As proximidades e estranhamentos entre Brasil e Portugal
1. Falar do estranhamento entre Brasil e Portugal começa na minha infância, quando ao
chegar no país não conseguia entender nem a língua nem a escola. Preferi enfrentar uma
língua diferente, pelo menos assim ficava claro: era estrangeira. Essa marca ficou em mim
e é ela que me faz continuar a procurar a proximidade com Portugal.
Sempre que chegava, António Alçada Baptista afirmava que, para lá da distância que
separa Portugal e o Brasil, as suas infinitas afinidades começam na língua comum.
Quando o entrevistei para o jornal O Mundo Português, em 1982, disse-me: “A vinda
dos portugueses aqui deveria ser gratuita e obrigatória. Se eu não tivesse estado no
Brasil há vinte anos, seria francês de cultura, porque a França nos é mais acessível.
Leonor Xavier
As proximidades entre os intelectuais dos dois países e o que revelam de estranhamento e
aproximação será o meu objeto da dissertação de mestrado. Aqui queria mostrar uma parte
desse corpus em que estou trabalhando, levando em conta dois momentos em particular. O
primeiro um exemplar do Jornal do Brasil de 1957, dedicado a Portugal, na vinda do presidente
Craveiro Lopes. Os artigos de Eduardo Lourenço, Fernando Lopes Graça, Hernani Cidade e as
poesias e textos escolhidos. Num segundo momento, uma seleção da correspondência de
escritores portugueses com Odylo Costa, filho que serviu como adido cultural do Brasil em
Portugal de 1965 a 1967. A esses dois junto ainda uma carta de intelectuais portugueses a
Salazar e uma matéria assinada por Odylo quando da queda do ditador.
Jornal do Brasil de 1957
O exemplar do Jornal do Brasil de 1957, dedicado à Portugal, na vinda do presidente Craveiro
Lopes. Na primeira página 3 artigos: um do presidente Café Filho, um de Adolfo Casais
Monteiro e outro do diretor do Jornal Odylo Costa. Casais Monteiro fala da “os sentimentos
indiscutíveis de fraternidade que desde já unem os dois povos possam deixar de ser
desmentidos pela ignorância mútua que os afasta” Assim como as perguntas no editorial de
Odylo: até que ponto se reconhece o goso de Portugal no Brasil.
É esse sistema de aproximação e afastamento que permeia as relações entre os dois países.
Se o falar a mesma língua· é o instrumento fundamental daquela comunidade que se
alargue a uma estreita cooperação nos mais diversos domínios, nada mais importante do
que promover um maior conhecimento de todos os aspectos da cultura portuguesa.no
Brasil e da brasileira em Portugal a fim de que os sentimentos indiscutíveis de
2. fraternidade que desde já unem os dois povos possam deixar de ser desmentidos pela
ignorância mútua que os afasta.É essa uma verdade que se deve dizer, pois só na
verdade pode assentar-se um entendimento verdadeiro' E· diremos então que é tempo,
de se pôr termos aos salamaleques de pura retórica, as declarações de pura diplomacia,
que não pode ser de uso entre irmãos, mas precisamente caracterizam as relações entre
desconhecidos. Adolfo Casais Monteiro
Até que ponto, a essa altura da vida, dos dois povos e quando as efusões do sentimento
parecem conduzir a soluções criadoras, se reconhece o gosto de Portugal na vida
brasileira? Até que ponto a diferenciação entre a maneira de ser de lá e de cá (a maneira
de ser e a de viver, inclusive no plano dos regimes políticos) é atenuada pela
permanência, na "cultura brasileira, dos "sinais" da presença colonizadora? Odylo
Costa, filho
Nos dois artigos se fala desse distanciamento e dessa aproximação paradoxo inserido no pós
colonial, história comum, história em comum. Mas o que sobressai é essa percepção de
identidade e de estranhamento: reconheço, mas na verdade não conheço.
Artigos de Eduardo Lourenço, Fernando Lopes Graça, Fernando Namora, Hernani Cidade falam
do momento literário e somente nas entrelinhas é mencionada ou mesmo lembrada a ditadura
que já tem 25 anos. Mas é uma visita oficial de um presidente de um país. Mas a repercussão
pode ser vista no número de cartas dirigidas ao jornal e no número de anunciantes.
Esse trecho de Adolfo Casais Monteiro define o neo-realismo, menciona o Estado-Novo e a
ditadura franquista.
A volta de 1940 processa-se uma séria crise na poesia portuguesa. Não é apenas por um
explicável desgaste que se explica o fim da "Presença", suspendendo a publicação
depois duma tentativa de renovação. Esse fim, que teve como causa o desacordo entre
uma atitude de "superação" e outra de "participação", embora esta não fosse alheia à
revista, coincide justificadamente com o aparecimento do "Novo Cancioneiro", coleção
de livros de poesia que durante um breve período surgiu, cumulativamente com uma
doutrinação surgindo em vários publicações ("O Diabo”, "Sol Nascente", "Vértice")
daquilo que veio·em Portugal a designar-se como "neo-realismo", ao qual porém não se
restringe todo o extenso .movimento que procura fazer convergir a poesia (e a literatura
em geral) com a expressão de atitudes de ativa intervenção do escritor na solução dos
3. problemas sociais, ou, pelo menos, que procura a conscientização destes como elemento
fundamental da consciência do homem moderno.
A ''Presença" representava, por algum dos seus elementos, a penas o .lado crítico,
digamos assim; nesta nova situação do homem. Duma maneira geral, embora
justificadamente incluída pela censura no rol das publicações desafetas ao Estado Novo,
a sua independência em relação a qualquer atitude demagógica, o seu decidido combate
à “submissão” do escritor ao político não distinguindo, nesse ponto, a demagogia
“direitista” da “esquerdista” atacando igualmente a arte dirigida pelo Estado Novo e a
dirigida pelo Partido Comunista, a "Presença" não podia corresponder de forma alguma
a um momento de crise em que, sob a influência dos acontecimentos a sua atitude tinha
que parecer, ou ser mesmo, por parte de alguns dos seus elementos, oposta à
conscientização duma necessária opção à qual, no momento em que na vizinha Espanha
o fascismo fazia o seu ensaio geral a sua atitude só podia parecer de alheamento não
obstante várias afirmações inequívocas, como, por exemplo, as referências (veladas) ao
assassinato de Lorca e ou ao grito admirável de Unamuno, em Salamanca, voltado
contra o general que gritar “Morra a inteligência!”_ “Vencereis, mas não convencereis!”
Cartas de Alçada Baptista e intelectuais portugueses
As cartas de Alçada Baptista revelam a dificuldade de viver sob a ditadura e a tentativa de vinda
para o Brasil. O fato de naquele momento o Brasil estar atravessando também uma ditadura é
amenizado ou atenuado pelo cansaço da vida sob o jugo de uma ditadura que já conta quase 40
anos. Aqui tinha se a esperança que ela fosse durar pouco tempo (durou mais de 20 anos) aliado
ao fato de ser uma ditadura militar e não personalista talvez desse a sensação de que não duraria
para sempre.
A carta dos intelectuais portugueses revela algumas das tentativas de luta contra a ditadura. Um
manifesto aberto, a carta entregue e assinada pelos intelectuais. As acusações são claras e
explícitas. Para atestar que existia a resistência, que não se percebia porque existia também de
forma acachapante a combinação da violência “preventiva” e “punitiva”.
O que leva à carta de Antonio Alçada Baptista à Odylo Costa de fevereiro de 68, onde ele conta
que Mario Soares havia sido preso e Pedro Tamen enviado pra Angola, ou na de 4 de abril de
1968, comenta que as coisas pioraram, Mário Soares havia sido deportado.
4. Depois do dia em que lhe escrevi as coisas aqui só pioraram.O Mário Soares foi
deportado.Na despedida dele no aeroporto a Pide,disfarçada entre as pessoas, atacou-as
a cacetete e pontapé com as injúrias mais torpes. O episcopado escreveu, a respeito da
Morais o comunicado que lhe mando em fotoc6pia e que deu lugar a troca de cartas com
o Cardeal que também segue.Mas o estar aqui, com o Cardeal e tudo o mais lembra-me
a história do Antonio José Saraiva na pide,surdo e com um aparelho,quando o agente
lhe dizia:
-O senhor não acha que Marx está ultrapassado ?
-O quê ?
-Se o senhor não acha que o Marx está ultrapassado?
Então o Saraiva desligou o aparelho e disse:
- Ora,para que que estou eu aqui a gastar pilhas...
Na análise das cartas se percebe as mudanças políticas no país, o aumento da violência e do
radicalização da ditadura. Alçada passa a tentar se mudar para o Brasil. A mudança de governo
com Marcelo Caetano, não traz ares de liberdade. Mas permite uma esperança pela simples
morte do ditador. Nesse momento, dois exemplares de jornais mostram a luta pela democracia e
apontam para o pivô da revolução dos cravos a guerra colonial. Depois a de 25 de abril a
abertura e a pressão pelas lutas entre os diferentes grupos. Mas sobretudo as cartas que revelam
as trocas da amizade.
Acho que deviam ir pensando em vir cá. Quem, como você, viu esta sociedade, precisa
de a ver agora parece a fixar através da sua escrita.Eu , sobre alguns aspectos,tive nestes
dois anos grandes aborrecimentos mas não os trocava por nenhum outros de minha vida.
Covilhã, 3 de Agosto de 1969
Meu querido Odylo,
Acho que você está criando um grande problema aos eruditos que tratarem da
publicação de. nossa correspondência póstuma.Eles terão que intitular "Cartas de
António Alçada Baptista a Odylo Costa,filho não respondidas pelo mesmo". Ora isto
não é titulo que se deseje nem é bonito passar assim à história da literatura.
5. António Alçada Baptista
Nascido na Covilhã, estudou num colégio de Jesuítas em Santo Tirso. Licenciado em Direito,
dirigiu a revista O Tempo e o Modo (de 1963 até 1969) e foi presidente do Instituto Português
do Livro. Traduziu Jorge Luis Borges e Jacques Maritain, tendo colaborado em vários
periódicos (A Capital e O Semanário, por exemplo) com uma publicação regular de crónicas,
algumas das quais já reunidas em obras como O Tempo nas Palavras.
Oficial da Ordem de Santiago, recebeu, das mãos de Ramalho Eanes, a Ordem Militar de Cristo,
em 1983, e a Grã-Cruz da Ordem do Infante entregue por Mário Soares, em 1995.
A sua obra literária, repartida entre a ficção e o ensaio de memórias pessoais e coletivas (com
destaque para os dois volumes de Peregrinação Interior), funda-se num princípio unificador: o
da busca de uma unidade interior que seja a razão para que, na sociedade contemporânea
portuguesa, "certas coisas aconteçam sem que eu saiba como nem porquê e sem me darem em
troca nada de melhor" (cf. Peregrinação Interior I, p. 23). Entre a ficção e o ensaio, a escrita de
António Alçada Batista perturba pela capacidade de "perder um certo pudor" (ibi., p. 24), de
perder o espartilho vitoriano que corrige a libertação interior, que abafa as vozes dos afetos, e de
exprimir a reflexão cultural, filosófica, religiosa e social "com as gastas e cansadas palavras que
dão a cobertura habitual à banalidade imensa que é o bocado de existência que vai passando
pela nossa janela", despidas da "plumagem académica, dos lugares-comuns que são a medida
comum do intercâmbio dos homens" (ibi., p. 27).
Odylo Costa Filho (São Luís MA, 1914 - Rio de Janeiro RJ, 1979) formou-se bacharel pela
Faculdade de Direito em 1933, no Rio de Janeiro. Entre 1931 e 1965 foi fundador do seminário
Política e Letras, diretor dos jornais Tribuna de Imprensa, A Noite e Jornal do Brasil, das
revistas Senhor e O Cruzeiro, além de secretário da revista O Cruzeiro Internacional, repórter do
Jornal do Comércio e crítico literário do jornal Diário de Notícias, no qual criou a seção
Encontro Matinal. Em 1934 ocorreu a publicação de seu livro Graça Aranha e Outros Ensaios,
com o qual ganhou o Prêmio Ramos da Paz, concedido pela Academia Brasileira de Letras.
Entre 1954 e 1955 foi secretário de Imprensa da Presidência da República e superintendente das
empresas incorporadas ao patrimônio da União no governo de Café Filho. No final dos anos de
1960 foi adido cultural na embaixada brasileira de Lisboa (Portugal), diretor da revista
Realidade e redator na Editora Abril. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em
1969. Sua obra poética inclui os livros Alvoradas... (1929), Tempo de Lisboa e Outros Poemas
(1966), Cantiga Incompleta (1971), Os Bichos no Céu (1972), Notícias de Amor (1977), A Vida
de Nossa Senhora (1977) e Boca da Noite (1979). Odylo Costa Filho é poeta da terceira geração
do Modernismo; conviveu com Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, segundo o
qual a poesia de Odylo tem “música de timbre próprio, de inefável doçura, sem melaço.”