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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO
ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA
A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO
OLHAR DA CRIANÇA
CRICIÚMA, MARÇO DE 2008
1
ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA
A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO
OLHAR DA CRIANÇA
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Educação no curso de Mestrado em
Educação da Universidade do Extremo Sul
Catarinense, UNESC.
Orientador Prof.: Dr Celdon Fritzen
CRICIÚMA, MARÇO DE 2008
2
S587c Silveira, Rosilene de Fátima Koscianski da.
A contribuição da literatura no processo de alfabetização e
letramento: uma reflexão mediada pelo olhar da criança /
Rosilene de Fátima Koscianski da Silveira; orientador:
Celdon Fritzen. - Criciúma: Ed. do Autor, 2008.
116 f. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado) - Universidade do Extremo Sul
Catarinense. Programa de Pós-Graduação em Educação,
2008.
1. Alfabetização. 2. Letramento. 3. Literatura. 4.
Educação. l. Título.
CDD. 21ª ed. 372.4
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Bibliotecária: Flávia Cardoso – CRB 14/840
Biblioteca Central Prof. Eurico Back – UNESC
3
ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA
A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO
OLHAR DA CRIANÇA
Dissertação aprovada pela Banca
Examinadora para obtenção do grau de
Mestre em Educação, no curso de Mestrado
em Educação da Universidade do Extremo
Sul Catarinense, UNESC, com linha de
pesquisa em História, Formação e Exercício
Profissional.
Criciúma, 18 de Março de 2008.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Celdon Fritzen – Doutor em História e Teoria Literária – (UNESC)
Orientador
Profª. Ana Claudia De Souza – Doutora em Lingüística – (UFSC)
Profª. Maria Isabel Leite – Doutora em Educação – (UNESC)
4
Dedico....
À minha mãe Otilia (em memória) – sabedoria
profunda... com ou sem palavras!
AGRADECENDO...
Aos CO-AUTORES desta pesquisa, alunos da
primeira série do Ensino Fundamental da
Escola de Educação Básica Irmã Edviges,
Criciúma – SC, que aceitaram dialogar...
ALBANO, Josué Medeiros
ALVES, Lara Fabian Leacina
BITENCOURT, Francielen Soares
COLOMBO, Vitor Carlos
CORREA, Rodrigo Daminelli
DUARTE, Stefani Borges
JOAQUIM, Isaac Borges
JOSEPHINO, Elton Bacelar
LOCKS, Pâmela Henrique
MIRANDA, Luiz Filipe Pavesi
OENNING, Juliano Bittencourt
PEDROSO John Kennedy Vargas
PORTO, Karoline Gonçalves
REBELO, Sarah das Almas
RINALDI, Rafaela Pedro
ROSA, Bruno Teixeira da
SANTOS, Bruno Cardoso dos
SANTOS, Thiago Monteiro dos
SANTOS, Willian Caetano dos
SILVA, Luiz Filipe Alano da
VALIM, Mariany Nicolau
Minha gratidão!
5
AGRADECENDO...
Ao professor Celdon, orientador atento e
amável – guia primoroso.
À banca de qualificação e defesa pelas
intervenções necessárias e frutíferas –
professora Ana Claudia – atenta aos detalhes,
Professora Bel – a generosidade em pessoa.
Aos professores do mestrado, por compartilhar
seus conhecimentos.
Aos colegas do curso com quem partilhei o
projeto de pesquisa, em especial, Adriana e
Luciana que acompanharam de perto as
alegrias e percalços da sua realização.
Ao Walter – secretário atencioso.
Aos parceiros do GEDEST, GPEI e Grupo de
Estudos em Walter Benjamim – em especial,
Ana Maria – valiosíssimas contribuições.
Ariane e Valquiria, mais que assessoria
tecnológica.
À direção, funcionários, corpo docente e
discente da EEB Irmã Edviges, pelo
acolhimento de uma idéia.
Ao esposo Albertino – fiel colaborador,
exercendo múltiplas funções, inclusive a de
cinegrafista amador.
Ao filho José Vinícius, que chegou trazendo
mais um motivo para eu ouvir e tentar
compreender as crianças.
Ao meu pai Carlos, de quem herdei o otimismo
profissional.
Aos queridos Claudair, Joana, Valdenir,
Luciana e Alice, pela compreensão nas
minhas ausências.
À amiga Rosângela, com que compartilhei a
expectativa do ingresso no curso.
A Seicho-No-Ie, filosofia que faz a diferença.
A todas as pessoas que de alguma forma
contribuíram para o êxito desse projeto.
Muito Obrigado!
6
“Uma vida humana é uma ficção
que o homem inventa à medida
que caminha”.
(HELD, 1980, p.18).
7
RESUMO
Esta pesquisa teve como alvo refletir sobre a contribuição da literatura no processo de
alfabetização e letramento da criança a partir da escuta desta. Com vistas à consecução
do estudo, a pesquisa utilizou a abordagem qualitativa com as estratégias propostas pelos
espaços de narrativa, cuja base teórica contempla autores que entendem a linguagem
como essencial na constituição dos sujeitos, e a criança como ator social que produz
linguagem e cultura. Inicialmente, este estudo procede a uma análise das conexões
históricas e teóricas da alfabetização e do letramento com a literatura; depois, a uma
discussão das possibilidades desencadeadas pela literatura, enquanto canal de
experiência estética e poética, na formação do leitor/autor. Em seguida, descreve-se o
trabalho realizado em parceria com 21 crianças da primeira série do Ensino Fundamental,
da Escola de Educação Básica Irmã Edviges – vinculada à Rede Pública Estadual, situada
no município de Criciúma-SC. A partir das falas das crianças, as quais tiveram abertura de
espaços para a narração e/ou criação de histórias e poesias, buscou-se uma forma de
pensar tanto a criança como protagonista do processo da sua aprendizagem, quanto o
papel da literatura na escola, como linguagem viva, dinâmica e mobilizadora de saberes e
de sujeitos.
Palavras-chave: alfabetização, letramento, literatura e pesquisa com crianças.
8
ABSTRACT
This research has the objective of studying the contribution of literature to literacy and to the
alphabetization process of children, taking into consideration the voice of the child. In order
to achieve this objective the research used the qualitative approach and strategies proposed
by the narratives spaces, a theory whose authors understand language as having
fundamental importance in the subjects’ formation, and children as social actors who
produce language and culture. First, this study presents an analysis of the historical and
theoretical connections among alphabetization, literacy and literature; then, it presents a
discussion on the possibilities created by the literature as a channel of aesthetic and poetic
experience, in the reader’s, author’s formation. Later on, this research describes the work
done in partnership with twenty-one children who study in the first year of the primary school
at Escola de Educação Básica Irmã Edviges, a public school situated in Criciúma (SC).
Based on the children’s oral production (narratives and poems), this work proposes a way
of thinking the children as protagonists of their learning process and the role of literature in
schools as a living, dynamic language that mobilizes of knowledge and subjects.
Keywords: alphabetization, literacy, literature, research with children.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 11
CAPÍTULO I ........................................................................................................................ 16
1 A ALFABETIZAÇÃO, O LETRAMENTO E A LITERATURA ........................................... 16
1.1 ALFABETIZAÇÃO: PERCURSO HISTÓRICO E TEÓRICO ......................................... 17
1.1.1 A escrita e a alfabetização na sociedade moderna ................................................ 17
1.1.2 A alfabetização.......................................................................................................... 19
1.1.3 A alfabetização no Brasil.......................................................................................... 22
1.1.4 A alfabetização e o letramento................................................................................. 25
1.1.5 Modelos de letramento............................................................................................. 28
1.2 A LITERATURA ............................................................................................................ 30
1.2.1 A literatura infantil .................................................................................................... 32
1.2.2 Os livros para criança e a qualidade literária ......................................................... 35
1.2.3 A cartilha: um livro infantil para além do didático.................................................. 38
1.2.3.1 Objeto histórico e cultural..................................................................................... 39
1.2.3.2 A cartilha, o leitor e a leitura ................................................................................. 42
1.3. A ABORDAGEM NA PESQUISA COM CRIANÇAS .................................................... 47
1.3.1 A construção da infância ......................................................................................... 49
1.3.2 A infância na contemporaneidade........................................................................... 51
1.3.3 Propostas metodológicas na pesquisa com crianças ........................................... 53
CAPÍTULO II ....................................................................................................................... 59
2 O CANTEIRO DE OBRAS OU O CAMPO DE PESQUISA .............................................. 59
2.1 APRESENTANDO O CAMPO DE PESQUISA.............................................................. 59
2.1.1 “[...] Agora mudei de idéia!”: a entrada em campo e as primeiras percepções ... 63
2.2 FALAS, HISTÓRIAS, POESIAS: CONSTRUINDO AS CATEGORIAS DE ANÁLISE... 64
2.2.1 A formação do grupo e as experiências iniciais..................................................... 65
2.2.2 “Quero contar uma história” ou a narração e co-autoria na interação com a
literatura ............................................................................................................................. 68
10
2.2.3 “Poesia do menino, que sou eu [...]”: a experiência lúdica com a linguagem
poética................................................................................................................................ 78
2.2.4 “A primeira palavra que aprendi foi meu nome...”. Aprender a ler e escrever:
criando estratégias, buscando e produzindo significados............................................. 89
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................. 95
REFERÊNCIAS................................................................................................................. 103
ANEXOS ........................................................................................................................... 110
11
INTRODUÇÃO
Ao sistematizar o relato dessa pesquisa que teve como foco central do trabalho
investigativo o propósito de reflexionar sobre a contribuição da literatura no processo de
alfabetização e letramento da criança, exponho inicialmente e com satisfação o quanto esse
objetivo agigantou-se a partir do momento em que optei por desenvolver a pesquisa de
campo convidando a criança a tornar-se depoente, investigando o problema, considerando o
seu ponto de vista. Essa opção requereu certa dose de coragem, pois foi necessário despir-
me de algumas certezas e ir a campo aberta ao que pudesse ser encontrado e tecer
reflexões e entendimentos a partir dos achados junto aos sujeitos participantes.
Os objetivos específicos pretendidos se constituíram na análise da conexão
histórica e teórica da alfabetização e do letramento com a literatura; na discussão das
possibilidades desencadeadas pela literatura na formação do leitor/autor, a partir das falas
da criança; e na abertura de espaços para a narração e/ou criação de histórias e poesias
para e pelas crianças, refletindo sobre o lugar da linguagem literária no processo de
aprendizagem do código escrito e na escola como um todo. A definição desses objetivos
pautou-se na percepção de que embora nas últimas décadas a criança e o seu
desenvolvimento harmônico e integral tenham se tornado freqüentemente motivo de estudos
para pesquisadores de todas as áreas, as ações efetivas da escola ainda não se
solidificaram nessa proposição. Embora avançando teoricamente, a escola tem preservado
um caráter disciplinador e regulador do comportamento, abrindo pouco espaço para o
pensamento, a voz, e principalmente para a imaginação da criança.
Ao referir-me ao pensamento falo da criança-sujeito-pensante, agente ativo da sua
aprendizagem que aprofunda a consciência de si mesmo e desenvolve capacidades
lingüísticas (e muitas outras) também no processo de alfabetização com letramento a
despeito das formas em que este possa ser conduzido. Uma aprendizagem pensada na
perspectiva vigotskiana, que considera a interação fator essencial. E mais do que isso, tem
na interlocução entre as múltiplas vozes presentes no espaço escolar seu elemento
constitutivo e na qual a imaginação pode ser componente deflagrador na construção dos
saberes e dos próprios sujeitos. A imaginação entendida não como “algo distinto da razão,
mas sim o que dá flexibilidade, energia e vivacidade à razão” (EGAN, 2007, p.34) e que no
processo de aprendizagem da linguagem escrita torna esta mais significativa e dinâmica.
Esse foi um dos principais fatores que levei em conta para pensar esse momento escolar
específico vivenciado pela criança como parte integrante e extremamente importante do seu
processo de formação e não como um aspecto isolado. Além disso, na grande maioria dos
12
estudos relacionados à infância1
a criança ainda é considerada objeto e não sujeito
participante de uma pesquisa.
Em relação à literatura, não pretendi focalizar o tênue limite (se existente) entre
os gêneros adulto e infantil, mas abordei-a como um elemento significativo da aprendizagem
que se inicia muito antes da criança chegar à primeira série2
do Ensino Fundamental. Da
mesma forma que entendo não ser possível estabelecer fronteiras rigorosas entre o gênero
adulto e infantil na literatura sem correr o risco de parecer arbitrário, tampouco acredito ser
possível demarcar com precisão o início e o fim do processo de alfabetização e letramento.
Pois, tomando como ponto de partida uma visão sociointeracionista “a alfabetização,
enquanto processo individual não se completa nunca, visto que a sociedade está em
contínuo processo de mudança, e a atualização individual para acompanhar essas
mudanças é constante” (TFOUNI, 2002, p. 15). Apenas, como uma delimitação
metodológica, direcionei o foco deste estudo para as crianças3
que freqüentam a primeira
série do Ensino Fundamental, buscando uma interlocução com elas, enquanto protagonistas
do processo. As crianças co-autoras desta pesquisa encontravam-se nos momentos iniciais
da alfabetização (formal/escolar), uma vez que a pesquisa de campo foi realizada no
primeiro semestre do ano letivo – 2007.
Esse ano letivo abarcou a implementação das leis nº11.114 de maio de 2005 e
11.274 de fevereiro de 2006, que promoveram alterações em alguns artigos da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9394/96, implementando o Ensino
Fundamental de nove anos que prevê o ingresso da criança aos seis anos de idade.
Para realizar a pesquisa, parti do pressuposto de que a alfabetizar e letrar é
transcender os limites da mera aquisição técnica da leitura e da escrita iniciando a formação
de um leitor que se faz autor nesse percurso e torna-se capaz de escrever, compor, criar,
imaginar, pensar, levantar hipóteses e, de fato e de direito, se habilita a compreender e se
expressar através da linguagem oral e escrita no seu tempo e espaço. Pensar o processo de
alfabetização e letramento nessa perspectiva é imaginar, em primeiro lugar, uma escola com
abertura para a emoção e a imaginação enquanto características inerentes ao ser humano.
É sonhar com um ambiente que possibilite o desenvolvimento integral do sujeito,
repensando e re-significando o uso das ferramentas utilizadas no ambiente escolar, entre as
quais está a literatura.
1
In-fans, aquela que não fala. JOBIM e SOUZA, Solange. II Seminário “Educação, Imaginação e linguagens
artístico-culturais” Criciúma, 28/08/2006.
2
Com a implementação do Ensino Fundamental de nove anos, o Ministério da Educação deixou em aberto para
que os sistemas pudessem utilizar a nomenclatura mais adequada aos sistemas (série, ano, ciclo). O Estado de
Santa Catarina na Rede Pública Estadual (a qual a escola em que foi desenvolvida a pesquisa está vinculada)
optou por continuar utilizando a denominação série. Portanto, nesse estudo, ao referir-se à turma participante
identificarei como “primeira série”.
3
Como a pesquisa aconteceu no ano de implementação da lei, a maioria das crianças que dela participou,
completa sete anos em 2007.
13
Os termos alfabetização e letramento4
aparecem juntos em todos os momentos
da pesquisa, pois embora cada termo possua sua especificidade, na qual a alfabetização é
entendida como a aprendizagem do código escrito e o letramento como a utilização da
competência de ler e escrever para comunicar-se na prática social, o entendimento que
busco fortalecer é de que não é possível alfabetizar sem objetivar o letramento ou vice-
versa. Portanto, são termos complementares e indissociáveis.
A primeira e a segunda série da Educação Básica representam, pela nova
realidade legal, as classes para a alfabetização5
. A estas, entre outras atividades, cabe
ocupá-las, durante o período de dois anos, em desenvolver as habilidades técnicas da
escrita e da leitura. Um tempo que, suficiente ou não, assume vital importância na história
escolar de uma criança quando os seus primeiros movimentos se direcionam no sentido de
constituir formas peculiares para lidar com a aprendizagem. São nesses primeiros
movimentos que a criança busca se autoperceber estabelecendo uma relação saudável (ou
não) com a escola e com o conhecimento. Afinal, esse período representa um marco
significativo na vida da criança.
Ao planejar as estratégias metodológicas para estudar a temática, inicialmente
pensei em desenvolver oficinas que têm, de certa forma, uma identificação com o que Leite
(2006) chama de espaço de narrativa6
. Principalmente pela idéia básica de ouvir a fala da
criança, observar o que ela tem a dizer, criando situações de encontro onde realizássemos
contação de histórias fantásticas, leituras de poesias, criação de enredos... Enfim, interagir
por meio da literatura com a linguagem oral e escrita, com os sujeitos da pesquisa e, nessa
interação, observar a contribuição da literatura no processo de alfabetização. A aproximação
inicial com os procedimentos previstos pelos espaços de narrativas despontou como um
caminho possível e realizei a pesquisa, experimentando essa metodologia.
O estudo realizado, embora esteja diretamente relacionado aos campos da
linguagem e da arte – uma vez que o objetivo maior é compreender a contribuição literária
(na sua dimensão estética e poética) no processo de alfabetização e letramento da criança -
está atravessado por outros corpos teóricos, principalmente pela antropologia, psicologia e
filosofia. Na antropologia, por convidar a criança como sujeito-co-autor da pesquisa e
4
No estudo sobre alfabetização organizado pela Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina – Gerência
de Criciúma, no segundo semestre de 2007, discutiu-se a idéia de desenvolver a alfabetização com letramento,
uma idéia que não difere da proposta que explicito anteriormente, por isso, posso usar os termos ligados por “e”
ou “com” o sentido permanece inalterado.
5
No estudo acima referido, foi enfatizado a constituição de “classes para alfabetização” ao invés de “classe de
alfabetização” tratando da primeira e da segunda série do Ensino Fundamental, que em tese, representa um
tempo maior para que a criança possa consolidar a aquisição da leitura e da escrita.
6
Essa é uma expressão cunhada no Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Educação Estética – GEDEST, na
UNESC, do qual faço parte, a partir de discussões metodológicas de pesquisa, por isso ela sempre aparece em
itálico neste texto.
14
percebê-la agente da sua aprendizagem; pela possibilidade de capturar as significações
atribuídas por este “outro criança”, compreendendo-a enquanto categoria social e histórica.
Na psicologia, porque ao problematizar a relação entre literatura e educação reivindica-se a
abertura de um espaço para abordar na escola assuntos de certa forma preteridos por ela,
ou vistos de forma estigmatizada, e que dizem respeito aos conflitos e a própria condição
humana. E pela filosofia, por reconhecer a predominância de modelos teóricos objetivos no
processo de formação humana que, segundo Azevedo (2005, p. 32), apresentam:
um mundo idealizado, regido por normas abstratas e pré-concebidas,
onde a priori tudo se encaixa. [...] Nesse modelo, o ser humano é
apresentado como um elemento lógico e previsível, sempre buscando
sua natural e mecânica integração no status quo.
A duração de dois anos para o curso de mestrado é um fator que dificulta, mas
não inviabiliza a pesquisa. Ir a campo dentro desse limite de tempo implicou em riscos de
colher ou tratar os dados de forma acelerada, um risco que decidimos correr (eu e o
orientador). Valendo-me do espaço de narrativa como procedimento metodológico de
pesquisa, efetivamos os encontros e por meio do diálogo aberto pudemos reflexionar sobre
a forma como ela [a criança] vivencia esse momento e como a literatura pode vir a atuar no
processo. Realizei a pesquisa de campo em uma escola da rede pública estadual do
município de Criciúma, em Santa Catarina. As crianças, alunas da primeira série, são
consideradas co-autoras não apenas porque suas falas, opiniões e produções (orais e
gráficas) foram imprescindíveis para as reflexões e entendimentos possíveis dentro do
contexto em que o diálogo foi estabelecido. Mas, principalmente pela imprevisibilidade da
própria metodologia utilizada que confere aos sujeitos um alto grau de interferência nos
rumos da pesquisa. Em nenhum momento pretendi uma verdade final, mas empenhei-me na
escuta sensível da voz da criança, nas angústias que permeiam esse momento de sua vida
e nas idéias, histórias e poesias que elas são capazes de produzir a partir da interação com
a literatura, uma vez que esse era o propósito.
O caminho que me fez chegar ao problema de pesquisa, além da justificativa
pautada nos resultados que a escola vem produzindo em termos da relação entre os
sujeitos e o código escrito, que percebo também por estar imersa nesse universo, tem uma
forte ligação com as reminiscências que conservo da minha própria infância. Eu poderia
afirmar que a opção pelo objeto de estudo e as reflexões que pude realizar estão, de alguma
forma, relacionadas com a experiência que tive com a linguagem literária na infância e que
influenciaram o meu modo de lidar com a leitura e com a escrita em situações dentro ou fora
da escola. Em função disso, elaborei um memorial que, temendo ser excessivo para a
introdução, pode ser consultado ao final deste trabalho (vide ANEXO 1).
15
O percurso investigativo, a metodologia adotada e a interação entre sujeitos
participantes conduziram a uma reflexão acerca do(s) conceito(s) de infância(s) que
permeiam as ações, os espaços e os instrumentos presentes na escola. Suscitaram ainda
outras interrogações que extrapolam os limites desse estudo. Registrei essa experiência
com consciência de que nela contém muito do que sou enquanto professora e dos co-
autores que a tornaram possível, organizando a dissertação em dois capítulos, que
representam dois momentos diferenciados e interligados na pesquisa.
Apresento no primeiro capítulo a sustentação teórica, com a trajetória da
alfabetização; o surgimento e a influência do termo letramento; a literatura, a literatura
infantil e o entrelaçamento com a educação; a reflexão sobre a qualidade dos livros
destinados às crianças, incluindo a cartilha – tratada na atualidade como livro de
alfabetização. Trago ainda questões relacionadas à construção histórica e social da infância,
os conceitos coexistentes nos dias atuais e a opção metodológica da pesquisa com
crianças, denominada espaços de narrativa.
No segundo capítulo, propositadamente chamado de Canteiro de obras, trato da
pesquisa de campo, que se concentra em torno de três categorias de análise: a primeira é
constituída do registro (na íntegra) das histórias narradas pelas crianças e das reflexões que
elas suscitaram; a segunda traz, além dos textos inéditos construídos pelas crianças, a
problematização do lugar da poesia na escola e na vida dos sujeitos; e a última, igualmente
tecida com as palavras das crianças, tornaram-se fontes reveladoras dos temores,
expectativas, estratégias e das nuances pessoais envolvidas no aprendizado do código
escrito. Seguindo as pistas que pude encontrar, fui teorizando a experiência que finalizo com
algumas considerações e tentando responder a interrogação que me acompanhou durante o
trajeto: seria a linguagem literária uma aliada no processo de alfabetização com letramento?
16
CAPÍTULO I
1 A ALFABETIZAÇÃO, O LETRAMENTO E A LITERATURA
A investigação do processo de alfabetização e letramento constitui uma tarefa
árdua, principalmente pela pluralidade de entendimentos existentes acerca dos termos.
Pesquisar a contribuição da literatura nesse processo, considerando o ponto de vista dos
atores sociais implicados diretamente, ou seja, das crianças, torna essa tarefa ainda mais
complexa, porém instigante na mesma proporção. Ao fazer o percurso teórico pelas obras
com as quais entrei em contato, constatei que existe uma extensa bibliografia que trata
especificamente de cada conceito que compõe o título desse capítulo e embora eu tenha
desenvolvido a pesquisa de maneira articulada é necessário fazer uma delimitação teórica
das especificidades de cada termo, bem como da perspectiva sobre a qual a análise foi
alicerçada.
Quero esclarecer, inicialmente, que apresento os termos alfabetização e
letramento juntos em todos os momentos da escrita e que essa é uma ação proposital que
defende a ênfase da indissociabilidade de ambos na prática pedagógica, sem ignorar a
especificidade que cada conceito possui. Pois, compreendo que a alfabetização precisa ser
pensada na perspectiva do letramento e, nesse sentido, o próprio conceito de alfabetização
amplia seus horizontes e passa a ser visto como “um processo ativo de leitura e
interpretação, onde a criança não só decifra o código escrito, mas também o compreende,
estabelece relações, interpreta” (KRAMER, 1986, p. 168) e pelo qual descobre “que a
palavra escrita é mais uma forma de expressar as coisas, idéias e sentimentos [tornando-se]
[...] a base fundamental para a aquisição da leitura e da escrita” (idem, p. 170).
Se conseguíssemos assumir isso, permanentemente, não haveria a
necessidade de distinção, chamaríamos [apenas] de alfabetização como fizemos no
passado. Mas, reconhecendo que esta não é, ainda, a nossa realidade, é necessário
distinguir alfabetização de letramento, pelo menos em termos técnicos. É o que nos adverte,
Magda Soares (2004), enfatizando o quanto o surgimento do termo e as discussões acerca
do letramento ampliaram, sim, o conceito multifacetado de alfabetização, mas que uma
diferenciação entre ambos é necessária, principalmente em países onde a questão da
alfabetização não foi debelada. Então, de forma introdutória e simplificada, poderia definir a
alfabetização como a aprendizagem técnica do código escrito e o letramento como a
utilização da competência de ler e escrever para comunicar-se na prática social. Sem, com
isso, perder o horizonte de trabalhá-los, concomitantemente.
17
A alfabetização desenvolvida na perspectiva do letramento pode ter na
linguagem literária uma ferramenta indispensável, pois “como arte, é a literatura, em suas
diferentes formas, que propicia ao leitor o acesso à sua interioridade e o estabelecimento de
relações de seu mundo interior com o exterior” (SARAIVA et al, 2001, p. 13). Sob esse
enfoque, “a aprendizagem da leitura é uma experiência que deve ultrapassar o domínio da
decodificação sígnica, para transformar-se em meio de autoconhecimento e apreensão do
real” (Idem). Zaccur (2001, p. 34), refletindo a partir de que modos e sentidos se faz a
alfabetização, afirma que cada um de nós é um ser em construção e o processo de
aprendizagem se constitui num movimento em espiral que se realimenta na dinamicidade de
interações e iterações. A autora faz um questionamento que considero pertinente para as
relações que podem ser estabelecidas entre a alfabetização, o letramento e a literatura: Por
que não pensar que cada criança estará não só se alfabetizando, mas também se
alfabecriando ao se apropriar da escrita como linguagem sua?
Permitir à criança alfabecriar é proporcionar-lhe a sua forma própria de lidar com
a linguagem e de atribuir significados, é realizar a sua experiência pessoal, única e
intransferível numa escola que consinta aos seus sujeitos a oportunidade de poder brincar
com um código que é arbitrário. Desse modo a escola propiciará a vivência de situações
lúdicas, prazerosas, poéticas e criadoras pelos caminhos da leitura e da escrita sem medo
do fracasso. É em busca dessa escola que encaminho a reflexão, utópica de certa forma,
mas possível quando seus atores sociais puderem compartilhar experiências num cenário
em que a criança seja vista como produtora de cultura.
1.1 ALFABETIZAÇÃO: PERCURSO HISTÓRICO E TEÓRICO
1.1.1 A escrita e a alfabetização na sociedade moderna
Segundo Tfouni (2002), a escrita (produto humano por excelência) data de cerca
de 5.000 anos antes de Cristo, porém o processo de difusão e a adoção dos sistemas
escritos (pictográficos, ideográficos e fonéticos) pelas sociedades antigas aconteceram de
forma lenta e condicionada aos fatores políticos e econômicos. Dessa forma, foi somente
nos séculos V e VI a.C. que foi possível reconhecer a sociedade grega como “letrada”. Essa
sociedade passou por um processo de transformação cultural, política e social que propiciou
o “aparecimento, entre outras coisas, do pensamento lógico-empírico e filosófico, a
formalização da história e da lógica enquanto disciplinas intelectuais, e a própria democracia
grega que tem íntima relação com a escrita fonética na Grécia e Jônia” (p. 14).
18
A escrita é uma forma de memória do conhecimento produzido pela humanidade
e uma ferramenta a mais no sentido de elaborar e comunicar coisas, idéias e sentimentos.
“Pode ser tomada como uma das causas principais do aparecimento das civilizações
modernas e do desenvolvimento científico, tecnológico e psicossocial da sociedade nas
quais foi adotada de maneira ampla” (TFOUNI, 2002, p. 14). Mas, é também, segundo a
autora, um instrumento de poder e, portanto, não é produto neutro.
A instrumentalização do homem para o uso do código escrito foi histórica e
predominantemente assumida pela escola e a alfabetização uma decorrência necessária
para possibilitar a aquisição de habilidades requeridas para a leitura e a escrita. Durante
muito tempo a alfabetização foi entendida no sentido elementar do termo como sendo o
processo pelo qual nos apropriamos de um código escrito [o alfabético]. Giroux (apud
TFOUNI, 2002) faz uma crítica à alfabetização definida principalmente em termos
mecânicos e funcionais que de maneira geral confunde-se com a escolarização.
A alfabetização enquanto sinônimo de escolarização no sentido reducionista dos
termos correlaciona a aquisição da escrita com o desenvolvimento cognitivo. Uma visão que
muitas vezes pode ser usada para separar grupos letrados e não-letrados nas sociedades
modernas que usam a escrita, instaurando uma dicotomia na qual essa divisão “vem
substituir as divisões mais antigas entre povos primitivos e povos avançados, pré-lógicos e
lógicos, tradicionais e modernos, pensamento mítico e pensamento científico” (KLEIMAN,
1995, p. 23). Os estudos que apontam a associação da escrita ao desenvolvimento cognitivo
carregam ainda outros problemas, entre eles o de legitimar argumentos que reforçam o
preconceito7
“chegando até criar duas espécies, cognitivamente distintas: os que sabem ler
e escrever e os que não sabem” (idem, p. 27). Essa visão da escrita caracteriza o modelo
autônomo8
de letramento e alfabetizado que, sob essa ótica, seria o cidadão capaz de
dominar os sistemas gráficos de uma língua (codificando, decodificando, lendo,
escrevendo), pois desenvolveu e usa a capacidade metalingüística em relação à linguagem.
“É alfabetizado porque é capaz de distinguir palavras, sílabas, morfemas, grafemas, etc., [...]
principalmente aprendidos na escola, como resultado de uma competência individual”
(COSTA, 2000, p. 15).
Não podemos esquecer que a alfabetização é fundamental para a formação do
leitor e numa sociedade letrada (como a nossa) o seu domínio é entendido como
possibilidade de ascensão social, como forma de participação efetiva na sociedade e
contribui para a emancipação do sujeito. Mas, lamentavelmente, ela tem sido tratada como
um problema e usada como um mecanismo político-ideológico de dominação e exclusão.
7
RATTO (1995) faz uma análise da materialização do preconceito que a sociedade letrada constrói associando a
imagem do analfabeto ao de um primata.
8
Explicito o modelo autônomo no item 1.1.5 – modelos de letramento.
19
1.1.2 A alfabetização
Os estudos referentes à alfabetização passaram por diferentes concepções em
sua trajetória histórica9
, sendo que na primeira metade do século XX o âmbito da pesquisa e
do discurso acadêmico focalizava a questão do ensino, com prioridade para a investigação
dos métodos10
de alfabetização com a fundamentação teórica centrada na Psicologia,
principalmente no Associacionismo11
.
Nessa época, de forma geral, a preocupação girava em torno de pelos menos
dois métodos diferentes, com duas formas diferenciadas de se pensar a alfabetização: os
métodos sintéticos12
(que insistiam na correspondência entre a linguagem oral e escrita e
que esta deveria partir de elementos mínimos, “as letras” ou “fonemas” no caso do método
fonético, para os maiores, “silabas/palavras/frases”, como o caso do método alfabético) e os
métodos analíticos (nos quais a leitura é concebida como um ato “global” e “ideovisual”, que,
portanto deveria se iniciar com unidades significativas para a criança que partiria do todo
para o elemento menor). Paralelo a esses métodos e tentando utilizar o que haveria de
melhor em ambos, se propôs ainda o chamado método “misto” ou “global”, que segundo
Ferreiro e Teberosky (1999, p. 23) “participariam da benevolência de uns e de outros”.
De acordo com Silva (2004), nos anos 60, a questão da alfabetização começa
ser estudada a partir do fracasso escolar. A ideologia do déficit é amplamente divulgada
atribuindo aos alunos oriundos das camadas populares uma desvantagem, pois o meio em
que viviam não lhes oferecia as condições ideais para o pleno desenvolvimento e a escola
teria a função de compensar essa deficiência. Essa questão é aprofundada por Carraher
(1986), que discute alfabetização e pobreza, e Kramer (1982) que explicita a política de
educação compensatória no pré-escolar na obra: A política do pré-escolar no Brasil: a arte
do disfarce.
Na segunda metade do século XX, o esforço em compreender os processos de
aquisição da leitura e da escrita se intensifica. Ferreiro e Teberosky, com base na teoria
9
Barbosa (1994) mostra o trajeto histórico da alfabetização considerando o ano de 1789 como marco
fundamental da associação entre alfabetização e escola. Refere-se ao ideal republicano de universalização da
cultura escrita, concretizando o modelo que concebe a alfabetização como “aprendizagem coletiva e simultânea
dos rudimentos da leitura e da escrita” (p.16).
10
Números que comprovam essa tendência estão em SOARES (2006).
11
Segundo o modelo associacionista a aquisição da linguagem na criança se dá pela imitação do meio social que
a cerca. Por exemplo, quando os adultos apresentam um objeto para a criança, acompanham essa apresentação
com uma emissão vocálica – por reiteradas associações entre emissão sonora e a presença do objeto, a emissão
do som acaba por se transformar em signo do objeto, se faz “palavra” (nessa perspectiva a criança espera
passivamente o reforço externo).
12
Maiores detalhes sobre os métodos do ensino da leitura ver FERREIRO e TEBEROSKY, 1999; uma
revisitação aos métodos empregados para alfabetizar, em CARVALHO, 2005.
20
piagetiana13
, desenvolvem seus estudos buscando descobrir o sujeito cognoscente, ou seja,
“o sujeito que busca adquirir o conhecimento [...] aquele que procura ativamente
compreender o mundo que o rodeia e trata de resolver as interrogações que este mundo
provoca” (1999, p. 29) e publicam14
os resultados na obra: “Loz sistemas de escritura em el
desarollo del niño” traduzido para o português como Psicogênese da língua escrita. Essa
obra causou um grande impacto na educação brasileira e foi considerada por alguns
estudiosos como um marco divisório na história da alfabetização. As discussões anteriores
mantinham o foco na avaliação dos métodos de ensino e a partir dos estudos desenvolvidos
pelas autoras o eixo central foi deslocado do ensino para a aprendizagem, partindo não de
como se deve ensinar, mas de como a criança aprende. Até então, a idéia mais aceita era
de que havia pré-requisitos para que a criança pudesse aprender a ler, um conjunto de
habilidades conhecidas como prontidão para alfabetização.
Para Ferreiro e Teberosky (1999), até 1962 a maior parte dos estudos sobre a
linguagem infantil ocupava-se predominantemente da quantidade e variedade de palavras
utilizadas pela criança: neles, a preocupação maior era com o método de alfabetização
utilizado. Essa etapa foi tomada como ponto de partida (pelas autoras) para fazer a distinção
entre métodos de ensino e processos de aprendizagem.
Paralelo aos estudos de Ferreiro e Teberosky, outras pesquisas relacionadas à
aquisição da linguagem escrita, visando outros aspectos além dos métodos, estavam sendo
desenvolvidas, entre elas, a de Smolka (1980). A pesquisadora fez um estudo entrevistando
crianças de vários contextos sócio-econômicos no intuito de investigar os processos e as
estratégias que as crianças pequenas usam para interpretar a escrita no meio em que vivem
e identificar os conceitos que a Educação Infantil desenvolve sobre esse tipo de linguagem
antes de iniciar a instrução formal na escola. Nas palavras da autora, a aquisição da
linguagem escrita se configura como uma questão ampla e complexa que nos remete para
além dos métodos e nos faz:
[...] buscar historicamente, sócio-culturalmente, psicologicamente, raízes e
origens desta forma de linguagem. Levanta a questão do signo, da
capacidade humana de criar sinais e símbolos. Leva-nos a considerar, na
sua gênese, do ponto de vista de nossa cultura ocidental, a relação
pensamento/linguagem no movimento das interações humanas, [...] remete
às teorias do conhecimento, ao aspecto filosófico da questão; e falar no
movimento das interações humanas nos abre a dimensão política (p.21).
Magda Soares (2006), analisando a transformação paradigmática ocorrida a
partir dos anos 80 e acompanhando o movimento que se fez a partir deles, faz um alerta
que em decorrência do questionamento da validade dos métodos tradicionais se difundiu
13
Ferreiro e Teberosky utilizam os pressupostos epistemológicos centrais da teoria de Jean Piaget para aplicá-los
à análise do aprendizado da língua escrita. Sobre isso ver: AZENHA,(Ática, 1995).
14
Os estudos de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky foram publicados em 1979.
21
uma idéia de certa forma equivocada: a idéia de que não era necessário haver um método
para a alfabetização. Essa discussão ainda se mostra bastante polêmica nos dias atuais e
segundo a autora contaminada por duas questões: a primeira pelo fato de que os problemas
de aprendizagem da leitura e da escrita foram considerados, sobretudo metodológicos e, em
segundo lugar, porque na área da alfabetização o conceito “método” tornou-se
estereotipado, “sinônimo de manual ou um artefato pedagógico que tudo prevê e que
transforma o ensino em uma aplicação rotineira de procedimentos e técnicas” (p. 93).
Além de evidenciar uma visão reducionista do processo de aprendizagem da
língua materna, a crítica intensa aos métodos de alfabetização conduziu a perda da
especificidade do processo e na prática pedagógica gerou uma incerteza generalizada, não
solucionando e em certos casos até agravando o problema do fracasso escolar. Silva (2004,
p. 35) afirma que em geral a utilização dos métodos “não tem garantido a apropriação do
código lingüístico, e mesmo seu aprendizado não responde hoje às necessidades de leitura
e de escrita”, porém é necessário repensar essa questão superando o desconforto sofrido
pelos alfabetizadores, retomando o sentido de método no âmbito educacional. Para Magda
Soares (2006, p. 93), “método, na área de ensino, é um conceito genérico sobre o qual pode
ser abrigado tantas alternativas quantos quadros conceituais existirem ou vierem a existir”. E
ainda que numa re-significação e ampliação conceitual é possível compreender que:
Particularmente no campo do ensino das línguas (materna ou estrangeira,
oral ou escrita), um “método” é a soma de ações baseadas em um conjunto
coerente de princípios e hipóteses psicológicas, lingüísticas, pedagógicas,
que respondem a objetivos determinados. Um método de alfabetização
será, pois, o resultado da determinação dos objetivos a atingir (que
conceitos, habilidades, atitudes caracterizarão a pessoa alfabetizada?), da
opção por certos paradigmas conceituais (psicológico, lingüístico,
pedagógico), da definição enfim, de ações, procedimentos, técnicas
compatíveis com os objetivos visados e as opções teóricas assumidas
(SOARES, 2006, p. 93).
Como é possível perceber, a autora defende sim um método consistente de
alfabetização, não no sentido estreito do termo, mas que considere as diferentes dimensões
imbricadas no processo. E mais ainda, que este seja balizado por uma concepção outra dos
processos de aprendizagem da língua escrita, na qual a criança seja vista como sujeito e
contemplada na sua dimensão psicológica, lingüística e, sobretudo, a social e política.
Nessa perspectiva, a noção de letramento, no sentido ideológico (explicitada no item 1.1.5)
é uma das possibilidades.
Para compreender a forma com que o processo de alfabetização e letramento
tem sido efetivado nos diferentes sistemas educacionais (brasileiros) nos dias atuais e quais
as veredas que as discussões teóricas têm tomado, trago alguns indicadores,
acompanhados de dados sobre a alfabetização no Brasil. Um percurso necessário para
22
aclarar a análise da introdução e da influência do termo letramento em nosso sistema de
ensino.
1.1.3 A alfabetização no Brasil
Na tentativa de perceber a realidade que envolve a alfabetização e o letramento
no âmbito educacional brasileiro poder-se-ia lidar com alguns indicadores, com pontos
diferenciados, mas totalmente interligados entre si: os índices históricos15
de analfabetismo16
que, por sua vez, vêm apresentando um decréscimo num ritmo significativo que a julgar por
este movimento estaria próximo de 0% nas décadas seguintes; as taxas de escolarização17
no sentido da universalização18
da Educação Básica que, amparada legalmente,
apresentam um crescimento sistemático e conseqüentemente têm contribuído para reduzir
os índices de analfabetismo; a repetência19
e a evasão nas séries iniciais como “outro”
problema ainda não solucionado e que tem na primeira série20
do Ensino Fundamental o
índice mais elevado. Contudo, deixo esse leque de fatores que estão relacionados ao
problema de pesquisa para focalizar uma questão mais subjetiva: os diferentes (e
rudimentares) níveis de letramentos produzidos pela escola.
Os níveis rudimentares de alfabetização e letramento de uma grande parcela da
população brasileira é um problema que precisa ser enfrentado, não apenas pela escola,
mas principalmente por ela. É elevado o número de sujeitos que passam pelos bancos
escolares e “aprendem” a técnica da escrita e da leitura, mas não se habilitam a utilizarem
essa ferramenta de forma competente, com autoria e autonomia na prática. Soares (2005)
15
Os dados oficiais do Ministério da Educação em relação aos índices de analfabetismo no Brasil (por década)
registram os seguintes números: ano – 1820 mais de 99%; 1872 (ano do primeiro censo) com 82,3%; 1920 com
71,2%; 1940 com 61,1%; 1950 com 57,1% em 1960 com 46,7%; em 1970 com 38,7%; em 1980 com 31,9%; em
1990 com 24,2% e no ano 2000 com 16,7% . Esses dados foram exibidos no programa Salto para o futuro no dia
29/03/2003.
16
Entre 1986 e 1995 a taxa de analfabetismo no Brasil, na população de 15 anos e mais de idade, passou de
20,0% para 14,7%. Os valores para os anos de 1987, 1988, 1989, 1990, 1991, 1992, 1993 e 1995 foram,
respectivamente, 20,0%; 17,0%; 19,7%; 19,0%; 19,0%; 18,3%; 16,3% e 15,5%. (IBGE, Censo Demográfico
1991 e Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1986-1990, 1992-1993, 1995, dados não publicados).
17
Os dados do IBGE também apontam o aumento da escolarização das crianças e adolescentes na última década
que por sua vez tem contribuído para a redução do analfabetismo no Brasil.
18
Todo o esforço governamental se concentra no sentido de colocar “todas” as crianças na escola, com
oportunidade de ingresso, o que não significa que elas estarão em igualdade de condições.
19
Segundo BARROS, (2006) os índices de repetência e evasão nas séries iniciais colocam o país na 30ª posição
no ranking mundial atingindo 21% dos alunos matriculados, em torno de 1,3 milhões de crianças que tiveram
que repetir a primeira série em 2004.
20
Os dados do Ministério da Educação divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira- (INEP) em 2001 apontam que: “[...] no período 1995/1996, a repetência no Brasil era de 30,2%, os
dados atuais indicam uma queda de 28,5% em relação àquele período. A primeira série tem o maior índice de
repetência, de 39,3% [...]”.
23
discute os dados oficiais e o conceito de analfabeto que pelo censo de 1991 estariam em
torno de 18% correspondente às pessoas que responderam “não” a pergunta: do
recenseador: “Sabe ler e escrever um bilhete simples?”. Segundo a autora, é no correr dos
anos 90 que começa a se discutir o conceito de alfabetização, reconhecendo que não é
possível reduzi-la ao “reconhecimento e uso das relações entre cadeia sonora da fala e a
cadeia gráfica da escrita, limitando-se ao primeiro ano de escolaridade, à chamada classe
de alfabetização” (Idem, [s.p.]).
A ampliação do conceito de alfabetização sugere uma abordagem diferenciada
para tratar da questão. A diferença que se apresenta, nos dias atuais, em nosso país (não
somente) é o fato de atentarmos para os níveis considerados precários de letramento,
pressupondo debelada a questão do acesso à escola, mas com poucas garantias de
aprendizagem efetiva. Na verdade, grande parte da população brasileira que está passando
pelos bancos escolares apresenta desempenho incipiente em leitura, interpretação e
produção textual. Seria impreciso quantificar essa população, mas não inviável analisar os
possíveis motivos que podem conduzir as pessoas a essa condição. É possível ter uma
idéia da gravidade do problema em Soares (2005) que faz menção à nota do jornal A Folha
de São Paulo, edição de 02/09/91, que apresenta como título da matéria “Analfabetos no
país já somam 60 milhões”. Segundo a autora, seria um absurdo se fosse considerado o
conceito técnico de analfabeto, pois esse número seria equivalente a quase metade da
população brasileira, mas em seguida vem a explicação: “Dados do IBGE dizem que apenas
18% são analfabetos, mas o número de “desqualificados” é muito maior” (idem [s.p.]), ou
seja, uma parcela significativa da população brasileira se encontra não ou semi-alfabetizado
mesmo tendo freqüentado a escola regular e/ou concluído o Ensino Fundamental, ou será
que essa situação teria se modificado?
Compreendendo que as circunstâncias pouco se modificaram, pois de maneira
geral continuamos produzindo rudimentares níveis de letramentos na escola, considerei
essa questão como um ponto chave para tratar a problemática da pesquisa. Uma vez que,
para além dos números oficiais ou reais que possamos acessar e deles fazer múltiplas
leituras, ou tomá-los como objeto de estudo, a minha indagação maior foi no sentido de
tentar compreender de que forma a literatura pode contribuir para efetivar um processo de
alfabetização com letramento no sentido amplo da formação humana, favorecendo a
educação de um sujeito capaz de expressar-se com autonomia por meio da linguagem oral
e/ou escrita assumindo a autoria do seu discurso. Ou seja, um sujeito que possa pensar e
interferir em sua realidade social. Buscar perceber a significação da literatura nesse
movimento, especificamente pelo olhar da criança imersa no processo de alfabetização e
letramento foi o desafio que me propus. Pensei, portanto, o problema de pesquisa a partir
das questões suscitadas pelos níveis de letramentos, considerados baixos, por entender
24
que a tarefa de alfabetizar e letrar precisa ser pensada no âmbito da significação, do fazer
sentido para o sujeito, mais do que dominar o objeto escrita, o sujeito precisa saber o que
fazer com ele.
Sem desconsiderar, evidentemente, a importância dos muitos elementos
envolvidos no processo de alfabetização, entendo ser o precário desempenho no uso do
código escrito na prática uma das mais graves manifestações desta problemática porque
oculta uma faceta política, social e ideológica de preservação de um modelo excludente que
faz com que a maior parcela da população não tenha acesso ao capital cultural produzido
pela humanidade. Resultado de um sistema de educação que se mostra ineficiente na
formação do homem (no sentido integral) e do leitor/ autor com autonomia para pensar e
produzir significados dentro do seu contexto específico. Porém, um sistema que se
configura, inegavelmente, o fator maior (quando não único) de possibilidade para a iniciação
de muitos sujeitos ao mundo da escrita e da leitura.
Os resultados gerais que a escola tem apresentado são ainda insuficientes. É
preciso admitir que apesar dos esforços que têm sido empreendidos no campo prático e
teórico da educação brasileira, o fracasso na alfabetização ainda é uma realidade,
infelizmente. Uma realidade que precisa ser inevitavelmente discutida, pois um problema
que surge na base tende a se perpetuar progressivamente, atingindo as diferentes áreas e
níveis educacionais. Basta uma simples análise das produções textuais apresentadas por
alunos do ensino médio para constatar a dificuldade na produção escrita. E isso vai além,
nos cursos de graduação podemos encontrar alunos com dificuldade de expor de forma
clara e consistente suas idéias. É possível encontrar monografias, dissertações e teses, com
idéias soltas, pensamentos mal-elaborados, dessa forma, guardadas as devidas proporções,
o problema se manifesta em todos os níveis educacionais e eu me pergunto: quais os
fatores que levam a escolarização a ser ineficiente no que se refere ao desenvolvimento da
capacidade de compreensão e elaboração escrita do sujeito?
É verdade que os problemas que envolvem os sistemas escolares são inúmeros
a começar pela própria estrutura física, os rituais, o material didático, a disposição dos
espaços, a prática pedagógica... Uma somatória de fatores que impossibilita a interação dos
sujeitos e o aprendizado com o outro, dificultando o fluxo da elaboração cognitiva. Com essa
estrutura a aprendizagem tende a assumir um caráter mecânico, desprovido de significados
e a partir do processo de alfabetização e letramento essa característica se torna presente e
conduz a grande maioria dos alunos a “abrir mão” da própria aprendizagem. O saber da
escola é, muitas vezes, um saber artificializado e desarticulado dos anseios humanos. A
escola na sua grande maioria trabalha apenas com o “certo” não abre espaço para a dúvida,
a intuição, a imaginação, a emoção [...] Para Ostetto (2006, p. 22) é preciso “provocar as
25
amarras racionalistas que impedem a viagem ao desconhecido” possibilitando à criança um
processo de aprendizagem que inclua a fantasia, a beleza e a ludicidade.
Reflexionando acerca das formas com que a educação, de forma geral, e
especificamente a alfabetização tem sido efetivada nos diferentes sistemas educacionais
brasileiros, gerando os resultados acima mencionados, percebo que uma transformação
depende igualmente de diferentes fatores, entre os quais o repensar e re-significar o próprio
papel da escola; o uso dos instrumentos inseridos em seu contexto; a compreensão da
função e do posicionamento teórico e político do professor enquanto sujeito privilegiado e
mediador do processo educacional. No Brasil, os problemas relacionados à alfabetização
estão longe de alcançar resultados satisfatórios. É um campo que se mostra amplo e aberto
para o debate na busca de uma educação emancipatória, que permita a expressão autoral e
autônoma do sujeito em todos os níveis de ensino.
1.1.4 A alfabetização e o letramento
Em meados dos anos de 1980, surge no contexto dos estudos e da discussão
sobre alfabetização no Brasil a noção de letramento. Uma das ocorrências do uso da
expressão letramento21
segundo Soares (2001) foi feita por Kato em 1986, em que a autora
diz acreditar que a língua falada culta é conseqüência do letramento, e Tfouni, em 1988,
distingue a alfabetização de letramento. A partir desse momento, o uso do termo torna-se
cada vez mais freqüente no discurso escrito e falado de professores e especialistas, e
motivo de pesquisa nos meios acadêmicos. Porém, a palavra letramento, segundo Soares
(2001) ainda não estava dicionarizada22
, tinha sido introduzida muito recentemente na língua
portuguesa e “alguns autores preferiam, no lugar de letramento, utilizar a palavra
alfabetismo, mais próxima da língua portuguesa, porém não tão familiar quanto seu oposto,
analfabetismo” (SILVA, 2004, p. 37).
Para Kleiman (1995, p.15-16):
O conceito de letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos
numa tentativa de separar os estudos sobre o “impacto social da escrita”
[...] dos estudos sobre a alfabetização cujas conotações escolares
destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita.
Eximem-se dessas conotações os sentidos que Paulo Freire atribui a
21
Versão para o Português da palavra literacy, da língua inglesa. “Etimologicamente, a palavra literacy vem do
latim littera (letra), com o sufixo –cy, que denota qualidade, condição, estado [...], ou seja: literacy é o estado ou
a condição que assume aquele que aprende a ler e escrever (SOARES, 2001, p.17)”.
22
No dicionário Caldas Aulete, indicado como termo antigo ou antiquado aparecia a palavra letramento há um
século atrás e significava “soletrar”. Uma palavra que deixou de ser usada, retornando em 1986 com outro
significado. Em 2001 o Dicionário Houaiss dicionarizou a palavra letramento e o adjetivo letrado, a ela
correspondente.
26
alfabetização que a vê como capaz de levar o analfabeto a organizar
reflexivamente seu pensamento, desenvolver a consciência crítica,
introduzi-la num processo real de democratização da cultura e de
libertação.
De acordo com Soares (2004), o uso do termo letramento aparece decorrente da
necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais
avançadas e complexas que as práticas do ler e escrever resultantes da aprendizagem do
sistema da escrita. Para a autora, este fenômeno acontece simultaneamente ao
aparecimento do illettrisme, na França, e da literacia em Portugal. Nos Estados Unidos e na
Inglaterra, embora o termo literacy já estivesse sendo usado desde o final do século XIX foi
também nos anos de 1980 que se tornou foco de atenção e discussão nas áreas da
educação e da linguagem, evidenciado pelo grande número de artigos e livros publicados
sobre o tema. Convém ressaltar que, aproximadamente nesta época (final dos anos 1970), a
UNESCO23
propõe a ampliação do conceito de literate para functionanally literate, sugerindo
que as avaliações internacionais sobre o domínio de competências de leitura e de escrita se
fizessem de forma mais ampla, além do medir apenas a competência de ler e escrever.
Ainda segundo Soares (2004), se houve coincidências quanto ao momento
histórico em que as práticas sociais de leitura e escrita surgem como fundamentais em
sociedades distanciadas nos aspectos geográficos, socioeconômicos e culturais, as causas
e o contexto deste surgimento se caracterizam como diferentes nos países em
desenvolvimento, como o Brasil, dos países desenvolvidos como França, Estados Unidos e
Inglaterra. Uma das diferenças que pode ser destacada é o grau da ênfase colocada nas
relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita e aprendizagem do código escrito,
ou seja, entre o conceito de letramento (illetrisme, literacy) e o conceito de alfabetização
(alphabétisation, reading, instruction, beginning literacy). Nos países de primeiro mundo, as
práticas sociais de leitura e escrita assumem a natureza de problema relevante na
constatação de que a população, embora alfabetizada, não possuía habilidades de leitura e
escritas suficientes para uma participação efetiva e competente, tanto no contexto social
como profissional, envolvendo a língua escrita. Nesta perspectiva, nesses países a
discussão sobre os problemas da aprendizagem inicial da escrita, ou da tecnologia da
escrita (alfabetização) e o domínio precário de competências de leitura e de escrita
necessárias para a participação em práticas sociais letradas (letramento) são tratados de
forma independente, revelando o reconhecimento de suas especificidades e uma relação de
não causalidade entre eles.
No Brasil, o movimento se fez na direção oposta. A discussão sobre a
importância de habilidades para o uso competente da leitura e da escrita tem sua origem
23
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
27
vinculada à aprendizagem inicial da escrita, desenvolvendo-se a partir do questionamento
do conceito de alfabetização. Dessa forma, os conceitos de alfabetização e letramento se
mesclam e freqüentemente se confundem, com uma progressiva extensão do conceito de
alfabetização em direção ao letramento, do saber ler e escrever em direção ao ser capaz de
fazer uso da leitura e da escrita.
Para Soares (2004, p. 8), “a invenção do letramento, entre nós, se deu por
caminhos diferentes daqueles que explicam a invenção dos termos em outros países”.
Apesar da diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, existe uma inadequada
e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do letramento conduzindo a
uma certa extinção do termo alfabetização, a que a autora atribui o nome de “desinvenção
da alfabetização” para descrever a progressiva perda da especificidade do processo de
alfabetização que vem ocorrendo nas escolas ao longo das duas últimas décadas. Para a
autora, na concepção atual, a alfabetização não precede o letramento, os dois processos
são simultâneos.
Nas últimas (duas) décadas, os estudos sobre o letramento se intensificaram
provocando uma série de indagações e hipóteses a respeito do próprio significado, o sentido
se pluralizou provocando entendimentos diferenciados. Para Scribner e Cole (apud
KLEIMAN, 1995, p. 19) o letramento pode ser definido como “um conjunto de práticas
sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em
contextos específicos, para objetivos específicos”. Tfouni (2002, p. 23) afirma que o termo
letramento “não tem um sentido único, nem descreve um fenômeno simples e uniforme.
Pelo contrário, está intimamente ligado à questão das mentalidades, da cultura e da
estrutura social como um todo”.
Para Costa (2000, p. 15) o termo letramento pode interpenetrar-se com a
concepção paulofreiriana de alfabetização no sentido de auxiliar no desenvolvimento de
“uma consciência crítica e reflexiva do sujeito, para que ele possa ter acesso à cultura e se
liberte como cidadão. Portanto um processo (ou uma prática) social/coletivo de
democratização do saber”. Para Silva (2004, p. 43), a noção de letramento não apenas
amplia o conceito de alfabetização como poderia fortalecê-lo “resgatando a dimensão
política, filosófica, dialógica, cultural e ideológica”. Cecília Goulart (2006) destaca não
apenas a dificuldade para conceituar o letramento como a possibilidade de conceber
letramentos, ou seja, uma pluralidade em torno deste termo que resulta numa falta de
condições para estabelecer os diferentes níveis de letramentos. A autora afirma ainda que a
discussão contemporânea sobre letramento é densa, complexa e está atravessada pelo viés
político-ideológico.
O conceito de letramento, vê-se, ainda está se consolidando. De qualquer modo,
foge ao âmbito deste trabalho aprofundar essa questão. Aqui, relacionado à alfabetização, o
28
letramento é bússola, é perspectiva pela qual o ensino e a aprendizagem do objeto escrita
se apóiam, enquanto a aprendizagem do sistema escrito torna-se ferramenta que amplia
gradativamente os níveis de letramento.
1.1.5 Modelos de letramento
Kleiman (1985), analisando os modelos de letramento encontrados na prática de
alfabetização escolar, aponta pelo menos dois que levariam a duas perspectivas e
conseqüências diferenciadas: o modelo autônomo e o modelo ideológico.
Costa (2000, p. 16), fundamentado em Kleiman, explicita inicialmente o modelo
autônomo de letramento, bem como o que este conceito representa em termos de
implicações sociais:
O modelo autônomo possui uma concepção quase absoluta de que nas
instituições e nas classes letradas (escola, igreja, classe média,...) está a
gênese da verdade. Assim a escola seria, com suas práticas, a principal
agência de letramento e a escrita seria objeto de comunicação distinto da
oral (visão polarizada entre oralidade e escrita), priorizando, portanto, na
/pela escrita, um tipo especifico de letramento – a alfabetização.
Esse modelo seria um modelo completo em si mesmo, instrumento neutro,
a-social, a-histórico, justamente por não levar em conta o contexto social ou
cultural que determina as práticas de letramento.
Para o autor, o modelo autônomo de letramento reforça a crença de poder
resolver as dificuldades de comunicação oriundas da diversidade sociocultural e lingüística
por meio da educação formal escolar baseado principalmente na certeza de que quanto
maior o nível de escolarização, melhor a performance do sujeito na comunicação. Esse
modelo enfatiza a dimensão individual da aprendizagem e o letramento é concebido como
um atributo pessoal. Além de outros problemas, modelos de letramentos que enfatizam a
ótica individual, segundo Silva (2004, p. 39), “concebem o ato de ler24
e escrever25
como
uma mesma habilidade, não levando em conta a especificidade de cada um; por outro lado,
quando compreendem a distinção dos dois processos acabam por enfatizar um deles”.
A autora destaca ainda o fato de que o ensino da leitura e da escrita
desconsidera muitas vezes as experiências anteriores do sujeito e o conflito necessário para
que ele memorize e compreenda o sistema alfabético. “Esse conflito só é possível na
24
A leitura é “um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas, que se estendem desde a habilidade de
decodificar palavras até a capacidade de ler textos escritos” (SOARES apud SILVA, 2004, p.39)
25
A escrita também requer um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas, mas diferentes daquelas
exigidas pela leitura, “as habilidades de escrita estendem-se desde a capacidade de registrar unidades de som até
a capacidade de transmitir significado de forma adequada a um leitor em potencial” (SOARES apud SILVA,
2004, p. 40).
29
interação com o outro, pois é a partir do outro que a criança se dá conta das situações e
condições em que se produz a escrita e a leitura em sala de aula. Lemos e escrevemos o
que?, para quê, para quem, por quê?”(SILVA, 2004, p. 41). Embora enfatizando a questão
individual, a aprendizagem do código escrito é um fenômeno de caráter social e se faz na e
por meio da atividade discursiva.
O modelo ideológico leva em conta a determinação do aspecto social e cultural
nas práticas de letramento para uma sociedade e a significação do código escrito depende
do contexto em que foi adquirido. “Esse modelo não propõe a relação de causalidade para
ascensão social do sujeito, acesso aos seus bens sociais ou desempenho nas práticas
comunitárias” (COSTA, 2000, p. 16). Segundo o autor, enquanto o modelo autônomo possui
uma confiança absoluta de que o que é universalmente confiável ou válido provém das
instituições como a escola, a igreja, entre outras, no modelo ideológico essa confiabilidade é
relativizada.
O modelo ideológico, interpretado não como um atributo particular, mas na
dimensão social, pode ainda ser visto “sob duas perspectivas, progressista ou liberal e a
revolucionária ou radical” (SOARES apud SILVA, 2004, p. 42). Na ótica progressista ou
liberal, o letramento prevê tão somente que o individuo desenvolva práticas sociais de leitura
e escrita que o adaptem as condições do meio em que está inserido, enquanto na
perspectiva revolucionária ou radical o sujeito é encorajado a interferir no contexto criando
inclusive novas regras de participação.
É no âmbito do modelo ideológico de letramento, com sua possibilidade de ser
transformador ou revolucionário, que percebo uma ampliação, numa visão outra das
discussões sobre alfabetização. Mencione-se ainda que não apenas o uso social do código
escrito (letramento) está condicionado aos aspectos culturais de um determinado grupo
como a própria aquisição técnica desse código (alfabetização) se dá necessariamente
relacionada a uma maior ou menor valorização atribuída à escrita, de acordo com o contexto
em que o sujeito está inserido. Nessa perspectiva, o objeto de estudo (código escrito) pode
ser trabalhado para além da decodificação, visando à interpretação e à produção de
significados, pois somente dessa forma poderá contribuir para uma alfabetização e um
letramento na perspectiva de iniciar a formação de um leitor/autor.
Para Varrela (2001, p. 33), o grande desafio da atualidade imposto aos
professores em relação à leitura e a produção escrita é “alfabetizar crianças tendo o texto
como unidade básica e ensinar a ler e escrever a partir da reflexão sobre o processo
envolvido”, principalmente porque a “autonomia na leitura desenvolve-se com o aumento da
experiência, na medida em que ocorre a ampliação de conhecimentos que servem de apoio
à identificação de palavras, de frases e de modalidades de textos” (idem). Quando Varella
refere-se ao texto, é preciso ressaltar que a preferência pela polissemia e polifonia contida
30
nos textos literários contribui para potencializar a interação acerca de diferentes opiniões
sobre uma unidade temática. Os textos providos de diferentes significados podem
proporcionar aos que estão aprendendo a ler e escrever uma competência “para além do
domínio do sistema de escritura, melhor pronunciando, enunciando, e anunciando seu estar
no mundo, seu jeito de estar e de fazer sua humanidade, produzindo cultura” (PAIVA, 2005,
p. 113), consolidando não apenas o processo de alfabetização, como também o de
letramento.
O fantástico ficcional presente na literatura é um elemento que desencadeia o
pensar, o imaginar e o descobrir novas verdades. Sobretudo, a leitura literária pode
impulsionar o sujeito (leitor/autor) a não ter medo de enfrentar suas próprias idéias
representadas por meio da linguagem oral ou escrita. Ao ler me torno um co-autor
simplesmente pelo fato de não permanecer indiferente ao texto, ou seja, produzo
paralelamente um texto novo e ao escrever estarei dialogando com o outro, pois cada
palavra é uma forma de expressão de um tempo e um espaço constituído culturalmente.
Esse fator assume vital importância para a criança no momento da aquisição da linguagem
escrita que precisa necessariamente ter significado. A competência técnica é adquirida
paralelamente e/ou em conseqüência da constante interação com textos diversificados,
científicos e ficcionais, ou seja, o letramento se faz concomitantemente ao processo de
alfabetização.
1.2 A LITERATURA
O termo literatura permeia o trajeto desse estudo de forma muito evidente sem
reivindicar a necessidade de explicitar um conceito acerca do mesmo. Entretanto, ao tentar
focalizar com maior precisão o que a literatura representa para a formação do sujeito de
maneira ampla, e especificamente em que sentido está alocada nessa pesquisa, deparei-me
com a desconcertante tarefa de tentar responder: afinal, o que é a literatura?
A literatura é arte acima de tudo, mas é também um objeto cultural que
apresenta muitos aspectos fugidios, razão pela qual, pareceu-me mais sensato ao invés de
explicitar um conceito empenhar-me em apontar algumas características que tornam um
texto literário. Além disso, um evento lingüístico qualquer de hoje poderá amanhã se tornar
literatura reconhecida se a sociedade que o produziu ou o ler assim o determinar. Mais do
que destacar as características ou qualidades atribuídas à linguagem literária, percebo a
necessidade de me ater a uma delas em especial: o seu caráter formativo. Pois é a partir do
reconhecimento de que o texto literário configura-se como um objeto relevante na formação
do leitor, que faço a reflexão acerca da sua contribuição no processo de alfabetização e
31
letramento da criança. Compreendendo ainda que essa formação se inicia muito antes da
criança chegar à primeira série do ensino fundamental, acredito que quanto mais cedo ela
entrar em contato com a literatura maior será o seu repertório, com o qual vai dialogar e
constituir-se leitora.
Segundo Zilberman (1990, p. 12), quando a literatura nasceu, na Grécia antiga,
chamava-se poesia e sua função principal era divertir a nobreza nos intervalos entre uma
guerra e outra. “A Ilíada e a Odisséia devem seu aparecimento a essa circunstância, porém
sua permanência no tempo não se explica da mesma maneira”. Esses dois poemas épicos
tornaram-se para os gregos, de acordo com a autora, algo semelhante à Bíblia para os
hebreus: um instrumento que contava as origens da nação, explicitava as diferenças entre
homens e deuses, servia para legitimar o modelo político adotado e ainda ditava as normas
de comportamento privilegiadas por aquela sociedade. Dessa forma, a literatura assumiu
desde muito cedo uma propensão educativa. No decorrer do tempo ela sofreu inúmeras
transformações, surgiram novos gêneros, mas uma certeza manteve-se com o tempo: “a de
que o texto poético favorece a formação do indivíduo cabendo, pois, expô-lo à matéria-prima
literária, requisito indispensável a seu aprimoramento intelectual e ético” (ZILBERMAN,
1990, p. 13).
É esse aspecto formativo da linguagem literária que abona sua presença em
todos os níveis de escolarização como fator que contribui não apenas para a formação do
leitor, mas de uma forma abrangente atua na constituição do sujeito. Porém é preciso re-
significar a maneira de lidar com os textos literários no cotidiano escolar. Para Zilberman
(1990, p.17) “não pode ser a que desempenhou na Antiguidade, por que a escola se
interpôs entre a obra e o leitor, com conseqüências inegáveis”. Também não pode ser a
pedagogização da literatura, ou seja, utilizá-la apenas como um recurso para apreender
aspectos relacionados à estrutura da língua.
A linguagem literária caracteriza-se pela possibilidade de leitura do mundo real
de diferentes formas. Uma linguagem que vai se distanciando da objetividade e da
explicação única e propondo verdades que são construídas na interlocução entre autor(es),
texto(s) e leitor(es) e por isso está sempre em aberto. As significações que ela pode
suscitar a partir dos personagens, tempos ou eventos fictícios, dizem respeito à busca de
compreensão da própria condição humana, seus medos, suas paixões, suas eternas
dúvidas ainda sem respostas e como resultado de muitas vozes inquietas. Ligia Cademartori
sintetiza o que provisoriamente poderíamos tomar como um conceito de literatura, apenas
para convergir reflexões momentâneas, pois o próprio significado é escorregadio e não nos
permite apreendê-lo na sua abrangência:
32
A obra literária recorta o real, sintetiza-o e interpreta-o através do ponto de
vista do narrador ou do poeta. Sendo assim, manifesta através do fictício e
da fantasia, um saber sobre o mundo e oferece ao leitor um padrão para
interpretá-lo. Veículo do patrimônio cultural da humanidade, a literatura se
caracteriza, a cada obra, pela proposição de novos conceitos que provocam
uma subversão do já estabelecido (1986, p.22).
Nas palavras de Azevedo (2004, p. 39), algumas características que constituem
“essa forma de arte feita com palavras convencionalmente chamada de Literatura” dão
conta de que em primeiro lugar ela é ficção e discurso poético. A ficcionalidade retrata o
mundo de forma subjetiva, analógica, intuitiva, imaginária e fantástica. Por meio do discurso
poético, afirma o autor, abrimos mão da linguagem objetiva, sistemática, impessoal,
coerente e unívoca dos livros didáticos para poder inventar palavras, transgredir as normas
oficiais da Língua, criar ritmos inesperados, brincar com trocadilhos e duplos sentidos,
recorrer a metáforas e poder ser ambíguo e até mesmo obscuro. O texto literário é, portanto,
constituído pela plurissignificação, se distancia do texto didático-informativo, possibilitando
que diferentes leitores cheguem a diferentes interpretações. Para o autor, “é possível afirmar
que quanto mais leituras um texto literário suscitar, maior será sua qualidade” (p. 40).
Vê-se que a literatura é um modelo de pensamento que se utiliza da ficção e da
linguagem poética para interpretar o mundo. Nas situações ambíguas e contraditórias de
personagens fictícios e imaginários discutem-se as contradições que caracterizam os
sentimentos e as paixões humanas, permitindo não apenas a reflexão, mas a busca do
autoconhecimento e a construção da identidade de um “eu” em relação ao “outro”. A leitura
de textos literários, além dos atributos acima citados, faz com que seu leitor produza um
texto paralelo e inédito que representa o seu posicionamento em relação ao que outras
vozes lhe falam, é um impulso ao “eu” autor que num movimento ininterrupto revela que “era
uma vez um escritor que escreveu para um leitor que virou escritor que escreveu para outro
leitor [...] percebendo mais profundamente as perplexidades da vida e muito provavelmente,
plasmando – juntos – outras maneiras de existir” (SILVA, 1990, p. 23).
1.2.1 A literatura infantil
O que é Literatura infantil?
Para Aguiar et al (2001, p.16) “são as histórias e os poemas que ao longo dos
tempos, seduzem e cativam a criança, embora às vezes não sejam destinados ao público
infantil (e o livro Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, é um exemplo)”.
Para Cristiane Madanêlo de Oliveira (2005) “a autêntica literatura infantil não
deve ser feita essencialmente com intenção pedagógica, didática ou para incentivar hábito
33
de leitura” [s.p.]; a designação infantil para essa modalidade literária não deve ser vista
como "menor", mas na perspectiva de que:
A palavra literatura é intransitiva e, independente do adjetivo que receba, é
arte e deleite. Sendo assim, o termo infantil associado à literatura não
significa que ela tenha sido feita necessariamente para crianças. Na
verdade, a literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde, de
alguma forma, aos anseios do leitor e que se identifique com ele (idem).
A Literatura Infantil tem sua origem26
no final do séc. XVII, época em que
ocorreram mudanças estruturais na sociedade. Entre essas mudanças, três delas
contribuíram de forma determinante para o surgimento do gênero literário: a reestruturação
da família (burguesa); a reorganização da escola e o reconhecimento da infância enquanto
categoria social. A reorganização da família fez emergir o sentimento de infância que até
esse momento não era reconhecido e a partir da visão moderna de família se estabelece um
conceito de infância repleto de diferentes interesses e entendimentos. A escola foi
reformada e assumiu a função de cuidar do desenvolvimento intelectual infantil.
O surgimento da literatura infantil vinculado ao nascimento do conceito moderno
de infância e unido à escola de modo não acidental produziu os primeiros textos deste
gênero, expressando um apelo educativo, principalmente porque foram escritos por
pedagogos. Essa característica sobreviveu ao andar histórico e nos dias atuais podemos
encontrar um grande número de obras preservando tal pretensão. Fato que, segundo
Zilberman (1998, p. 14), torna problemática a relação literatura e educação, pois: “de um
lado, o vínculo de ordem prática prejudica a recepção das obras [...] e a crítica desprestigia
globalmente a produção destinada aos pequenos, antecipando a intenção pedagógica, e
sem avaliar os casos específicos”. Por outro lado, a autora reafirma que a “sala de aula é
um espaço privilegiado para o desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um
importante setor para o intercâmbio da cultura literária, não podendo ser ignorada, muito
menos desmentida sua utilidade” (idem).
A estreita relação entre literatura infantil e a educação intensifica seu caráter
utilitário no processo de alfabetização e letramento. Encontram-se disponíveis no mercado
editorial alguns livros que se dizem adequados para introduzir a criança ao universo da
leitura e da escrita. Essas obras são tomadas como um mero instrumento didático com o
qual a assimilação da tarefa escolar fica evidente. Segundo Zilberman (1988), são obras que
não apresentam as características básicas da ficção, tais como a ação narrativa entre o
26
Segundo Oliveira (2005 [s.p.]) a célula máter da Literatura Infantil, hoje conhecida como “clássica”, encontra-
se na Novelística Popular Medieval que tem suas origens na Índia. Descobriu-se que, desde essa época, a palavra
impôs-se ao homem como algo mágico, como um poder misterioso, que tanto poderia proteger, como ameaçar,
construir ou destruir. São também de caráter mágico ou fantasioso as narrativas conhecidas hoje como literatura
primordial. Nela foi descoberto o fundo fabuloso das narrativas orientais, que se forjaram durante séculos a.C., e
se difundiram por todo o mundo, através da tradição oral.
34
aparecimento de um problema a resolver e a sua solução, a presença de personagens
animadas, um espaço e um tempo fictícios. Além disso, como a preocupação maior é a
aquisição e domínio do código escrito, alguns deles apresentam ao leitor as letras na
seqüência em que o alfabeto as ordena e na variedade de suas diferentes formas gráficas.
Ainda, segundo Zilberman (1988), os livros direcionados às crianças em
processo de alfabetização possuem uma transitoriedade, limitando o seu uso. Nessa fase, a
criança ainda não domina o código escrito e, portanto, não tem fluência e segurança para
poder escolher e ler uma obra e ao superar essa fase, esses livros podem ser dispensados,
o que, segundo a autora via de regra acontece. Dessa forma, essas obras além de serem
produzidas dentro de um modelo metodológico com uma concepção de aprendizagem
essencialmente pragmática, encontram-se atrelados ao fim que se destinam e representam
a parcela mais descartável e efêmera da literatura infantil.
Sisto (2005) faz uma “brincadeira-séria” utilizando a ficção para assinalar o
quanto à relação da literatura infantil com a escola pode ser problemática:
Nosso personagem chama-se Literatura Infantil e acabou de ser chamado
na sala da coordenadora da escola, para se defender da acusação de ser
coisa sem importância, desnecessária, sob a ameaça de perder o lugar na
escola, e pior, na vida das pessoas [...] (p. 134).
Tal qual a crítica exacerbada aos métodos tradicionais de alfabetização que
geraram uma crença equivocada de que estes não eram mais necessários, também a
literatura infantil entendida como pedagogizante pode ter sido preterida no ambiente escolar.
O fato de muitas obras, em meio à diversidade existente, possuírem um caráter didático não
significa que não possamos encontrar qualidade literária e negar a contribuição do gênero
para a formação humana. Azevedo (2005, p. 25) reafirma o papel determinante que a
escola possui na formação de leitores, na qual “grande parte das pessoas tem sua primeira
chance de estabelecer contato com textos de ficção e poesia”. Embora, pois, a literatura
infantil tenha um percurso histórico marcado pela característica didática, ela supera essa
fragilidade atingindo o estatuto de arte literária, segundo Zilberman (1998), quando se
distancia de sua origem comprometida com a pedagogia e apresenta textos de valor
artístico a seus pequenos leitores.
A literatura (infantil ou não) tem necessariamente um componente que a torna
capaz de sensibilizar e encantar o leitor independente da idade (cronológica). É um
elemento que transcende o tempo e o espaço, pois ao ler uma história o leitor pode ser
“sugado” para o seu interior e se permitir uma vivência para além do real, para um
imaginário, ainda que possível apenas como imaginário que, para Ieda Oliveira (2005)
consiste numa certa “loucura” saudável que o prazer estético proporciona. Quando leio uma
35
história de ficção, produzo outra paralela e se estabelece um diálogo subjetivo entre escritor,
obra e leitor e “na subjetividade dos diálogos nasce um terceiro livro, que ficará por
escrever. São diálogos para sempre inéditos” (QUEIRÓS, 2005, p. 171) que me possibilitam
mais do que leitura, o exercício de uma leitura com autoria.
Ao compreender o importante papel que a literatura (infantil) pode desempenhar
no processo educacional, reconhecendo as múltiplas possibilidades que podem advir da
presença e permanência não exatamente na escola, mas, nas mãos das crianças, uma
preocupação se instala de imediato: a questão da qualidade. É preciso saber reconhecer a
qualidade de uma obra literária do gênero infantil ou juvenil. Como realizar essa tarefa?
1.2.2 Os livros para criança e a qualidade literária
O livro para crianças é também um objeto de consumo e atende uma parcela do
mercado, motivo pelo qual a quantidade de obras existentes nos dias atuais é imensa e a
sua qualidade nem sempre compromisso de todos os autores que se dispõe a escrever para
o público infantil. Durante o percurso desta pesquisa refleti sobre os parâmetros para poder
distinguir uma obra do gênero infantil de qualidade entre as demais e percebi que o meu
olhar [o de professora] construído por meio da experiência com a literatura no cotidiano de
uma sala de aula está muito mais relacionado à intuição (incluindo minhas preferências
pessoais) e baseado na observação da relação que as crianças estabelecem com as obras
literárias que chegam às suas mãos. Evidentemente, a experiência pode apontar alguns
caminhos, mas se mostra insuficiente para uma abordagem sólida ou para possibilitar
escolhas seguras, pois para poder aferir se uma obra do gênero possui qualidade literária é
necessário levar em conta alguns critérios, a começar pelo aspecto físico do objeto-livro,
materializado, comercializado – produzido cultural e historicamente.
Quando se trata do objeto-livro Fanny Abramovich faz uma lista de pormenores a
ser percebida, envolvendo vários aspectos:
A começar pela capa (se bonita, feia, atraente, boba, sem nada a ver com a
narrativa), do título – que, afinal, são o primeiro contato que se tem com o
volume: o impacto visual e a curiosidade despertada ou adormecida...E por
que não discutir a encadernação, do desprazer que é ver um livro amado
desfolhando, descolando, não dando mais nem para virar a página? [...]
olhando muito do bem olhado se a ilustração corresponde ao que está
escrito na página ao lado, se está muito compactado, muito apertado, sem
espaço para respirar... ou ao contrário, se ficou muito pouca coisa escrita ou
desenhada em cada folha, sobrando partes em branco [...] (1997, p. 145).
A adequação do tamanho e disposição das letras, da ilustração e do texto nos
livros, a escolha do formato mais adequado, são outros cuidados citados pela autora que,
por sua vez, representam investimentos maiores ou menores na edição de cada obra.
36
Esses e outros aspectos tornaram-se objeto de reflexão no livro organizado por
Leda Oliveira em 2005, denominado O que é qualidade na literatura infantil e juvenil? Com a
palavra o escritor. Nessa obra, autores que são também escritores de literatura infantil e
juvenil tentam responder a pergunta central, destacando as características entendidas como
necessárias para garantir a qualidade literária dos livros para jovens e crianças – eles tratam
principalmente da qualidade do teor literário, sem desconsiderar a importância dos
elementos extra textuais e da formatação gráfica para se fazer um “bom” livro ou uma “boa”
literatura. De maneira sintetizada, selecionei algumas idéias e opiniões apontadas por
Celso Sisto, Ricardo Azevedo, Gustavo Bernardo, Anna Claudia Ramos, Luiz Antonio de
Aguiar e Bartolomeu Campos de Queirós, alguns dos autores que participaram da referida
obra.
Celso Sisto defende que a diversidade deveria ser a palavra chave na questão
da qualidade. Que a literatura infantil, além do encantamento, poder de sedução, impacto e
magia, precisa ter compromisso com o leitor. Um compromisso que se manifesta desde a
produção textual com uma linguagem autêntica (não empolada, boba ou artificial) mantendo
a coerência entre personagens, voz narrativa, tempo narrativo e espaço histórico, até a
formatação do aspecto físico com materiais adequados. Na questão da linguagem literária,
afirma o autor, podemos concebê-la como desvio – “desvio da linguagem cotidiana. Esse
lugar desviante fica sendo o território onde pode emergir o poético, que é o que provoca o
estranhamento e a singularização (uma vez que a linguagem cotidiana seria automatizante)”
(p.120). Boas histórias e bons escritores resultam em livros que possibilitam o exercício
lúdico e livre da leitura com o protagonismo do leitor, que, para testar a validade do grau de
qualidade tem que resistir a outras leituras – leitura de outros leitores e do mesmo leitor
muitas vezes.
Ricardo Azevedo ao enfocar o conteúdo de uma obra literária, assegura que um
dos pontos principais é que diante da ficção e da poesia, abandonamos o campo da
linguagem utilitária e passamos a vê-la como matéria viva, passível de invenção e
experimentação. Nesse sentido, os textos que compõe a literatura (infantil ou não) devem
ser textos subjetivos, movidos por visões pessoais e não consensuais, abordando os
aspectos psicológicos e emocionais, as contradições e ambigüidades, as vivências
concretas, a efemeridade humana, as questões do imaginário coletivo e individual e outros
assuntos relevantes e relativos à condição humana. Luiz Antonio de Aguiar complementa
essa visão defendendo a autonomia literária para explorar os meandros humanos, livres de
utilitarismos, didatismos ou doutrinações, sejam elas políticas, religiosas ou morais. O autor
defende ainda que a literatura possa forjar uma cumplicidade com o leitor, tornando-se
amiga, parceira, amante... pois ela [a literatura] “alcança seus momentos mais belos quanto
37
mais se aproxima tanto da realidade e da intimidade, quanto da imaginação do seu leitor” (p.
117) . O que não significa que Gustavo Bernardo não tenha razão quando diz que “a ficção
é boa, se e somente se, não tem tudo a ver com a realidade; [...] se e somente se, não tem
tudo a ver com o leitor” (p. 14) [grifos do autor].
A literatura alimenta a alma e faz a imaginação se alargar, assegura Anna
Claudia Ramos. Por isso, segundo a escritora, a literatura infantil precisa ter qualidade
estética que possibilite qualquer pessoa ler e se encantar, mas que deixe espaço para o
leitor pensar, sentir, interagir e descobrir sentidos escondidos. Que apresente personagens
que moram em mundos aparentemente ilógicos, mas repletos de vida, de sonhos, desejos e
segredos escondidos. Personagens paradoxais que podem mudar de idéia, pensar e
descobrir maneiras de mudar o que não está bom. Para criar tais personagens, o escritor
precisa captar o imaginário infantil e se comunicar diretamente com a alma da criança. E,
partindo do princípio de que existe uma suposta divisória entre públicos distintos e de
autores que se propõe escrever para o público infantil, Resende (1988, p. 22) ressalta o
compromisso ético para com pequenos leitores, pois “se a infância é evocada no processo
de escritura de alguns escritores, resta saber se serão suficientemente habilidosos, para não
deixar sua seriedade adulta prejudicar a ludicidade da criança”, o escritor precisa saber
brincar com seriedade. A autora destaca obras criadas sem intencionalidade de público
infantil, como as de Ziraldo e de Ana Maria Machado, que permitem derrubar os limites e
eliminar distinções injustificadas entre duas literaturas. Resende afirma ainda que não há
coerência na classificação que pretende distinguir duas linguagens e duas concepções
diferenciadas de arte, pois quando se escreve visando o público infantil “é preciso colocar-se
ao lado do leitor, ver o mundo através dos seus olhos, ajudando-o a ampliar esse olhar nas
mais variadas direções” (AGUIAR et al, 2001, p. 21). O fato de a literatura infantil ter como
destinatários os pequenos, não justifica o uso de uma linguagem infantilizada pois “a criança
possui senso aguçado mesmo para uma seriedade distante e grave, contanto que essa
venha sincera e diretamente do coração” (BENJAMIM, 2002, p. 55).
Bartolomeu Campos de Queirós defende que a qualidade de um texto literário
está na divergência pretendida, pois “quanto mais diversificadas as considerações, quanto
mais individuais as emoções, mais rico se torna um texto [...] não há que se perguntar qual a
mensagem do livro, mas o que o sujeito pensa sobre o que foi lido por ele” (p. 171).
Enquanto escritor menciona o extremo cuidado diante da matéria prima do seu trabalho: a
palavra. Pois, “a mesma palavra que estabelece a verdade [...] configura a mentira. A
mesma palavra que fere, acaricia. A mesma palavra que acusa, perdoa. A mesma palavra
que liberta, aprisiona” (p. 169 - 170). Portanto, as palavras são compostas e permitem que
cada leitor possa adjetivá-las de acordo com sua experiência.
38
A qualidade em literatura (infantil ou não), sem dúvida, passa pelo cuidado com
a palavra. Essa que segundo Bakthin (2000) é polifônica e polissêmica – polifônica porque
não existe uma palavra (minha) original – todo discurso verbal traz as marcas das outras
tantas vozes que o constituem; é polissêmica – porque possui múltiplos significados,
vinculados ao conteúdo ideológico, o sentido de cada palavra é determinado pelo seu
contexto e só pode ser compreendido (numa pretensa totalidade) no interior das condições
sociais, históricas, políticas e culturais que o produziram. Um livro de qualidade é aquele
que fala com seu leitor – uma fala viva! “A compreensão de uma fala viva, de um enunciado
vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa [...]; toda compreensão é
prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz” (idem, p. 290).
Para Bartolomeu Campos de Queirós não existe texto literário sem qualidade, existe texto
que não é literário e o valor de uma obra de literatura (infantil) “se dá na medida em que elas
produzem alteração ou expansão dos horizontes de expectativas dos leitores de sucessivas
épocas”. (AGUIAR et al, 2001, p. 49). Portanto uma obra literária de qualidade não
envelhece facilmente, ela se mantém atual enquanto possibilita diferentes leituras para
diferentes épocas e leitores.
Na escola, ou fora dela, estar atento aos aspectos textuais e materiais da
literatura é sobretudo reconhecer o direito da criança ao acesso aos bens culturais. Em
termos de qualidade literária há muitos elementos a serem levados em conta, há muitas
direções a serem exploradas em relação ao suporte (livro) e ao teor textual. Mas, há pelo
menos uma posição clara entre pesquisadores e autores acerca da ameaça que arrisca a
qualidade em literatura, seja ela infantil ou não: quando indicada para atender objetivos
curriculares, ou para transmitir padrões e valores ideologicamente pré-determinados, a
experiencia estética do leitor pode ser comprometida.
1.2.3 A cartilha: um livro infantil para além do didático
Ao fazer a reflexão sobre a contribuição da literatura no processo de
alfabetização e letramento percebi uma certa “obrigação” de mencionar um instrumento que
por séculos se fez e se faz presente na vida de meninos e meninas que estão aprendendo a
ler e escrever: a cartilha. Esta, ao longo do tempo, adquiriu “ares” contemporâneos,
nomenclaturas diferenciadas e se apresenta na atualidade com as mais diferentes versões,
algumas preservando “velhas” concepções pedagógicas, sobre as quais se alicerçam a vida
escolar da criança desde os seus primeiros movimentos, outras buscando acompanhar o
ritmo da discussão teórica e o esforço dos pesquisadores no sentido de tornar a
alfabetização e o letramento processos mais eficientes, auxiliando o aluno “a se apropriar da
39
língua e da linguagem com autonomia, desenvoltura e prazer” (GARCIA, 2001, p. 227
). Mas,
sobretudo a cartilha constituiu-se num dos instrumentos de maior acesso para as crianças
nesse momento da sua vida.
Nos dias atuais, raramente nos referimos ao livro didático específico destinado à
criança em processo de alfabetização e letramento como cartilha. Embora essa
nomenclatura pareça antiquada, esse fato não a isenta de uma produção nos moldes do
livro didático e de expressar as concepções pedagógicas que lhe dão sustentação. A
configuração dos livros (e de outros objetos) destinados às crianças é resultado de uma
construção cultural que condensa o pensamento da sociedade no seu tempo e espaço. Os
livros infantis didáticos ou não, e especificamente a cartilha, além de abarcarem o conceito
de infância28
, ou seja, a forma como o autor, ao produzi-los, concebe a criança, agregam
ainda a visão idealizada de leitura e leitor, de escritura e escritor.
1.2.3.1 Objeto histórico e cultural
O livro infantil tem sua origem histórica na Alemanha, no século XVII. “Ao lado da
cartilha e do catecismo, também a enciclopédia ilustrada, o vocabulário ilustrado, ou como
queira chamar o Orbis pictus de Amos Comenius, encontra-se nas origens do livro infantil”
(BENJAMIN, 2002, p. 55). De acordo com o autor, o Iluminismo se apropriou à sua maneira
dessas obras, colocando em prática um programa de formação humanista, pois, “se o
homem era piedoso, bondoso e sociável por natureza, então deveria ser possível fazer da
criança, ser natural por excelência, o homem mais piedoso, mais bondoso e mais sociável”
(idem). Desta forma, é possível perceber que a preocupação maior nessa época era com a
formação moral e religiosa.
As primeiras e antigas cartilhas29
do séc. XVI e XVII, elaboradas em compasso
com o pensamento pedagógico da época, apresentavam características peculiares daquele
momento histórico e cultural. Segundo Walter Benjamim (2002), traziam em seus textos
palavras com combinações silábicas extravagantes, como, por exemplo, “chichleuchlauchra”
“xakbak”, “zauzezizau” e outras “monstruosidades fonéticas” que perseguiam as crianças
com pretextos pedagógicos, impondo caprichos e manias adultas por meio de uma
27
Manual do professor.
28
O conceito de infância é abordado nos itens: 1.3.1 e 1.3.2.
29
No Brasil, segundo Barbosa (1994) uma das mais antigas cartilhas foi Cartinha de aprender a ler, de autoria
de João de Barros, impressa em 1539 em Lisboa. Acredita-se que essa cartilha foi usada para o ensino das
primeiras letras e da religião. Segundo o autor, há noticias também de outras cartilhas, uma elaborada por Frei
João Soares, impressa em 1539 e reeditada várias vezes e uma outra chamada o Método Castilho para o Ensino
Rápido e Aprazível do Ler Impresso, Manuscrito e Numeração do Escrever, produzida por Antonio Feliciano de
Castilho em 1850, em Lisboa. Portanto, nossas cartilhas têm origem em Portugal.
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  • 1. UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO OLHAR DA CRIANÇA CRICIÚMA, MARÇO DE 2008
  • 2. 1 ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO OLHAR DA CRIANÇA Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação no curso de Mestrado em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Orientador Prof.: Dr Celdon Fritzen CRICIÚMA, MARÇO DE 2008
  • 3. 2 S587c Silveira, Rosilene de Fátima Koscianski da. A contribuição da literatura no processo de alfabetização e letramento: uma reflexão mediada pelo olhar da criança / Rosilene de Fátima Koscianski da Silveira; orientador: Celdon Fritzen. - Criciúma: Ed. do Autor, 2008. 116 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Extremo Sul Catarinense. Programa de Pós-Graduação em Educação, 2008. 1. Alfabetização. 2. Letramento. 3. Literatura. 4. Educação. l. Título. CDD. 21ª ed. 372.4 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Bibliotecária: Flávia Cardoso – CRB 14/840 Biblioteca Central Prof. Eurico Back – UNESC
  • 4. 3 ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO OLHAR DA CRIANÇA Dissertação aprovada pela Banca Examinadora para obtenção do grau de Mestre em Educação, no curso de Mestrado em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC, com linha de pesquisa em História, Formação e Exercício Profissional. Criciúma, 18 de Março de 2008. BANCA EXAMINADORA Prof. Celdon Fritzen – Doutor em História e Teoria Literária – (UNESC) Orientador Profª. Ana Claudia De Souza – Doutora em Lingüística – (UFSC) Profª. Maria Isabel Leite – Doutora em Educação – (UNESC)
  • 5. 4 Dedico.... À minha mãe Otilia (em memória) – sabedoria profunda... com ou sem palavras! AGRADECENDO... Aos CO-AUTORES desta pesquisa, alunos da primeira série do Ensino Fundamental da Escola de Educação Básica Irmã Edviges, Criciúma – SC, que aceitaram dialogar... ALBANO, Josué Medeiros ALVES, Lara Fabian Leacina BITENCOURT, Francielen Soares COLOMBO, Vitor Carlos CORREA, Rodrigo Daminelli DUARTE, Stefani Borges JOAQUIM, Isaac Borges JOSEPHINO, Elton Bacelar LOCKS, Pâmela Henrique MIRANDA, Luiz Filipe Pavesi OENNING, Juliano Bittencourt PEDROSO John Kennedy Vargas PORTO, Karoline Gonçalves REBELO, Sarah das Almas RINALDI, Rafaela Pedro ROSA, Bruno Teixeira da SANTOS, Bruno Cardoso dos SANTOS, Thiago Monteiro dos SANTOS, Willian Caetano dos SILVA, Luiz Filipe Alano da VALIM, Mariany Nicolau Minha gratidão!
  • 6. 5 AGRADECENDO... Ao professor Celdon, orientador atento e amável – guia primoroso. À banca de qualificação e defesa pelas intervenções necessárias e frutíferas – professora Ana Claudia – atenta aos detalhes, Professora Bel – a generosidade em pessoa. Aos professores do mestrado, por compartilhar seus conhecimentos. Aos colegas do curso com quem partilhei o projeto de pesquisa, em especial, Adriana e Luciana que acompanharam de perto as alegrias e percalços da sua realização. Ao Walter – secretário atencioso. Aos parceiros do GEDEST, GPEI e Grupo de Estudos em Walter Benjamim – em especial, Ana Maria – valiosíssimas contribuições. Ariane e Valquiria, mais que assessoria tecnológica. À direção, funcionários, corpo docente e discente da EEB Irmã Edviges, pelo acolhimento de uma idéia. Ao esposo Albertino – fiel colaborador, exercendo múltiplas funções, inclusive a de cinegrafista amador. Ao filho José Vinícius, que chegou trazendo mais um motivo para eu ouvir e tentar compreender as crianças. Ao meu pai Carlos, de quem herdei o otimismo profissional. Aos queridos Claudair, Joana, Valdenir, Luciana e Alice, pela compreensão nas minhas ausências. À amiga Rosângela, com que compartilhei a expectativa do ingresso no curso. A Seicho-No-Ie, filosofia que faz a diferença. A todas as pessoas que de alguma forma contribuíram para o êxito desse projeto. Muito Obrigado!
  • 7. 6 “Uma vida humana é uma ficção que o homem inventa à medida que caminha”. (HELD, 1980, p.18).
  • 8. 7 RESUMO Esta pesquisa teve como alvo refletir sobre a contribuição da literatura no processo de alfabetização e letramento da criança a partir da escuta desta. Com vistas à consecução do estudo, a pesquisa utilizou a abordagem qualitativa com as estratégias propostas pelos espaços de narrativa, cuja base teórica contempla autores que entendem a linguagem como essencial na constituição dos sujeitos, e a criança como ator social que produz linguagem e cultura. Inicialmente, este estudo procede a uma análise das conexões históricas e teóricas da alfabetização e do letramento com a literatura; depois, a uma discussão das possibilidades desencadeadas pela literatura, enquanto canal de experiência estética e poética, na formação do leitor/autor. Em seguida, descreve-se o trabalho realizado em parceria com 21 crianças da primeira série do Ensino Fundamental, da Escola de Educação Básica Irmã Edviges – vinculada à Rede Pública Estadual, situada no município de Criciúma-SC. A partir das falas das crianças, as quais tiveram abertura de espaços para a narração e/ou criação de histórias e poesias, buscou-se uma forma de pensar tanto a criança como protagonista do processo da sua aprendizagem, quanto o papel da literatura na escola, como linguagem viva, dinâmica e mobilizadora de saberes e de sujeitos. Palavras-chave: alfabetização, letramento, literatura e pesquisa com crianças.
  • 9. 8 ABSTRACT This research has the objective of studying the contribution of literature to literacy and to the alphabetization process of children, taking into consideration the voice of the child. In order to achieve this objective the research used the qualitative approach and strategies proposed by the narratives spaces, a theory whose authors understand language as having fundamental importance in the subjects’ formation, and children as social actors who produce language and culture. First, this study presents an analysis of the historical and theoretical connections among alphabetization, literacy and literature; then, it presents a discussion on the possibilities created by the literature as a channel of aesthetic and poetic experience, in the reader’s, author’s formation. Later on, this research describes the work done in partnership with twenty-one children who study in the first year of the primary school at Escola de Educação Básica Irmã Edviges, a public school situated in Criciúma (SC). Based on the children’s oral production (narratives and poems), this work proposes a way of thinking the children as protagonists of their learning process and the role of literature in schools as a living, dynamic language that mobilizes of knowledge and subjects. Keywords: alphabetization, literacy, literature, research with children.
  • 10. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 11 CAPÍTULO I ........................................................................................................................ 16 1 A ALFABETIZAÇÃO, O LETRAMENTO E A LITERATURA ........................................... 16 1.1 ALFABETIZAÇÃO: PERCURSO HISTÓRICO E TEÓRICO ......................................... 17 1.1.1 A escrita e a alfabetização na sociedade moderna ................................................ 17 1.1.2 A alfabetização.......................................................................................................... 19 1.1.3 A alfabetização no Brasil.......................................................................................... 22 1.1.4 A alfabetização e o letramento................................................................................. 25 1.1.5 Modelos de letramento............................................................................................. 28 1.2 A LITERATURA ............................................................................................................ 30 1.2.1 A literatura infantil .................................................................................................... 32 1.2.2 Os livros para criança e a qualidade literária ......................................................... 35 1.2.3 A cartilha: um livro infantil para além do didático.................................................. 38 1.2.3.1 Objeto histórico e cultural..................................................................................... 39 1.2.3.2 A cartilha, o leitor e a leitura ................................................................................. 42 1.3. A ABORDAGEM NA PESQUISA COM CRIANÇAS .................................................... 47 1.3.1 A construção da infância ......................................................................................... 49 1.3.2 A infância na contemporaneidade........................................................................... 51 1.3.3 Propostas metodológicas na pesquisa com crianças ........................................... 53 CAPÍTULO II ....................................................................................................................... 59 2 O CANTEIRO DE OBRAS OU O CAMPO DE PESQUISA .............................................. 59 2.1 APRESENTANDO O CAMPO DE PESQUISA.............................................................. 59 2.1.1 “[...] Agora mudei de idéia!”: a entrada em campo e as primeiras percepções ... 63 2.2 FALAS, HISTÓRIAS, POESIAS: CONSTRUINDO AS CATEGORIAS DE ANÁLISE... 64 2.2.1 A formação do grupo e as experiências iniciais..................................................... 65 2.2.2 “Quero contar uma história” ou a narração e co-autoria na interação com a literatura ............................................................................................................................. 68
  • 11. 10 2.2.3 “Poesia do menino, que sou eu [...]”: a experiência lúdica com a linguagem poética................................................................................................................................ 78 2.2.4 “A primeira palavra que aprendi foi meu nome...”. Aprender a ler e escrever: criando estratégias, buscando e produzindo significados............................................. 89 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................. 95 REFERÊNCIAS................................................................................................................. 103 ANEXOS ........................................................................................................................... 110
  • 12. 11 INTRODUÇÃO Ao sistematizar o relato dessa pesquisa que teve como foco central do trabalho investigativo o propósito de reflexionar sobre a contribuição da literatura no processo de alfabetização e letramento da criança, exponho inicialmente e com satisfação o quanto esse objetivo agigantou-se a partir do momento em que optei por desenvolver a pesquisa de campo convidando a criança a tornar-se depoente, investigando o problema, considerando o seu ponto de vista. Essa opção requereu certa dose de coragem, pois foi necessário despir- me de algumas certezas e ir a campo aberta ao que pudesse ser encontrado e tecer reflexões e entendimentos a partir dos achados junto aos sujeitos participantes. Os objetivos específicos pretendidos se constituíram na análise da conexão histórica e teórica da alfabetização e do letramento com a literatura; na discussão das possibilidades desencadeadas pela literatura na formação do leitor/autor, a partir das falas da criança; e na abertura de espaços para a narração e/ou criação de histórias e poesias para e pelas crianças, refletindo sobre o lugar da linguagem literária no processo de aprendizagem do código escrito e na escola como um todo. A definição desses objetivos pautou-se na percepção de que embora nas últimas décadas a criança e o seu desenvolvimento harmônico e integral tenham se tornado freqüentemente motivo de estudos para pesquisadores de todas as áreas, as ações efetivas da escola ainda não se solidificaram nessa proposição. Embora avançando teoricamente, a escola tem preservado um caráter disciplinador e regulador do comportamento, abrindo pouco espaço para o pensamento, a voz, e principalmente para a imaginação da criança. Ao referir-me ao pensamento falo da criança-sujeito-pensante, agente ativo da sua aprendizagem que aprofunda a consciência de si mesmo e desenvolve capacidades lingüísticas (e muitas outras) também no processo de alfabetização com letramento a despeito das formas em que este possa ser conduzido. Uma aprendizagem pensada na perspectiva vigotskiana, que considera a interação fator essencial. E mais do que isso, tem na interlocução entre as múltiplas vozes presentes no espaço escolar seu elemento constitutivo e na qual a imaginação pode ser componente deflagrador na construção dos saberes e dos próprios sujeitos. A imaginação entendida não como “algo distinto da razão, mas sim o que dá flexibilidade, energia e vivacidade à razão” (EGAN, 2007, p.34) e que no processo de aprendizagem da linguagem escrita torna esta mais significativa e dinâmica. Esse foi um dos principais fatores que levei em conta para pensar esse momento escolar específico vivenciado pela criança como parte integrante e extremamente importante do seu processo de formação e não como um aspecto isolado. Além disso, na grande maioria dos
  • 13. 12 estudos relacionados à infância1 a criança ainda é considerada objeto e não sujeito participante de uma pesquisa. Em relação à literatura, não pretendi focalizar o tênue limite (se existente) entre os gêneros adulto e infantil, mas abordei-a como um elemento significativo da aprendizagem que se inicia muito antes da criança chegar à primeira série2 do Ensino Fundamental. Da mesma forma que entendo não ser possível estabelecer fronteiras rigorosas entre o gênero adulto e infantil na literatura sem correr o risco de parecer arbitrário, tampouco acredito ser possível demarcar com precisão o início e o fim do processo de alfabetização e letramento. Pois, tomando como ponto de partida uma visão sociointeracionista “a alfabetização, enquanto processo individual não se completa nunca, visto que a sociedade está em contínuo processo de mudança, e a atualização individual para acompanhar essas mudanças é constante” (TFOUNI, 2002, p. 15). Apenas, como uma delimitação metodológica, direcionei o foco deste estudo para as crianças3 que freqüentam a primeira série do Ensino Fundamental, buscando uma interlocução com elas, enquanto protagonistas do processo. As crianças co-autoras desta pesquisa encontravam-se nos momentos iniciais da alfabetização (formal/escolar), uma vez que a pesquisa de campo foi realizada no primeiro semestre do ano letivo – 2007. Esse ano letivo abarcou a implementação das leis nº11.114 de maio de 2005 e 11.274 de fevereiro de 2006, que promoveram alterações em alguns artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9394/96, implementando o Ensino Fundamental de nove anos que prevê o ingresso da criança aos seis anos de idade. Para realizar a pesquisa, parti do pressuposto de que a alfabetizar e letrar é transcender os limites da mera aquisição técnica da leitura e da escrita iniciando a formação de um leitor que se faz autor nesse percurso e torna-se capaz de escrever, compor, criar, imaginar, pensar, levantar hipóteses e, de fato e de direito, se habilita a compreender e se expressar através da linguagem oral e escrita no seu tempo e espaço. Pensar o processo de alfabetização e letramento nessa perspectiva é imaginar, em primeiro lugar, uma escola com abertura para a emoção e a imaginação enquanto características inerentes ao ser humano. É sonhar com um ambiente que possibilite o desenvolvimento integral do sujeito, repensando e re-significando o uso das ferramentas utilizadas no ambiente escolar, entre as quais está a literatura. 1 In-fans, aquela que não fala. JOBIM e SOUZA, Solange. II Seminário “Educação, Imaginação e linguagens artístico-culturais” Criciúma, 28/08/2006. 2 Com a implementação do Ensino Fundamental de nove anos, o Ministério da Educação deixou em aberto para que os sistemas pudessem utilizar a nomenclatura mais adequada aos sistemas (série, ano, ciclo). O Estado de Santa Catarina na Rede Pública Estadual (a qual a escola em que foi desenvolvida a pesquisa está vinculada) optou por continuar utilizando a denominação série. Portanto, nesse estudo, ao referir-se à turma participante identificarei como “primeira série”. 3 Como a pesquisa aconteceu no ano de implementação da lei, a maioria das crianças que dela participou, completa sete anos em 2007.
  • 14. 13 Os termos alfabetização e letramento4 aparecem juntos em todos os momentos da pesquisa, pois embora cada termo possua sua especificidade, na qual a alfabetização é entendida como a aprendizagem do código escrito e o letramento como a utilização da competência de ler e escrever para comunicar-se na prática social, o entendimento que busco fortalecer é de que não é possível alfabetizar sem objetivar o letramento ou vice- versa. Portanto, são termos complementares e indissociáveis. A primeira e a segunda série da Educação Básica representam, pela nova realidade legal, as classes para a alfabetização5 . A estas, entre outras atividades, cabe ocupá-las, durante o período de dois anos, em desenvolver as habilidades técnicas da escrita e da leitura. Um tempo que, suficiente ou não, assume vital importância na história escolar de uma criança quando os seus primeiros movimentos se direcionam no sentido de constituir formas peculiares para lidar com a aprendizagem. São nesses primeiros movimentos que a criança busca se autoperceber estabelecendo uma relação saudável (ou não) com a escola e com o conhecimento. Afinal, esse período representa um marco significativo na vida da criança. Ao planejar as estratégias metodológicas para estudar a temática, inicialmente pensei em desenvolver oficinas que têm, de certa forma, uma identificação com o que Leite (2006) chama de espaço de narrativa6 . Principalmente pela idéia básica de ouvir a fala da criança, observar o que ela tem a dizer, criando situações de encontro onde realizássemos contação de histórias fantásticas, leituras de poesias, criação de enredos... Enfim, interagir por meio da literatura com a linguagem oral e escrita, com os sujeitos da pesquisa e, nessa interação, observar a contribuição da literatura no processo de alfabetização. A aproximação inicial com os procedimentos previstos pelos espaços de narrativas despontou como um caminho possível e realizei a pesquisa, experimentando essa metodologia. O estudo realizado, embora esteja diretamente relacionado aos campos da linguagem e da arte – uma vez que o objetivo maior é compreender a contribuição literária (na sua dimensão estética e poética) no processo de alfabetização e letramento da criança - está atravessado por outros corpos teóricos, principalmente pela antropologia, psicologia e filosofia. Na antropologia, por convidar a criança como sujeito-co-autor da pesquisa e 4 No estudo sobre alfabetização organizado pela Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina – Gerência de Criciúma, no segundo semestre de 2007, discutiu-se a idéia de desenvolver a alfabetização com letramento, uma idéia que não difere da proposta que explicito anteriormente, por isso, posso usar os termos ligados por “e” ou “com” o sentido permanece inalterado. 5 No estudo acima referido, foi enfatizado a constituição de “classes para alfabetização” ao invés de “classe de alfabetização” tratando da primeira e da segunda série do Ensino Fundamental, que em tese, representa um tempo maior para que a criança possa consolidar a aquisição da leitura e da escrita. 6 Essa é uma expressão cunhada no Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Educação Estética – GEDEST, na UNESC, do qual faço parte, a partir de discussões metodológicas de pesquisa, por isso ela sempre aparece em itálico neste texto.
  • 15. 14 percebê-la agente da sua aprendizagem; pela possibilidade de capturar as significações atribuídas por este “outro criança”, compreendendo-a enquanto categoria social e histórica. Na psicologia, porque ao problematizar a relação entre literatura e educação reivindica-se a abertura de um espaço para abordar na escola assuntos de certa forma preteridos por ela, ou vistos de forma estigmatizada, e que dizem respeito aos conflitos e a própria condição humana. E pela filosofia, por reconhecer a predominância de modelos teóricos objetivos no processo de formação humana que, segundo Azevedo (2005, p. 32), apresentam: um mundo idealizado, regido por normas abstratas e pré-concebidas, onde a priori tudo se encaixa. [...] Nesse modelo, o ser humano é apresentado como um elemento lógico e previsível, sempre buscando sua natural e mecânica integração no status quo. A duração de dois anos para o curso de mestrado é um fator que dificulta, mas não inviabiliza a pesquisa. Ir a campo dentro desse limite de tempo implicou em riscos de colher ou tratar os dados de forma acelerada, um risco que decidimos correr (eu e o orientador). Valendo-me do espaço de narrativa como procedimento metodológico de pesquisa, efetivamos os encontros e por meio do diálogo aberto pudemos reflexionar sobre a forma como ela [a criança] vivencia esse momento e como a literatura pode vir a atuar no processo. Realizei a pesquisa de campo em uma escola da rede pública estadual do município de Criciúma, em Santa Catarina. As crianças, alunas da primeira série, são consideradas co-autoras não apenas porque suas falas, opiniões e produções (orais e gráficas) foram imprescindíveis para as reflexões e entendimentos possíveis dentro do contexto em que o diálogo foi estabelecido. Mas, principalmente pela imprevisibilidade da própria metodologia utilizada que confere aos sujeitos um alto grau de interferência nos rumos da pesquisa. Em nenhum momento pretendi uma verdade final, mas empenhei-me na escuta sensível da voz da criança, nas angústias que permeiam esse momento de sua vida e nas idéias, histórias e poesias que elas são capazes de produzir a partir da interação com a literatura, uma vez que esse era o propósito. O caminho que me fez chegar ao problema de pesquisa, além da justificativa pautada nos resultados que a escola vem produzindo em termos da relação entre os sujeitos e o código escrito, que percebo também por estar imersa nesse universo, tem uma forte ligação com as reminiscências que conservo da minha própria infância. Eu poderia afirmar que a opção pelo objeto de estudo e as reflexões que pude realizar estão, de alguma forma, relacionadas com a experiência que tive com a linguagem literária na infância e que influenciaram o meu modo de lidar com a leitura e com a escrita em situações dentro ou fora da escola. Em função disso, elaborei um memorial que, temendo ser excessivo para a introdução, pode ser consultado ao final deste trabalho (vide ANEXO 1).
  • 16. 15 O percurso investigativo, a metodologia adotada e a interação entre sujeitos participantes conduziram a uma reflexão acerca do(s) conceito(s) de infância(s) que permeiam as ações, os espaços e os instrumentos presentes na escola. Suscitaram ainda outras interrogações que extrapolam os limites desse estudo. Registrei essa experiência com consciência de que nela contém muito do que sou enquanto professora e dos co- autores que a tornaram possível, organizando a dissertação em dois capítulos, que representam dois momentos diferenciados e interligados na pesquisa. Apresento no primeiro capítulo a sustentação teórica, com a trajetória da alfabetização; o surgimento e a influência do termo letramento; a literatura, a literatura infantil e o entrelaçamento com a educação; a reflexão sobre a qualidade dos livros destinados às crianças, incluindo a cartilha – tratada na atualidade como livro de alfabetização. Trago ainda questões relacionadas à construção histórica e social da infância, os conceitos coexistentes nos dias atuais e a opção metodológica da pesquisa com crianças, denominada espaços de narrativa. No segundo capítulo, propositadamente chamado de Canteiro de obras, trato da pesquisa de campo, que se concentra em torno de três categorias de análise: a primeira é constituída do registro (na íntegra) das histórias narradas pelas crianças e das reflexões que elas suscitaram; a segunda traz, além dos textos inéditos construídos pelas crianças, a problematização do lugar da poesia na escola e na vida dos sujeitos; e a última, igualmente tecida com as palavras das crianças, tornaram-se fontes reveladoras dos temores, expectativas, estratégias e das nuances pessoais envolvidas no aprendizado do código escrito. Seguindo as pistas que pude encontrar, fui teorizando a experiência que finalizo com algumas considerações e tentando responder a interrogação que me acompanhou durante o trajeto: seria a linguagem literária uma aliada no processo de alfabetização com letramento?
  • 17. 16 CAPÍTULO I 1 A ALFABETIZAÇÃO, O LETRAMENTO E A LITERATURA A investigação do processo de alfabetização e letramento constitui uma tarefa árdua, principalmente pela pluralidade de entendimentos existentes acerca dos termos. Pesquisar a contribuição da literatura nesse processo, considerando o ponto de vista dos atores sociais implicados diretamente, ou seja, das crianças, torna essa tarefa ainda mais complexa, porém instigante na mesma proporção. Ao fazer o percurso teórico pelas obras com as quais entrei em contato, constatei que existe uma extensa bibliografia que trata especificamente de cada conceito que compõe o título desse capítulo e embora eu tenha desenvolvido a pesquisa de maneira articulada é necessário fazer uma delimitação teórica das especificidades de cada termo, bem como da perspectiva sobre a qual a análise foi alicerçada. Quero esclarecer, inicialmente, que apresento os termos alfabetização e letramento juntos em todos os momentos da escrita e que essa é uma ação proposital que defende a ênfase da indissociabilidade de ambos na prática pedagógica, sem ignorar a especificidade que cada conceito possui. Pois, compreendo que a alfabetização precisa ser pensada na perspectiva do letramento e, nesse sentido, o próprio conceito de alfabetização amplia seus horizontes e passa a ser visto como “um processo ativo de leitura e interpretação, onde a criança não só decifra o código escrito, mas também o compreende, estabelece relações, interpreta” (KRAMER, 1986, p. 168) e pelo qual descobre “que a palavra escrita é mais uma forma de expressar as coisas, idéias e sentimentos [tornando-se] [...] a base fundamental para a aquisição da leitura e da escrita” (idem, p. 170). Se conseguíssemos assumir isso, permanentemente, não haveria a necessidade de distinção, chamaríamos [apenas] de alfabetização como fizemos no passado. Mas, reconhecendo que esta não é, ainda, a nossa realidade, é necessário distinguir alfabetização de letramento, pelo menos em termos técnicos. É o que nos adverte, Magda Soares (2004), enfatizando o quanto o surgimento do termo e as discussões acerca do letramento ampliaram, sim, o conceito multifacetado de alfabetização, mas que uma diferenciação entre ambos é necessária, principalmente em países onde a questão da alfabetização não foi debelada. Então, de forma introdutória e simplificada, poderia definir a alfabetização como a aprendizagem técnica do código escrito e o letramento como a utilização da competência de ler e escrever para comunicar-se na prática social. Sem, com isso, perder o horizonte de trabalhá-los, concomitantemente.
  • 18. 17 A alfabetização desenvolvida na perspectiva do letramento pode ter na linguagem literária uma ferramenta indispensável, pois “como arte, é a literatura, em suas diferentes formas, que propicia ao leitor o acesso à sua interioridade e o estabelecimento de relações de seu mundo interior com o exterior” (SARAIVA et al, 2001, p. 13). Sob esse enfoque, “a aprendizagem da leitura é uma experiência que deve ultrapassar o domínio da decodificação sígnica, para transformar-se em meio de autoconhecimento e apreensão do real” (Idem). Zaccur (2001, p. 34), refletindo a partir de que modos e sentidos se faz a alfabetização, afirma que cada um de nós é um ser em construção e o processo de aprendizagem se constitui num movimento em espiral que se realimenta na dinamicidade de interações e iterações. A autora faz um questionamento que considero pertinente para as relações que podem ser estabelecidas entre a alfabetização, o letramento e a literatura: Por que não pensar que cada criança estará não só se alfabetizando, mas também se alfabecriando ao se apropriar da escrita como linguagem sua? Permitir à criança alfabecriar é proporcionar-lhe a sua forma própria de lidar com a linguagem e de atribuir significados, é realizar a sua experiência pessoal, única e intransferível numa escola que consinta aos seus sujeitos a oportunidade de poder brincar com um código que é arbitrário. Desse modo a escola propiciará a vivência de situações lúdicas, prazerosas, poéticas e criadoras pelos caminhos da leitura e da escrita sem medo do fracasso. É em busca dessa escola que encaminho a reflexão, utópica de certa forma, mas possível quando seus atores sociais puderem compartilhar experiências num cenário em que a criança seja vista como produtora de cultura. 1.1 ALFABETIZAÇÃO: PERCURSO HISTÓRICO E TEÓRICO 1.1.1 A escrita e a alfabetização na sociedade moderna Segundo Tfouni (2002), a escrita (produto humano por excelência) data de cerca de 5.000 anos antes de Cristo, porém o processo de difusão e a adoção dos sistemas escritos (pictográficos, ideográficos e fonéticos) pelas sociedades antigas aconteceram de forma lenta e condicionada aos fatores políticos e econômicos. Dessa forma, foi somente nos séculos V e VI a.C. que foi possível reconhecer a sociedade grega como “letrada”. Essa sociedade passou por um processo de transformação cultural, política e social que propiciou o “aparecimento, entre outras coisas, do pensamento lógico-empírico e filosófico, a formalização da história e da lógica enquanto disciplinas intelectuais, e a própria democracia grega que tem íntima relação com a escrita fonética na Grécia e Jônia” (p. 14).
  • 19. 18 A escrita é uma forma de memória do conhecimento produzido pela humanidade e uma ferramenta a mais no sentido de elaborar e comunicar coisas, idéias e sentimentos. “Pode ser tomada como uma das causas principais do aparecimento das civilizações modernas e do desenvolvimento científico, tecnológico e psicossocial da sociedade nas quais foi adotada de maneira ampla” (TFOUNI, 2002, p. 14). Mas, é também, segundo a autora, um instrumento de poder e, portanto, não é produto neutro. A instrumentalização do homem para o uso do código escrito foi histórica e predominantemente assumida pela escola e a alfabetização uma decorrência necessária para possibilitar a aquisição de habilidades requeridas para a leitura e a escrita. Durante muito tempo a alfabetização foi entendida no sentido elementar do termo como sendo o processo pelo qual nos apropriamos de um código escrito [o alfabético]. Giroux (apud TFOUNI, 2002) faz uma crítica à alfabetização definida principalmente em termos mecânicos e funcionais que de maneira geral confunde-se com a escolarização. A alfabetização enquanto sinônimo de escolarização no sentido reducionista dos termos correlaciona a aquisição da escrita com o desenvolvimento cognitivo. Uma visão que muitas vezes pode ser usada para separar grupos letrados e não-letrados nas sociedades modernas que usam a escrita, instaurando uma dicotomia na qual essa divisão “vem substituir as divisões mais antigas entre povos primitivos e povos avançados, pré-lógicos e lógicos, tradicionais e modernos, pensamento mítico e pensamento científico” (KLEIMAN, 1995, p. 23). Os estudos que apontam a associação da escrita ao desenvolvimento cognitivo carregam ainda outros problemas, entre eles o de legitimar argumentos que reforçam o preconceito7 “chegando até criar duas espécies, cognitivamente distintas: os que sabem ler e escrever e os que não sabem” (idem, p. 27). Essa visão da escrita caracteriza o modelo autônomo8 de letramento e alfabetizado que, sob essa ótica, seria o cidadão capaz de dominar os sistemas gráficos de uma língua (codificando, decodificando, lendo, escrevendo), pois desenvolveu e usa a capacidade metalingüística em relação à linguagem. “É alfabetizado porque é capaz de distinguir palavras, sílabas, morfemas, grafemas, etc., [...] principalmente aprendidos na escola, como resultado de uma competência individual” (COSTA, 2000, p. 15). Não podemos esquecer que a alfabetização é fundamental para a formação do leitor e numa sociedade letrada (como a nossa) o seu domínio é entendido como possibilidade de ascensão social, como forma de participação efetiva na sociedade e contribui para a emancipação do sujeito. Mas, lamentavelmente, ela tem sido tratada como um problema e usada como um mecanismo político-ideológico de dominação e exclusão. 7 RATTO (1995) faz uma análise da materialização do preconceito que a sociedade letrada constrói associando a imagem do analfabeto ao de um primata. 8 Explicito o modelo autônomo no item 1.1.5 – modelos de letramento.
  • 20. 19 1.1.2 A alfabetização Os estudos referentes à alfabetização passaram por diferentes concepções em sua trajetória histórica9 , sendo que na primeira metade do século XX o âmbito da pesquisa e do discurso acadêmico focalizava a questão do ensino, com prioridade para a investigação dos métodos10 de alfabetização com a fundamentação teórica centrada na Psicologia, principalmente no Associacionismo11 . Nessa época, de forma geral, a preocupação girava em torno de pelos menos dois métodos diferentes, com duas formas diferenciadas de se pensar a alfabetização: os métodos sintéticos12 (que insistiam na correspondência entre a linguagem oral e escrita e que esta deveria partir de elementos mínimos, “as letras” ou “fonemas” no caso do método fonético, para os maiores, “silabas/palavras/frases”, como o caso do método alfabético) e os métodos analíticos (nos quais a leitura é concebida como um ato “global” e “ideovisual”, que, portanto deveria se iniciar com unidades significativas para a criança que partiria do todo para o elemento menor). Paralelo a esses métodos e tentando utilizar o que haveria de melhor em ambos, se propôs ainda o chamado método “misto” ou “global”, que segundo Ferreiro e Teberosky (1999, p. 23) “participariam da benevolência de uns e de outros”. De acordo com Silva (2004), nos anos 60, a questão da alfabetização começa ser estudada a partir do fracasso escolar. A ideologia do déficit é amplamente divulgada atribuindo aos alunos oriundos das camadas populares uma desvantagem, pois o meio em que viviam não lhes oferecia as condições ideais para o pleno desenvolvimento e a escola teria a função de compensar essa deficiência. Essa questão é aprofundada por Carraher (1986), que discute alfabetização e pobreza, e Kramer (1982) que explicita a política de educação compensatória no pré-escolar na obra: A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. Na segunda metade do século XX, o esforço em compreender os processos de aquisição da leitura e da escrita se intensifica. Ferreiro e Teberosky, com base na teoria 9 Barbosa (1994) mostra o trajeto histórico da alfabetização considerando o ano de 1789 como marco fundamental da associação entre alfabetização e escola. Refere-se ao ideal republicano de universalização da cultura escrita, concretizando o modelo que concebe a alfabetização como “aprendizagem coletiva e simultânea dos rudimentos da leitura e da escrita” (p.16). 10 Números que comprovam essa tendência estão em SOARES (2006). 11 Segundo o modelo associacionista a aquisição da linguagem na criança se dá pela imitação do meio social que a cerca. Por exemplo, quando os adultos apresentam um objeto para a criança, acompanham essa apresentação com uma emissão vocálica – por reiteradas associações entre emissão sonora e a presença do objeto, a emissão do som acaba por se transformar em signo do objeto, se faz “palavra” (nessa perspectiva a criança espera passivamente o reforço externo). 12 Maiores detalhes sobre os métodos do ensino da leitura ver FERREIRO e TEBEROSKY, 1999; uma revisitação aos métodos empregados para alfabetizar, em CARVALHO, 2005.
  • 21. 20 piagetiana13 , desenvolvem seus estudos buscando descobrir o sujeito cognoscente, ou seja, “o sujeito que busca adquirir o conhecimento [...] aquele que procura ativamente compreender o mundo que o rodeia e trata de resolver as interrogações que este mundo provoca” (1999, p. 29) e publicam14 os resultados na obra: “Loz sistemas de escritura em el desarollo del niño” traduzido para o português como Psicogênese da língua escrita. Essa obra causou um grande impacto na educação brasileira e foi considerada por alguns estudiosos como um marco divisório na história da alfabetização. As discussões anteriores mantinham o foco na avaliação dos métodos de ensino e a partir dos estudos desenvolvidos pelas autoras o eixo central foi deslocado do ensino para a aprendizagem, partindo não de como se deve ensinar, mas de como a criança aprende. Até então, a idéia mais aceita era de que havia pré-requisitos para que a criança pudesse aprender a ler, um conjunto de habilidades conhecidas como prontidão para alfabetização. Para Ferreiro e Teberosky (1999), até 1962 a maior parte dos estudos sobre a linguagem infantil ocupava-se predominantemente da quantidade e variedade de palavras utilizadas pela criança: neles, a preocupação maior era com o método de alfabetização utilizado. Essa etapa foi tomada como ponto de partida (pelas autoras) para fazer a distinção entre métodos de ensino e processos de aprendizagem. Paralelo aos estudos de Ferreiro e Teberosky, outras pesquisas relacionadas à aquisição da linguagem escrita, visando outros aspectos além dos métodos, estavam sendo desenvolvidas, entre elas, a de Smolka (1980). A pesquisadora fez um estudo entrevistando crianças de vários contextos sócio-econômicos no intuito de investigar os processos e as estratégias que as crianças pequenas usam para interpretar a escrita no meio em que vivem e identificar os conceitos que a Educação Infantil desenvolve sobre esse tipo de linguagem antes de iniciar a instrução formal na escola. Nas palavras da autora, a aquisição da linguagem escrita se configura como uma questão ampla e complexa que nos remete para além dos métodos e nos faz: [...] buscar historicamente, sócio-culturalmente, psicologicamente, raízes e origens desta forma de linguagem. Levanta a questão do signo, da capacidade humana de criar sinais e símbolos. Leva-nos a considerar, na sua gênese, do ponto de vista de nossa cultura ocidental, a relação pensamento/linguagem no movimento das interações humanas, [...] remete às teorias do conhecimento, ao aspecto filosófico da questão; e falar no movimento das interações humanas nos abre a dimensão política (p.21). Magda Soares (2006), analisando a transformação paradigmática ocorrida a partir dos anos 80 e acompanhando o movimento que se fez a partir deles, faz um alerta que em decorrência do questionamento da validade dos métodos tradicionais se difundiu 13 Ferreiro e Teberosky utilizam os pressupostos epistemológicos centrais da teoria de Jean Piaget para aplicá-los à análise do aprendizado da língua escrita. Sobre isso ver: AZENHA,(Ática, 1995). 14 Os estudos de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky foram publicados em 1979.
  • 22. 21 uma idéia de certa forma equivocada: a idéia de que não era necessário haver um método para a alfabetização. Essa discussão ainda se mostra bastante polêmica nos dias atuais e segundo a autora contaminada por duas questões: a primeira pelo fato de que os problemas de aprendizagem da leitura e da escrita foram considerados, sobretudo metodológicos e, em segundo lugar, porque na área da alfabetização o conceito “método” tornou-se estereotipado, “sinônimo de manual ou um artefato pedagógico que tudo prevê e que transforma o ensino em uma aplicação rotineira de procedimentos e técnicas” (p. 93). Além de evidenciar uma visão reducionista do processo de aprendizagem da língua materna, a crítica intensa aos métodos de alfabetização conduziu a perda da especificidade do processo e na prática pedagógica gerou uma incerteza generalizada, não solucionando e em certos casos até agravando o problema do fracasso escolar. Silva (2004, p. 35) afirma que em geral a utilização dos métodos “não tem garantido a apropriação do código lingüístico, e mesmo seu aprendizado não responde hoje às necessidades de leitura e de escrita”, porém é necessário repensar essa questão superando o desconforto sofrido pelos alfabetizadores, retomando o sentido de método no âmbito educacional. Para Magda Soares (2006, p. 93), “método, na área de ensino, é um conceito genérico sobre o qual pode ser abrigado tantas alternativas quantos quadros conceituais existirem ou vierem a existir”. E ainda que numa re-significação e ampliação conceitual é possível compreender que: Particularmente no campo do ensino das línguas (materna ou estrangeira, oral ou escrita), um “método” é a soma de ações baseadas em um conjunto coerente de princípios e hipóteses psicológicas, lingüísticas, pedagógicas, que respondem a objetivos determinados. Um método de alfabetização será, pois, o resultado da determinação dos objetivos a atingir (que conceitos, habilidades, atitudes caracterizarão a pessoa alfabetizada?), da opção por certos paradigmas conceituais (psicológico, lingüístico, pedagógico), da definição enfim, de ações, procedimentos, técnicas compatíveis com os objetivos visados e as opções teóricas assumidas (SOARES, 2006, p. 93). Como é possível perceber, a autora defende sim um método consistente de alfabetização, não no sentido estreito do termo, mas que considere as diferentes dimensões imbricadas no processo. E mais ainda, que este seja balizado por uma concepção outra dos processos de aprendizagem da língua escrita, na qual a criança seja vista como sujeito e contemplada na sua dimensão psicológica, lingüística e, sobretudo, a social e política. Nessa perspectiva, a noção de letramento, no sentido ideológico (explicitada no item 1.1.5) é uma das possibilidades. Para compreender a forma com que o processo de alfabetização e letramento tem sido efetivado nos diferentes sistemas educacionais (brasileiros) nos dias atuais e quais as veredas que as discussões teóricas têm tomado, trago alguns indicadores, acompanhados de dados sobre a alfabetização no Brasil. Um percurso necessário para
  • 23. 22 aclarar a análise da introdução e da influência do termo letramento em nosso sistema de ensino. 1.1.3 A alfabetização no Brasil Na tentativa de perceber a realidade que envolve a alfabetização e o letramento no âmbito educacional brasileiro poder-se-ia lidar com alguns indicadores, com pontos diferenciados, mas totalmente interligados entre si: os índices históricos15 de analfabetismo16 que, por sua vez, vêm apresentando um decréscimo num ritmo significativo que a julgar por este movimento estaria próximo de 0% nas décadas seguintes; as taxas de escolarização17 no sentido da universalização18 da Educação Básica que, amparada legalmente, apresentam um crescimento sistemático e conseqüentemente têm contribuído para reduzir os índices de analfabetismo; a repetência19 e a evasão nas séries iniciais como “outro” problema ainda não solucionado e que tem na primeira série20 do Ensino Fundamental o índice mais elevado. Contudo, deixo esse leque de fatores que estão relacionados ao problema de pesquisa para focalizar uma questão mais subjetiva: os diferentes (e rudimentares) níveis de letramentos produzidos pela escola. Os níveis rudimentares de alfabetização e letramento de uma grande parcela da população brasileira é um problema que precisa ser enfrentado, não apenas pela escola, mas principalmente por ela. É elevado o número de sujeitos que passam pelos bancos escolares e “aprendem” a técnica da escrita e da leitura, mas não se habilitam a utilizarem essa ferramenta de forma competente, com autoria e autonomia na prática. Soares (2005) 15 Os dados oficiais do Ministério da Educação em relação aos índices de analfabetismo no Brasil (por década) registram os seguintes números: ano – 1820 mais de 99%; 1872 (ano do primeiro censo) com 82,3%; 1920 com 71,2%; 1940 com 61,1%; 1950 com 57,1% em 1960 com 46,7%; em 1970 com 38,7%; em 1980 com 31,9%; em 1990 com 24,2% e no ano 2000 com 16,7% . Esses dados foram exibidos no programa Salto para o futuro no dia 29/03/2003. 16 Entre 1986 e 1995 a taxa de analfabetismo no Brasil, na população de 15 anos e mais de idade, passou de 20,0% para 14,7%. Os valores para os anos de 1987, 1988, 1989, 1990, 1991, 1992, 1993 e 1995 foram, respectivamente, 20,0%; 17,0%; 19,7%; 19,0%; 19,0%; 18,3%; 16,3% e 15,5%. (IBGE, Censo Demográfico 1991 e Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1986-1990, 1992-1993, 1995, dados não publicados). 17 Os dados do IBGE também apontam o aumento da escolarização das crianças e adolescentes na última década que por sua vez tem contribuído para a redução do analfabetismo no Brasil. 18 Todo o esforço governamental se concentra no sentido de colocar “todas” as crianças na escola, com oportunidade de ingresso, o que não significa que elas estarão em igualdade de condições. 19 Segundo BARROS, (2006) os índices de repetência e evasão nas séries iniciais colocam o país na 30ª posição no ranking mundial atingindo 21% dos alunos matriculados, em torno de 1,3 milhões de crianças que tiveram que repetir a primeira série em 2004. 20 Os dados do Ministério da Educação divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira- (INEP) em 2001 apontam que: “[...] no período 1995/1996, a repetência no Brasil era de 30,2%, os dados atuais indicam uma queda de 28,5% em relação àquele período. A primeira série tem o maior índice de repetência, de 39,3% [...]”.
  • 24. 23 discute os dados oficiais e o conceito de analfabeto que pelo censo de 1991 estariam em torno de 18% correspondente às pessoas que responderam “não” a pergunta: do recenseador: “Sabe ler e escrever um bilhete simples?”. Segundo a autora, é no correr dos anos 90 que começa a se discutir o conceito de alfabetização, reconhecendo que não é possível reduzi-la ao “reconhecimento e uso das relações entre cadeia sonora da fala e a cadeia gráfica da escrita, limitando-se ao primeiro ano de escolaridade, à chamada classe de alfabetização” (Idem, [s.p.]). A ampliação do conceito de alfabetização sugere uma abordagem diferenciada para tratar da questão. A diferença que se apresenta, nos dias atuais, em nosso país (não somente) é o fato de atentarmos para os níveis considerados precários de letramento, pressupondo debelada a questão do acesso à escola, mas com poucas garantias de aprendizagem efetiva. Na verdade, grande parte da população brasileira que está passando pelos bancos escolares apresenta desempenho incipiente em leitura, interpretação e produção textual. Seria impreciso quantificar essa população, mas não inviável analisar os possíveis motivos que podem conduzir as pessoas a essa condição. É possível ter uma idéia da gravidade do problema em Soares (2005) que faz menção à nota do jornal A Folha de São Paulo, edição de 02/09/91, que apresenta como título da matéria “Analfabetos no país já somam 60 milhões”. Segundo a autora, seria um absurdo se fosse considerado o conceito técnico de analfabeto, pois esse número seria equivalente a quase metade da população brasileira, mas em seguida vem a explicação: “Dados do IBGE dizem que apenas 18% são analfabetos, mas o número de “desqualificados” é muito maior” (idem [s.p.]), ou seja, uma parcela significativa da população brasileira se encontra não ou semi-alfabetizado mesmo tendo freqüentado a escola regular e/ou concluído o Ensino Fundamental, ou será que essa situação teria se modificado? Compreendendo que as circunstâncias pouco se modificaram, pois de maneira geral continuamos produzindo rudimentares níveis de letramentos na escola, considerei essa questão como um ponto chave para tratar a problemática da pesquisa. Uma vez que, para além dos números oficiais ou reais que possamos acessar e deles fazer múltiplas leituras, ou tomá-los como objeto de estudo, a minha indagação maior foi no sentido de tentar compreender de que forma a literatura pode contribuir para efetivar um processo de alfabetização com letramento no sentido amplo da formação humana, favorecendo a educação de um sujeito capaz de expressar-se com autonomia por meio da linguagem oral e/ou escrita assumindo a autoria do seu discurso. Ou seja, um sujeito que possa pensar e interferir em sua realidade social. Buscar perceber a significação da literatura nesse movimento, especificamente pelo olhar da criança imersa no processo de alfabetização e letramento foi o desafio que me propus. Pensei, portanto, o problema de pesquisa a partir das questões suscitadas pelos níveis de letramentos, considerados baixos, por entender
  • 25. 24 que a tarefa de alfabetizar e letrar precisa ser pensada no âmbito da significação, do fazer sentido para o sujeito, mais do que dominar o objeto escrita, o sujeito precisa saber o que fazer com ele. Sem desconsiderar, evidentemente, a importância dos muitos elementos envolvidos no processo de alfabetização, entendo ser o precário desempenho no uso do código escrito na prática uma das mais graves manifestações desta problemática porque oculta uma faceta política, social e ideológica de preservação de um modelo excludente que faz com que a maior parcela da população não tenha acesso ao capital cultural produzido pela humanidade. Resultado de um sistema de educação que se mostra ineficiente na formação do homem (no sentido integral) e do leitor/ autor com autonomia para pensar e produzir significados dentro do seu contexto específico. Porém, um sistema que se configura, inegavelmente, o fator maior (quando não único) de possibilidade para a iniciação de muitos sujeitos ao mundo da escrita e da leitura. Os resultados gerais que a escola tem apresentado são ainda insuficientes. É preciso admitir que apesar dos esforços que têm sido empreendidos no campo prático e teórico da educação brasileira, o fracasso na alfabetização ainda é uma realidade, infelizmente. Uma realidade que precisa ser inevitavelmente discutida, pois um problema que surge na base tende a se perpetuar progressivamente, atingindo as diferentes áreas e níveis educacionais. Basta uma simples análise das produções textuais apresentadas por alunos do ensino médio para constatar a dificuldade na produção escrita. E isso vai além, nos cursos de graduação podemos encontrar alunos com dificuldade de expor de forma clara e consistente suas idéias. É possível encontrar monografias, dissertações e teses, com idéias soltas, pensamentos mal-elaborados, dessa forma, guardadas as devidas proporções, o problema se manifesta em todos os níveis educacionais e eu me pergunto: quais os fatores que levam a escolarização a ser ineficiente no que se refere ao desenvolvimento da capacidade de compreensão e elaboração escrita do sujeito? É verdade que os problemas que envolvem os sistemas escolares são inúmeros a começar pela própria estrutura física, os rituais, o material didático, a disposição dos espaços, a prática pedagógica... Uma somatória de fatores que impossibilita a interação dos sujeitos e o aprendizado com o outro, dificultando o fluxo da elaboração cognitiva. Com essa estrutura a aprendizagem tende a assumir um caráter mecânico, desprovido de significados e a partir do processo de alfabetização e letramento essa característica se torna presente e conduz a grande maioria dos alunos a “abrir mão” da própria aprendizagem. O saber da escola é, muitas vezes, um saber artificializado e desarticulado dos anseios humanos. A escola na sua grande maioria trabalha apenas com o “certo” não abre espaço para a dúvida, a intuição, a imaginação, a emoção [...] Para Ostetto (2006, p. 22) é preciso “provocar as
  • 26. 25 amarras racionalistas que impedem a viagem ao desconhecido” possibilitando à criança um processo de aprendizagem que inclua a fantasia, a beleza e a ludicidade. Reflexionando acerca das formas com que a educação, de forma geral, e especificamente a alfabetização tem sido efetivada nos diferentes sistemas educacionais brasileiros, gerando os resultados acima mencionados, percebo que uma transformação depende igualmente de diferentes fatores, entre os quais o repensar e re-significar o próprio papel da escola; o uso dos instrumentos inseridos em seu contexto; a compreensão da função e do posicionamento teórico e político do professor enquanto sujeito privilegiado e mediador do processo educacional. No Brasil, os problemas relacionados à alfabetização estão longe de alcançar resultados satisfatórios. É um campo que se mostra amplo e aberto para o debate na busca de uma educação emancipatória, que permita a expressão autoral e autônoma do sujeito em todos os níveis de ensino. 1.1.4 A alfabetização e o letramento Em meados dos anos de 1980, surge no contexto dos estudos e da discussão sobre alfabetização no Brasil a noção de letramento. Uma das ocorrências do uso da expressão letramento21 segundo Soares (2001) foi feita por Kato em 1986, em que a autora diz acreditar que a língua falada culta é conseqüência do letramento, e Tfouni, em 1988, distingue a alfabetização de letramento. A partir desse momento, o uso do termo torna-se cada vez mais freqüente no discurso escrito e falado de professores e especialistas, e motivo de pesquisa nos meios acadêmicos. Porém, a palavra letramento, segundo Soares (2001) ainda não estava dicionarizada22 , tinha sido introduzida muito recentemente na língua portuguesa e “alguns autores preferiam, no lugar de letramento, utilizar a palavra alfabetismo, mais próxima da língua portuguesa, porém não tão familiar quanto seu oposto, analfabetismo” (SILVA, 2004, p. 37). Para Kleiman (1995, p.15-16): O conceito de letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos numa tentativa de separar os estudos sobre o “impacto social da escrita” [...] dos estudos sobre a alfabetização cujas conotações escolares destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita. Eximem-se dessas conotações os sentidos que Paulo Freire atribui a 21 Versão para o Português da palavra literacy, da língua inglesa. “Etimologicamente, a palavra literacy vem do latim littera (letra), com o sufixo –cy, que denota qualidade, condição, estado [...], ou seja: literacy é o estado ou a condição que assume aquele que aprende a ler e escrever (SOARES, 2001, p.17)”. 22 No dicionário Caldas Aulete, indicado como termo antigo ou antiquado aparecia a palavra letramento há um século atrás e significava “soletrar”. Uma palavra que deixou de ser usada, retornando em 1986 com outro significado. Em 2001 o Dicionário Houaiss dicionarizou a palavra letramento e o adjetivo letrado, a ela correspondente.
  • 27. 26 alfabetização que a vê como capaz de levar o analfabeto a organizar reflexivamente seu pensamento, desenvolver a consciência crítica, introduzi-la num processo real de democratização da cultura e de libertação. De acordo com Soares (2004), o uso do termo letramento aparece decorrente da necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e escrever resultantes da aprendizagem do sistema da escrita. Para a autora, este fenômeno acontece simultaneamente ao aparecimento do illettrisme, na França, e da literacia em Portugal. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora o termo literacy já estivesse sendo usado desde o final do século XIX foi também nos anos de 1980 que se tornou foco de atenção e discussão nas áreas da educação e da linguagem, evidenciado pelo grande número de artigos e livros publicados sobre o tema. Convém ressaltar que, aproximadamente nesta época (final dos anos 1970), a UNESCO23 propõe a ampliação do conceito de literate para functionanally literate, sugerindo que as avaliações internacionais sobre o domínio de competências de leitura e de escrita se fizessem de forma mais ampla, além do medir apenas a competência de ler e escrever. Ainda segundo Soares (2004), se houve coincidências quanto ao momento histórico em que as práticas sociais de leitura e escrita surgem como fundamentais em sociedades distanciadas nos aspectos geográficos, socioeconômicos e culturais, as causas e o contexto deste surgimento se caracterizam como diferentes nos países em desenvolvimento, como o Brasil, dos países desenvolvidos como França, Estados Unidos e Inglaterra. Uma das diferenças que pode ser destacada é o grau da ênfase colocada nas relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita e aprendizagem do código escrito, ou seja, entre o conceito de letramento (illetrisme, literacy) e o conceito de alfabetização (alphabétisation, reading, instruction, beginning literacy). Nos países de primeiro mundo, as práticas sociais de leitura e escrita assumem a natureza de problema relevante na constatação de que a população, embora alfabetizada, não possuía habilidades de leitura e escritas suficientes para uma participação efetiva e competente, tanto no contexto social como profissional, envolvendo a língua escrita. Nesta perspectiva, nesses países a discussão sobre os problemas da aprendizagem inicial da escrita, ou da tecnologia da escrita (alfabetização) e o domínio precário de competências de leitura e de escrita necessárias para a participação em práticas sociais letradas (letramento) são tratados de forma independente, revelando o reconhecimento de suas especificidades e uma relação de não causalidade entre eles. No Brasil, o movimento se fez na direção oposta. A discussão sobre a importância de habilidades para o uso competente da leitura e da escrita tem sua origem 23 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
  • 28. 27 vinculada à aprendizagem inicial da escrita, desenvolvendo-se a partir do questionamento do conceito de alfabetização. Dessa forma, os conceitos de alfabetização e letramento se mesclam e freqüentemente se confundem, com uma progressiva extensão do conceito de alfabetização em direção ao letramento, do saber ler e escrever em direção ao ser capaz de fazer uso da leitura e da escrita. Para Soares (2004, p. 8), “a invenção do letramento, entre nós, se deu por caminhos diferentes daqueles que explicam a invenção dos termos em outros países”. Apesar da diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, existe uma inadequada e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do letramento conduzindo a uma certa extinção do termo alfabetização, a que a autora atribui o nome de “desinvenção da alfabetização” para descrever a progressiva perda da especificidade do processo de alfabetização que vem ocorrendo nas escolas ao longo das duas últimas décadas. Para a autora, na concepção atual, a alfabetização não precede o letramento, os dois processos são simultâneos. Nas últimas (duas) décadas, os estudos sobre o letramento se intensificaram provocando uma série de indagações e hipóteses a respeito do próprio significado, o sentido se pluralizou provocando entendimentos diferenciados. Para Scribner e Cole (apud KLEIMAN, 1995, p. 19) o letramento pode ser definido como “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Tfouni (2002, p. 23) afirma que o termo letramento “não tem um sentido único, nem descreve um fenômeno simples e uniforme. Pelo contrário, está intimamente ligado à questão das mentalidades, da cultura e da estrutura social como um todo”. Para Costa (2000, p. 15) o termo letramento pode interpenetrar-se com a concepção paulofreiriana de alfabetização no sentido de auxiliar no desenvolvimento de “uma consciência crítica e reflexiva do sujeito, para que ele possa ter acesso à cultura e se liberte como cidadão. Portanto um processo (ou uma prática) social/coletivo de democratização do saber”. Para Silva (2004, p. 43), a noção de letramento não apenas amplia o conceito de alfabetização como poderia fortalecê-lo “resgatando a dimensão política, filosófica, dialógica, cultural e ideológica”. Cecília Goulart (2006) destaca não apenas a dificuldade para conceituar o letramento como a possibilidade de conceber letramentos, ou seja, uma pluralidade em torno deste termo que resulta numa falta de condições para estabelecer os diferentes níveis de letramentos. A autora afirma ainda que a discussão contemporânea sobre letramento é densa, complexa e está atravessada pelo viés político-ideológico. O conceito de letramento, vê-se, ainda está se consolidando. De qualquer modo, foge ao âmbito deste trabalho aprofundar essa questão. Aqui, relacionado à alfabetização, o
  • 29. 28 letramento é bússola, é perspectiva pela qual o ensino e a aprendizagem do objeto escrita se apóiam, enquanto a aprendizagem do sistema escrito torna-se ferramenta que amplia gradativamente os níveis de letramento. 1.1.5 Modelos de letramento Kleiman (1985), analisando os modelos de letramento encontrados na prática de alfabetização escolar, aponta pelo menos dois que levariam a duas perspectivas e conseqüências diferenciadas: o modelo autônomo e o modelo ideológico. Costa (2000, p. 16), fundamentado em Kleiman, explicita inicialmente o modelo autônomo de letramento, bem como o que este conceito representa em termos de implicações sociais: O modelo autônomo possui uma concepção quase absoluta de que nas instituições e nas classes letradas (escola, igreja, classe média,...) está a gênese da verdade. Assim a escola seria, com suas práticas, a principal agência de letramento e a escrita seria objeto de comunicação distinto da oral (visão polarizada entre oralidade e escrita), priorizando, portanto, na /pela escrita, um tipo especifico de letramento – a alfabetização. Esse modelo seria um modelo completo em si mesmo, instrumento neutro, a-social, a-histórico, justamente por não levar em conta o contexto social ou cultural que determina as práticas de letramento. Para o autor, o modelo autônomo de letramento reforça a crença de poder resolver as dificuldades de comunicação oriundas da diversidade sociocultural e lingüística por meio da educação formal escolar baseado principalmente na certeza de que quanto maior o nível de escolarização, melhor a performance do sujeito na comunicação. Esse modelo enfatiza a dimensão individual da aprendizagem e o letramento é concebido como um atributo pessoal. Além de outros problemas, modelos de letramentos que enfatizam a ótica individual, segundo Silva (2004, p. 39), “concebem o ato de ler24 e escrever25 como uma mesma habilidade, não levando em conta a especificidade de cada um; por outro lado, quando compreendem a distinção dos dois processos acabam por enfatizar um deles”. A autora destaca ainda o fato de que o ensino da leitura e da escrita desconsidera muitas vezes as experiências anteriores do sujeito e o conflito necessário para que ele memorize e compreenda o sistema alfabético. “Esse conflito só é possível na 24 A leitura é “um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas, que se estendem desde a habilidade de decodificar palavras até a capacidade de ler textos escritos” (SOARES apud SILVA, 2004, p.39) 25 A escrita também requer um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas, mas diferentes daquelas exigidas pela leitura, “as habilidades de escrita estendem-se desde a capacidade de registrar unidades de som até a capacidade de transmitir significado de forma adequada a um leitor em potencial” (SOARES apud SILVA, 2004, p. 40).
  • 30. 29 interação com o outro, pois é a partir do outro que a criança se dá conta das situações e condições em que se produz a escrita e a leitura em sala de aula. Lemos e escrevemos o que?, para quê, para quem, por quê?”(SILVA, 2004, p. 41). Embora enfatizando a questão individual, a aprendizagem do código escrito é um fenômeno de caráter social e se faz na e por meio da atividade discursiva. O modelo ideológico leva em conta a determinação do aspecto social e cultural nas práticas de letramento para uma sociedade e a significação do código escrito depende do contexto em que foi adquirido. “Esse modelo não propõe a relação de causalidade para ascensão social do sujeito, acesso aos seus bens sociais ou desempenho nas práticas comunitárias” (COSTA, 2000, p. 16). Segundo o autor, enquanto o modelo autônomo possui uma confiança absoluta de que o que é universalmente confiável ou válido provém das instituições como a escola, a igreja, entre outras, no modelo ideológico essa confiabilidade é relativizada. O modelo ideológico, interpretado não como um atributo particular, mas na dimensão social, pode ainda ser visto “sob duas perspectivas, progressista ou liberal e a revolucionária ou radical” (SOARES apud SILVA, 2004, p. 42). Na ótica progressista ou liberal, o letramento prevê tão somente que o individuo desenvolva práticas sociais de leitura e escrita que o adaptem as condições do meio em que está inserido, enquanto na perspectiva revolucionária ou radical o sujeito é encorajado a interferir no contexto criando inclusive novas regras de participação. É no âmbito do modelo ideológico de letramento, com sua possibilidade de ser transformador ou revolucionário, que percebo uma ampliação, numa visão outra das discussões sobre alfabetização. Mencione-se ainda que não apenas o uso social do código escrito (letramento) está condicionado aos aspectos culturais de um determinado grupo como a própria aquisição técnica desse código (alfabetização) se dá necessariamente relacionada a uma maior ou menor valorização atribuída à escrita, de acordo com o contexto em que o sujeito está inserido. Nessa perspectiva, o objeto de estudo (código escrito) pode ser trabalhado para além da decodificação, visando à interpretação e à produção de significados, pois somente dessa forma poderá contribuir para uma alfabetização e um letramento na perspectiva de iniciar a formação de um leitor/autor. Para Varrela (2001, p. 33), o grande desafio da atualidade imposto aos professores em relação à leitura e a produção escrita é “alfabetizar crianças tendo o texto como unidade básica e ensinar a ler e escrever a partir da reflexão sobre o processo envolvido”, principalmente porque a “autonomia na leitura desenvolve-se com o aumento da experiência, na medida em que ocorre a ampliação de conhecimentos que servem de apoio à identificação de palavras, de frases e de modalidades de textos” (idem). Quando Varella refere-se ao texto, é preciso ressaltar que a preferência pela polissemia e polifonia contida
  • 31. 30 nos textos literários contribui para potencializar a interação acerca de diferentes opiniões sobre uma unidade temática. Os textos providos de diferentes significados podem proporcionar aos que estão aprendendo a ler e escrever uma competência “para além do domínio do sistema de escritura, melhor pronunciando, enunciando, e anunciando seu estar no mundo, seu jeito de estar e de fazer sua humanidade, produzindo cultura” (PAIVA, 2005, p. 113), consolidando não apenas o processo de alfabetização, como também o de letramento. O fantástico ficcional presente na literatura é um elemento que desencadeia o pensar, o imaginar e o descobrir novas verdades. Sobretudo, a leitura literária pode impulsionar o sujeito (leitor/autor) a não ter medo de enfrentar suas próprias idéias representadas por meio da linguagem oral ou escrita. Ao ler me torno um co-autor simplesmente pelo fato de não permanecer indiferente ao texto, ou seja, produzo paralelamente um texto novo e ao escrever estarei dialogando com o outro, pois cada palavra é uma forma de expressão de um tempo e um espaço constituído culturalmente. Esse fator assume vital importância para a criança no momento da aquisição da linguagem escrita que precisa necessariamente ter significado. A competência técnica é adquirida paralelamente e/ou em conseqüência da constante interação com textos diversificados, científicos e ficcionais, ou seja, o letramento se faz concomitantemente ao processo de alfabetização. 1.2 A LITERATURA O termo literatura permeia o trajeto desse estudo de forma muito evidente sem reivindicar a necessidade de explicitar um conceito acerca do mesmo. Entretanto, ao tentar focalizar com maior precisão o que a literatura representa para a formação do sujeito de maneira ampla, e especificamente em que sentido está alocada nessa pesquisa, deparei-me com a desconcertante tarefa de tentar responder: afinal, o que é a literatura? A literatura é arte acima de tudo, mas é também um objeto cultural que apresenta muitos aspectos fugidios, razão pela qual, pareceu-me mais sensato ao invés de explicitar um conceito empenhar-me em apontar algumas características que tornam um texto literário. Além disso, um evento lingüístico qualquer de hoje poderá amanhã se tornar literatura reconhecida se a sociedade que o produziu ou o ler assim o determinar. Mais do que destacar as características ou qualidades atribuídas à linguagem literária, percebo a necessidade de me ater a uma delas em especial: o seu caráter formativo. Pois é a partir do reconhecimento de que o texto literário configura-se como um objeto relevante na formação do leitor, que faço a reflexão acerca da sua contribuição no processo de alfabetização e
  • 32. 31 letramento da criança. Compreendendo ainda que essa formação se inicia muito antes da criança chegar à primeira série do ensino fundamental, acredito que quanto mais cedo ela entrar em contato com a literatura maior será o seu repertório, com o qual vai dialogar e constituir-se leitora. Segundo Zilberman (1990, p. 12), quando a literatura nasceu, na Grécia antiga, chamava-se poesia e sua função principal era divertir a nobreza nos intervalos entre uma guerra e outra. “A Ilíada e a Odisséia devem seu aparecimento a essa circunstância, porém sua permanência no tempo não se explica da mesma maneira”. Esses dois poemas épicos tornaram-se para os gregos, de acordo com a autora, algo semelhante à Bíblia para os hebreus: um instrumento que contava as origens da nação, explicitava as diferenças entre homens e deuses, servia para legitimar o modelo político adotado e ainda ditava as normas de comportamento privilegiadas por aquela sociedade. Dessa forma, a literatura assumiu desde muito cedo uma propensão educativa. No decorrer do tempo ela sofreu inúmeras transformações, surgiram novos gêneros, mas uma certeza manteve-se com o tempo: “a de que o texto poético favorece a formação do indivíduo cabendo, pois, expô-lo à matéria-prima literária, requisito indispensável a seu aprimoramento intelectual e ético” (ZILBERMAN, 1990, p. 13). É esse aspecto formativo da linguagem literária que abona sua presença em todos os níveis de escolarização como fator que contribui não apenas para a formação do leitor, mas de uma forma abrangente atua na constituição do sujeito. Porém é preciso re- significar a maneira de lidar com os textos literários no cotidiano escolar. Para Zilberman (1990, p.17) “não pode ser a que desempenhou na Antiguidade, por que a escola se interpôs entre a obra e o leitor, com conseqüências inegáveis”. Também não pode ser a pedagogização da literatura, ou seja, utilizá-la apenas como um recurso para apreender aspectos relacionados à estrutura da língua. A linguagem literária caracteriza-se pela possibilidade de leitura do mundo real de diferentes formas. Uma linguagem que vai se distanciando da objetividade e da explicação única e propondo verdades que são construídas na interlocução entre autor(es), texto(s) e leitor(es) e por isso está sempre em aberto. As significações que ela pode suscitar a partir dos personagens, tempos ou eventos fictícios, dizem respeito à busca de compreensão da própria condição humana, seus medos, suas paixões, suas eternas dúvidas ainda sem respostas e como resultado de muitas vozes inquietas. Ligia Cademartori sintetiza o que provisoriamente poderíamos tomar como um conceito de literatura, apenas para convergir reflexões momentâneas, pois o próprio significado é escorregadio e não nos permite apreendê-lo na sua abrangência:
  • 33. 32 A obra literária recorta o real, sintetiza-o e interpreta-o através do ponto de vista do narrador ou do poeta. Sendo assim, manifesta através do fictício e da fantasia, um saber sobre o mundo e oferece ao leitor um padrão para interpretá-lo. Veículo do patrimônio cultural da humanidade, a literatura se caracteriza, a cada obra, pela proposição de novos conceitos que provocam uma subversão do já estabelecido (1986, p.22). Nas palavras de Azevedo (2004, p. 39), algumas características que constituem “essa forma de arte feita com palavras convencionalmente chamada de Literatura” dão conta de que em primeiro lugar ela é ficção e discurso poético. A ficcionalidade retrata o mundo de forma subjetiva, analógica, intuitiva, imaginária e fantástica. Por meio do discurso poético, afirma o autor, abrimos mão da linguagem objetiva, sistemática, impessoal, coerente e unívoca dos livros didáticos para poder inventar palavras, transgredir as normas oficiais da Língua, criar ritmos inesperados, brincar com trocadilhos e duplos sentidos, recorrer a metáforas e poder ser ambíguo e até mesmo obscuro. O texto literário é, portanto, constituído pela plurissignificação, se distancia do texto didático-informativo, possibilitando que diferentes leitores cheguem a diferentes interpretações. Para o autor, “é possível afirmar que quanto mais leituras um texto literário suscitar, maior será sua qualidade” (p. 40). Vê-se que a literatura é um modelo de pensamento que se utiliza da ficção e da linguagem poética para interpretar o mundo. Nas situações ambíguas e contraditórias de personagens fictícios e imaginários discutem-se as contradições que caracterizam os sentimentos e as paixões humanas, permitindo não apenas a reflexão, mas a busca do autoconhecimento e a construção da identidade de um “eu” em relação ao “outro”. A leitura de textos literários, além dos atributos acima citados, faz com que seu leitor produza um texto paralelo e inédito que representa o seu posicionamento em relação ao que outras vozes lhe falam, é um impulso ao “eu” autor que num movimento ininterrupto revela que “era uma vez um escritor que escreveu para um leitor que virou escritor que escreveu para outro leitor [...] percebendo mais profundamente as perplexidades da vida e muito provavelmente, plasmando – juntos – outras maneiras de existir” (SILVA, 1990, p. 23). 1.2.1 A literatura infantil O que é Literatura infantil? Para Aguiar et al (2001, p.16) “são as histórias e os poemas que ao longo dos tempos, seduzem e cativam a criança, embora às vezes não sejam destinados ao público infantil (e o livro Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, é um exemplo)”. Para Cristiane Madanêlo de Oliveira (2005) “a autêntica literatura infantil não deve ser feita essencialmente com intenção pedagógica, didática ou para incentivar hábito
  • 34. 33 de leitura” [s.p.]; a designação infantil para essa modalidade literária não deve ser vista como "menor", mas na perspectiva de que: A palavra literatura é intransitiva e, independente do adjetivo que receba, é arte e deleite. Sendo assim, o termo infantil associado à literatura não significa que ela tenha sido feita necessariamente para crianças. Na verdade, a literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde, de alguma forma, aos anseios do leitor e que se identifique com ele (idem). A Literatura Infantil tem sua origem26 no final do séc. XVII, época em que ocorreram mudanças estruturais na sociedade. Entre essas mudanças, três delas contribuíram de forma determinante para o surgimento do gênero literário: a reestruturação da família (burguesa); a reorganização da escola e o reconhecimento da infância enquanto categoria social. A reorganização da família fez emergir o sentimento de infância que até esse momento não era reconhecido e a partir da visão moderna de família se estabelece um conceito de infância repleto de diferentes interesses e entendimentos. A escola foi reformada e assumiu a função de cuidar do desenvolvimento intelectual infantil. O surgimento da literatura infantil vinculado ao nascimento do conceito moderno de infância e unido à escola de modo não acidental produziu os primeiros textos deste gênero, expressando um apelo educativo, principalmente porque foram escritos por pedagogos. Essa característica sobreviveu ao andar histórico e nos dias atuais podemos encontrar um grande número de obras preservando tal pretensão. Fato que, segundo Zilberman (1998, p. 14), torna problemática a relação literatura e educação, pois: “de um lado, o vínculo de ordem prática prejudica a recepção das obras [...] e a crítica desprestigia globalmente a produção destinada aos pequenos, antecipando a intenção pedagógica, e sem avaliar os casos específicos”. Por outro lado, a autora reafirma que a “sala de aula é um espaço privilegiado para o desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um importante setor para o intercâmbio da cultura literária, não podendo ser ignorada, muito menos desmentida sua utilidade” (idem). A estreita relação entre literatura infantil e a educação intensifica seu caráter utilitário no processo de alfabetização e letramento. Encontram-se disponíveis no mercado editorial alguns livros que se dizem adequados para introduzir a criança ao universo da leitura e da escrita. Essas obras são tomadas como um mero instrumento didático com o qual a assimilação da tarefa escolar fica evidente. Segundo Zilberman (1988), são obras que não apresentam as características básicas da ficção, tais como a ação narrativa entre o 26 Segundo Oliveira (2005 [s.p.]) a célula máter da Literatura Infantil, hoje conhecida como “clássica”, encontra- se na Novelística Popular Medieval que tem suas origens na Índia. Descobriu-se que, desde essa época, a palavra impôs-se ao homem como algo mágico, como um poder misterioso, que tanto poderia proteger, como ameaçar, construir ou destruir. São também de caráter mágico ou fantasioso as narrativas conhecidas hoje como literatura primordial. Nela foi descoberto o fundo fabuloso das narrativas orientais, que se forjaram durante séculos a.C., e se difundiram por todo o mundo, através da tradição oral.
  • 35. 34 aparecimento de um problema a resolver e a sua solução, a presença de personagens animadas, um espaço e um tempo fictícios. Além disso, como a preocupação maior é a aquisição e domínio do código escrito, alguns deles apresentam ao leitor as letras na seqüência em que o alfabeto as ordena e na variedade de suas diferentes formas gráficas. Ainda, segundo Zilberman (1988), os livros direcionados às crianças em processo de alfabetização possuem uma transitoriedade, limitando o seu uso. Nessa fase, a criança ainda não domina o código escrito e, portanto, não tem fluência e segurança para poder escolher e ler uma obra e ao superar essa fase, esses livros podem ser dispensados, o que, segundo a autora via de regra acontece. Dessa forma, essas obras além de serem produzidas dentro de um modelo metodológico com uma concepção de aprendizagem essencialmente pragmática, encontram-se atrelados ao fim que se destinam e representam a parcela mais descartável e efêmera da literatura infantil. Sisto (2005) faz uma “brincadeira-séria” utilizando a ficção para assinalar o quanto à relação da literatura infantil com a escola pode ser problemática: Nosso personagem chama-se Literatura Infantil e acabou de ser chamado na sala da coordenadora da escola, para se defender da acusação de ser coisa sem importância, desnecessária, sob a ameaça de perder o lugar na escola, e pior, na vida das pessoas [...] (p. 134). Tal qual a crítica exacerbada aos métodos tradicionais de alfabetização que geraram uma crença equivocada de que estes não eram mais necessários, também a literatura infantil entendida como pedagogizante pode ter sido preterida no ambiente escolar. O fato de muitas obras, em meio à diversidade existente, possuírem um caráter didático não significa que não possamos encontrar qualidade literária e negar a contribuição do gênero para a formação humana. Azevedo (2005, p. 25) reafirma o papel determinante que a escola possui na formação de leitores, na qual “grande parte das pessoas tem sua primeira chance de estabelecer contato com textos de ficção e poesia”. Embora, pois, a literatura infantil tenha um percurso histórico marcado pela característica didática, ela supera essa fragilidade atingindo o estatuto de arte literária, segundo Zilberman (1998), quando se distancia de sua origem comprometida com a pedagogia e apresenta textos de valor artístico a seus pequenos leitores. A literatura (infantil ou não) tem necessariamente um componente que a torna capaz de sensibilizar e encantar o leitor independente da idade (cronológica). É um elemento que transcende o tempo e o espaço, pois ao ler uma história o leitor pode ser “sugado” para o seu interior e se permitir uma vivência para além do real, para um imaginário, ainda que possível apenas como imaginário que, para Ieda Oliveira (2005) consiste numa certa “loucura” saudável que o prazer estético proporciona. Quando leio uma
  • 36. 35 história de ficção, produzo outra paralela e se estabelece um diálogo subjetivo entre escritor, obra e leitor e “na subjetividade dos diálogos nasce um terceiro livro, que ficará por escrever. São diálogos para sempre inéditos” (QUEIRÓS, 2005, p. 171) que me possibilitam mais do que leitura, o exercício de uma leitura com autoria. Ao compreender o importante papel que a literatura (infantil) pode desempenhar no processo educacional, reconhecendo as múltiplas possibilidades que podem advir da presença e permanência não exatamente na escola, mas, nas mãos das crianças, uma preocupação se instala de imediato: a questão da qualidade. É preciso saber reconhecer a qualidade de uma obra literária do gênero infantil ou juvenil. Como realizar essa tarefa? 1.2.2 Os livros para criança e a qualidade literária O livro para crianças é também um objeto de consumo e atende uma parcela do mercado, motivo pelo qual a quantidade de obras existentes nos dias atuais é imensa e a sua qualidade nem sempre compromisso de todos os autores que se dispõe a escrever para o público infantil. Durante o percurso desta pesquisa refleti sobre os parâmetros para poder distinguir uma obra do gênero infantil de qualidade entre as demais e percebi que o meu olhar [o de professora] construído por meio da experiência com a literatura no cotidiano de uma sala de aula está muito mais relacionado à intuição (incluindo minhas preferências pessoais) e baseado na observação da relação que as crianças estabelecem com as obras literárias que chegam às suas mãos. Evidentemente, a experiência pode apontar alguns caminhos, mas se mostra insuficiente para uma abordagem sólida ou para possibilitar escolhas seguras, pois para poder aferir se uma obra do gênero possui qualidade literária é necessário levar em conta alguns critérios, a começar pelo aspecto físico do objeto-livro, materializado, comercializado – produzido cultural e historicamente. Quando se trata do objeto-livro Fanny Abramovich faz uma lista de pormenores a ser percebida, envolvendo vários aspectos: A começar pela capa (se bonita, feia, atraente, boba, sem nada a ver com a narrativa), do título – que, afinal, são o primeiro contato que se tem com o volume: o impacto visual e a curiosidade despertada ou adormecida...E por que não discutir a encadernação, do desprazer que é ver um livro amado desfolhando, descolando, não dando mais nem para virar a página? [...] olhando muito do bem olhado se a ilustração corresponde ao que está escrito na página ao lado, se está muito compactado, muito apertado, sem espaço para respirar... ou ao contrário, se ficou muito pouca coisa escrita ou desenhada em cada folha, sobrando partes em branco [...] (1997, p. 145). A adequação do tamanho e disposição das letras, da ilustração e do texto nos livros, a escolha do formato mais adequado, são outros cuidados citados pela autora que, por sua vez, representam investimentos maiores ou menores na edição de cada obra.
  • 37. 36 Esses e outros aspectos tornaram-se objeto de reflexão no livro organizado por Leda Oliveira em 2005, denominado O que é qualidade na literatura infantil e juvenil? Com a palavra o escritor. Nessa obra, autores que são também escritores de literatura infantil e juvenil tentam responder a pergunta central, destacando as características entendidas como necessárias para garantir a qualidade literária dos livros para jovens e crianças – eles tratam principalmente da qualidade do teor literário, sem desconsiderar a importância dos elementos extra textuais e da formatação gráfica para se fazer um “bom” livro ou uma “boa” literatura. De maneira sintetizada, selecionei algumas idéias e opiniões apontadas por Celso Sisto, Ricardo Azevedo, Gustavo Bernardo, Anna Claudia Ramos, Luiz Antonio de Aguiar e Bartolomeu Campos de Queirós, alguns dos autores que participaram da referida obra. Celso Sisto defende que a diversidade deveria ser a palavra chave na questão da qualidade. Que a literatura infantil, além do encantamento, poder de sedução, impacto e magia, precisa ter compromisso com o leitor. Um compromisso que se manifesta desde a produção textual com uma linguagem autêntica (não empolada, boba ou artificial) mantendo a coerência entre personagens, voz narrativa, tempo narrativo e espaço histórico, até a formatação do aspecto físico com materiais adequados. Na questão da linguagem literária, afirma o autor, podemos concebê-la como desvio – “desvio da linguagem cotidiana. Esse lugar desviante fica sendo o território onde pode emergir o poético, que é o que provoca o estranhamento e a singularização (uma vez que a linguagem cotidiana seria automatizante)” (p.120). Boas histórias e bons escritores resultam em livros que possibilitam o exercício lúdico e livre da leitura com o protagonismo do leitor, que, para testar a validade do grau de qualidade tem que resistir a outras leituras – leitura de outros leitores e do mesmo leitor muitas vezes. Ricardo Azevedo ao enfocar o conteúdo de uma obra literária, assegura que um dos pontos principais é que diante da ficção e da poesia, abandonamos o campo da linguagem utilitária e passamos a vê-la como matéria viva, passível de invenção e experimentação. Nesse sentido, os textos que compõe a literatura (infantil ou não) devem ser textos subjetivos, movidos por visões pessoais e não consensuais, abordando os aspectos psicológicos e emocionais, as contradições e ambigüidades, as vivências concretas, a efemeridade humana, as questões do imaginário coletivo e individual e outros assuntos relevantes e relativos à condição humana. Luiz Antonio de Aguiar complementa essa visão defendendo a autonomia literária para explorar os meandros humanos, livres de utilitarismos, didatismos ou doutrinações, sejam elas políticas, religiosas ou morais. O autor defende ainda que a literatura possa forjar uma cumplicidade com o leitor, tornando-se amiga, parceira, amante... pois ela [a literatura] “alcança seus momentos mais belos quanto
  • 38. 37 mais se aproxima tanto da realidade e da intimidade, quanto da imaginação do seu leitor” (p. 117) . O que não significa que Gustavo Bernardo não tenha razão quando diz que “a ficção é boa, se e somente se, não tem tudo a ver com a realidade; [...] se e somente se, não tem tudo a ver com o leitor” (p. 14) [grifos do autor]. A literatura alimenta a alma e faz a imaginação se alargar, assegura Anna Claudia Ramos. Por isso, segundo a escritora, a literatura infantil precisa ter qualidade estética que possibilite qualquer pessoa ler e se encantar, mas que deixe espaço para o leitor pensar, sentir, interagir e descobrir sentidos escondidos. Que apresente personagens que moram em mundos aparentemente ilógicos, mas repletos de vida, de sonhos, desejos e segredos escondidos. Personagens paradoxais que podem mudar de idéia, pensar e descobrir maneiras de mudar o que não está bom. Para criar tais personagens, o escritor precisa captar o imaginário infantil e se comunicar diretamente com a alma da criança. E, partindo do princípio de que existe uma suposta divisória entre públicos distintos e de autores que se propõe escrever para o público infantil, Resende (1988, p. 22) ressalta o compromisso ético para com pequenos leitores, pois “se a infância é evocada no processo de escritura de alguns escritores, resta saber se serão suficientemente habilidosos, para não deixar sua seriedade adulta prejudicar a ludicidade da criança”, o escritor precisa saber brincar com seriedade. A autora destaca obras criadas sem intencionalidade de público infantil, como as de Ziraldo e de Ana Maria Machado, que permitem derrubar os limites e eliminar distinções injustificadas entre duas literaturas. Resende afirma ainda que não há coerência na classificação que pretende distinguir duas linguagens e duas concepções diferenciadas de arte, pois quando se escreve visando o público infantil “é preciso colocar-se ao lado do leitor, ver o mundo através dos seus olhos, ajudando-o a ampliar esse olhar nas mais variadas direções” (AGUIAR et al, 2001, p. 21). O fato de a literatura infantil ter como destinatários os pequenos, não justifica o uso de uma linguagem infantilizada pois “a criança possui senso aguçado mesmo para uma seriedade distante e grave, contanto que essa venha sincera e diretamente do coração” (BENJAMIM, 2002, p. 55). Bartolomeu Campos de Queirós defende que a qualidade de um texto literário está na divergência pretendida, pois “quanto mais diversificadas as considerações, quanto mais individuais as emoções, mais rico se torna um texto [...] não há que se perguntar qual a mensagem do livro, mas o que o sujeito pensa sobre o que foi lido por ele” (p. 171). Enquanto escritor menciona o extremo cuidado diante da matéria prima do seu trabalho: a palavra. Pois, “a mesma palavra que estabelece a verdade [...] configura a mentira. A mesma palavra que fere, acaricia. A mesma palavra que acusa, perdoa. A mesma palavra que liberta, aprisiona” (p. 169 - 170). Portanto, as palavras são compostas e permitem que cada leitor possa adjetivá-las de acordo com sua experiência.
  • 39. 38 A qualidade em literatura (infantil ou não), sem dúvida, passa pelo cuidado com a palavra. Essa que segundo Bakthin (2000) é polifônica e polissêmica – polifônica porque não existe uma palavra (minha) original – todo discurso verbal traz as marcas das outras tantas vozes que o constituem; é polissêmica – porque possui múltiplos significados, vinculados ao conteúdo ideológico, o sentido de cada palavra é determinado pelo seu contexto e só pode ser compreendido (numa pretensa totalidade) no interior das condições sociais, históricas, políticas e culturais que o produziram. Um livro de qualidade é aquele que fala com seu leitor – uma fala viva! “A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa [...]; toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz” (idem, p. 290). Para Bartolomeu Campos de Queirós não existe texto literário sem qualidade, existe texto que não é literário e o valor de uma obra de literatura (infantil) “se dá na medida em que elas produzem alteração ou expansão dos horizontes de expectativas dos leitores de sucessivas épocas”. (AGUIAR et al, 2001, p. 49). Portanto uma obra literária de qualidade não envelhece facilmente, ela se mantém atual enquanto possibilita diferentes leituras para diferentes épocas e leitores. Na escola, ou fora dela, estar atento aos aspectos textuais e materiais da literatura é sobretudo reconhecer o direito da criança ao acesso aos bens culturais. Em termos de qualidade literária há muitos elementos a serem levados em conta, há muitas direções a serem exploradas em relação ao suporte (livro) e ao teor textual. Mas, há pelo menos uma posição clara entre pesquisadores e autores acerca da ameaça que arrisca a qualidade em literatura, seja ela infantil ou não: quando indicada para atender objetivos curriculares, ou para transmitir padrões e valores ideologicamente pré-determinados, a experiencia estética do leitor pode ser comprometida. 1.2.3 A cartilha: um livro infantil para além do didático Ao fazer a reflexão sobre a contribuição da literatura no processo de alfabetização e letramento percebi uma certa “obrigação” de mencionar um instrumento que por séculos se fez e se faz presente na vida de meninos e meninas que estão aprendendo a ler e escrever: a cartilha. Esta, ao longo do tempo, adquiriu “ares” contemporâneos, nomenclaturas diferenciadas e se apresenta na atualidade com as mais diferentes versões, algumas preservando “velhas” concepções pedagógicas, sobre as quais se alicerçam a vida escolar da criança desde os seus primeiros movimentos, outras buscando acompanhar o ritmo da discussão teórica e o esforço dos pesquisadores no sentido de tornar a alfabetização e o letramento processos mais eficientes, auxiliando o aluno “a se apropriar da
  • 40. 39 língua e da linguagem com autonomia, desenvoltura e prazer” (GARCIA, 2001, p. 227 ). Mas, sobretudo a cartilha constituiu-se num dos instrumentos de maior acesso para as crianças nesse momento da sua vida. Nos dias atuais, raramente nos referimos ao livro didático específico destinado à criança em processo de alfabetização e letramento como cartilha. Embora essa nomenclatura pareça antiquada, esse fato não a isenta de uma produção nos moldes do livro didático e de expressar as concepções pedagógicas que lhe dão sustentação. A configuração dos livros (e de outros objetos) destinados às crianças é resultado de uma construção cultural que condensa o pensamento da sociedade no seu tempo e espaço. Os livros infantis didáticos ou não, e especificamente a cartilha, além de abarcarem o conceito de infância28 , ou seja, a forma como o autor, ao produzi-los, concebe a criança, agregam ainda a visão idealizada de leitura e leitor, de escritura e escritor. 1.2.3.1 Objeto histórico e cultural O livro infantil tem sua origem histórica na Alemanha, no século XVII. “Ao lado da cartilha e do catecismo, também a enciclopédia ilustrada, o vocabulário ilustrado, ou como queira chamar o Orbis pictus de Amos Comenius, encontra-se nas origens do livro infantil” (BENJAMIN, 2002, p. 55). De acordo com o autor, o Iluminismo se apropriou à sua maneira dessas obras, colocando em prática um programa de formação humanista, pois, “se o homem era piedoso, bondoso e sociável por natureza, então deveria ser possível fazer da criança, ser natural por excelência, o homem mais piedoso, mais bondoso e mais sociável” (idem). Desta forma, é possível perceber que a preocupação maior nessa época era com a formação moral e religiosa. As primeiras e antigas cartilhas29 do séc. XVI e XVII, elaboradas em compasso com o pensamento pedagógico da época, apresentavam características peculiares daquele momento histórico e cultural. Segundo Walter Benjamim (2002), traziam em seus textos palavras com combinações silábicas extravagantes, como, por exemplo, “chichleuchlauchra” “xakbak”, “zauzezizau” e outras “monstruosidades fonéticas” que perseguiam as crianças com pretextos pedagógicos, impondo caprichos e manias adultas por meio de uma 27 Manual do professor. 28 O conceito de infância é abordado nos itens: 1.3.1 e 1.3.2. 29 No Brasil, segundo Barbosa (1994) uma das mais antigas cartilhas foi Cartinha de aprender a ler, de autoria de João de Barros, impressa em 1539 em Lisboa. Acredita-se que essa cartilha foi usada para o ensino das primeiras letras e da religião. Segundo o autor, há noticias também de outras cartilhas, uma elaborada por Frei João Soares, impressa em 1539 e reeditada várias vezes e uma outra chamada o Método Castilho para o Ensino Rápido e Aprazível do Ler Impresso, Manuscrito e Numeração do Escrever, produzida por Antonio Feliciano de Castilho em 1850, em Lisboa. Portanto, nossas cartilhas têm origem em Portugal.