores na industria, fazendo concorrência ao trabalho dos ho mens, tendo em vista os baixos salários pagos a es tas categorias (Echo Operário^ Rio Grande,17 out. 1897). Ao referir a preferência das empresas em em pregar mulheres, o Echo Operário (Rio Grande, 7 nov. 1897) comentava: "a vantagem está em que as mulheres sujeitam-se mais à exploração que os ho mens por trabalharem sempre mais barato que estes. [...] Até agora só as mulheres do proletariado é que temos visto exercer todas as profissões por pesado que seja o exercício delas, e isso é devido à miséria da classe a que pertencem". A. esses argumentos acrescentavam-se outros, de natureza moral, como, por exemplo, o fato das mulheres serem desta forma retiradas do convívio do lar para serem arrastadas à promiscuidade das fábricas. Igualmente os menores, arrancados da 30
  • 33. guarda dos pais, eram levados a realizar tarefas mal pagas, sendo os primeiros a sofrerem com os aci dentes no trabalho, tornando-se cedo inválidos. As mulheres se viam ainda sujeitas às investidas amorosas dos patrões, capatazes e mestres {Echo Operário^ Rio Grande, 26 set. 1897) ou, uma vez grávidas, eram obrigadas a realizar o mesmo traba lho das demais, sob pena de multas e de sanções ou mesmo o risco de serem mandadas embora (Gazeti- nha. Porto Alegre, 24 set. 1898). Determinadas pro fissões, exercidas preferencialmente por mulheres, eram ainda as que sofriam maiores penalidades. O caso das costureiras é digno de nota. Tanto eram obrigadas a pagar com seus salários todo o material que gastavam no serviço (linha, agulhas, grude, etc.) quanto o produto final do seu trabalho podia ser recusado pelo patrão, sob a alegação de que não tinha qualidade! (JDemocracia Social, Pelotas, 19 nov. 1893). Fora tais condições, ainda se viam obrigadas a descontos salariais como pagamento de multas e penas caso houvesse algum dano na produ ção, atraso na hora de entrada na fábrica ou falta ao serviço. Aquelas que realizavam suas tarefas no lar, sob encomenda das instituições ou empresa (como é o caso das vidvas que costuravam para o Arsenal de Guerra) eram freqüentemente ludibriadas no paga mento (Gazeta da Tarde, Porto Alegre, 23 maio 1895). A fábrica era, contudo, apenas um dos espaços onde se desenrolavam as tranformações do fim do século. Fora de seus muros, a ordem burguesa se estruturava na cidade emergente. 31
  • 34. o ESPETÁCULO DA CIDADE: ASSIMETRIA SOCIAL EOCUPAÇÃO DO ESPAÇO O crescimento de um setor industrial manufatu- reiro encontra-se intimamente associado ao cresci mento das cidades. Estas, evidentemente, preexis- tiam ao desenvolvimento industrial, mas é no bojo da transformação capitalista da sociedade brasileira que se deu a emergência paralela do crescimento urbano. Foi nas cidades que a economia de mercado se realizou historicamente, tornando-se o locus pri vilegiado de uma série de processos ao mesmo tem po econômicos, sociais, políticos, culturais e ideo lógicos de afirmação e consolidação do capitalismo enquanto sistema. Em outras palavras, a emergência da urbanização associada ao capitalismo represen tou muito mais do que inovações na organização da produção, inaugurando novas formas de comporta mento e novos valores. Numa primeira instância, a expansão urbana que acompanhou o desenvolvimento industrial im plicou uma reordenação da vida econômica e do es paço, manifesta no aprofundamento da divisão so cial do trabalho, na concentração de recursos, das técnicas e dos bens, no nucleamento espacial da in dústria e numa concentração populacional sem pre cedentes. Ora, a ocupação do espaço urbano, por seu lado, tendeu a reproduzir a assimetria presente nas relações sociais, impondo mecanismos de se gregação, discriminação e confinamento. Além disso, a concentração populacional favo receu a comunicação entre os indivíduos, fortale cendo a solidariedade vicinal, a troca de opiniões e a circulação de idéias, bem como reforçou as formas organizatórias da sociedade civil. Enquanto unidade 32
  • 35. de realização da economia de mercado, a sociedade urbana é eminentemente uma sociedade de consu mo, na qual os meios de comunicação desencadeiam entre a população um mecanismo de efeito-demons- tração ao divulgarem os produtos industriais. En tretanto, esta capacidade de consumo não pode se efetivar de maneira uniforme, pois a cidade, embora aja como um foco de esperança de promoção social, é um pólo concentrador de pobreza, assim como o é de riqueza. O "viver em cidades" introduz uma nova con cepção de tempo, não mais marcada pelas estações, pelas variações climáticas. Inaugura-se uma nova concepção de "tempo util", marcada pelo relógio, tfpica do capitalismo e estranha à sociedade agrária. Esta noção, uma vez introjetada no habitante da ur- be, estabelece um "relógio moral" no interior de cada indivíduo, compelindo-o ao trabalho e à neces sidade de utilizar racionalmente o tempo para pro duzir, promover o seu sustento e de sua família e fazer face às novas necessidades trazidas pela vida urbana. Tais transformações alteram significativa mente os padrões de conduta. A inddstria e a urba nização, embora eatabeleçam um processo cumula tivo contínuo de transformações sociais e de con centração de recursos, acabam por destruir também progressivamente a natureza, impondo a necessida de de repor os elementos ameaçados. Em suma, o fenômeno urbano proporciona a emergência de no vos problemas e põe em pauta uma série de ques tões concretas a resolver, tais como a produção da energia, o saneamento urbano, a habitação popular, a racional utilização dos recursos naturais, a educa ção e o lazer, os efeitos da tecnologia sobre o tra balho industrial, a necessidade de organizar o mer cado de trabalho, a definição de regras e institui ções de controle social, a satisfação das necessida des de abastecimento, o enfrentamento das greves, etc. Teoricamente estabelecida a correlação entre a organização do espaço urbano, o desenvolvimento 33
  • 36. do capitalismo e os mecanismos de controle social, deve-se ter emconta as condições concretas objeti vas em que essa gama de processos tiveram, ou não, lugar no Rio Grande do Sul. Estabelecendo uma comparação entre a população e a taxa de cresci mento populacional do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Porto Alegre em três momentos diferentes, é possível formar o seguinte quadro: POPULAÇÃO E TAXAS DE CRESCIMENTO DOS MUNICÍPIOS DAS CAPITAIS Capitais População recenseada Crescimento médio anual 1872 1890 1900 1872 a 1890 1890 a 1900 Rio de Janeiro São Paulo Porto Alegre 274.972 31.385 43.998 522.651 64.934 52.421 691.565* 239.820 73.674 0,0363 0,0412 0,0098 0,0284 0,1396 0,0346 *Calculada. Fonte: SQ^ai2iX2í-àoAnuário Estatístico do Brasil, 1930/1940. Pelos dados pode-se ver que o Rio de Janeiro manteve a sua posição de maior centro urbano do país, mas coube a São Paulo o salto mais espetacu lar ocorrido justamente no período republicano, o que sem ddvida alguma se explica pela dinamicida- de do complexo cafeeiro ora em expansão. Entre tanto, o caso do Rio Grande do Sul, deve também merecer reparos. Se, em números absolutos, a po- lulação recenseada guarda ainda certa distância em relação àqueles apresentados pelos centros urbanos maiores do Rio e de São Paulo, por outro lado o crescimento médio anual é extremamente significa tivo, comparando a primeira década republicana com as duas ultimas décadas do Império. O crescimento populacional de Porto Alegre deve-se, muito provavelmente, ao desenvolvimento do complexo colonial imigrante, no sentido de ex portar alimentos e gêneros manufaturados simples para o mercado central cafeeiro. Em função da di- namização da cidade como centro comercial escoa- dor da produção colonial, ampliaram-se as pwDssibi- 34
  • 37. lidades de emprego dentro de uma economia que transitava para o trabalho livre. Não se trata, é bem verdade, de uma maior possibilidade de rotação de mão-de-obra do campo para a cidade, tal como acontecia em São Paulo, onde os imigrantes vinham para assalariar-se e não como colonos proprietários. Como se viu, esse processo de êxodo rural é mais lento no Rio Grande do Sul, o que inclusive evi dencia uma taxa de crescimento populacional urba no mais baixa. Todavia, não é possível esquecer as migrações cidade-cidade (do interior para a capital), os imigrantes que já vinham diretamente para a urbe ou ainda os efeitos da abolição da escravatura, quando os libertos, surgida a possibilidade, tende ram a dirigir-se para os centros urbanos maiores, onde tinham melhores chances de ganhar a vida. O crescimento da cidade nos primeiros anos da República levaria a Intendência de Porto Alegre a fixar os limites urbanos da capital pelo Ato n- 12, de 31 de dezembro de 1892, com o objetivo de, sob o novo regime que se inaugurara, "estender a todos os núcleos de populações esparsos nas proximida des da capital os benefícios da vida, administração e policiamento da cidade", providências estas que deviam ficar a cargo da municipalidade (Jntendên- cia Municipal. Leis Municipais de 1892 a 1900). A organização do espaço urbano oferecia à burguesia emergente novas oportunidades de inves timento de capitais. Os terrenos se valorizavam, particularmente naquelas que eram consideradas as zonas nobres da cidade, onde as elites, de preferên cia, fixavam suas residências: Rua Duque de Caxias e Avenida Independência. Mas não só de palacetes de feição aristocrata mas habitados por burgueses que a cidade crescia: fábricas, armazéns, oficinas, prédios públicos se erguiam para o desempenho de diferentes funções e para corresponderem às neces sidades de uma cidade em expansão. Em 1893, ha viam sido concedidas licenças para a construção de 300 casas térreas, 10 trapiches, 2 oficinas, 5 fábri cas e 18 armazéns {Relatório do Conselho MunicL 35
  • 38. pai de Porto Alegre de 1893), O governo municipal estimulava as construções e a utilização e aprovei tamento do solo urbano, como se pode ver nas me didas tomadas em 1896 da criação de um imposto adicional sobre os terrenos baldios que ainda exis tiam no centro da cidade {Anais do Conselho Muni cipal de Porto Alegre de 1896), Caberia lembrar que Rudolf Ahrons, o famoso engenheiro responsável por um grande número de edificações em Porto Alegre no início do século, particularmente de prédios públicos, mas também de fábricas e residências burguesas, abria seu escritório de engenharia e arquitetura em 1895. A valorização do solo urbano abria caminho pa ra a especulação imobiliária. Formaram-se compa nhias loteadoras que, arrematando terrenos por bai xo preço, passaram a vendê-los à população, ex pandindo a urbanização da cidade para zonas até então inabitadas. Em particular, um problema se configurava para a burguesia emergente: o do assentamento de uma população pobre, trabalhadora das fábricas e que, por conveniência e controle, deveria habitar próxi ma dos locais de trabalho. Nesse sentido, surgiu a Companhia Territorial Porto-Alegrense, responsável pelo loteamento dos bairros operários Navegantes e São João em 1895, sob a direção do capitalista José Lins Moura de Azevedo. Na mesma época, sob a iniciativa de Manoel Py, comerciante e industrialista da capital, realizava-se o loteamento do bairro Au xiliadora. Surgia assim, com o crescimento da cida de, o "problema habitacional". Se, para o pobre, ele se configurava em termos de encontrar um lugar onde morar a baixo preço, para a elite e o governo a questão apresentava outras conotações. Habitação para as classes menos afortunadas podia se conver ter numa fonte de renda para aqueles proprietários de casarões no centro da cidade, assim como tam bém lotear zonas periféricas da cidade, afastadas do centro mas próximas às fábricas, se apresentava como um negócio lucrativo para a burguesia emer- 36
  • 39. Passava a investir na especulação imobi liária. ara a opinião publica em geral, de tendência conserva ora, a existência de cortiços, porões, ca sebres e barracos sem ar e sem luz, infectados e su perlotados, era Um problema a ser atacado. Pobres no centro a cidade, à vista de todos, em antros de promiscuidade e sujeira, implicavam sobretudo uma questão moral que devia ser solucionada. Mais do que a todos, entretanto, era ao poder pdblico que cabia apresentar soluções. A Repáblica fora procl^ada sob os auspícios do progresso e do trabalho livre, mas dentro de ordem, e populações pobres sem teto convertiam-se em focos de tensão social, que era preciso evitar. Quando da proclama- ção da República, registravam-se 5.996 prédios em Porto Alegre, 4.692 casa térreas, 464 assobradadas e 634 sobrados, 65 fora da divisa da cidade, e ainda 141 cortiços. Se para as demais edificações a esta tística calculava uma população de 8 a 12 pessoas por casa, nos cortiços '*a aglomeração é tal que di ficilmente se chegará a um bom recenseamento en tre seus habitantes, a maior parte sem família e vi vendo em promiscuidade repugnante" (Armário do Estado do Rio Grande do Sul. 1892). A este quadro ainda poderiam ser acrescentadas certas "heranças" do regime monárquico que a Re pública deveria resolver: em 1889, os colonos imi grantes não aceitaram as terras a eles destinadas e voltaram à capital, ficando a perambular pelo Mer cado Público, sem teto e sem trabalho, a esmolar ou a biscatear, sujeitos a doenças (Mercantil^ Porto Alegre, fev.-mar. 1889). A Intendência Municipal tinha, pois, como atribuição tentar resolver o pro blema habitacional das classes populares. O jornal Gazeta da Tarde (Porto Alegre, 13 mar. 1896), de tendência conservadora e moralista, recomendava que competia aos poderes públicos criar habitações baratas para os pobres, como meio de "sossego e moralização", com o que os afastava da taberna, e os concitava à vida familiar, regrada e parcimonio- sa. Portanto, tal como a questão era apresentada. 37
  • 40. aquilo que era problema do trabalhador apresenta va-se também como problema do patrão: sem casa própria, o operário descambava para a promiscuida de, a bebida, o vício, e os empregadores e o próprio Estado só teriam a lucrar com a efetivação de medi das que eram não apenas econômicas, como sobre tudo moralizadoras. Como vantagem adicional, o periódico lembrava que o operário, uma vez deten tor de casa própria e integrado a uma vida familiar tranqüila, poderia viver feliz mesmo com um salário modesto. A opinião publica conservadora recriminava a existência de cortiços, porões, casebres e barracos que, superlotados e infectados, sem ar e sem luz, eram antros de promiscuidade e sujeira. Argumen tava a Gazeta da Tarde (Peto Alegre, 17 jan. 1898): "A moradia em porões, é de necessidade ur gente proibir, mas de modo terminante, sem transi- gências. Os pseudo-filantropos, proprietários de po rões e cortiços, perguntariam logo: mas onde irá morar esta gente pobre? É fácil a resposta. [...] Os arrabaldes estão aí e devem ser habitados pelos proletários. Na cidade propriamente dita, só devem residir os que podem sujeitar-se às regras e precei tos da higiene". "Quem é pobre não tem luxo [...] more na cidade quem tiver condições de cidadão" (Gazeta da Tarde^ Porto Alegre, 12 abr. 1897). Portanto, os moradores dos cortiços, "indiví duos sujos, sem escrúpulos de ordem alguma" (Ga zeta da Tarde^ Porto Alegre, 17 jan. 1898), "gente de ínfima classe social" (Gazeta da Tarde^ Porto Alegre, 15 fev. 1896), com "caras patibulares", de veriam ser retirados do convívio dos cidadãos e ocultos da vista das famílias de bem. O povo das ruas era pois um conjunto de indivíduos "feios, su jos e malvados", que, a bem da ordem e do progres so, urgia que se retirassem do centro da cidade. A Intendência tomava providências no sentido de im pedir a superlotação dos cortiços, multando os pro prietários (Gazeta da Tardey 4 dez. 1896). E apre- sentavam-se sugestões para proibir a moradia em 38
  • 41. porões e elevar o pagamento da décima naquelas que não apresentassem boas condições ... Solicita va-se à Intendência que adotasse um tipo mínimo para as edificações no perímetro urbano da cidade, evitando a proliferação de casas de cômodos que surgiam, fruto da exploração imobiliária dos "usuá rios da terra" {Gazeta da Tarde, Porto Alegre, 12 abr. 1897). Em suma, com a ocupação do espaço urbano e a valorização dos imóveis, a especulação imobiliária havia se revelado uma nova forma de acumulação capitalista. Por outro lado, numa cidade que preten dia assumir contornos modernos e urbanizar-se, a presença de cortiços superlotados, pouco higiênicos e promíscuos era uma triste imagem que se deveria afastar. Na divisão do espaço que obedecia à assi metria social, os subalternos deveriam ser varridos da área central, levados aos subúrbios, aos arrabal des, às novas áreas que eram loteadas, sob o influxo da mesma atividade imobiliária que remodelava o velho centro da cidade. Para essa operação, ao mesmo tempo saneadora, moralizante e especulativa mas sempre baseada em critérios classistas, conver giam as opiniões dos homens de governo e daqueles mais situados socialmente. Naturalmente, as ações do governo e a opinião pública iriam se chocar com Rua Marechal FSoriano, final do século. Porto Alegre
  • 42. a especulação realizada contra os proprietários dos cortiços e porões onde moravam os pobres, mas este seria um conflito a ser resolvido quando se tratasse de botar abaixo a velha moradia para dar lugar às novas construções. Nesse caso, a valorização dos imóveis nas zonas mais centrais daria novamente lucros aos proprietários. A questão habitacional, como não poderia dei xar de ser, era também sentida por aqueles mais di retamente atingidos pelo problema, que, contudo, tinham uma leitura diferente da realidade. Para os moradores dos cortiços, culpados eram os proprietá rios das casas, que elevavam o preço dos aluguéis a níveis exorbitantes e dividiam o espaço em cu bículos cada vez menores para aproveitar o espaço; culpada era ainda a Intendência, que não punha em prática os artigos do código de posturas municipais, multando aqueles proprietários que não zelavam pela conservação dos prédios; a Intendência era ainda culpada porque estimulava o aumento dos aluguéis naquelas casas que apresentavam condi ções razoáveis de locação e permitia a proliferação desordenada de construções destinadas àqueles que, sem ter recursos, eram obrigados a habitar tais lo cais {Gazetinha^ Porto Alegre, 25 ago. 1895; 20 ago. 1898). Finalmente - e aqui residia a grande di ferença -, se poder publico e proprietários assim agiam, era porque o sistema político implantado permitia que as diferenças sociais se ampliassem e estabelecera duas classes de cidadãos: os que ti nham direitos e os que só tinham deveres. 40
  • 43. CIDADANIA EM QUESTÃO: ZÉ POVINHO RECLAMA E EXIGE Ao Zé Povinho: ['..] Tu sabes, ó meu Zé, o quanto custa o café, o-pesar da mistura, a lenha e a carne que engoles. Ciente e consciente de que, por isto, a vida te é ca- ^a., não tens mais a fazer do que dirigir-te, em companhia do restante da população, ao nosso ilustrado intendente municipal e pedir-lhe que não consinta que sejamos ludibriados pelo senhorio. É o caso: pagamos honradamente os aluguéis das ca sas em que moramos, e portanto, vivemos ou su pomos viver descansados de não ser incomodados por eles, mas engano completo. Chega-lhe um su jeito, oferece-lhe mais dez ou vinte mil réis sobre o aluguel da sua casa e vai ele, ZÁSIChega-se com a cara meio suja pelo acanhamento e diz-nos — o aluguel, deste mês em diante —custa-lhe TANTO. Se lhe serve tem a preferência, se não, desocupe a casa. QUANTO ANTES, pois tenho quem me dê muito mais. E sobre este arbítrio que deves recla mar providências ao nosso ilustrado e criterioso co-estaduano [o Prefeito] E disse. Zé Pedro. (Gazetinha, Porío Alegre, 16 jan. 1896). Zé Povinho, caricatura bastante conhecida da época, aparecia nos jornais como o símbolo do po vo: magro, enfezado, sofredor, desassistido pelas autoridades, deserdado pelo sistema, reclamando sempre. Joguete nas mãos dos políticos. Entretanto, a República foi proclamada em no me também da abolição dos privilégios do nasci mento e a palavra cidadania tinha um sentido preci so de extensão de direitos ao povo, estabelecendo 41
  • 44. uma relação entre os governados, que pagavam im postos, obedeciam às leis e votavam, e o Estado, que administrava os serviços públicos e controlava a política. Ora, a prática da cidadania revelava-se uma tarefa difícil, pois, se as diferenças de nasci mento haviam sido extintas com a Monarquia, per maneciam aquelas advindas das diferenças sociais, fazendo com que existissem dois tipos de cidadão. Como refere José Murillo de Carvalho {Os bestiali- zados, 1987): "Embora proclamado sem a iniciativa popular, o novo regime despertaria entre os excluí dos do sistema anterior certo entusiasmo quanto às novas possibilidades de participação". Esta participação almejada via-se, na maior parte das vezes, frustrada quanto à possibilidade de uma verdadeira "troca" ou reciprocidade na relação cidadão/Estado. O povo via-se como um cidadão de segunda classe, a quem só competiam deveres. E bem verdade que constatações desta natureza já ocorriam antes mesmo da Repdblica. Em 1880, por exemplo, por iniciativa do Partido Liberal, fora aprovada a Lei Saraiva, que concedia direito de votar e ser votado aos católicos e estrangeiros natu ralizados, assim como aos libertos, ao mesmo tempo que realizava alterações nos critérios censitários: dobrava a renda líquida para os cargos eletivos e reduzia a renda necessária para ser eleitor, com o claro propósito de garantir o voto dos colonos ale mães. O Jornal O Século (Porto Alegre, 2 dez. 1880) extremamente crítico frente às articulações políticas dos partidos monarquistas, concluía que a renda lí quida anual de 200$0C)0 para ser eleitor tirava "o di reito de votar à ciasse menos favorecida da fortuna, aquela a quem pertence o Zé Povinho". Um ano depois, criticando a "afilhadagem" entre os dois partidos, O Século (Porto Alegre, 25 set. 1881) co mentava: "As coisas são sempre assim: brigam, de compõem-se, esfolam-se, e por fim das contas quem perde é o pobre Zé Povinho que paga impostos es candalosos para serem distribuídos com os pimpo- Ihos". 42
  • 45. Republica recém-proclamada, os reclamos não se fizeram esperar: "Onde estão estas promessas de bem-estar, de abundância e de liberdade que a cada passo se fazia com palavrões cheios de uma retórica que hoje consideramos ridícula por parte deste go verno que dirige atualmente os destinos do Estado? [...] Esta política intolerável, imprestável mesmo, rouba-lhe o necessário tempo para cuidar dos inte resses do povo, deste mísero e infeliz povo que, no entanto, é a alma do Estado, a alavanca do progres so, o motor da riqueza pdblica" {Gazetinha, Porto Alegre, 3 abr. 1892). Alguns anos mais tarde, já na virada do século, o mesmo periódico viria expressar novamente o seu desencanto: "Nove anos faz amanhã que o trono rnonárquico brasileiro, cedendo ao ingente esforço dum punhado de bravos, desmoronou, caiu. [...] Benjamin Constant, Silva Jardim e outros, convictos e convencendo que a República era a única forma de governo compatível com o progresso de um povo conseguir, por meio daquele verbo eloqüente, duma dedicação sem limites, despertar pouco a pouco no coração frio dos indiferentes a felicidade da Pátria, um sentimento nobre, elevadíssimo, que em breve transformou-se em convicção arraigada. [.. ] O Bra sil, em 15 de novembro de 1889, deixou de ser uma monarquia republicana para ser uma República mo nárquica. E desgraçadamente, é esta a verdade, foi antes uma mudança de título do que uma mudança de forma. Os abusos, os privilégios, as honrarias e preconceitos permitidos pela constituição monárqui ca continuavam a ser postos em prática como antes, com a única diferença que antigamente se faziam em nome da lei e hoje se faz desrespeitando-a so mente. Como dantes, existem classes privilegiadas, como dantes se fazem 'os homens para a lei e não a lei para os homens" (Gazetinha, Porto Alegre, 14 nov. 1898). Ambos os depoimentos refletem a reversão das expectativas do povo em relação às promessas do novo regime e a deturpação dos seus princípios. 43
  • 46. Não se tratava de assumir uma posição reacionária, de um "saudosismo monárquico"; o próprio perió dico afirmava que a República era um "fato consu mado" e que era através dele que as soluções deve riam ser buscadas. Entendia-se, contudo, que, se a República estabelecera o princípio de que todos os cidadãos eram iguais perante a lei, era deplorável que só ocupassem cargos "homens pergaminhados ou com bens de fortuna, em detrimento dos interes ses da massa anônima que constitui a verdadeira opinião popular de um país, visto como é a maio ria" {Gazetinha, Porto Alegre, 10 nov. 1898). O operariado era um instrumento inconsciente do jogo de poder e os pleitos eleitorais não lhe di ziam respeito uma vez que os trabalhadores não ti nham representantes seus no meio político (Gazeti- nha. Porto Alegre, 17 abr. 1892). Entretanto, se o jogo político era vicioso e o re gime traíra suas promessas, o poder público era o responsável pelas condições de vida e de trabalho e pelos serviços urbanos que eram sustentados pelos impostos pagos pelos contribuintes. Em síntese, a cidadania era invocada como direito e não apenas dever para os desfavorecidos. O habitante das cida des, eleitor e pagador de impostos, considerava-se com competência para reclamar e exigir do poder público aquilo que lhe cabia prover e realizar. Natu ralmente, em se tratando de serviços públicos urba nos, o questionamento se dava em termos de admi nistração municipal. Acusava-se o governo do município responsá vel pela não aplicação da receita arrecadada através dos impostos. Em vez de revertê-la na melhoria dos serviços urbanos que beneficiariam a própria comu nidade, o governo ampliava os quadros do funcio nalismo estadual para dar empregos aos seus parti dários e simpatizantes {Gazetinhaj Porto Alegre, 29 nov. 1898). Neste sentido, caberia lembrar que o Partido Republicano Rio-Grandense era formado por uma coalizão de setores agrários e não-agrários da burguesia local, que estendia sua ação em busca 44
  • 47. do apoio do colonato e das classes médias urbanas. Com relação aos setores médios, a tática essencial era a ampliação do numero de empregos no funcio nalismo publico, fórmula clássica de cooptação da pequena burguesia pelo Estado. A má aplicação dos recursos públicos era, pois, causa de Porto Alegre não poder comparar-se a ou tras capitais do país, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife {Gazetinha, Porto Alegre, 19 ago. 1898). Na opinião do periódico operário. Porto Alegre se ressentia da falta de esgotos, de transportes públicos adequados e do precário cal çamento das ruas, além de ser pouco ajardinada, mal abastecida de água, fracamente iluminada, etc. A principiar pelo código de posturas munici pais, constatava-se que os cidadãos deveriam cum prir à risca a execução das posturas, mas não tinham o direito de queixar-se da inobservância de determi nadas disposições. Ou seja, em determinada situa ção, o governo era rigoroso na aplicação das leis e na prática de obrigar o cidadão a observá-las; nou tros casos, deixava de fiscalizar a aplicação das leis, justamente nos casos em que os cidadãos eram pre judicados... Com isso, as leis da Republica caíam em descrédito, gerando confusão e anarquia. A lei só era aplicada "aos pequenos" e desaparecia diante "da casaca e da luva" (Gazetinha, Porto Alegre, 6 ago. 1898). Uma outra queixa, bastante antiga mas que se renovava continuamente através dos anos, com o que se constata que não era de fácil solução, era a relativa ao saneamento da cidade. As ruas não eram limpas, a cidade não tinha esgotos cloacais, o reco lhimento do lixo era mal feito e, como coroamento destes "descasos das autoridades", as epidemias encontravam um ambiente propício para se desen volver. Entendia-se, segundo os conhecimentos da época, que os locais sujos e putrefatos exalavam emanações conhecidas como miasmas, que transmi tiam doenças. As pesquisas de Pasteur e Koch questionaram a concepção de que as doenças se 45
  • 48. transmitissem através do ar contaminado, esponta neamente, a partir de substâncias em fermentação, mas sim através de bactérias presentes no ar e que deveriam ser combatidas por uma vacina adequada. No caso do Brasil, ambas as idéias se justapunham. Para combater as doenças, tanto se apelava para a teoria dos miasmas, com o que se bradava por ar, luz e desodorização dos ambientes infectos habita dos pelos pobres, quanto se principiou a difundir o uso das vacinas como grande novidade do fim do século para acabar com as doenças e garantir um povo saudável e com aptidão para o trabalho. Para as classes dominantes, a higienização das zonas proletárias da cidade fazia parte de uma es tratégia mais ampla de disciplinarização das classes trabalhadoras. Trata-se de um conjunto de práticas burguesas que se interligam a outras, presentes dentro da fábrica e fora dela e que se relacionam com a própria conformação do mercado de trabalho livre no país e na elaboração de instrumentos de controle sobre a classe subalterna. Na empresa este processo se viabilizava através da divisão do traba lho, da introdução de máquinas, da utilização de fiscais para controlar a produção, da imposição de códigos de disciplina, da aplicação de multas, etc. Fora dos muros da fábrica, o processo de domina ção do capital sobre o trabalho se expressava pela tentativa de reordenação da vida dos operários nos seus múltiplos aspectos: habitação, educação, lazer, saúde, etc. O sentido último deste movimento era circunscrever espaços, hábitos e atitudes segundo um padrão desejado; conformar um proletariado tra balhador, dócil, morigerado, saudável, satisfeito, adaptado; era ainda contornar os focos de tensão social pela imposição de uma ética e uma ordem burguesas, norteadas pelos ideais de higiene, pou pança, trabalho livre e ordem social. O povo das ruas, habitante dos cortiços, era o objeto preferen cial da "desodorização". Mas o Zé Povinho apelava também aos miasmas para reclamar por seus direitos, mostrando na práti- 46
  • 49. ca que a circularidade da cultura fazia com que conceitos científicos difundidos na época atingissem também a classe trabalhadora. Pensando no seu bem-estar, Zé Povinho reclamava por seus direitos Usando os mesmos argumentos dos médicos higie- nistas e das autoridades: era preciso asseio e provi dências do governo. Neste sentido, embora movido pela convicção de que perseguia seus direitos, em certa medida o povo das ruas colaborava e até apressava uma estratégia de higienização da cidade. As medidas de saneamento urbano foram em preendidas progressivamente pelos governos ao longo da Repdblica Velha. A tarefa, contudo, não era fácil, pois demandava dinheiro, derrubada de Velhos hábitos, agilização da máquina estatal e em prego de tecnologias até então desconhecidas, pre conceitos e resistências. Desde o Império que os serviços de limpeza pública da capital eram objeto de muita discussão. O recolhimento do lixo urbano era feito por empresas particulares mediante con trato de empreitadas. O código de posturas munici pais determinava que o lixo fosse depositado em va silhames apropriados para serem recolhidos pelas carroças destinadas para tal fim, sendo cobradas multas aos infratores. Do mesmo modo, era proibido que se atirassem às ruas as águas servidas e os de jetos fecais. O asseio público - recolhimento dos dejetos fecais - era realizado também por firmas particulares, que despejavam o material em alguns pontos do Guaíba. O aspecto sanitário da cidade, contudo, deixava a desejar: "inúmeras ruas há cujo trânsito repugna a população, devido aos miasmas que exalam as sar jetas, motivados pelos despejos feitos pelos canos e ainda pelo lixo e águas servidas atiradas à rua" {Mercantil, Porto Alegre, 11 jan. 1884). Ligado à questão da insalubridade dos cortiços, do asseio público e do recolhimento do lixo, acha va-se o problema das epidemias, que tendiam a au mentar durante os meses de verão. Desde o Império que o temor das doenças afetava a opinião pública. 47
  • 50. Ora era a varfola que fazia as suas vítimas {Gazeta de Porto Alegre^ Porto Alegre, 1- jan. 1879), ora era o cólera morbus que ameaçava a população da capital {Democracia, Porto Alegre, 14 de jan. 1887). Naturalmente, a maior parte das vítimas se registravam no meio da população pobre. O novo governo republicano teve, pois, como uma de suas tarefas urgentes encarar o saneamento da cidade. O destino do lixo coletado, por exemplo, teve encami nhamento através da incineração. Ja~em 1888, o go verno provincial abria um crédito em nome da mu nicipalidade para a construção de um forno crema- tório. Com a República, foi aberto um novo crédito pelo governo estadual para a Intendéncia aplicar em tal fim, resultando a construção do forno do lixo no bairro da Azenha. O estado sanitário da cidade foi matéria de dis cussão no Conselho Municipal em 1893, sendo alertado que, segundo dados estatísticos. Porto Ale gre era uma das cidades que relativamente apresen tava maior número de óbitos diários, o que sem dú vida alguma se devia ao despejo de materiais fecais ao lado da cadeia civil, em local próximo ao centro urbano. Foi sugerida a sua remoção para a Ponta do Dionísio, em local mais afastado, havendo contudo necessidade de discutir qual o mais prático meio de transportar os dejetos até aquele ponto {Conselho Municipal de Porto Alegre, 1893). Referiam os anais do Conselho que "o que mais incomoda aos vizinhos não é o despejo ao lado da cadeia, é a bal- deação dos 'cubos' dos carros para o trapiche", es petáculo particularmente desagradável à vista e ao olfato... Referia a Gazetinha em 24 de janeiro de 1892: "Uma vez que se declara, como agora acontece, uma epidemia num centro populoso como o nosso, as autoridades devem tomar medidas de higiene im portantes e higiênicas para atenuar o mal. A saúde de uma população deve ser tratada com todo o crité rio, com todo o zelo. Ele é e há de ser sempre a ba se de todas as grandes causas. Limpar as ruas, regá- 48
  • 51. Ias escrupulosamente, obrigar, com a lei, aos mora dores a terem as suas habitações em estado de as- seio, para isso fazendo-se representar as autoridades encarregadas dessas obrigações; urgentemente es tender, não uma, porém mais de uma casa em con dições especiais para poder receber os enfermos e tratá-los cuidadosamente, pensamos, isto é o que devem fazer". Identificava-se basicamente a Intendência Mu nicipal como responsável pelo desleixo, sujeira e abandono das ruas (22 dez. 1895) e pela condes cendência com as enmresas que deveriam retirar o lixo (20 fev. 1896). Águas paradas e lixo acumula do eram focos de miasmas e o estado sanitário já péssimo da cidade tendeu a agravar-se em 1897, com o surto de varíola trazido pelas tropas que ha viam regressado de Canudos e que já havia feito ví timas na rua Baronesa do Gravataí (12 dez. 1897) {Gazetinha^ Porto Alegre). Reclamava-se contra o Intendente, os funcionários da limpeza urbana e os fiscais que relaxavam a vigilância. Em suma, ataca- va-se a estrutura administrativa municipal em seu conjunto e aventavam-se inclusive sérias suspeitas: "Supomos que por intervenção ou ordem de Junta de Higiene foi adotado o sistema de não publicar-se nos obituários insertos na imprensas as causas das mortes havidas nesta cidade; quanto esta medida tem de prejudicial estamos verificando agora que, grassando, segundo nos consta, o tifo e outras mo léstias congêneres, avultada parte da população, ig norando isso, não toma as precauções necessárias" (Gazetinha^ Porto Alegre, 12 dez. 1897). No exer cício de sua cidadania, ao reclamar, o povo dava estímulo à ação higienista e remodeladora do espaço urbano por parte das autoridades. Desde 1895, o governo do estado criara labo ratórios de bacteriologia e química para melhoria da saúde pública {Mensagem do presidente do Estado, 1895) e, a partir de 1898, a Intendência de Porto Alegre municipalizou o serviço de recolhimento do lixo. Formou-se, no mesmo ano, uma comissão para 49
  • 52. a implantação dos esgotos, o que, contudo, só se efetivou em 1898. A Diretoria de Higiene, por seu turno, intensificou a sua ação fiscalizadora, nota- damente nos bairros pobres, fiscalizando os corti- ços. No mesmo ano de 1898, foi criada a Assistên cia Publica, espécie de serviço médico de pronto- socorro para atender a população da capital. Viver em cidades e exercer a cidadania tinha, contudo, outras facetas, além da controversa e difí cil questão da sadde pública. A cidade crescia, ex- pandia-se, e surgia a questão dos transportes coleti vos urbanos. Desde 1873, a Companhia Carris de Ferro Porto-Alegrense passou a operar as primeiras linhas de bondes puxados a burro e a partir de 1893 entrou em funcionamento outra empresa do gênero, a Companhia Carris Urbanos. Tais companhias apresentavam-se como uma nova alternativa para o emprego de capitais da burguesia emergente e acompanharam a expansão da cidade em direção aos bairros. Com relação aos subúrbios operários, sua instalação foi decisiva para a ocupação destas zonas da cidade pelos trabalhadores. Logo de início, os bairros de São João e Navegantes foram servidos por linhas de bonde, uma vez que um dos diretores da Companhia Carris de Ferro era também diretor da Companhia Territorial Porto-Alegrense, respon sável pelo loteamento daqueles bairros. Portanto, a ação empresarial conjugava-se no sentido de pro mover a valorização do solo urbano e o loteamento de zonas operárias, ao mesmo tempo que as dotava da infra-estrutura necessária para a locomoção dos trabalhadores de suas casas para o serviço. Os serviços, contudo, deixavam muito a dese jar: a imundície dos carros, as demoras excessivas, a superlotação que gerava constrangimentos, os da- saforos dos funcionários da empresa aos passageiros ou seus gracejos inconvenientes eram algumas das reclamações ouvidas contra esta sorte de transporte público urbano. No mais das vezes alcunhados de "quebra-ossos", os bondes não raro faziam vítimas fatais devido ao descuido dos condutores, pelo que 50
  • 53. ^ Companhia Carris de Ferro Porto-Alegrense me recia o epfteto de "assassina" (Gazetinha, Porto ^l^gre, 20 dez. 1898) e a Companhia Carris Urba nos era acusada de fazer da viagem em seus carros uma símile do caminho do calvário: "São descarri lamentos, esbarradas, travas que falham. Não é sem estar com o coração opresso que muita gente sub mete-se à necessidade de fazer o percurso em tais bondes" {Gazeta da Tarde^ Porto Alegre, 11 jul. 1895). A população era instada a entrar com processos contra a companhia responsável pelos desastres, considerados serem estes os únicos meios que pode riam evitar tais abusos, uma vez que implicavam gastos para a empresa... Outro serviço pdblico urbano bastante precário na capital do estado dizia respeito ao fornecimento da água. Desde a década de 60 a cidade era abaste cida pela Companhia Hidráulica Porto-Alegrense, empresa esta também ligada à rede de serviços pú blicos que se apresentava como uma atraente área para o investimento de capitais. O capitalista José Lins Moura de Azevedo era presidente desta com panhia, assim como era diretor-gerente da já citada Companhia Territorial Porto-Alegrense e da Com panhia Carris de Ferro Porto-Alegrense. Esta diver sificação de aplicações, repetindo o mesmo empre sário à testa de numerosas empresas, vem demons trar a efervescência especulativa proporcionada pelo crescimento da cidade. Esta rede de interesses era percebida e denunciada não apenas pelo proletaria do da cidade, através de seus jornais, mas também por um público de extração social média e opinião conservadora, leitor da Gazeta da Tarde, e que, tal como as camadas mais pobres, sofria com a falta de água e a desorganização geral dos serviços urbanos e obras públicas. Denunciava-se que tais obras e serviços eram monopólio de um grupo de capitalis tas que, com a aprovação da Intendência, consegui ram grandes lucros {Gazeta da Tarde, Porto Alegre, 17 ago. 1897). 51
  • 54. Comprovando esta rede de "amparo mutuo" entre poder e empresários que se verificava desde o Império, vê-se que a segunda companhia autorizada para operar no fornecimento de água à cidade - Companhia Hidráulica Guaibense, que passou a operar em 1891 - teve como seu primeiro gerente o intendente da capital, Alfredo Augusto de Azevedo. Ambas as empresas, contudo, não satisfaziam a demanda, pelo que as reclamações persistiam: "Me rece-nos algumas considerações as nossas atuais companhias hidráulicas. Em todas as grandes capi tais, é questão magna para o governo municipal que as companhias estendam seus encanamentos para todas as ruas da cidade de modo que todos os habi tantes sejam fornecidos desse grande e indispensá vel elemento [...] Entre nós, porém, onde a água é fornecida por duas companhias, nenhuma destas sa tisfaz a necessidade do povo. [...] Ruas há onde não passa nenhum encanamento de qualquer das duas; outras há em que o encanamento vai só até uma parte das mesmas, de modo que o seu centro comer cial e populoso ressente-se da falta d'água. Temos outras ruas em que o encanamento é feito por parti culares, e estes, com autorização da companhia, ce dem aos moradores um ramal mediante alto preço. [...] A quem cumpre remediar o mal? - à intendên- cia municipal" (O Independente, Porto Alegre, 24 mar. 1901). Os problemas da cidade não paravam, contudo, por aí. A iluminação publica era outro assunto pal pitante para as reclamações dos cidadãos que paga vam impostos. A época da implantação da Repúbli ca, a zona central da cidade era abastecida pelo ga- sômetro da Praia do Riacho, explorado pela conces sionária Companhia Riograndense de Iluminação a Gás, enquanto que nos subúrbios predominavam os lampiões a querosene instalados pelo município. Em 1893, a Intendência municipalizou o serviço de for necimento de iluminação pública a gás para a capi tal (Sérgio da Costa Franco. Porto Alegre: Guia Histórico. 1988), sem que, contudo, resolvesse os 52
  • 55. problemas neste setor, uma vez que a expansão da rede esbarrava no alto preço do combustível neces sário ao sistema empregado. O carvão inglês, im portado, era de alto custo e o similar nacional, pro veniente de São Jerônimo, não era de boa qualida de. O resultado podia se apreciar nas numerosas re clamações contra a escuridão das ruas, tanto nos ar rabaldes, onde os lampiões a querosene apagavam muito cedo, quanto no centro da cidade, onde os combustores a gás eram insuficientes. As queixas eram previsíveis: a população pagava os impostos por esses serviços, mas não era bem atendida, com prejuízos sensíveis para a segurança dos cidadãos numa cidade às escuras... {Gazetinha^ Porto Alegre, 4 jun. 1896). Naturalmente, a crítica da Gazetinha (Porto Alegre, 26 ago. 1898) se centrava na falta de iluminação dos arrabaldes, habitados pela popula ção de mais baixa renda e que contribuía, tal como os moradores do centro, para o pagamento dos im postos decretados para esses serviços pelo Conselho Municipal: "a iluminação dos arrabaldes deve ser como a do centro da cidade e ainda melhor, para que à luz em profusão o transeunte atravesse seguro estes compridos caminhos que conduzem aos pontos mais extremos da cidade, livre de cair em algum medonho precipício ou então de ser assaltado trai çoeiramente nos sombrios barrancos de que estão cheios as ruas dos arrabaldes". Apesar das reclamações dos contribuintes de que pagavam impostos para atender a tais serviços, a Intendência alegava carência de fundos para fazer frente a todas as necessidades, chegando a ser auto rizada pelo Conselho Municipal a contrair um em préstimo por meio de apólice que atendesse à defi ciência das verbas orçamentárias (Anais do Canse- lha Municipal de Porto Alegre. 1897). Paralela mente a tais medidas, a Intendência voltou-se para a alternativa da energia elétrica. Desde 1889 que havia sido concedido o privilé gio para explorar a iluminação elétrica ao cidadão francês Aimable Jouvin, comerciante estabelecido 53
  • 56. em Porto Alegre. Embora não tenha tido sucesso em seus empreendimentos no interior do estado, em Porto Alegre o fornecimento de luz elétrica para ca sas comerciais, com ampla aceitação, estimulou um grupo de capitalistas a adquirirem a concessão de Jouvin e formarem uma nova empresa. A Compa nhia Fiat Lux, fundada em 11 de maio de 1891, sob a presidência de Graciano Alves de Azambuja e contando com Jouvin entre seus diretores, passou a fornecer iluminação elétrica para casas particulares e prédios públicos, como ocorreu com o Palácio do Governo em 1893. O governo do estado e a Companhia Fiat Lux entraram num acordo em 1898 a respeito das áreas de atuação para o serviço de iluminação pública, fi cando resguardado para a companhia o privilégio de atender à zona central da cidade por 20 anos, a contar de 1889, e permanecendo fora de sua atuação o serviço de iluminação pública e repartições esta duais (Relatório dos negócios de obras públicas, 1898/1899). Portanto, a meta da Intendência, na virada do século, foi buscar o difícil caminho da implantação de uma usina elétrica que atendesse à área fora da jurisdição da Fiat Lux, processo este que só se ulti mou em 1908, com a criação da Usina Municipal, que no ano seguinte permitiu a extensão da luz elé trica aos bairros. Até lá, contudo, os reclamos dos cidadãos continuaram a se fazer sentir, pois a ilumi nação da cidade relacionava-se com um dos maiores problemas apontados pelo povo: a segurança. 54
  • 57. os PERIGOS DA CIDADE: Ó DA POLÍCIA! O aumento dos crimes e das contravenções de toda a ordem foi um dos maiores problemas da ad ministração urbana do fim do século, assim como também se constituiu numa das maiores preocupa ções dos habitantes das cidades e uma das formas mais incontestáveis da angústia social (Louis Che- valier. Classes laborieuses et classes dangereuses. 1978). Um dos elementos centrais deste fenômeno foi a identificação que se fez, no imaginário bur guês, das classes trabalhadoras como classes peri gosas ou pelo menos como potencialmente perigo sas. Esta identificação sem dúvida deriva daquela que era a questão central para a burguesia: garantir a dominação do capital sobre o trabalho, mantendo os subalternos atrelados a uma cadeia de laços ao mesmo tempo econômicos, sociais, institucionais e morais. Em uma sociedade como a brasileira, que emergia da escravidão para o trabalho livre, encon trar uma "alternativa ao chicote" (Ademir Gebara. A formação do mercado de trabalho livre no Brasil, 1986) para compelir os subalternos ao trabalho era uma questão mais séria ainda. Tratava-se não mais do emprego da coersão física, mas do recurso a me canismos ideológicos e morais que acompanhassem e mesmo velassem a dominação do capital. Velados ou não, tratava-se de mecanismos de dominação que deveriam ter uma contrapartida na subordinação dos trabalhadores, eliminando possibilidades de resis tência a este processo. Daí, por si só, a visualização dos subalternos como perigosos: pobres, mal vestidos e mal ali- mentâdõs, morando em habitações apertadas, dis tantes e pouco higiênicas, obrigados a trabalhar longas jornadas em troca de baixos salários, eram 55
  • 58. potencialmente um perigo para a ordem burguesa e seu corolário de progresso. Some-se a esta situação a aglomeração populacional nas cidades, onde os laços de convivência se tornavam mais estreitos e o acesso às informações se fazia mais rápido, e tem-se o espectro da turbulência, da tensão social e da re belião convivendo com a sociedade burguesa e obrigando a desenvolver variados mecanismos de controle. A este contexto deve-se agregar o fato de as cidades atuarem como ponto de atração para os indivíduos, tendo em vista concentrarem maiores possibilidades de trabalho e também permitirem, em certa medida, o anonimato para certas infrações. O resultado é não apenas o crime e as variadas contra venções serem um elemento do cotidiano da vida nas cidades, como também se transformarem em as sunto de interesse particular de seus cidadãos. Se a necessidade da maior segurança nas ruas era uma das queixas principais do povo, a leitura das pági nas criminais dos jornais da época era um hábito dos cidadãos ricos, remediados e pobres. A ordenação burguesa da realidade, numa cu riosa combinação, realizava a apologia do trabalho e a condenação da ociosidade ao mesmo tempo que identificava as classes trabalhadoras como perigo sas. Entenda-se, contudo, que não havia, segundo a mentalidade da elite, nenhuma confusão de concei tos: o pobre só deixava de ser perigoso pelo traba lho continuado, ordeiro e honesto, caso contrário a sua pobreza o levaria ao crime, à contravenção e à vagabundagem. Logo, o papel da sociedade era im pedir através de mecanismos de controle social, que isso ocorresse. A falta de segurança nas cidades se expressava através de crimes, roubos e arruaças, que ameaça vam a vida, a propriedade e a ordem burguesa. Os praticantes contumazes de tais contravenções eram, segundo a imprensa, vagabundos, bêbados e des classificados que, sem ocupação física, viviam de biscates e de furtos, entregues aos vícios e afetos aos crimes, gente de ínfima qualidade que era inclu- 56