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Apoiar produções no campo
da pesquisa e da catalogação da
documentação histórica tem sido, em
anos recentes, uma atividade constante
da Fundação Waldemar Alcântara
que, desse modo, contribui para o
resgate de registros marcantes do
processo de formação da sociedade
brasileira.
A Biblioteca Básica Cearense é
uma coleção de obras raras de autores
que, no passado, se debruçaram
É sobre o contexto sócio-cultural do
Rodolpho Theophilo Ceará de suas épocas e, com isso,
nos forneceram instrumentos para a
compreensão de uma outra realidade,
possibilitando reflexões acerca de
nosso tempo.
Com o apoio do Banco do
Nordeste, por meio do Escritório
Técnico de Estudos Econômicos
do Nordeste (ETENE), a Fundação
Waldemar Alcântara reedita mais este
volume da Biblioteca Básica Cearense,
após realizar consulta a personalidades
do nosso universo intelectual.
É expressiva a participação,
nestas iniciativas, de segmentos
comprometidos com o nosso
desenvolvimento cultural, o que
nos tem possibilitado, dentro dos
limites próprios de uma organização
não-governamental, contribuir para
preservação da memória bibliográfica
do Ceará.
BIBLIOTECA BÁSICA CEARENSE
FUNDAÇÃO WALDEMAR ALCÂNTARA
CENAS
IYPOS
Copyright - O 2009 by FWA
Coleção Biblioteca Básica Cearense
Comitê de Coordenação
* | Lúcio Gonçalo de Alcântara
Maria Auxiliadora Lemos Benevides
Silvia Maria Aragão de Andrade Furtado
Capa
Sérgio Lima
Revisão de Textos
Vera Filizola
Apoio
Banco do Nordeste do Brasil S. A.
Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (ETENE)
Realização
Fundação Waldemar Alcântara
Agradecimentos
Academia Cearense de Letras
Biblioteca Pública Menezes Pimentel
Fundação Waldemar Alcântara
Rua Júlia Vasconcelos, 100 - Pio XII
CEP 60120-320 -Fortaleza-CE
Fone: (85) 32576927 Fax:(85) 32412433
PUNDAÇÃO
WALDEMAR ALCANTARA www.fwa.org.br
CENAS
IYPOS
Rodolpho Theophilo
BIBLIOTECA BÁSICA CEARENSE
FUNDAÇÃO WALDEMAR ALCÂNTARA
FWA
FORTALEZA - 2009
Catalogação na Fonte
Bibliotecária Telma Sousa —- CRB -3/714
Theophilo, Rodolpho.
Scenas e typos / Rodolpho Theophilo. — Ed.
Fac-sim. — Fortaleza: FWA, 2009.
159p. — (Coleção Biblioteca Básica Cearense)
Fac-símile da edição de 1919.
ISBN 978-85-61865-03-0
1. Ceará — História. I Título II. Série
ÃO LEITOR
Ivone Cordeiro Barbosa*
Scenas e Typos, publicado por Rodolpho Theophilo em
1919, é um livro que, pela sua composição, com textos tratando de
temas variados e, aparentemente sem conexão uns com os outros,
é considerado uma miscelânia, termo usualmente designador
de coisas diferentes misturadas, mas formando um conjunto.
Realmente, neste livro, o autor reuniu escritos provavelmente
produzidos em diferentes momentos da sua vida e com um temário
diversificado, referente a questões de natureza puramente pessoal,
aos embates políticos que levou a termo ao longo da vida, aos
seus conhecimentos científicos e reflexões sobre valores morais e
culturais do Ceará. É uma obra que, pelo seu caráter panorâmico,
revela o que os estudiosos de Rodolpho têm apontado sobre o
espírito irrequieto e militante do autor:
“Rodolfo foi mais do que testemunha ocular da
história. Na verdade, esteve na linha de frente de
todos os episódios que Fortaleza viveu na passagem do
século XIX para o século XX: as epidemias de cólera,
varíola e febre amarela, as grandes secas, o movimento
abolicionista, a luta contra a oligarquia Accioly e a
revolta popular que a depôs, a sedição da Juazeiro de Pe.
Cícero. Como se não bastasse, foi um dos fundadores
da Padaria Espiritual, grupo literário que reuniu os
maiores intelectuais cearenses da época e ficou célebre
pelo fato de seu manifesto antecipar, em nada menos de
duas décadas, em pleno Ceará, toda a irreverência dos
pressupostos da semana de Arte Moderna de 22.
Charlatão e literato de província para alguns, gênio
e benemérito para outros, o nome de Rodolfo sempre
esteve marcado pela polêmica. Colaborador assíduo da
imprensa de seu tempo, publicou 27 livros, entre ficção,
v1
poemas, crônica, historiografia e tratados científicos”.
1 1 LIRA NETO, O Poder e a Peste. A vida de Rodolfo Teófilo. Fortaleza, Edições Demó-
crito Rocha, 1999.p.13
Nesta passagem, Lira Neto sintetiza o perfil de Rodolpho
Theophilo, da sua vasta obra, das suas diferentes formas de
inserção sacial e, inclusive, dos sentimentos e interpretações
que geróu nos seus contemporâneos. À obra, agora reeditada,
preserva muito dessa feição nos diferentes textos que
encontramos em Scenas e Typos. A começar pelas reminiscências
pessoais da sua linhagem familiar e a saga dos seus pais, que
aparecem nos textos Através do passado e Altruísmo, exaltando-
lhes as virtudes e percalços que tiveram que enfrentar ao longo
de suas vidas que, embora curtas pela morte prematura que
os ceifou, deixou profundas marcas no menino magricela e
introspectivo que diz ter sido. No entanto, registra também
a permanência destes na memória coletiva, principalmente
do seu pai, médico da pobreza, reconhecido e lembrado por
aqueles que dele receberam cuidados, como um benfeitor
dedicado à luta de curar os males que afligiam as populações do
sertão. Nesses textos, para além do simples registro da memória
familiar, parece-nos que Rodolpho Theophilo busca um
encontro consigo mesmo, como se fosse um ajuste de contas
com o seu próprio passado. Sua inserção nos meios intelectuais
aparece no escrito Moedeiros falsos, no qual escreve lembranças
de sua convivência com outros intelectuais e transcreve a Ata
de Sessão de reinstalação da Padaria Espiritual, demonstrando
uma preocupação com os registros e a publicização da sua
trajetória e a de outros personagens das letras cearenses.
Num outro escrito, Bebedouro, remete-se a uma das
referências da tradição de cultura sertaneja, fazendo uma espécie
de atualização do nosso folclore, no qual recupera as façanhas
do boi Bargado, o boi valente, com sentimentos e identidade
simbiótica com os humanos, nunca vencido nem mesmo pelos
bons e destemidos vaqueiros que historicamente o perseguiam e,
por isso mesmo, permanente na memória das façanhas vaqueirais,
mas que, nesse caso, sucumbe à perseguição por causa da seca.
Essa articulação entre uma tradição de invencibilidade do boi
e de destreza dos vaqueiros com a seca, no texto de Rodolpho
Theophilo, traz um enorme simbolismo, ao mudar a sina do
boi: diferente da tradição folclórica, o vencedor não é o vaqueiro
afamado nem o boi brabo dos sertões, e sim a seca e seu corolário
de mazelas e misérias que se constituiu, também para Rodolpho
Theophilo, num dos grandes embates que enfrentou a vida
inteira. Fala do boi, para falar da situação de homens e bichos por
ocasião das secas.
À sua visão determinista da natureza e as possibilidades
da Ciência aparecem também no texto que abre a coletânea, O
Ceará ferreiro da maldição, no qual expressa as concepções a que
se filia seu pensamento. Neste texto, discorre sobre a miséria
e o flagelo das secas que assolam o Ceará como a grande
maldição que nos foi atribuída pela natureza, comparando-a
às grandes catástrofes naturais que são enfrentadas por outros
povos em outras partes do planeta: vulcões, terremotos ou a
vida difícil dos esquimós nas geleiras do Alasca. Diz ser o Ceará
uma pátria “madrasta de seus próprios filhos”, denomina-o
de ferreiro da maldição pelas desgraças que faz “seus filhos”
viverem. Por outro lado, ressalta os atributos do povo cearense,
dizendo que “são fortes, sóbrios, operosos...”, denomina-os
de “os bandeirantes do norte”, pois, quando se exilam, lutam
e vencem, compara-os às plantas da caatinga, uma vez que
o cearense, “materialmente, é de uma resistência orgânica
assombrosa” e, moralmente, “é um heroe”. No entanto, é
esse mesmo Rodolpho Theophilo que no texto a Imprevidência
do cearense afirma que “Não há gente mais imprevidente que
o cearense. Esta qualidade das raças inferiores nos veio dos
índios por atavismo”, “ o que condeno nos cearenses é o
desperdício” e, ainda, “ Era aquelle mesmo povo que eu vira
abastado e feliz, havia cinco anos, esperdiçando seu dinheiro,
que agora andrajoso, faminto, escaveirado, pede esmolas,
expia seu grande crime — a imprevidência”. Como não temos
a datação do momento de produção dos textos, fica difícil de
avaliar o significado das afirmações de um e outro no contexto
do pensamento de Rodolpho Theophilo. Mas não é de todo
descabido conjecturarmos que o primeiro, Ceará o ferreiro da
maldição, seja uma produção ainda de meados do século XIX,
uma vez que se coaduna com o pensamento social dominante
no período, inclusive com outros textos produzidos pelo
próprio autor, no qual o determinismo geográfico reinava
praticamente absoluto como explicação da seca. Opõe o
selvagem ao civilizado, expondo toda a sua indignação em
relação à civilização que “trouxe grandes males: moléstias que
não tínhamos e vícios que não conhecíamos” e que “aperfeiçoa
em nós maus instinctos”, afirmando que a cultura do espírito
não aniquila no homem a ferocidade das bestas feras”. O
que se observa é que, no texto sobre a imprevidência, se o
determinismo ainda tem lugar na explicação, cede, no entanto,
espaço e ênfase para uma explicação de natureza cultural,
como um comportamento não desejável como o desperdício,
a imprevidência, a dissipação, a corrupção e a prevaricação
dos governantes com dinheiro público. Este texto, embora
não tenha data de produção, pelas referências históricas nele
contidas, principalmente ao governo Accioly, a quem o autor
combateu ferrenhamente, deixa claro que o período da sua
produção é com certeza o final da década de 10 do século
XX, em data próxima a da sua publicação. Uma referência, na
página 94, à seca de 1915, como tendo sido dois anos antes,
confirma que, muito provavelmente, foi escrito em 1917. Com
estes elementos, é possível pensar que Rodolpho Theophilo
acompanhava o debate desse período, sendo sensível aos novos
elementos que iam sendo incorporados ao pensamento social
brasileiro que, sem perder o seu caráter cientificista, buscava
incorporar à discussão sobre a construção da nação brasileira as
contribuições que as emergentes Ciências Humanas colocavam
à disposição.
Muitos são os dilemas, angústias e embates vividos por
Rodolpho Theophilo expressos nos seus textos. Um deles é
sua angústia em relação aos paradoxos da ciência que, se ,por
um lado, cria as possibilidades para melhorar a vida humana,
por outro, poderá se transformar num grande mal para a
humanidade, conforme aparece no texto O ópio. O autor dá
o exemplo dó uso desta substância como uma conquista para
o alívio das dores, mas indica que seu efeito colateral torna as
pessoas viciadas, destruindo-as e levando-as à miséria orgânica.
Exemplo de positividade da ciência está em Porque fui industrial?
Ah, faz a descrição da sua experiência no combate às pestes e de
todo o seu investimento em matérias primas e equipamentos.
Relata o esforço pessoal de transformar o seu saber técnico-
científico na produção da vacina contra a epidemia de varíola,
no planejamento da aplicação dessa vacina na população,
incluindo campanha publicitária na imprensa, escrevendo
tanto para as câmaras municipais para engajá-las no combate
à peste, como nos folhetos de orientação da necessidade e do
uso do medicamento. Rodolpho realiza sozinho a enorme
tarefa que caberia ao poder público e denuncia que este,
além de não assumir as suas responsabilidades, tudo fez para
sabotar e impedir a sua ação de farmacêutico, perseguindo-o
e, deliberadamente, solapando suas possibilidades financeiras
para continuar a realizar a missão que impôs a si mesmo, pois
foi demitido do Liceu do Ceará, acusado de charlatanismo e
improbidade nos negócios.
Os dilemas entre uma afiliação cientificista que o
levavam a expressar uma convicção intelectual determinista
de um atavismo de sub-raça, do qual constituria-se o povo
brasileiro, confrontavam-se constantemente com uma crença
na possibilidade de construção de uma sociedade humana mais
justa e igualitária. A sua prática talvez diga mais do homem
Rodolfo Theophilo, que a irregularidade de concepções e das
contradições dos seus escritos.
Apesar do caráter desigual dos temários e dos textos,
há algo que nos permite perceber uma unidade na obra
Scenas e Typos: em todos os textos fica evidente o homem
íntegro, defensor intransigente dos valores morais e cristãos
que professava e fazia questão de afirmar, o cidadão com um
profundo sonho de justiça social e militante atento e engajado
nas lutas do seu tempo.
A publicação de Sccenas e Typos em 1919, pelo Editor
Assis Bezerra, da Typographia Minerva, diz não somente do
pensamento de Rodolfo Theophilo. A opção da Fundação
Waldemar Alcântara de garantir a publicação em formato fac-
similar dos livros que compõem a Biblioteca Básica Cearense
tem um grande mérito, pois, com isto, preserva elementos
importantes no que se refere à possibilidade do pesquisador
ter acesso à materialidade do livro na sua forma original, hoje
um dos veios de pesquisa bastante fecundos quando se trata de
uma história social do livro e da leitura. No caso da obra Scenas
e Typos, vários destes aspectos podem interessar ao estudioso,
desde o seu formato, a ortografia vigente na época da sua
publicação, os cuidados do Editor Assis Bezerra ao agregar uma
listagem com as obras do autor, a recomposição do catálogo
de publicações da Typographia Minerva e a sua inserção
editorial em Fortaleza, enfim, elementos estes e outros que por
muito tempo foram desprezados e que hoje são considerados
importantes na contextualização de uma obra ou das diferentes
formas de trabalho que se agregam a um texto publicado. Por
este caminho, os estudiosos têm tentado superar também
uma velha querela em que conteúdo e forma exclufam-se
mutuamente.
Os que se interessam pela história social da cultura no
Ceará só têm que festejar mais essa iniciativa da Fundação
Waldemar Alcântara.
* Dra. Ivone Cordeiro Barbosa,
Professora Adjunta do Departamento de História
da Universidade Federal do Ceará.
Rodolpho beophilo
O O. OQ
Scenas é Typos
SUMMARIO
O Ceará ferreiro da maldição.
O bebedouro.
Moedeiros falsos.
Através do passado.
Aitruismo.
A imprevidencia do Cearense.
As plantas assassinas,
A troca da costella.
Porque fui industrial?
O supplicio da aranha.
O opio.
assess
CEARÁ
— FORTALEZA
Editor ASSIS BEZERRA.—Typ. Minerva
1919
DO MESMO AUTOR
mea pipe
Historia da Secca do Ceará (1877 a 1880).
Seccas do Ceará, segunda metade do Se-
culo XIX.
Á secca de 1915.
A Fome
— romance.
Os Brilhantes «
Maria Ritta «
O Paroara «
A Violação-—conto,
Violencia.
Botanica elementar.
Botanica elementar—de collaboração com o
Dr. Garcia Redondo.
Sciencios naturaes em contos.
Libertação do Ceará.
O Cundurú-—contos.
Memorias de um engrossador.
Lyra rustica—versos,
Telesias
Monographia da mucuná.
Scenas e Typos.
Variola e vaccinação em 1904.
Variola e vaccinação em 1909.
A entrar para o prelo:
A sedição do Juazeiro.
Curso elementar de Historia Natural.
Coberta de Tacos.
Occaso
— versos
Em preparação:
“À secca de 1919.
D q PRESADOS AMIGOS,
Qutonio Sado e D. Lhice Sadie.25,
| Com um affectuoso abraço do
| . Rodolpho Bheophilo
Pag.
18
20
«
70
86
Errata
Dentre os numerosos erros typographicos,
que se encontram neste livro, corrigimos aqui
alguns mais graves, a saber :
Linha
5º
3
6
7!
15º
128
30?
3
3º
o os
23º
9º
1º
142
26º
“24 e 28º
23º
3
23º
em vez de leia-se
serrarem-lhe serrar-lhe
em com
a casa á casa
idiosyncratica idiosyncrasica
instructivo instinctivo
era empregado fôra empregado
Fazem Faz
fazem faz
fará farão
anthenas antheras
pela da
amanheciam “amanhecia
tingiam “tingia
somniferus somniferum
as chama lhes chama
foliolas foliolos
Valisnerio Valisnéria
nepanthas nepenthas
colépteros coleópteros
H
Nim
Pag. Linha em vez de eia-sel
114 6: Sobre Ponde
125 24 iizeram fizeram
133 8 cabras cobaias
136 302 camisa cara
141 20% objectivado ' corporificado
Alem dos erros apontados, devem ser sup-
primidas na leitura as palavras—tanto cabedal—
a paginas 85, linha 23º
A paginas 111, linha 1º, falta a primeira pa-
lavrã do periodo, que deve ser lido assim: -
Terminados estes, a tampa, etc.
Ape»
D Ceasá ferreiro da maldição
Bella terra de Iracema, terra de areias
brancas, de mar verde esmeralda, em que,
á noite, o céo é azul como em: paragem
alguma do mundo.
Terra minha amada. como és formosa,
como és infeliz! ... *
Quando sahiste do cahos, quando te in-
dividualizaste á face do planeta, entrando
na communhão do Cosmos, os fados te
sagraram martyr, e a Natureza te deu bel-
lezas como não deu ás tuas irmãs,
Nasceste sofírendo as inclemencias de
um clima vario, predestinada ao martyrio,
ora calcinada pelo sol, ora afogada nas
aguas que cahem do céo.
Martyressão os teus filhos desde os
tempos dos caboclos nús,
Representas o papel do ferreiro da mal...
dição. o
Nasceste com a sacola do mendigo pen-
durada ao pescoço, não pela ociosidade de
teus filhos, que são fortes, sobrios, opero-
4
sos, mas pela posição que te coube na for-
mação da terra.
" Outros padecem maiores desgraças, tor-
“turas mais cruciantes, agonias mais lentas,
mortes. mais tragicas.
Os que vivem no polo, no gelo, sem
flora, entre uma fauna de feras, condem-
-nados ao frio eterno, a umi alimentação
de azeite, são muitas vezes mais desgraça-
dos do que os teus filhos.
Os esquimós têm um tormento perenne.
Têm noites interminas, insomnias de annos.
Os que habitam as regiões dos vulcões,
vivendo uma “vida de apprehensões e re-
ceios, na imminencia sempre de um cata-.
clysmo, sem uma noite de somno tranquillo,
vendo o instante de serem tragados pelos
terremotos ou carbonizados pelas lavas,
-são mais infelizes tambem. A morte destes.
é mais tragica, porem suave, porque é ins-
tantanea. Os que são enterrados vivos, es-
tes não; os minutos antes de perderem a
consciencia devem ser de uma angustia su-
prema.
A asphyxia que os mata é rapida, quasi
instantanea, a morte de teus filhos é lenta,
é a fome chronica consumindo aos pou-
"cos as reservas do organismo, depaupe-
rando-o lentamente, inanindo-o, embotando
os sentidos, pervertendo as qualidades psy-
5
chicas, até chegar a inanição,
o marasmo, à
morte! e.
Aquelles que se acabam pelos cami-
nhos, antes de chegarem ao porto de sal-
vação, são mais felizes, embora fiquem sem
cova e sem cruz, apodrecendo nas .estradas,
cevando a gula dos urubus. '
Para que vencer a estrada da fome e
cahir na estrumeira de um abarracamento
de retirantes?
..
- Cahir nessa verminá humana é atolar-
se em todos os vícios.
A inconstancia do clima fez-te madrasta
de teus proprios filhos. A tua uberdade,
as espessas camadas de humus, quaes as
dos deltas do Nilo, esterilizam-se pela falta
absoluta do orvalho do céo.
Foste condemnada
a viver de lagrimas
quando tuas irmãs vivem de risos.
Mái amantissima, com um seio farto as-
sistes de quando em quando a fome ma-
tar teus filhos. És entretanto mais feliz do
que tuas irmãs, porque tua prole é forte,
enrijada na tremenda lucta pela vida, com-
batendo as inclemencias da Natureza. A
secca uma vez por outra os exila, porem
onde chegam não se deixam morrer de
nostalgia: luctam e vencem.
Foi assim que a Amazonia foi desbra-
vada e povoada, Arrostando ali os peri..
gos de um solo pantanoso, ass intemperies
6
de um clima ingrato, o ataque dos selva-
gens e das feras, rompendo tremedaes,.
charnecas e urzaes, deixando os caminhos
eriçados de cruzes de companheiros que
ficavam mortos por toda a casta de fla-
gellos, conseguiram cultivar e civilizar
aquella grande terra.
A secca fez de teus filhos os bandei-
rantes do norte. Levaram a luz e illumi-
naram o entendimento de seus irmãos sel-
vagens. Não os fizeram felizes. A felicidade
é uma cousa toda relativa. Os nossos maio-
res indios viviam mais felizes do que nós
vivemos.
A civilização augmenta-nos os gozos a
custa de lagrimas de sangue.
A cultura do espirito não aniquilla no
homem a ferocidade das bestas feras. O
caboclo nú era mais humano do que o ho:
mem moderno: aquelle matava para comer
e este mata para destruir. Os gazes asphy-
xiantes são uma prova.
Os aeroplanos, os submarinos e outros
inventos do engenho humano são machinas
terriveis de destruição quando ao serviço
da maldade.
Os teus filhos eram selvagens, mas eram
livres. A civilização é um captiveiro. Ella
nos trouxe grandes males: molestias que
não tinhamos e vícios que não conheciamos.
Aperfeiçoou em nós os máus instinctos.
pd
!
reina
A besta humana será sempre a mesma. O
homem das cavernas é igual ao homem
dos palacios. A differença é que aquelle an-
dava nú e este anda vestido, O homem mo-
derno mata com mais arte, furta com mais
astucia e corrompe com elegancia,
A flexa é mais humana do que a guilho-
tina.
O curare não tem o cortejo deshumano
e lugubre da navalha da justiça, Mata sem os
funebres e aterradores apparatos da morte,
A -victima cahe ferida no seu sensorio.
Morre sem conhecer as horas terribilissi-
"mas do oratoriv, sem aguardar o momento
de levarem-na para o matadouro.
À humanidade será sempre uma vasa in-
fecta, Da vermineira surgem divindades.
Da podridão brotam lyrios immaculados.
E' o contraste da noite e do dia. Pasteur,
São Vicente de Paulo, Jenner e S. Francisco
de Assis vêm das trevas projectando luz !...
Cabral foi um criminoso arrancando o
Brasil do desconhecido. |
- Na communhão brasileira, tu és o fer-
reiro da maldição. Tuas irmãs contam com
a regularidade das estações, com a estabi-
lidade do clima. Se não tens certas pragas
que as perseguem, se não conheces o frio
das geadas, a chuva de graniso, que arrasa
as searas em instantes, a praga de gafa-
8
nhotos, o calor que insola, tens outros fla-
gellos. devidos á anomalia de teu clima.
A tua meteorologia é anomala, como
são anomalos os seres que crias em teu seio.
A planta da terra das seccas não tem zona
propria para nascer e viver. As familias não
escolhem terrenos, nem os individuos loga-
res. Vegetaes ha que vivem nas praias, tendo
as vagas a beijar-lhes as raizes. Individuos
semelhantes vegetam nas serras a centenas
de metros acima do nivel do mar e ainda
outros vivem no alto sertão.
O homem cearense tem a. mesma ano-
malia da planta. Materialmente é de “uma
resistencia organica assombrosa. Resiste á
tome, á sede como nenhum outro homem de
qualquer região da terra. E
- Moralmente é um ser anormal, é um
heroe. Coloniza a Amazonia e faz a aboli-
ção do elemento servil! À jangada cearense
symboliza a fraternidade humana. O janga-
deiro vem do abysmo, das luctas com o
oceano, acostumado a fitar o espaço que se
não mede, e o mar de que não vê o fim,
com alma cheia de piedade, afinada pela
melopéa nostalgica das vagas. O Dragão do
Mar fecha o porto do Ceará aos negreiros
do Sul. E” um monstro que tem garras, mas
tem um coração de santo. os
O cearense é nomade por atavismo.
Abandona a terra mãe, filhos pequenos, es-
9
posa, amigos, para acompanhar o primeiro
aventureiro que q convida a deixar o tor-
rão do berço.
Vae, cumpre o fado, e depois cortado de
saudades da terra dos verdes mares bravios,
volta. Chegando, ajoelha-se, fita o céu azul
da Terra da Luz, depois curva-se com
grande reverencia, beija as areias brancas
da praia e exclama commovido : minha terra,
como és bonita.
Tens a felicidade de ser muito amada
por teus filhos.
Elles serão os párias do Brasil emquanto
os governos quizerem. :
Não és tu que és ingrata; ingrato é o
clima que te coube na meteorologia do
mundo.
Teus filhos vivem a mourejar noite e dia
numa labuta sem treguas, cobrindote de
searas, e ás vezes antes do amadurecimento
dos fructos, vae-se o orvalho do céu, o sol
dardeja raios de fogo, as vagens e as espi-
gas inclitam-se das hastes, amarellecem e
seccam sem terem geradas as sementes. Ou-
tras vezes não é o sol que cresta as searas,
é a inundação que as mata, afogando-as. Os
rios, aquelles mesmos que o verão corta, ta-
zendo no-leito um rosario de poços, assu
10.
mtas
mem proporções de correntes caudaes, sa-
hem do leito e vão devastando o que en-
conttam nas margens.
Terra mãe, coube a teus filhos a sorte
do ferreiro da maldição, quando tem ferro
não tem carvão.
(EEN
SN Ne
O bebedonto
— nn q
Estavamos em plena secca,
'Amanhecia. Um crepusculo fulvo allu-
miava a terra com a clar idade de um incen-
dio ao longe.
“A pretidão da noite esmaecia. Já come-
çava a se individualisar o contorno da flo-
resta, a silhueta das montanhas ao longe.
— À luz foi pouco à pouco se tornando mais
“viva.
No oriente assomou o sol, sem nuvens
que lhe velassem.o disco. Parecia uma braza,
uma esphera candente, suspensa no horizonte,
visto atravez da ramaria secca das arvores.
A floresta completamente despida, núa,
sómente esqueletos negros, tendo na timbria
acceso o facho que a incendiou, era de uma
eloquencia tragica ! ...
Amanhecia, e não se ouvia o trinado de
uma ave, 0 zumbir de um insecto !
- Reinava o silencio das cousas mortas.
Como manifestação da vida percebiam-
2
se os- gemidos do gado na agonia da fome,
o crocitar dos urubús nas carniças:
Amanhecia ... a claridade mais intensa
tornava a tristeza daquelles logares. Melhor
seria que continuassem dissolvidos no borrão
da noite.
O vento de leste, o gerador da secca, á
proporção que o dia crescia, augmentava de
intensidade.
Começára. por uma aragem branda, tão
branda que não arrepiaria a plumagem de
uma ave, se é que destes domínios da mort
não tivessem emigrado para as praias os can.
tores da matta, e agora, dia alto, remoinhava
do sertão afóra, estalejando, torcendo e que-
brando a ramaria secca das arvores!
Do solo combusto e negro, levantava as
folhas em remoinho; aquelle funil de folhas
mortas ia se atufar em medas no tronco das ar-
vores. Logo que 0 dia alteou, o gado deixou as
malhadas e foi caminho do bebedouro. Lugu-
bre era aquelle cortejo de famintos. Muitas re-
zes não se puderam levantar; resupinas no solo,
ainda vivas eram devotadas pelos urubús.
A atonia da inanição e o marasmo da fome
não permittiam o movimento de um mus-
culo, a menor acção de defesa contra os
corvos.
O repasto, a entrada do banquete come-
çou pelos olhos da victima. Aquellas pupil-
las negras, que a fome havia dilatado, em
nana,
estagnação melancholica se fitavam nas figu-
ras pretas e agoureiras de seus matadores, até
que o bico adunco da rapina neilas se enter-,
rasse como a ponta de um espinho, e então
tudo escurecia, e a morte chegava produ-
zida pela cruciante dôr da punhalada.
O cortejo ia caminho da aguada. Eca
uma procissão de esqueletos. Um gado ar-
repiado, quasi sem fórma. caminhava trambs-
cando. Muitas rezes iam ficando pelo cami-
“nho; e, cahidas que fossem, iam-n'as devo-
rando ainda vivas os uubús,
Ãos uivos da ventania casava-se o croci-
tar do: corvos, em lucta por um maior pe-
daço de intestino. Quando o vencedor con-
seguia apoderar-se do quinhão disputado,
vôava de espaço a fora, com o farr apo de
tripa pendurado do bico!
.
E o céo, de puro azul desaphira, se ar-
queava indiferente a tanta míseria, esbatendo
na azulin tela o pedaço de terra condem-
nado, tio eloquentemente representado por
aquella scena macabra: corvos volteando
em Inrgas espiraes sobre as victimas da
“Tomé !
O repasto dos corvos era miseravel. A
presa, pode-se dizer, era sómente ossos, couro
e visceras mirradas.
Poucas rezes conseguiam chegar ao be-
bedouro. Ahi, desde que o sol sahiu, uma
dezena de homens combatiam contra a sec-
Ra
cura do solo querendo com os seus alviões
arrancar agua das entranhas da terra. Era
uma lucta titanica! ..
Mettidos em uma socava, no leito de um
rio, guardada por altas ribanceiras, aquelles
heroes, aquelles fortes, dignos rebentos de
uma raça privilegiada pela resistencia e pela
resignação, rasgavam a terra em demanda
d'agua para os seus gados.
E a terra ia vertendo avaramente o pre-
cioso liquido, consoante a sua formação geo-
logica em gottinhas que mal davam para hu-
medecer a superficie dos ferros que a reta-.
lhavam.
A essa luta ingente assistia o gado,
olhando das ribanceiras para a excavação. O
olhar amortecido, quasi apagado das rezes se
fitava nos trabalhadores, e estes, compade-
cidos da sorte do; animaes, com mais afan
proseguiam no serviço. o
Algumas rezes mais sedentas lambiam a
terra humida para illudir a sêde.
Era meio dia; e o sol, descendo a. pino,
numa vertical de fogo mordia em cheio o
dorso dos trabalhadores, cuja pelle aljofrada
de suor parecia envernizada.
O calor era asphyxiante no fundo da so-
cava.
A luz do sol, reflectida por aquelle solo
nú, encaúdeava.
Os lagedos incrusfados de mica, de
15
quartzo, completamente expostos, sem uma
mancha de musgo nem uma sombra de ca-
ctus, feridos pela luz, faiscavam em reverbe-
rações de cegar.
Os trabalhadores offegavam, mas não es-
moreciam. .
O at ambiente, fortemente aquecido fre-
mia em vibrações perennes. A” proporção
que a excavação descia, a humidade ia-se
acabando aos poucos.
Acabou-se a camada de areia e com ella
a esperança de agua proxima. Os ferros al-
cançaram a piçarra. Tremenda foi a desillu-
são. Era impossivel vencer aquella camada
cuja espessura não se podia avaliar.
Os trabalhadores puzeram os ferros aos
hombros e subiram.
Os olhos das rezes instinctivamente se fi-.
taram nos sertanejos. De alguns cahiram la-
grimas. Parece que comprehendiam a reti-
rada daquelles homens e a sua. sentença de
morte.
“Os matutos olhavam com grande piedad
para o gado, quando viram vir, caminho do
bebedouro, um touro de desmedida estatura,
esqueletico, trambecando.
O Faisca !! O Faisca !.. : exclamaram a
uma voz.
Aquella exclamação de espanto deante
de uma rez que só tinha ossos e pelangas era
16
“muito justa: o Faisca havia sido o touro mais
famoso daquelles sertões.
Agora, vencido, cambaleando sem forças
para dar um chouto, procurava o bebedouro
rendido pela sede. Um dos homens que ali :
estavam, de quasi cincoenta annos, muito vi-
goroso ainda, espadaúdo, de bôa muscula-
tura, olhava com grande interesse para o ani-
mal que se approximava.
—E' o Faísca... Só o reconheço pela
armação, pelo tamanho, pelo ferro e pelo sig-
nal da testa, disse o matuto aos companhei-
ros. |
O touro approximou-se da ribanceira e
parou.
O sertanejo chegou-se a elle e, com
grânde reverencia e muita piedade, acari-
nhou-o alisando-lhe o pello-arrepiado repeti-
das vezes. À rez era uma riina.
Às cristas dos quadris haviam furado o
couro, e das feridas marejava uma salmoura
fetida !...
O touro parecia sentir o afago do serta-
nejo. Voltou a cabeça e fitou no matuto seu
olhar morto, melancholico, quasi apagado.
O vaqueiro apiedou-se mais do animal.
Aquelles olhos sem luz, de uma ternura do-
entia, quem diria fossem os mesmos olhos de
outr'ora — vivos, faiscantes, cujo iris de gran”
des pupillas negras estava sempre afogado
M
numa esclerotica de sangue e agora se afoga-
vam núma esclerotica moribunda!.
O miseravel estado da rez trouxe á mente
do sertanejo a lembrança da ultima vez que
a vira.
Que saudades tinha daquelle tempo!
Evocavã o passado, um passado apenas de:
cinco annos, e as recordações lhe acudiam
á mente o desalentando. Comparava aquell=s
"mesmos lugares, cheios de vida outr'ora e
hoje reduzidos, pela secca, a uma extensa
queimada com as tristezas de um vasto ce-
miterio! Da floresta opulentamente enfo-
lhada, rica de seiva e de perfumes, nem
mais um gommo a expandir-se em flores;
restava sómente o esqueleto, a ramaria
morta a bracejar no espaço, numa blasphe-
mia muda fitando o sol,o seu grande as-
sassino sem uma folha que abrigasse um in-
secto !
Era em agosto, e aterra regorgitava d'agua.
Os açudes, as lagoas, as ipueiras sangravam
desde março. Os rios corriam ainda de nado
de ribanceira a ribanceira. Por toda a parte
risos, cantos e flores. Via-se a natureza na
alacridade que lhe dera um inverno farto!...
Era assim o sertão na derradeira tenta-
tiva que fizeram para capturar o Faisca. |
Vinte vaqueiros dos mais afamados do
logar tendo descoberto o bebedouro do no-
vilho, foram esperal-o.
18
Todos prelibavam o gozo de vel-o preso,
com surrupeia, caminhando para o curral
como um boi manso.
Ahi haviam de, por suprema affronta,
castral-o e serrarem-lhe as pontas.
À vaqueirama tinha por certa a prisão
do Faisca.
Vestidos de couros novos, montados em
cavallos amesti ados, seguidos por uma matilha
de mais de vinte cães de gado, amanheceram
no bebedouro. Ahi estiveram até anoitecer e
o Faisca não appareceu.
- No dia seguinte, ao quebrar da barra, já
estava a vagueirama a postos.
Outro dia perdido : o novilho não veio
á aguada.
Voltaram ao bebedouro na madrugada
do dia seguinte.
Sertam dez horas da manhã quando as-
somou o Faísca no extremo da varzea onde
costumava beber.
Os vaqueiros haviam tomado posição.
O novilho entrou na varzea, a passo,
meio. sarapantado, resfclegando a miudo.
Queria conhecer pelo faro se havia gente
na matta. José Bernardo era o vaqueiro mais
famanaz daquelia ribeira e como tal che-
fiava a vaqueirama. Um dos vaqueiros mor-
didos de impaciencia não se conteve. An-
tes do touro chegar á fonte e botar a boca
nagua gritou:
19
"—Olhe o boi, seu Zé Bernardo. O touro
assustou-se e desapareceu em procura da
catinga. Os vaqueiros acompanharam- no.
Tanto corria o novilho como a vagitei-
rama.
À sorte estava lançada.
Se o Faisca conseguisse sahir da Var-
zea e entrar na matta, a partida estava per-
dida. Suppuzeram derribal-o antes que al-
cançasse a matta, mas enganaram-se: o bi-
cho enterrou se de matto a dentro e com elle
enrabichada a vaqueirama. Segundos de-
pois o silencio daquelles ermos era que-
brado por um ruido surdo semelhante ao
rolar de trovões ao longe. O estalejar dos
pãos que o touro ia quebrando contra o
peito, o ladrar dos cães, o grito dos va-
queiros, o tropel das cavalgaduras, tudo'se
fundia no som cavo e longo e o echo re-
petia ao longe na crista dos outeiros ergui-
«dos na planície. O ruido foi esmorecerido aos
poucos até que se acabou. Uma hora de-
pois voltavam os vaqueiros sem o Faisca,
todos arranhados, tendo um delles um braço
quebrado. Tinham botado o touro no mato.
Esta ultima reminiscencia da vida do touro
fez crescer, mais ainda a piedade do
matuto. Era um forte que a fome havia
vencido. Sorte egual estava, talvez, reser-
vada para elles, que não eram bichos.
. 20
O touro conservava fito o olhar no
vaqueiro, como se estivesse lendo os pensa-
mentos deste. Olhava-o agora em olhos
cheios d'agua. O matuto, em lagrimas, tam-
bem se despediu do vencido e com os com-
panheiros voltou a casa.
No dia seguinte voltariam a procurar
agua, cavando outro bebedouro.
E segErgo E
Moedeiros falsos
eme Zs
Um destes dias a chuva não me deixou
sahir de casa, pela manhã, como costumo.
À temperatura estava agradabilissima,
23 centigrados.
Recolhi-me ao gabineie e ahi scismava
nas cousas da vida, sentindo uma volupia,
que só a alma do cearense é capaz de sentir,
ouvindo o tamborilar da chuva no telhado.
À agua ia cahindo das nuvens, ora numa
garôa fina e meúda, ora em bategas fortes
que fustigavam ós vidros das janellas.
Estas manifestações de inverno o Ceará
devia recebel-as com festas, porque festejaria
a sua paz, um anno de bonança.
Esquecemos que estamos sempre no in-
terrégno de uma secca que vai e outra que
vem, e que a secca é a nossa suprema an-
gustia.
Esquecemos depressa o flagello.
Em 1915 tivemos um repiquete de secca
que matou milhares de rezes, mais animaes
22
do gtie homens. Bastou o inverno de 1916
para apagar em nós aquellas tristes e do-
lorosas lembranças.
Não festejamos a chegada do inverno,
não lhe damos as bôas-vindas, com cantos e
flores, porque pensamos que nunca mais o
homem e os seus rebanhos morrerão de
fome nos campos e nas estradas, que a in-
clemencia da natureza jamais fará victimas.
Somos indiferentes á vinda do fertili-
zador da terra, e no entanto por qualquer
futilidade engalana- -se a nossa capital, feste-
jando uma data sem importancia.
Em 1915, quando Fortaleza tinha alguns
mil retirantes e os bandos precatorios per-
corriam as capitaes dos outros Estados, pe-
dindo esmolas. para nos matar a fome, nós
festejavamos a chegada de um vaso da nossa
marinha de guerra, offereciamos á sua digna
officialidade bailes e banquetes a «cham-
pagne».
A chuva continuava, e eu, para matar O
tempo, procurei um livro.
Fui á estante e o primeiro em que puz
a mão foi- <O Pão» —da gloriosa
— «Pada-
ria Espiritual».
Feliz coincidencia! Tinha com que me
deleitar, ia remoçar vinte-annos, viver das
gratas recordações do passado, em que meu
espirito de moço tinha illusões e era crente.
2
Aquellas folhas estavam impregnadas do
perfume suave das flores da mocidade.
“Nellas eu acharia um lenitivo aos des-
enganos da velhice, ás saudades dos tem-
pos idos, das illusões que ficariam perdi-
das pelos ínvios caminhos da existencia,
se
avivariam, mas me confortando, como bem
disse o Garrett.
Abri o livro e me vi cercado dos meus
bons e queridos companheiros da Padaria,
dos quaes a morte levou a maioria ainda
no alvorecer da vida. o
“ Transportei-me em espirito áquelles tem-
pos e fui cavando o passado. o
Que agradaveis reminiscencias! As ses-.
sões aos sabbados, aquelles inesqueciveis se-
rões litterarios, eu os estava assistindo; as
figuras que eu via espiritualmente se cor-
porizavam e eu as estava vendo como
naquella epoca, A illusão era perfeita! Que
saudade me pungia todo! ... Todos el-
les ao redor de mim, como se a mór parte
delles pudesse se erguer do sepulchro e
para mim vir!
Via o Almeida Braga em plena virili-
dade, vigoroso e forte, com a sua logica
de ferro e fina «verve», a sustentar para-
doxos; o Sabino Baptista, alma toda affec-
tiva, bom poeta, a applaudir as anecdotas
de José Carvalho, outro bello talento, tendo
em grande conta os seus ascendentes, entte os
28
quaes figura D. Barbara, com as suas garga-
lhadas homericas; o Antonio Bezerra, de to-
dos nós o mais velho, uma cabeça de 50 an-
nos com um cerebro de creança, poeta e his-
toriador, a fazer espirito relatando episodios
comicos de sua mocidade ou recitando tre-
chos de seu Zé Guedes ou do paletot de
crescimento; o Antonio Salles, magro, mo-
reno e pallido de dispepsia, com seu olhar
scintillante, trincando um charuto a recitar
bellissimos versos que nos enchiam de en-
thusiasmo; o Arthur Theophilo, muito fran-
zino, um problema de homem, mas espirito
gigante, a ler em voz fraca e rouca o seu
conto
— «O caso do Sargento» — no qual não
sei o que era mais admiravel, a forma ou
a concepção; o José Carlos Junior, nosso
padeiro-mór, pequeno, no qual a natureza |
descurou do physico, mas em compensação |
se esmerou no espirito, a ler com dicção
clara as bellas paginas de seu romance em
preparação, — «Os canhões amarellos»; o An-
tonio de Castro, muito forte e vigoroso, aca-
nhado como um collegial a recitar lindas
estrophes de suas Marinhas; o Ulysses Be-
serra, um magricela, com o qual a natureza
foi ingrata quando lhe armou o arcabouço,
mas penitenciou-se de tal injustiça, dando-
lhe um bom intellecto, a recitar as suas
«Paginas Soltas»; o Roberto de Alencar,
de nós o mais moço, 6 nosso Benjamin, a
25.
ler com grande timidez as suas «Rosas» ;
o Lopes Filho, moreno e magro, um bom
poeta, a recitar com emphase os seus ver-
sos <O cahir das Folhas»; Waldemiro Ca-
valcante, um grande espirito, republicano
historico, que morreu desilludido dos ho-
mens, da Republica, e que ajudou a fazel-a
e que acabou martyrizado por uma molestia
cruel, porém com uma fortaleza de animo
“fóra do commum e uma resignação evange-
lica, com sua physionomia sympathica e
attrahente, rosto muito branco e barba longa
à Nazareno, fazendo contraste com a es-
pessa cabelleira negra, a ler bonitos tre-
chos de prosa e apurado estylo; o José
Nava, muito alto e magro, de rosto com-
prido, muito novo ainda, imberbe, desem-
baraçado, espirito folgazão, a ler os seus
ensaios literarios; o Cabral de Alencar, Ca-
bralzinho, como nós lhe chamavamos, por
ser rachítico, um emulo do Arthur Theo-
philo no corpo e no espirito,a estrear com
um bellissimo conto tão empolgante que o
Almeida Braga, finda a leitura, que foi ou-
vida em absoluto sileúcio, perguntou-lhe:
menino, isso foi escripto por você ? Henri-
que Jorge, outro magricela, pequeno, hoje
um reputado maestro, a executar no violino
trechos classicos, cujas harmonias nos ex-
tasiavam; Xavier de Castro, a recitar os seus
bellissimos chromos, quadros do viver do
26
povo, verdadeiras aguarellas que muito nos
deleitavam; o Eduardo Saboya, moreno e
folgazão, de pequena estatura, mas a reve-
lação de um grande espirito, embora ado-
lescente, recitando alguns capítulos do seu
conto de estréa «Contos do Ceará» ; Luiz
Sá, um adoradôr de Miguel Angelo, muito
desconfiado, sempre meio escondido, com
grande talento, mas pensando que as nos-
sas pennas valiam mais do que o seu pincel,
a nos dar bellos frescos, paisagens da nossa
natureza; Francisco do Valle, muito vigo-
roso, com muita saude, a recitar um soneto
fazendo o perfil do Marcos Serrano.
E essa pleiade de intellectuaes, os nossos
futuros scientistas e literatos, da qual dois
terços são mortos ia desfilando pelo meu
espirito e fazendo que todo vibrasse de
uma saudade que me pangia, que me tras-
passava, saudade da minha mocidade, sau-
dades daquelles amigos.
A reorganização da Padaria deu-se em
28 de Setembro de 1894, como se verá da
acta da installação a seguir :
Forno da Padaria Espiritual, na Forta-
leza, 28 de Setembro de 1894.
Presentes os padeiros Moacyr Jurema,
Frivolino Catavenio, Satyro Alegrete, Aure-
lio Sanhassú, Corregio del Sarto e Anatolio
Gerval. Moacyr Jurema dirigiu interina-
mente a fornada,
21
No intuito de preencher diversas vagas
occorridas no seio da Padaria foram convi-
dados dez rapazes de letras os quaes se acha-
vam presentes tomando como nomes de
guerra os que aqui vão diante dos outros
que lhes dá o vulgo a saber: José Carlos Ju-
-nior — Frei Bernardo ; Rodolpho Theophilo —
Marcos Serrano ; Almeida Braga — Paulo Gi-
ordano; Valdemiro Cavalcante
— Ivan d'Asof;
Antonio Bezerra
—- André Carnauba; José
Carvalho
— Cariry Brauna; Xavier de Cas-
tro -Bento Pesqueiro; Eduardo Saboya
—
Braz Tubiba; José Nava -Gil Navarra e
Roberto de Alencar
— Benjamin Cajuhy.
Moacyr Jurema fez a leitura do interes-
sante Retrospecto da vida da Padaria a con-
tar de 30 de Maio de 1892 da sua fundação.
Como esse trabalho não estivesse completo
á falta de tempo por isso ficou a conclusão
para ser lida na proxima sessão de sexta-
feira.
Foi unanimemente approvado o decreto
de expulsão fulminado ha tempos contra o
ex-padeiro Polycarpo Estouro, sujeito que,
com uma. impudencia abaixo de qualquer
qualificativo insolente, juntou-se á burguezia
para hostilizar-nos.
Foi igualmente votada a exclusão de Lu -
cio Jaguar e Tullio Guanabara que no Rio
de Janeiro onde residem actualmente, falta
-
28
ed
açao
ram de uma maneira lastimavel á confiança
que nelles depositava a Padaria.
Resolveu-se não tomar por hora conhe-
cimento da renuncia que fez Venceslau Tu-
piniquim do cargo de Padeiro-mór, encar-
regando-se Paolo Giordano de entender-se
com elle sobre o caso, o que determinou o
adiamento da eleição que se pretendia fa-
zer para esse cargo.
Decidiu-se que cada padeiro apresente
em todas as sessões um trabalho qualquer
desde o poema até a anecdota.
Accordou-se que o «Retrospecto» apre-
sentado por Moacyr Jurema seja impresso
em folheto para ser distribuido por esse
mundo de Deus.
E finalmente combinou-se que as ses-
sões da Padaria serão d'ora em vante se-
manaes, nas sextas-feiras, na casa do padeiro
que para isso for previamente intimado.
Terminou a fornada pela leitura de um
curioso trabalho sobre Occultismo e Ex-
trambotismo que provocou um forte ataque
de nervos em André Carnahúba e cyclopi-
cas gargalhadas ao Paolo Giordano.
A's 91/4, depois do café, suspendeu-se
a tornada, designando-se para a de sexta-
feira proxima a casa de Marcos Serrano,
onde o café será substituido por vinho de
cajú.
29
Se alguma coisa mais se passou é recla-
marem, porque eu só me lembro disto.
Moacyr Jurema, Padeiro-mór interino;
Frivolino Catavento, 1.º Forneiro interino;
Satyro Alegrete, Bento Pesqueiro, Corregio
del Sartó, Anatolio Gerval, Braz Tubiba,
Gil Navarra, Benjamin Cajuhy, Marcos Ser-
rano, Bruno Jacy.
Em tempo: Frei Bernardo pediu e lhe
foi concedido que em vez deste nome de
guerra usasse do de
—- Bruno Jacy
— do qual
se servirá sempre que estiver em suas fun-
cções. 28—- 10 — 1894, — Moacyr Jurema.
Depois daquellas reminiscencias, come-
cei a folhear «O Pão», Abri o primeiro
numero, a chronica da semana, assignada
por Lopo de Mendoza, ou seja Arthur
Theophilo.
Pagina escripta em portuguez de lei
cheia de poesia e de verdades.
Era a primeira vez que <O Pão» circulava,
depois de um longo interregno.
A antíga Padaria, composta quasi na sua
totalidade de bohemios, mas que reunia em
st os maiores talentos da epoca, Antonio Sal-
les, Adolpho Caminha, Lívio Barreto, Alvaro
Martins e outros, havia desapparecido.
Para se fazer uma idéa da velha Pada-
ria, cujos estatutos foram approvados em
sessão de Maio de 1892, vou transcrever al-
guns dos seus artigos.
,
30
Art. XIX. E” prohibido fazer qualquer
referencia á rosa de Malherbe e escrever
nas folhas perfumadas de albuns.
Art. XXVI. São considerados desde já
inimigos naturaes da Padaria os padres, os
alfaiates e a polícia. Nenhum padeiro deve
perder occasião de patentear seu desagrado
a éssa gente,
“Art. XXXVIII. As mulheres como entes
frageis que são merecerão todo nosso apoio,
exceptuadas as fumistas, as freiras e as pro-
fessoras ignorantes.
XXVIII. Será punido com expulsão im-
mediata o Padeiro que recitar ao piano.
XLV. O Padeiro que por infelicidade
tiver um visinho que aprenda clarinete,
piston ou qualquer outro instrumento irri-
tante, dará parte disto á Padaria, que traba-
lhará para dar termo a semelhante supplicio.
A acta da installação da antiga «Padaria
Espiritual» é concebida nestes termos:
Forno da Padaria Espiritual, 30 de Maio
de 1802.
1.2 fornada.
— Direcção interina do 1.º
forneiro Moacyr Jurema, por se achar au-
sente o Padeiro-mór, Venceslau Tupiniquim:
Presentes os Padeiros Moacyr Jurema,
Lucio Jaguar, Frivolino Catavento, Alcino
Bandolim, Miguel Lynce, Felix Guanabarino,
Polycarpo Estouro, Lucas Bizarro, Ignacio
Mongubeira, Anatolio Gerval, Salasot Mi-
31
rim, Corregio del Sarto, Tullio Guanabara,
José Marbry, Silvino Batalha, Paulo Kanda-
laskaia. Compareceram muitos cidadãos igna-
ros de mais ou menos importancia e algumas
donzellas.
A's 71/2 da noite começou a Fornada
pela Leitura do Programma de installação
feita pelo Gaveta, que exerceu interinamente
as funcções de 1.º forneito.
Moacyr Jurema leu a carta dirigida a
Ramalho Ortigão e Felix Guanabarino a di-
rigida a Guerra Junqueiro.
Foram lidas as seguintes producções :
«Cuidado ...», soneto de Moacyr Jurema ;
«Alfredo Peixoto», quadras de Polycarpo
Estouro; «Pobre», soneto de Lucas Bizarro;
«Recordações», soneto de Tullio; «Padaria
do Amôr», poesia de Anatolio Gerval.
Em seguida,
foram executadas as produc-
ções musicaes
- «Pão Duro», valsa de Sa-
lasot Mirim, e «Padaria Espiritual», polka
do flautista Nascimento.
O edificio da Padaria achava-se emban-
deirado e adornado de iestões de flores na-
turaes e retratos de celebridades artísticas.
Tocava nos intervallos a banda de musica
do Batalhão de Segurança do Ceará. Aca-
bou-se a fornada ás 8 1/2 da noite. Depois
de retirarem-se os cidadãos ignaros, serviu-
se cerveja aos Padeiros que fizeram espirito
até 10 da noite.
32
Todos sahiram então á rua acompanha-
dos de violinos, flauta e violão, e dirigiram- .
se em serenata ao Café Tristão, onde toma-
ram café. Percorreram diversas ruas e che-
garam afinal á Avenida Ferreira, onde cada
qual tomou seu rumo. E foi assim que se rea-
lizou a primeira fornada da Padaria Espi-
ritual.
Eu, Frivolino Catavento, 1.º forneiro in-
terino, que o digo, é porque o vi.
Venceslau Tupiniquim, Jovino Guedes;
Moacyr Jurema, Antonio Salles; Frivolino
Catavento, Ulysses Bezerra; Alcino Bando-
lim, Carlos Victor; Anatolio Gerval, Lopes
Filho; Paulo Kandalaskaia, J. Victoriano;
Tullio Guanabara, Themistocles Machado;
Lucas Bizarro, Livio Barreto; Corregio del
Sarto, Luiz Sá; Lucio Jaguar, Tiburcio de
Freitas; Silvino Batalha, J. Moura Caval-
cante; Felix Guanabarino, Adolpho Cami-
nha: Salasot Mirim, Henrique Jorge; Igna-
cio Mongubeira, Gastão de Castro; José
Marbry, Raymundo Theophilo Moura; Mi-
guel Lynce, J. dos Santos.
Essa aggremiação de bohemios deu
grande incremento ás letras patrias, tornan-
do-se notavel e conhecida em todo o Paiz.
Durou pouco. Dissolveu-se por terem-se mu-
dado de Fortaleza alguns e outros deste
mundo.
Os que aqui ficaram, em numero de 6
33
mais ou menos, reorganizaram a Padaria,
dando-lhe um tom mais sério.
Foi eleito Padeiro-mór José Carlos Ju-
nior, que morria tempo depois e foi por mim
substituido,
À segunda phase da Padaria Espiritual
foi um successo, o que attestam o jornal «O
Pão» e uma duzia de livros publicados em
prosa e verso.
Continuando a leitura da chronica de
Lopo de Mendoza, encontrei estes periodos :
«Não ha póvo que tenha como o Brasileiro
menor noção de obrigações civicas Não
ha Brasileiro que não lave um sello ser-
vido para utilizal-o de novo, ou que não dê
uma risada gostosa ao commetter uma tran-
sação qualquer lesiva da Fazenda Nacio-
nal. E isto sem a menor cerimonia, sem
escrupulos, «honestissimamente».
Estes conceitos, estas verdades inconcus-
sas que naquelle tempo subscrevi e hoje, com
mais de vinte annos de convivencia com os
homens, mais conhecedor de suas miserias,
de suas torpezas, subscreveria com mais con-
sciencia ainda, foram recebidas por alguns
burguezes em Fortaleza na ponta da espada.
Julgaram-se offendidos e devolveramo
jornal, escrevendo nelle palavras descortezes
e até ínsultos. Guardo essas reliquias, essas
velharias ao lado de outras, não menos ca-
ras, porém noutro sentido, como «O Tempo»,
34
pasquim que aqui se editou á custa dos co-
fres publicos no tempo dos Acciolys, que
eram seus proprietarios.
Este pasquim já consolou a um amigo
meu, o notavel engenheiro Arrojado Lisbôa,
que aqui foi insultado em boletim profusa-
mente distribuido.
Mostrando-me elle o pasquim, disse-lhe
:
peior fizeram commigo e mostrei-lhe a col-
lecção d'<«O Tempo» e nella um romance
pornographico, entrando na vida do meu
muito presado amigo, dr. Waldemiro Ca-
valcanti e por mim assignado.
A” vista disso, o dr. Arrojado consolou-se.
Não conservando na memoria o nome
dos que deyolveram «O Pão» e curioso de
relembral-os, fui ao limbo e os arranquei de
lá, amarellentos, empoeirados, cheios de bolor.
Que decepção não foi a minha, quando
encontrei. entre aquellas figuras, tidas, há
vinte annos, como honradas, e tão puras, tão
susceptiveis que se melindraram com os con-
ceitos do Arthur, três passadores de moedas
falsas !
O destino tem dessas ironias e o tempo
nos reserva essas surpresas.
Faço ponto porque estou com a tenta-
ção de escrever o nome dos três patifes que
passam por honrados senhores.
Entre elles ha .
Através do passado
— cão e
Eu. ouvia missa dominical na igreja do
Rosariô, em que me baptisaram, havia mais
de meio seculo, Este pequeno templo, antes
de edificada a Sé, servia de matriz.
Frequentavam-n'o então o governador
da capitania e a élite da cidade, composta
de portuguezes.
Era tambem a igreja dos escravos, mas
isto uma vez no anno. Tinha patrimonio e
irmandade. Celebrava-se nella a festa da
padroeira, com missa cantada e assistencia
real. Ainda alcancei esse tempo, que já vai
longe. Era o dia dos captivos o dia 6 de
Janeiro, dia de Reis.
Em seu dia, esses desgraçados eram li-
vres, tanto que tinham patria como os seus
imperantes.
A” hora da missa, seguiam para a igreja
o rei, a rainha e a córte. O rei era um
preto já idoso, de manto, sceptro e corda.
À rainha, uma escrava, meio velha, acom-
36
panhada de suas damas de honor. Na Capel-
la-mór estava armado o throno, em que se
deviam sentar suas majestádes.
Logo que chegava o rei com a sua côr-
te, entrava a missa, que era cantada, com
repiques de sinos e foguetes. O casal de es-
cravos sentava-se no throno com ares de
quem estava convencido da realidade da
scena, representada tambem pelos reis dos
brancos tão ou mais ridículos de sceptro e
“corôa do que elle. Acabada a missa, sahia
o cortejo real de cidade a fóra até o pala-
cio, em que passava o resto do dia a co-
mer, a beber, a dansar, festejando as pou-
cas horas de liberdade que todos os annos
lhe concediam os senhores da terra, que
primeiro libertou os seus escravos.
Fortaleza nesse tempo era uma aldeia,
as casas mal acabadas, baixas, as ruas tor-
tas, como as que ainda hoje existem na Tra-
vessa do Rosario, que vai sahir na Praça
dos Voluntarios. O cunho de belleza que
tem hoje a cidade deu-lh'o o boticario Fer-
reira, quando Presidente da Camara Mu-
nicipal. '
Fortaleza era edificada em um areal sá-
faro, como se vê ainda hoje nos suburbios,
o que muito difficultava o transito.
As senhoras de distincção iam á missa
em palanquim, Entre estas estava minha avó
paterna, para quem o marido, o portuguez
BL
Manoel José Theophilo, negociante abasta-
do, mandára vir da terra um muito lindo.
“Comprára uma parelha de escravos, pa-
recidos, como se fossem cavallos de sége.
Aos domingos,
lá iam aquelles desgraçados,
atrelados, carregando a senhora para a igreja.
Quando minha avó me contava esta historia,
eu, que era-tão abolicionista quanto ella es-
cravagista, condemnava aquella barbarida-
de; a velhinha ria-se e dizia-me que o es-
cravq, vinha do começo do mundo.
Um domingo, eu ouvia missa na igreja
do Rosario, na Capella-mór, e, não sei por-
que, me veio á lembrança um caso ali suc-
cedido com meu bisavô, o Sr. Manoel Gas-
par de Oliveira, licenciado em medicina e
cirurgia pelo physico-mór do Reino, no
tempo que o melhor tratado de therapeutica
era o de João Curvo Sem Medo.
Eu via a figura do licenciado, como a
pintava minha avó, sua filha, no dia do acon-
tecimento que tanto influiu no destino delle.
O Sr. Manoel Gaspar cra um homem
alto, magro, de pernas finas e um pouco -
tortas. la sempre á missa trajando á côrte.
Vestia casaca e calções curtos de velludo,
que mais salientavam a tortura das pernas
mettidas em meias de sêda côr de carne, sa-
patos de verniz de entrada baixa, com fivel-
las de ouro, cabelleira empoada, com ra-
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bicho; tal era a toilette e a figura do meu
avoengo nos dias de missa !
Era filho do agricultor portuguez Ânto-
nio Gaspar de Oliveira, dono do sítio Pre-
cabura e outros, em Aquiraz.
Do consorcio deste portuguez com uma
senhora da celebre familia Feitosa sahiram
alguns filhos, entre estes o meu bisavô, Ma-
noel Gaspar de Oliveira, D. Luiza Gaspar
de Oliveira Bevilaqua, avó de Clovis Be-
vilaqua, e Maria Gaspar de Oliveira, que
se casou com o portuguez Manoel Rodri-
gues Samico. Uma das filhas deste casal,
D. Izabel Samico, casou com o portuguez
Manoel José Theophilo, e deste consorcio
sahiram dez filhos, entre os quaes onotavel
jurista, Dr. Manoel Theophilo Gaspar de
Oliveira, o Dr. Marcos José Theophilo, me-
dico, meu pai, e D. Maria do Carmo Theo-
philo e Silva, mãe do poeta Juvenal Galeno.
No mesmo logar, em que eu ouvia mis-
sa, em um domingo tambem, mas no amno
de 1821, o Sr. Manoel Gaspar de Oliveira,
vestido á côrte, soffreu uma descortezia a
que o seu genio, altivo em demasia, deu fó-
ros de affronta,
Não havia entrado a missa, e já se acha-
va meu bisavô perfilado na Capella-mór,
todo reverente com os olhos fitos no Cruci-
ficado, esperando que começasse o sacrifício.
Estava naquella adoração muda sua alma
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de crente, quando o despertou, batendo-lhe
no hombro, um soldado da guarda do go-
vernador Robim, para dizer-lhe estas pala-
vras que quasi o fulminaram:
— Aqui só quem ouve missa é o Sr. Go-
vernador e sua real familia.
Manoel Gaspar ouviu a intimação e o
seu espirito vibrou num arrepio de revolta.
A imagem da Patria desenhou-se em sua
mente, e elle sentiu a posição humilhante
della, serva de um paiz pequeno, de homens
atrevidos e ambiciosos que levavam o seu
poderio até dentro dos templos ! Quiz gritar
ali mesmo, perante o Deus que irmanou os
homens, a independencia de sua patria, que-
brar os ferros do grilhão portuguez.
Humilhado sahiu da igreja rumo de
casa. la desesperado. Aquelle grande espi-
rito não se conformava com o captiveiro.
Chegando ao lar, disse á mulher numa
voz cujo timbre exprimia a tempestade que
lhe ia n'alma:
— Senhora D. Joanna, arrume as malas
que em terra em que marinheiro manda até
dentro da igreja, eu não moro!
Aquellas palavras. eram uma sentença, um
facto consumado.
Entrar a mulher em considerações, não
demoveria o marido do seu proposito. Nun-
ca houve na vida quem fizessse o Sr. Manoel
Gaspar mudar de opinião. Quem seria capaz
40
aaa
de fazel-o torcer o rumo, uma vez conven-
cido de que ia direito?
A Senhora D. Joanna valeu-se das la-
grimas, porem, inutilmente.
Tempos depois, meu bisavô, com mu-
lher e filhos, formando grande caravana,
deixava Fortaleza em rumo do sertão.
Quando perguntavam qual era o seu
destino, respondia : -uma terra que seja dos
brasileiros.
Em Baturité fez estação, obrigado pelo
adeantado estado de gravidez da mulher,
até que esta teve creança e acabou o res-
guardo.
Restabelecida a Senhora D. Joanna, pro-
seguiram a viagem, estacionando em Qui-
xadá. Ahi, encontrando meu bisavô muitos
doentes, demorou-se no serviço de sua pro-
fissão um anho, tempo em que lhe nasceu
mais um filho.
Logo que minha bisavó poude fazer via-
gem, puzeram-se a caminho.
A travessia agora era longa, cem leguas
talvez, no rigor do inverno, com crean-
cinhas de peito.
Só o animo varoni! do Sr. Manoel Gas-
par e o seu espirito forte venceriam as
agruras de tão penoso caminho.
Diversas vezes escaparam da morte na
travessia dos rios, que o inverno fazia cau-
daes.
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No rio Jaguaribe, quasi morreram afo-
gados em consequencia do viramerto de
uma balsa. Si não fosse meu bisavô um
eximio nadador, e não possuisse uma pre-
sença de espirito fóra do commum, ter-se-
ia ali acabado com todos os seus.
Depois dos dias penosissimos daquelia
ingrata jornada, chegou o aventureiro ao
Tauhá, terra de sua mãe.
Os seus avós os receberam e hospeda-
ram com carinho, completamente esqueci-
dos da offensa que lhes fizéra a filha fu-
gindo para casar.
Não se lembravam mais da scena pas-
sada, havia quarenta annos, quando deram
por falta de sua primogenita, uma linda ra-
pariga de vinte annos, a mais bella flôr -da-
quella ribeira.
Toda a familia Feitosa poz-se em cam-
po, á pista.
Quem se atreveria a offender áquelles
senhores feudaes no domírio absoluto do
bacamarte, que não pagasse com a vida!... Foi
decretada a sentença de morte do atrevido
que teve a ousadia de raptar uma Feitosa,
fosse um principe, para com ella casar-se.
Reunida a familia em conselho, foi ac-
cordado que o irmão mais velho da rapta-
da partisse immediatamente com quatro pei-
tos-largos, dos mais perversos e valen-
tes, no encalço dos fugitivos. Encontrados
que fossem, seria morto o raptor e deixado
aos urubús, sem cova e sem cruz, e a rapta-
da, trazida á casa paterna, para, sé conser-
vasse a innocencia, ser mettida em custodia
o resto da vida; impura, morta á faca.
Ouvida a sentença, o seu executor sahiu
ao pateo da fazenda e disparou um baca-
marte bocca de sino. Mal o signal foi ou-
vido, correram á casa grande escravos e ag-:
gregados. Dadas as ordens, foram cumpri- .
das immediatamente. Prômpta a matalotagem
e recolhida aos surrões, sellados os cavallos,
que fogosos ginêteavam, partiu a expedição, |
em numero de cinco cavalleiros. lam vestidos
de couro, de faca á cinta e bacamarte a tiracol-
lo. Qual seria o itinerario, se ignoravam o ru-
mo que os fugitivos seguiam? Havia des-
confiança de que fosse raptor Antonio Gas-
par de Oliveira, que estava no lugar mas-
cateando e desapparecera no dia em que a
moça fugiu. Rastejaram as estradas que de-
sembocavam na villa e encontraram em uma
dellas rasto de animaes, que não eram dali.
Os rastejadores affirmavam que os fugitivos
iam rumo das praias e nesse rumo seguiram
os perseguidores.
À travessia era longa, cem leguas talvez,
por invios caminhos, rompendo ás vezes cer-
rados de espinhos, de cipós e de malicias,
e ainda em tempo de rigorosa invernia, pi-
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sando um chão, que se afundava de baixo
dos pés dos cavallos.
No primeiro dia, correram a bom cor-
rer na ancia de encontrar o par. No segun-
do dia, os cavallos começaram a fraquear.
Feitosa, conhecendo que naquella andadura
em breve ficariam a pé, que os cavallos -
estavam poltrões, diminuiu a marcha.
Os noivos iam á grande distancia. A
certeza de serem perseguidos, as peripecias
encontradas a cada instante nos estreitos ca-
minhos que serpeavam á sombra de uma
floresta virgem e secular, o receio do ata-
que de animaes ferozes, habitantes daquelles
ermos, não arrefeciam os desejos, não im-
pediam o idyllio.
No fim de algumas horas de viagem,
já se pertenciam, gozando as delícias da-
quele amor primeiro, mergulhados no sií-
lencio da natureza virgem.
Quantas vezes, dormindo no melhor dos
conchegos, no-meio da matta, em noite en-
luarada é serena, defendidos “das feras por
uma fogueira valente, accesa na visinhança
do rancho, despertaram assustados com a
gargalhada hysterica, lugubre da mãe da
lua, pousada no cimo da mais elevada oi-
ticica
!
A serie de interjeições, ah... ah... ah...
modulada em larynge de aço e sacudida
naquella solidão, ia ondulando pelo espaço,
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repetindo-se
nos outeiros, até de todo per-
der-se nus confins da matta,
A viagem ia-se fazendo entre beijos e
transes.
Um dia, o idyllio esteve quasi acabando
em tragedia. Foi á margem do Jaguaribe.
O rio estava pelos mattos. A correnteza das
aguas era tal que não respeitava vetustos
troncos de arvores colossaes, No meio do|
rio desciam os destroços e as victimas da
inundação. Balseiros boiavam, fluctuavam
-á mercê da corrente. Cadaveres de animaes
e tambem de creaturas humanas passavam
boiando. Para dar a nota comica do qua-
dro, os restos de uma casa arrancada pela
cheia, desciam, e sobre a pequena ilha de
garranchos cantava um papagaio uma chu-
la que lhe haviam ensinado.
O momento era critico. Os perseguido-
res talvez estivessem perto e a travessia do
rio impunha-se immediatamente.
Antonio Gaspar quasi não sabia nadar ;
mas a Feitosa era uma piaba.
Urgia uma decisão. O momento não per-
míttia delongas. Atravessariam o rio ou se-
riam alcançados pelos matadores.
Gaspar esmoreceu; porem a Feitosa, as-
sumindo o commando, ordenou aos dois.ar-
reeiros que se preparassem para atrevessar
O
rio. Montados em cavalletes de mulungú, ati-
raram-se á agua. Os tres iam de conserva ao
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portuguez. No meio do rio, foram envolvi-
dos em um balseiro e quasi se afogaram. Afi-
nal, chegaram vivos á margem opposta.
Dias depois, chegaram ao Aquiraz, em
paz e a salvamento.
- Antonio Gaspar não quiz demorar um
instante a legitimidade de sua união. Esta-
vam casados perante Deus e a natureza,
mas era preciso receberem-se em matrimo-
nio perante o3 homens. Assim em trajos de
viagem, antes de entrarem em casa, apei-
aram-se á porta do vigario, que os acom-
panhou á porta da matriz e os uniu com o
“sacramento.
No dia seguinte, pela manhã, Feitosa
entrava na villa com os matadores.
Ao saber do casamento da irmã, regres-
sou sem ter querido vel-a, não tomando uma
vindicta, porque estava fóra dos seus do-
minios.
Era no meio dos parentes, dessa gente
barbara, que meu bisavô, um espirito adean-
tado, liberal, ia conviver emquanto repousa-
va das fadigas de uma viagem cheia de. pe-
ripecias.
Naquelle meio, com todos os defeitos
dos lugares sertanejos habitados por gente
Sem educação domestica e civica, em que
vencia o direito da força e não a força do
direito, o Sr. Manoel Gaspar sentiu-se mal,
O que mais o contrariava eram as senzalas,
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ver aquellas dezenas de brasileiros sem fa-
mília e sem patria, como bestas de carga,
trabalhando noite e dia para os senhores.
- Pouco ter-seiia demorado ali, se não pre-
cisasse refazer as forças e descançar as ca-
valgaduras.
Para não estar inactivo,'o que era in-
compativel com o seu temperamento, explo-
rava os terrenos na esperança de encontrar
alguma jazida de ouro.
Admira que Manoel Gaspar de Oliveira
tivesse naquelle tempo conhecimentos de mi-
neralogia. Que os tinha, é um facto; como
os obteve, não sei.
Em um outeiro proximo á villa do Tau-
há, povoação naquelle tempo, encontrou in-
dicios de jazidas de ouro á pouca profundi-
dade do solo. Communicou o facto ao avô
e este lhe offereceu vinte escravos para as
explorações.
Os trabalhos começaram pela excavação
do solo nos lugares em que Gaspar de Oli-
veira suppunha encontrar os veieiros auri-
“Teros.
A terra, com as entranhas rasgadas até
o sub-solo, não dava erperança de ouro.
À uma dezena de metros da superficie
do chão, appareceram, misturados a uma
- ganga quartzosa, pedras finas: topazios, ame- |
thistas, rubis e algumas variedades de quar-
tzo hyalino sem côr ou colorido e um pe-
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queno diamante. Gaspar retirou as pedras
e guardou-as.
Em outra excavação, não muito distan-
te, depois de uma profundidade de cerca de
vinte metros, appareceu um filão aurifero
rico de pepitas. .
A! vista do metal, meu bisavô, em vez
de alegrar-se, sentiu profunda tristeza. Guia-
do até aquelle momento pelo seu genio.
aventureiro, não pensou que a sua desco-
berta pudesse trazer-lhe consequencias fataes.
Reilectiu no perigo a que se expunha,
naquelles ermos, á discrição de gente bar-
bara e sanguinaria, que não lhe tinha maior
affeição, mostrando um tão grande thesouro.
Fez aterrar a excavação, deu por findas
as explorações e voltou á presença do avô,
a quem entregou alguns kilogrammas de
pedras, algumas preciosas. O velho não quiz
acceitar OS seixos, conforme chamou ás pe-
tiras que lhe déra o neto.
A classificação e a ignorancia do velho
Feitosa me fizeram lembrar um caso pareci-
do. Uma feita, encontrei na secretária de um
rico commerciante em Fortaleza, servindo
de peso de papeis, uma bella fórma primiti-
va de quartzo amethista. Gabei aquella pre-
ciosidade do cinzel da Natureza. O nego-
ciante fitou-me e disse, na sua santa ignoran-
cia, que se eu queria, podia levar o seixo.
-Agradeci o regio presente, que passou a ser
48
uma preciosidade, uma raridade no meu
pequeno museu de Historia Natural.
O Sr. Manoel Gaspar disse ao avô não
ter encontrado ouro. Dias depois, deixava o
Tauhá, sem destino certo. A viagem conti.
nupu a ser penosa por causa do rigoroso
inverno.
Mezes depois, chegava a caravana á mar-
gem do rio S. Francisco, na Bahia. À natu-
reza ali já era outra. A fauna e a flora, dit-
ferentes. A matta era mais alta, mais densa;
os animaes, de outras especies; o céo, nais
triste, mais baixo; a luz, mais baça, eas noi-
tes menos estrelladas, Começou ahi a nos-
talgia da senhora minha bisavó. Até então
não havia articulado uma queixa, feito uma
recriminação ao marido. Sabia que nunca
mais voltaria ao seu querido Ceará.
O meu bisavô lhe havia dito: despe-
ça-se por uma vez desta terra, á qual nun-
ca mais voltará.
Ella sabia que elle não dizia uma cousa
para não cumprir.
Mulher muito temente a Deus, não dei-
xava de resar muito e pedir para que o
exílio não fosse eterno. Era uma bôa crca-
tura. O seu maior defeito era, á moda do
tempo, castigar rigorosamente os filhos por
qualquer falta, com as celebres surras de
pé no pescoço. Nesse ponto, era cruel, tan-
to que o marido, quando se ausentava, lhe
49
dizia ao despedir-se:—
Sra. D. Joanna, aqui
ficam os seus enteados, —apontando-lhe os
filhos.
-A vida, á margem do S. Francisco, teria
sido de gosos, se não fossem as phantasias
do Sr. Manoel Gaspar.
À Natureza ali era outra. Agua em abun-
dancia e bôa, muito peixe e saborosos fruc-
tos silvestres. Não havia duvida que estavam
em uma terra farta, em que não precisavâm
trabalhar para comer.
A abundancia de recursos naturaes não
seduzia a Sra. D. Joanna nem faziam es-
quecer o Ceará. Prefecia a seccura de sua
terra, condemnada aos flagellos das seccas.
Que saudades não tinha do seu Aracaty e das
varzeas do Jaguaribe, cobertas de carnahu-
beiras seculares! Trocaria, de bom grado
aquelles gordos robalos, as saborosas curi-
matans, creadas ali no rio, pelas tainhas do
Cócó ou pelas trahyras dos açudes do ser-
tão. A's doces jaboticabas côr de vinho, pre-
feria as roxas e pequenissimas mapirungas
dos taboleiros de sua terra.
De que lhe serviam tão bôas comidas,
-se ella as ingeria chorando?
O Sr. Manoel Gaspar regalava-se com
aquelles bons peixes, aquelles saborosos frtu-
“ctos, aquella agua fina e doce que, com-
parada com a agua salôbra, cheia de ca-
50.
parrosa, dos sertões de sua terra, era uma
delicia beber.
À Sra, minha bisavó, vendo-o comer com
o melhor appetite, exprobava-lhe a dureza
do coração. Elle respondia-lhe que era cos-
mopolita, que a nossa terra é aquella em
que nos damos bem.
Em pouco tempo, o espirito de meu bi-
savô estava completamente adaptado áquel-
le meio e identificado com aquella gente.
O que concorreu para que elle se im-
puzesse á estima dos sertanejos foi a medi-
cina, curando alguns enfermos, e sua ci-
rurgia, amputando a perna de um pobre
homem, que, sem a operação, teria morrido.
Além disso, convivia com o povo, ia ás
suas festas, ás suas pescarias, nas quaes tar-
rafcava com grande pericia.
Manejava a farrafa como o bisturi.
Mudando de terra, longe do arrócho de
Rubim, não esqueceú a aironta soffrida na
igreja do Rosario. A idéa de uma patria li-
vre não o deixava. Com grande surpreza
sua, encontrou naquelles tabaréos ignoran-
tes egual sentir. Elles tambem desejavam,
queriam uma patria livre, a quéda do do-
minio portuguez, a independencia do Brasil.
Encontrando ali espalhada a semente da
liberdade, foi doutrinando, accendendo mais .
com o seu verho inspirado o amor da patria,
para que ella germinasse e crescesse,
51
Aquella phantasia de meu bisavô, a rea-
lização do sonho fóra de tempo o ia per-
dendo.
A idéa espalhou-se como por encanto; a
faisca, pequena em começo, ateou um in-
cendio, e delle sahiria a patria livre, se em
tempo os vassalos do rei, em numero mui-
to superior aos naturaes, não a houvessem
apagado.
Manoel Gaspar de Oliveira, o chefe do
movimento patriotico, proclamou a inde-
pendencia do Brazil ás margens do Rio S.
Francisco, na Bahia, ao mesmo tempo que
D. Pedro | gritava
— Independencia ou mor-
te—-ás margens do Ypiranga, em S. Paulo,
no dia 7 de Setembro de 1822.
Avisados os patriotas de que um grupo
de portuguezes, numeroso e bem armado, vi-
nha prendel-os, resolveram, pela defficiencia
de meios, dispersar-se.
A casa do Sr. Manoel Gaspar foi cer-
cada pelos vassalos do rei.
Meu bisavô havia fugido e se occultára
em uma gruta, no cimo de um oiteiro pro-
ximo, de onde, com um oculo, observava o
cerco de seu lar.
Minha bisavó e a filha, esta, mocinha
de 12 amnos, que depois foi minha avó,
quando se aproximaram os portuguezes, em
algazarra infernal, dando vivas ao rei e
morras aos caboclos do Brazil, tiveram a
52
feliz lembrança de esconder nos seios
toda a correspondencia trocada entre meu
bisavô e os seus correligionarios.
Cercada a casa, invadiram-n'a e proce-
deram á mais rigorosa devassa. Todos os
moveis foram revistados. Não encontrando
documentos comprobatorios da sedicção,
retiraram-se.
O Sr. Manoel Gaspar, desapontado com
o desfecho do sonho, levantou o acampamen-
to e partiu em rumo da capital da Bahia,
Em S. Salvador, soube com immensa sa-
tisfação que o Brasil já era dos brasileiros.
À sua alma de patriota exultou. la ago-
ra viver em uma patria livre.
Para dar azas á sua phantasia, ao seu
espirito, que se aptazia em viver de so-
nhos, emprehendeu uma viagem ao Rio de
Janeiro, onde faria valer os seus serviços á
causa da independencia do Brasil.
Os grandes do Imperio acataram-n'o,
trataram-n'o com grande distincção e offere-
ceram-lhe o lugar de Cirurgião-mór das tro-
pas na Bahia. Recusou. Queria ser o admi-
nistrador das terras do Espirito Santo. Gos-
tava de aventuras.
Não sendo concedido o que pedira, na-
da mais quiz e voltou para S. Salvado:.
Um mez gastou na viagem no brigue S.
João. Quasi naufragou nos Abrolhos. A fa-
53
milia já havia perdido a esperança do seu
regresso, quando elle chegou.
Deixou a prolissão, que só exercia para
os desvalidos, c fez-se industrial.
A! margem do rio Jaguaribe, a poucos
kilometros da villa deste nome, estabeleceu
uma fabrica de sabão.
Ahi o encontrou meu pai, por acaso,
quando cursava a Faculdade de Medicina
da Bahia.
No fim de pouco tempo de residencia
ali, tinha conquistado a estima e o respeito
de todos pela sua caridade sem limites,
Estive, quando estudante na Bahia, na
casa em que viveu longos annos o Sr. Ma-
noel Gaspar, e que foi o exílio de minha
bisavó.
Ali a Sra. D. Joanna envelheceu choran-
do saudades de sua amada terra. O lugar
era medonho, optimo para um presídio.
Nunca mais esqueci a impressão que senti
na tarde em que ali cheguei, embora depois
deste crepusculo vesperal os cajueiros qua-
renta vezes tenham ficado em primavera.
Era ao pôr do sol, mas um pôr de sol prosai-
co, sem cambiantes, uma orgia de côres, sem
delicadas nuances na tela do firmamento,
sem escamas de cirrus no zenith, para se
corarem de rosa, no momento em que a.
loura cabeça do astro se sumisse no occaso.
O ultimo raio do sol poente bruxoleou no |
54
instante em que a canôa abicou ao porto
da fazenda de meu bisavô.
Era um casarão tosco, acaçapado, le-
vantado quasi á beira do rio Jaguaripe.
Entrei: esperava-me meu tio José, o unico
dos filhos do meu bisavô, que, depois de
homem; não regressou ao Ceará, após a
morte dos paes, c isso porque a sua terra
lhe estáva interdicta pelo casamento: com
uma sobrinha, da qual se havia separado
logo depois do sacramento.
Logo que entrei para a sala de visitas,
fechou-se a porta. Minutos depois, entrou
uma preta velha, esqualida, trazendo um
candieiro de azeite com os quatro bicos a-
cesos, e collocou no centro de uma mesa
dizendo: -
— Louvado seja nosso senhor Jesus
Christo.
Meu tio levantou-se, persignou-se, tirou
o bonnet e respondeu :
— Para sempre seja louvado e sta mãe
Maria Santissima. Bôa noite, meu sobrinho.
Em que meio estava eu!... Com a cla-
tidade pude avaliar a figura de meu tio.
Era um homem de estatura regular, cheio
do corpc, quasi velho.
Os traços da physionomia eram mais
ou menos regulares. À testa era abaúlada e
o nariz um pouco adunco. Um ar de triste-
55
za cobria-lhe as feições, que mais accentuava
o olhar apagado de ruminante farto.
Aquelle olhar morto, estacionado, volta-
do para dentro do eu, sempre diante da
mesma imagem, que lhe havia torturado o
espirito, e havia vinte annos o condemnára
ao isolamento, fazia pena á gente.
Conversámos até nove horas da noite
sobre a família, sobre o Ceará.
No meio da conversação, aquella alma sup-
pliciada por um amor infeliz, não corres-
pondido, desabafava num suspiro longo e
doloroso, que lhe sahia do coração amar-
gurado.
Em uma pausa da palestra, meu tio
levantou-se, indicando-me um canapé pro-
ximo, armado em cama, e me disse : dormi-
rá ali, e entrou.
Deitei-me, e ferrei no somno.
A' meia noite, com grande espanto meu,
fuí despertado por meu tio que, me accor-
dando, disse :
— Vamos tomar banho.
Extranhando o convite, estremunhado,
perguntei:
— Tomar banho ?
—Sim, para ceiarmos e depois dormir-
mos.
Obedeci, acompanhando o velho.
A! porta de um quarto parou e fez-me
signal para entrar. Achei-me em um banhei-
56
ro, onde se viam uma bacia de folha de
Flandres com agua morna, uma chaleira com
agua quente ao lado, e perto uma cadeira
com uma toalha é um sabonete. Meu tio
ficou do lado de fóra.
Fingi lavar-me, abri a toalha e sahi.
Fomos juntos para a mesa, sentamo-nos
e a preta do candieiro serviu chá, café, pão,
biscoutos.
Finda a ligeira refeição, voltei ao dor-
mitorio, acompanhado de meu tio, que me
deu bôa noite e entrou.
A's seis horas da manhã fui despertado
pelo velho, no melhor do somno.
Abriram-se as portas.
Que desgosto senti, quando o sol en-
trou de casa a dentro e vi, fóra, um céo
baixo, quasi em cima do telhado, empana-
do de vapores, que se moviam ao sopro do
verto sul, que uivava, desenfreado, torcen-
do a ramaria dos mangues!
Que triste despertar da natureza!,.. Um
rio candaloso, de aguas escuras correndo
tristemente, sem majestade, sem marulhos,
nem espumas, fazia amortecer aquelle
quadro apagado de bellezas e encantos.
Senteime e fui sósinho contando as
horas.
Não mais me apparecu meu tio, Eu já
sentia vertigens de fome.
Quando soaram doze horas e o jejum
57
havia reduzido a uma chaga o meu esto-
mago de hyperchlorydrico, eis que chegou
meu tio, fechado em seus scismares, e cha-
mou-me para almoçar.
Almoçámos a fartar, maiormente eu, que
tinha o estomago numa vacuidade lastima-
vel.
O primeiro prato foi o celebre carurú
bahiano, servido com acaçá. |
Com a fome com que estava, me atirei
com gula ao prato. Caro custou-me o ata-
que ao petisco. O primeiro bocado deixou-
me todo queimado, como se eu tivesse engo-
lido brazas. As lagrimas corriam-me sen:
eu querer e os espirros acompanhavam-n'as.
À scena era de fazer rir, mas nem por isso
meu tio deixou um instante o seu ar de
meditação.
Acabado o almoço, voltámos á sala e
meu tio retirou-se. Farto como uma giboia,
refestelei-me em uma cadeira de espaldar de
sola, ruminando idéas, lucido nesses instan-
tes mais do que nos outros todos da vida.
Atirando baforadas de um charuto bahiano,
bem ordinario, consoante os meus haveres,
na beatitude de um animal repleto, a fazer
o chylo, eu olhava quasi sem ver para as
cambalhotas dos botos brincando no meio
do rio.
Aquelles momentos de grande lucidez
de espirito, nos quaes tenho imaginado
58
muitas scenas de meus livros, foram tendo
perturbações, eclypses, até que afinal se apa-
garam em uma modorra, em um estado que
não era do somno nem da vigilia.
Assim estive uma hora talvez. Quando
accordei, achei a sala ainda mais solitaria e
prosaica,
Durante o dia, meu tio appareceu-me
algumas vezes, conversava um pouco e re-
colhia-se ao interior da casa.
A's Ave-Marias, portas fechadas, por
causa dos mosquitos, que em nuvens se le-
vantavam dos mangues. Falando-me do fe-
chamento da casa, meu tio disse-me que .
aquelles insectos, que pareciam feitos de la-
ma, eram venenosos. Contou-me então um
caso horrendo ali acontecido, havia muitos
annos.
Em uma fazenda proxima, á margem do
Jaguaripe, morava um mulato rico, casado
com certa mulher branca, nova, de uma
rara belleza.
O mulato tinha comprado aquelle retiro
para isolar-se com a companheira, pelo
ciume exagerado que tinha della. Passaram-
se os tempos. A paz do lar não era pertur-
bada. Ali ninguem ia. De homens só havia
o dono da casa e os escravos.
Segregada do mundo, aquella mulher
nova, exuberante de seiva e de vida, apai-
xonou-se por um escravo, muito claro e
Ra
novo como ella, Encontrára naquelle ho-
mem, que as condições, a raça, os precon-
ceitos separavam della por um abysmo,o os-
so do seu osso, a carne da sua carne.
Os seus appetites não satisfeitos pela
frieza do marido, um homem quasi velho, fo-
ram o maior factor de sua queda. |
“Amaram-se. Ella, pisando sobre todas -
as convenções sociaes, arriscando a vida na
“transposição de tão perigoso passo, fez do
captivo seu amante.
O marido soube e premeditou a sua vin-
gança; daria ao amante um genero de mor-
te horrorosa.
Nunca Othello algum imaginou morte
mais cruel, mais tragica para a sua Desde-
mona.
Ao escravo fez eunuco e depois o en-
terrou vivo. A adultera foi levada á falsa-fé
á margem do rio, ao pôr do sol. Ahi a
obrigou a despir-se; depois, a crucificou
em uma arvore. Os ultimos raios da luz
amortecidos, quasi apagados pelas brumas
da noite, deixavam perceber na claridade do
crepusculo, que morria, a figura esculptu-
ral daquella Venus de carne em toda a
nudez e exuberancia de fórmas.
Aquelle corpo branco, ligeiramente ro-
seo em alguns pontos, de linhas e contor-
nos suaves, illuminou-se frouxamente pelo
derradeiro raio do sol poente. Naquelle ins-
60
tante, morreu o derradeiro lampejo da luz,
que se apagou no occaso ,..
À escuridão tudo envolveu no sudario
negro, para que ficasse sem testemunhas
aquelle acto de bruteza humana.
Pela manhã, quando a luz voltou á ter-
“ra e as aves deixaram os ninhos para em
cantares saudar c sol, não se viu mais o bel-
lo corpo branco da crucificada, mas o ca-
daver violado de uma mulher informe, cu-
ja inchação era tamanha que destruira li-
nhas e contornos, reduzindo a plastica da
sua figura exculptural a uma bruta e cha-
ta massa.
Meu'tio relatou-me o facto, fechado em
sua tristeza, sem que, nos transes mais tra-
gicos, um traço se alterasse em suas feições.
Que imperturbavel calma!
Aquella historia me abalou os nervos.
A minha imaginação ia completando a nar-
rativa, enchendo as lacurias deixadas por
meu tio em suas reticencias, nos pontos que
julgava offender a minha pudicicia de ado-
lescente, Eu ia mentalmente me deleitando
com o horrivel da scena, com o pendor in--
nato que tenho para as situações intensas.
Avaliava, como se estivesse vendo, sen-
tindo, como se estivesse dentro da victima.
Nos primeiros momentos que se segui-
ram á bestial torpeza, numa revolta impo-
tente contra a violencia, ella se quedou,
61
talvez, aniquilada, esperando o acabamento
para remila do martyrio. A morte a esprei-
tava, o fim não seria tardio, o epilogo do
cruciante supplicio estava proximo.
Pareciasme a mim estar vendo o corpo
branco da desgraçada, envolto em uma nu-
vem negra de mosquitos, que, ainda bem
não lhe tocavam a pelle setinada, já a fe-
riam com as trombas, inoculando veneno e
sugando o sangue.
Via os insectos invadirem os olhos, que
ella defendia, arreando as palpebras. Aquel-
les argueiros de lama, uma vez presos, fun-
diam-se nas lagrimas e espalhavam-se pelo
globo do olho, queimando-o como um caus-
tico.
A dôr da queimadura era tamanha, que
um doloroso arrepio arrepanhava a pelle
numa crispação completa.
Parecia-me a mim estar observando a
sensação, que elia teve, quando os seus
olhos se entupiam de mosquitos, e o seu
gesto instinctivo, querendo ir em soccorro
delles, e vendo-se de mãos atadas!
Os mosquitos penetravam por todas as
aberturas do corpo, numa cócega imperti-
nente, picando as mucosas. A titilação que
faziam nas fossas nasaes, produzindo repe-
tidos e violentos espirros, acabaram conges-
- tionando as mucosas, obstruindo a abertu-
- Ta das ventas.
62
Sem folego, descerrou os labios. O en-
xame de mosquitos entrou na bocca e des-
ceu-lhe na garganta. Accessos de tosse sacu-
diam o corpo numa convulsão perenne. A
glote constrangia-se num espasmo incom-
pleto, determinando um começo de aphyxia.
Eu via o entrebuchamento daquelle cor-
po, procurando quebrar os laços que o pren-
diam. Baldados esforços, pois elles mais se
apertavam, enterrando as cordas finas de
ptassava nas carnes dos pulsos e tornozellos.
Pouco depois, a pelle macia do corpo
envenenado pelos mosquitos se foi intumes-
cendo, como se tivesse soffrido uma fric-
ção de urtigas, levantando-se polmões ao
mesmo tempo que um prurido de endoide-
cer se espalhava por elle inteiro, num phre-
nesi, que foi até á perda: dos sentidos, até o
momento em que a victima se quedou na
agonia da morte.
Quando meu tio acabou de contar-me a
historia, convidou-me para jantar.
Acabado o jantar, dormitorio, somno até
meia noite, banho e ceia. Assim passei oito
dias no Cahype, onde pretendia passar os
tres mezes de ferias. Ê
Não supportava mais aquelle viver de
tristezas. :
A figura da preta, velha, escaveirada,
63
embrutecida no captiveiro, a repetir todas
as tardes a saudação angelica, à hora das
saudades e das despedidas da luz, arranha-
va-me os nervos, como o attrito secco de
uma lima amolando um serrote.
Os dias ali eram tão semelhantes como
o papel de copiar musica.
Apenas houve uma excepção, um pas-
seio que fiz á Estiva, para visitar o antigo
solar de meu avô, onde nasceu minha mãe.
A viagem foi de duas horas, em canôa,
subindo o Jaguaripe.
— Cheguei á Estiva pela manhã e saltei no
porto mais perto do sobrado em que morou
meu avô, Sr. Claudio Nunes Sarmento. Pa-
ra lá me dirigi. Pouco caminhei para en-
contrar um grande sobrado, onde havia nas-
cido minha mãe, com as paredes bem en-
cardidas pelo tempo, occupado agora por mi-
nha tia Izidora, solteirona, maior de cincoenta
annos, torta de um olho e filha do segun-
do matrimonio de meu avô.
Dei-me a conhecer.
À velha abraçou-me chorando pelo olho
são.
Disse-me que de parentes proximos só
existia ella. Convidou-m> a visitar toda a
casa. Accedi da melhor vontade.
Estive no quarto em que minha mãe
nasceu; aposento espaçoso que, havia meio
seculo, não recebia mão de cal.
64
Levou-me minha tia á trazeira da casa
e mostrou-me o fronco, onde viveu o ulti-
mo macaco africano, o Macussi.
Disse-me ella que o pai tinha o fraco, -
para não dizer a extravagancia de ter sem-
pre um macaco da Africa na corrente. Quan-
do um morria, mandava vir outro.
Depois, mpstrou-me a senzala, um gru-
po de pequenas casas em que moravam mais
de cem captivos. A tia, uma escravocata
rubra, chamou a minha attenção, com gran-
de gaudio seu, para esse instrumento de
tortura, o tronco, que ainda ali estava para
attestar o grande attentado á liberdade hu-
mana.
Disse-lhe ser aquillo uma ignominia, que
ella devia fazer desapparecer aquella mise-
ria que muito infamava a memoria de seu
pai.
Benzeu-se, escandalisada de minhas idéas.
A's dez hotas da manhã, regressava eu
ao Cahype. Cheguei precisamente á hora
do almoço.
O dia correu como os outros.
Na ultima noite de presídio, meu tio,
por despedida, conversou commigo até a re-
gtmental hora do banho, contando-me factos
da vida intima do Sr. Manoel Gaspar.
“Cresceu em mim a admiração que tinha
por meu bisavô.
Elle vivêra como um santo na terra que
65
adoptára. A caridade que praticára chega-
va á obsessão.
Morreu septuagenario.
O seu enterro foi uma apotheose, feita
pela população daquellas paragens ao seu
medico, ao seu bemfeitor.
Mais de cem canôas comboiavam a lan-
cha em que ia o corpo descendo o rio Ja-
guaripe.
O cortejo seguia em silencio sepulchral,
Ouviam-se soluços que se misturavam ao
som triste do marulhar das aguas.
Coberto de bençãos, entrava emo Nada
o corpo em que habitou um grande
espirito.
AS
SE trt
A 40 0040600000 0000200002 6120000. MA
| Mtenismo
O altruismo é a quinta essencia do ego-
ismo.
Muitos classificarão de paradoxo: este
meu pensar. Vou dar as razões por que
assim entendo. .
À semente do bem, espalhada profusa-
mente, sem distincção de terreno, germina,
fructífica e o semeador, as mais das vezes,
colhe bonitos fructos. .
Acontece tambem o terreno ser sáfaro
e, completa a germinação, as tenras plantas
se estiolam e morrem.
Em começo da vida tive uma noção
muito clara do valor da pratica do bem, por
um facto que muito impressionou minh'al-
ma de adolescente.
À esse tempo, eu era empregado da
Casa Commercial de Albano & Irmão.
Estava alli penando, na aprendizagem
de uma profissão para a qual absolutamen-
te não tinha vocação.
O caixeiro, nesse tempo, era igual a um
67
creado, ou valia ménos ainda. À saúde de
um escravo inspirava mais cuidado, por-
que o escravo tinha valor intrínseco, valia
dinheiro, eo caixeiro não. Aquelle menos-
preço com que eramos tratados me humi-
lhava, meu espirito se revoltava e, numa
ancia de liberdade, vibrava todo.
Como se mudaram os tempos !
Ha cincoenta annos, a classe caixeiral,
essa agremiação de desclassificados, quiz
fazer. uma sociedade beneficente e reuniu-
"se para lançar-lhe as bases, fazer os estatutos,
“Reunimo-nos nos baixos do sobrado do Jus-
ta, na rua Formosa, hoje Barão do Rio Bran-
co. Era geral o contentamento. Mal sabia-
mos nós que decepção nos estava reserva-
da. No dia seguinte, os patrões tiveram
conhecimento da nossa reunião e fomos
prohibidos de levar a idéa avante.
Passaram-se alguns annos e de novo
surgiu a idéa de se fazer uma sociedade
de caixeiros, e appareceu o Reform Club.
A idéa vingou, porque outros já eram o3
- tempos; e como tudo evolúe, temos hoje
à benemerita "Phenix Caixeiral”, uma poten-
cia nas armas e nos serviços, que presta,
cultivando o espirito de seus associados.
Quando fundámos a nossa primeira as-
sociação de caixeiros, a qual durou um dia,
mal sabia eu que de futuro seria socio
benemerito da futura sociedade de que ha-
68
viamos lançado em terra a semente, semen-
te que levou annos a germinar pela curteza
de espirito dos homens daquelle tempo.
O chefe da casa em que eu era empre-
gado era o Coronel José Francisco da Sil-
va Albano, depois Barão de Aratanha, meu
parente affim, homem bom e que podia ter
minorado os meus padecimentos, se outro
fosse o seu modo de pensar. Havia feito
fortuna no commercio e entendia que era
o melhor ramo da actividade humana. Tan-
to isto é uma verdade, que dos seus tres
filhos varões, todos educados na Europa,
nenhum foi doutor; dois são negociantes e
um padre. Eu tinha herdado de meu pae um
nome immaculado, mas tambem uma grande
pobreza. Elle havia morrido aos quarenta
e
tres annos, deixando seis crianças na or-
phandade. Eu era o mais velho. Cabia-me o
dever de ser homem e velar pela sorte de
meus irmãos. Mas, como sahir da minha
obscuridade e collocar-me? Só o livro podia
livrar-me daqueile captíveiro. Mas como che-
gar ao livro, se os meus patrões entendiam
que para vencer na vida não precisava sa-
ber ler?
Luctei como um desesperado. Que de-
cepções soffri !... O meu temperamento era
ardente, o meu genio arrebatado.
Os soffrimentos foram modificando as
minhas inelinações. Era poeta: comecei aos
69
onze arros a fazer máus versos, como ainda
“hoje os faço máus. Lia Casemiro de Abreu
e achava a sorte delle parecida com a mi-
nha. Às jeremiadas do cantor das «Prima-
veras» me enchiam a alma de muita pieda-
de e do desejo de me acabar tuberculoso
“como o poeta. Que grande ventura não se-
“ria a minha de entisicar aos desoito annos
e depois, muito triste e muito pallido, con-
templara minha Dulcinéa, que, toda amôr,
choraria o meu precoce acabamento
!
Foi nesse tempo, ou no tempo desses
amores, que eu, fazendo de D. Quixote,
apanhei um formidavel catarrho, que hoje,
consoante a moda, seria uma influenza ou
grippe, que me acompanhou até a velhice
e ia realizando os.meus sonhos de moço:
morrer como Casemiro de Abreu...
Acamei-me por muitos dias. Tinha febre 4
tarde e suores á noite, |
Aquelles symptomas me enchiam de sa-
tisfação, porque eram o começo do acaba-
mento, da morte romantica com que me
aprazia sonhar...
Como pernicioso é o contagio dos ac-
tos máus! A suggestão pela leitura nos es-
piritos fracos e levianos é uma cousa fatal.
A' leitura quotidiana das ”"Primaveras”
ia-me matando.
"A noite na taberna”, de Alvares de
Azevedo, fez grande numero de estroinas
70.
e bebedos. Quando cursei a Academia da
Bahia, estava ainda muito em moda este
poetae tambem Castro Alves com as suas
bombas.
Eu já tinha mais idade, melhor senso
do que no iempo das “Primaveras” e, sobre-
tudo, uma verdadeira e idiosyncratica oge-
riza, como ainda hoje tenho, ao aleool, ao
jogo e ás multidões. Foi o que me salvou
de ser um bebedo, porque um companhei-
ro de crua, mito meu affeiçoado, de quan-
do em quando fazia noites na taberna. À
molestia se prolongava, porque assim eu
queria,
O tratamento que eu tinha era quasi
nenhum. Morava em um quarto, ao rez do
chão, e tinha por enfermeira uma afilhada:
da baroneza de Aratanha, a Malvina, crea-
tura muito feia, porem muito bôa. Compa-
decida de mim, levava-ms uns caldos e uns
mingáus e tambem algumas palavras de
conforto, falando na minha Dulcinéa.
Os meus patrões, vendo que não me res-
tabelecia, mandaram-me para Arronches, hoje '
Porangaba, para a casa da minha familia.
A entrada naquelle abençoado lar, onde
havia muita virtude ao lado de muita po-
breza, despertou-me, accordou-me a cons-
ciencia e chamou-me ao cumprimento do
dever.
À bondade e o carinho com que me
71
recebeu a minha santa mãe de criação, tão
bôa e tão santa, que nunca senti falta da
minha verdadeira mãe, a qual perdi aos
quatro annos, me chamaram á vida. Estava
em Arronches quando recebi um convite
de um agricultor da serra de Aratanha, o sr.
Henrique Gonçalves da Justa, que foi na
vida o meu maior amigo, a quem devo em
parte o que sou e tambem a formação do
meu caracter, para convalescer em sua casa.
Eu não conhecia aquelle cavalheiro, po-
rém mitiha mãe me informou que elle era uma
pessõa abastada, de posição social e que se
havia casado com certa moça de uma fami-
lia muito pobre, mas muito virtuosa, que
fôra nossa vizinha e muito protegida por
meu pae. O serviço que ella queria me pres-
tar era feito á memoria de seu amigo, de
seu medico, de seu protector.
As palavras de minha mãe me fizeram
reflectir no caso.
Dias depois de recebido o convite, che-
gou-me a conducção. Era em junho e foi
pela manhã que sahi com destino a Pacatu-
ba. Ia montado em um burrico possante, ser-
rano e manso. O animal só tinha tres anda-
duras, passo, chouto e galope. Aquelle ca-
minhar de cavalgadura de S. Jorge não sa-
tisfazia à pressa que eu tinha de chegar.
Fustiguei o burrico e este, em vez de ac-
celerar a marcha, gemeu. Fustiguei-o al-
72
gumas vezes repetidas e elle apressou o
passo, mas num chouto tão aspero, tão du-
ro, que me provocou um accesso de tosse,
que quasi me suffocou.
Parei e tive uma phobia, que me apa-
vorou, de ter uma syncope, cahir do burro,
não voltar mais á vida e ser encontrado re-
supino e morto no meio da estrada. Ah!
phobias, como me têm martyrizado no cor-
rer da vida! Têm sido tantas, e cada qual
mais estapafurdia, que só ellas dariam um
grosso volume!
Segui cultivando a minha phobia, indif-
ferente ás bellezas daquella sorridente ma-
nhã de fim de inverno. Que contraste fazia,
a natureza alacre, o festival das aves, o
verde-gaio dos brotos, o verde escuro das
folhas com as tristezas de minh'alma, a as-
sistir ao meu funeral!
Caminhava por aquella estrada de areias
brancas, marginada pela matta em flôr,
onde os insectos e a passarada entoavam
hymnos ao fertilizador dos campos.
Eu passava indiferente por aquellas
bellezas, fechado dentro de mim mesmo,
a cultivar o meu tormento. E que idéas
terrorosas, as minhas !
Eu já estava morto, soffria agora por
minha mãe.
Que agonia cruciante a della, quando
recebesse a fiova de miriha morte e que su-
73
prema angustia, a sua, quando entrasse o
meu cadaver, dentro de uma rede car-
“regada por gente infima! Que desespero
não sentiria, quando me descobrisse o rosto
branco, illuminado outr'ora por olhos de
um castanho claro, que ella cobria de bei-
jos, agora de uma pallidez cadaverica, he-
diondo, mutilado em parte pelo bico dos
urubús!
Eu tinha muito respeito humano, esta
maldita lepra que róe a humanidade desde
os primeiros tempos. E por isso mesmo
padecia. A noticia que dariam os jornaes
de minha morte tragica, estupida, igual á
da besta que morre no campo e é comida
pelas aves negras, me alanceava a alma.
Que indifferença daquella imprensa venal
e pôdrel Eu era um desclassificado, bem o
sabia, mas o meu fim e, sobretudo, a idade
em que tão prosaicamente me acabava, me-
reciam que eu fosse melhor tratado. Diriam
laconica e seccamente que fôra encontrado
morto, meio comido dos urubús, na estra-
da de Pacatuba, um caixeiro da importan-
te casa commercial de Albano & Irmão...
la no cultivo impertinente da minha dôr,
quando cheguei ao Timbó, lugar que havia
escolhido para descançar.
O sol descia a pino e mordia-me as cos-
tas, produzindo o ardôr de uma fricção de
urtigas.
74
Abeirei-me da primeira casa á margem
da estrada. Era um casarão de tacaniça, al-
pendrado, com curral ao lado. Annunciei-
me com o-—oh! de casa-da pragmatica,
mas em voz tão sumida, que penso não che-
gou á trazeira da vivenda. Apeei-me e bati
com força com o chicote na porta.
Minutos depois, appareceu-me uma mu-
lher, bastante idosa. que me saudou meio
aborrecida.
Pedi-lhe rahtcho: e ella indicou-me uma
tripeça, fixa no chão do copiar. Sentei-
me, e pedi-lhe agua. Eu estalava de sêde e
tinha a bocca secca como lingua de papa-
gaio. À velha entrou e pouco tempo depois
voltou, trazendo um caneco de folha de Flan-
dres, coberto de ferrugem e cheio de um
liquido barrento.
Tomei o caneco e fiquei arripiado, he-
sitando em levalio á bocca.
Repugnava-me, não tanto a mistura de
barro e caparrosa que ia beber, porém os
beiços do caneco, aquelles beiços que ha-
viam sido tocados por milhares de beiços,
muitos dos quaes nojentos, cheios de ulce-
ras, syphiliticos até... Afinal, fiz um gran-
de esfôrço e bebi alguns golles da mixor-
dia, que tinha um gosto terrivel e salôbro.
Entreguei o caneco á velha, agradecen-
do. Eu devia ter estampados no rosto os si-
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  • 1. Apoiar produções no campo da pesquisa e da catalogação da documentação histórica tem sido, em anos recentes, uma atividade constante da Fundação Waldemar Alcântara que, desse modo, contribui para o resgate de registros marcantes do processo de formação da sociedade brasileira. A Biblioteca Básica Cearense é uma coleção de obras raras de autores que, no passado, se debruçaram É sobre o contexto sócio-cultural do Rodolpho Theophilo Ceará de suas épocas e, com isso, nos forneceram instrumentos para a compreensão de uma outra realidade, possibilitando reflexões acerca de nosso tempo. Com o apoio do Banco do Nordeste, por meio do Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (ETENE), a Fundação Waldemar Alcântara reedita mais este volume da Biblioteca Básica Cearense, após realizar consulta a personalidades do nosso universo intelectual. É expressiva a participação, nestas iniciativas, de segmentos comprometidos com o nosso desenvolvimento cultural, o que nos tem possibilitado, dentro dos limites próprios de uma organização não-governamental, contribuir para preservação da memória bibliográfica do Ceará. BIBLIOTECA BÁSICA CEARENSE FUNDAÇÃO WALDEMAR ALCÂNTARA
  • 3. Copyright - O 2009 by FWA Coleção Biblioteca Básica Cearense Comitê de Coordenação * | Lúcio Gonçalo de Alcântara Maria Auxiliadora Lemos Benevides Silvia Maria Aragão de Andrade Furtado Capa Sérgio Lima Revisão de Textos Vera Filizola Apoio Banco do Nordeste do Brasil S. A. Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (ETENE) Realização Fundação Waldemar Alcântara Agradecimentos Academia Cearense de Letras Biblioteca Pública Menezes Pimentel Fundação Waldemar Alcântara Rua Júlia Vasconcelos, 100 - Pio XII CEP 60120-320 -Fortaleza-CE Fone: (85) 32576927 Fax:(85) 32412433 PUNDAÇÃO WALDEMAR ALCANTARA www.fwa.org.br
  • 4. CENAS IYPOS Rodolpho Theophilo BIBLIOTECA BÁSICA CEARENSE FUNDAÇÃO WALDEMAR ALCÂNTARA FWA FORTALEZA - 2009
  • 5. Catalogação na Fonte Bibliotecária Telma Sousa —- CRB -3/714 Theophilo, Rodolpho. Scenas e typos / Rodolpho Theophilo. — Ed. Fac-sim. — Fortaleza: FWA, 2009. 159p. — (Coleção Biblioteca Básica Cearense) Fac-símile da edição de 1919. ISBN 978-85-61865-03-0 1. Ceará — História. I Título II. Série
  • 6. ÃO LEITOR Ivone Cordeiro Barbosa* Scenas e Typos, publicado por Rodolpho Theophilo em 1919, é um livro que, pela sua composição, com textos tratando de temas variados e, aparentemente sem conexão uns com os outros, é considerado uma miscelânia, termo usualmente designador de coisas diferentes misturadas, mas formando um conjunto. Realmente, neste livro, o autor reuniu escritos provavelmente produzidos em diferentes momentos da sua vida e com um temário diversificado, referente a questões de natureza puramente pessoal, aos embates políticos que levou a termo ao longo da vida, aos seus conhecimentos científicos e reflexões sobre valores morais e culturais do Ceará. É uma obra que, pelo seu caráter panorâmico, revela o que os estudiosos de Rodolpho têm apontado sobre o espírito irrequieto e militante do autor: “Rodolfo foi mais do que testemunha ocular da história. Na verdade, esteve na linha de frente de todos os episódios que Fortaleza viveu na passagem do século XIX para o século XX: as epidemias de cólera, varíola e febre amarela, as grandes secas, o movimento abolicionista, a luta contra a oligarquia Accioly e a revolta popular que a depôs, a sedição da Juazeiro de Pe. Cícero. Como se não bastasse, foi um dos fundadores da Padaria Espiritual, grupo literário que reuniu os maiores intelectuais cearenses da época e ficou célebre pelo fato de seu manifesto antecipar, em nada menos de duas décadas, em pleno Ceará, toda a irreverência dos pressupostos da semana de Arte Moderna de 22. Charlatão e literato de província para alguns, gênio e benemérito para outros, o nome de Rodolfo sempre esteve marcado pela polêmica. Colaborador assíduo da imprensa de seu tempo, publicou 27 livros, entre ficção, v1 poemas, crônica, historiografia e tratados científicos”. 1 1 LIRA NETO, O Poder e a Peste. A vida de Rodolfo Teófilo. Fortaleza, Edições Demó- crito Rocha, 1999.p.13
  • 7. Nesta passagem, Lira Neto sintetiza o perfil de Rodolpho Theophilo, da sua vasta obra, das suas diferentes formas de inserção sacial e, inclusive, dos sentimentos e interpretações que geróu nos seus contemporâneos. À obra, agora reeditada, preserva muito dessa feição nos diferentes textos que encontramos em Scenas e Typos. A começar pelas reminiscências pessoais da sua linhagem familiar e a saga dos seus pais, que aparecem nos textos Através do passado e Altruísmo, exaltando- lhes as virtudes e percalços que tiveram que enfrentar ao longo de suas vidas que, embora curtas pela morte prematura que os ceifou, deixou profundas marcas no menino magricela e introspectivo que diz ter sido. No entanto, registra também a permanência destes na memória coletiva, principalmente do seu pai, médico da pobreza, reconhecido e lembrado por aqueles que dele receberam cuidados, como um benfeitor dedicado à luta de curar os males que afligiam as populações do sertão. Nesses textos, para além do simples registro da memória familiar, parece-nos que Rodolpho Theophilo busca um encontro consigo mesmo, como se fosse um ajuste de contas com o seu próprio passado. Sua inserção nos meios intelectuais aparece no escrito Moedeiros falsos, no qual escreve lembranças de sua convivência com outros intelectuais e transcreve a Ata de Sessão de reinstalação da Padaria Espiritual, demonstrando uma preocupação com os registros e a publicização da sua trajetória e a de outros personagens das letras cearenses. Num outro escrito, Bebedouro, remete-se a uma das referências da tradição de cultura sertaneja, fazendo uma espécie de atualização do nosso folclore, no qual recupera as façanhas do boi Bargado, o boi valente, com sentimentos e identidade simbiótica com os humanos, nunca vencido nem mesmo pelos bons e destemidos vaqueiros que historicamente o perseguiam e, por isso mesmo, permanente na memória das façanhas vaqueirais, mas que, nesse caso, sucumbe à perseguição por causa da seca. Essa articulação entre uma tradição de invencibilidade do boi e de destreza dos vaqueiros com a seca, no texto de Rodolpho Theophilo, traz um enorme simbolismo, ao mudar a sina do boi: diferente da tradição folclórica, o vencedor não é o vaqueiro afamado nem o boi brabo dos sertões, e sim a seca e seu corolário de mazelas e misérias que se constituiu, também para Rodolpho
  • 8. Theophilo, num dos grandes embates que enfrentou a vida inteira. Fala do boi, para falar da situação de homens e bichos por ocasião das secas. À sua visão determinista da natureza e as possibilidades da Ciência aparecem também no texto que abre a coletânea, O Ceará ferreiro da maldição, no qual expressa as concepções a que se filia seu pensamento. Neste texto, discorre sobre a miséria e o flagelo das secas que assolam o Ceará como a grande maldição que nos foi atribuída pela natureza, comparando-a às grandes catástrofes naturais que são enfrentadas por outros povos em outras partes do planeta: vulcões, terremotos ou a vida difícil dos esquimós nas geleiras do Alasca. Diz ser o Ceará uma pátria “madrasta de seus próprios filhos”, denomina-o de ferreiro da maldição pelas desgraças que faz “seus filhos” viverem. Por outro lado, ressalta os atributos do povo cearense, dizendo que “são fortes, sóbrios, operosos...”, denomina-os de “os bandeirantes do norte”, pois, quando se exilam, lutam e vencem, compara-os às plantas da caatinga, uma vez que o cearense, “materialmente, é de uma resistência orgânica assombrosa” e, moralmente, “é um heroe”. No entanto, é esse mesmo Rodolpho Theophilo que no texto a Imprevidência do cearense afirma que “Não há gente mais imprevidente que o cearense. Esta qualidade das raças inferiores nos veio dos índios por atavismo”, “ o que condeno nos cearenses é o desperdício” e, ainda, “ Era aquelle mesmo povo que eu vira abastado e feliz, havia cinco anos, esperdiçando seu dinheiro, que agora andrajoso, faminto, escaveirado, pede esmolas, expia seu grande crime — a imprevidência”. Como não temos a datação do momento de produção dos textos, fica difícil de avaliar o significado das afirmações de um e outro no contexto do pensamento de Rodolpho Theophilo. Mas não é de todo descabido conjecturarmos que o primeiro, Ceará o ferreiro da maldição, seja uma produção ainda de meados do século XIX, uma vez que se coaduna com o pensamento social dominante no período, inclusive com outros textos produzidos pelo próprio autor, no qual o determinismo geográfico reinava praticamente absoluto como explicação da seca. Opõe o selvagem ao civilizado, expondo toda a sua indignação em relação à civilização que “trouxe grandes males: moléstias que
  • 9. não tínhamos e vícios que não conhecíamos” e que “aperfeiçoa em nós maus instinctos”, afirmando que a cultura do espírito não aniquila no homem a ferocidade das bestas feras”. O que se observa é que, no texto sobre a imprevidência, se o determinismo ainda tem lugar na explicação, cede, no entanto, espaço e ênfase para uma explicação de natureza cultural, como um comportamento não desejável como o desperdício, a imprevidência, a dissipação, a corrupção e a prevaricação dos governantes com dinheiro público. Este texto, embora não tenha data de produção, pelas referências históricas nele contidas, principalmente ao governo Accioly, a quem o autor combateu ferrenhamente, deixa claro que o período da sua produção é com certeza o final da década de 10 do século XX, em data próxima a da sua publicação. Uma referência, na página 94, à seca de 1915, como tendo sido dois anos antes, confirma que, muito provavelmente, foi escrito em 1917. Com estes elementos, é possível pensar que Rodolpho Theophilo acompanhava o debate desse período, sendo sensível aos novos elementos que iam sendo incorporados ao pensamento social brasileiro que, sem perder o seu caráter cientificista, buscava incorporar à discussão sobre a construção da nação brasileira as contribuições que as emergentes Ciências Humanas colocavam à disposição. Muitos são os dilemas, angústias e embates vividos por Rodolpho Theophilo expressos nos seus textos. Um deles é sua angústia em relação aos paradoxos da ciência que, se ,por um lado, cria as possibilidades para melhorar a vida humana, por outro, poderá se transformar num grande mal para a humanidade, conforme aparece no texto O ópio. O autor dá o exemplo dó uso desta substância como uma conquista para o alívio das dores, mas indica que seu efeito colateral torna as pessoas viciadas, destruindo-as e levando-as à miséria orgânica. Exemplo de positividade da ciência está em Porque fui industrial? Ah, faz a descrição da sua experiência no combate às pestes e de todo o seu investimento em matérias primas e equipamentos. Relata o esforço pessoal de transformar o seu saber técnico- científico na produção da vacina contra a epidemia de varíola, no planejamento da aplicação dessa vacina na população, incluindo campanha publicitária na imprensa, escrevendo
  • 10. tanto para as câmaras municipais para engajá-las no combate à peste, como nos folhetos de orientação da necessidade e do uso do medicamento. Rodolpho realiza sozinho a enorme tarefa que caberia ao poder público e denuncia que este, além de não assumir as suas responsabilidades, tudo fez para sabotar e impedir a sua ação de farmacêutico, perseguindo-o e, deliberadamente, solapando suas possibilidades financeiras para continuar a realizar a missão que impôs a si mesmo, pois foi demitido do Liceu do Ceará, acusado de charlatanismo e improbidade nos negócios. Os dilemas entre uma afiliação cientificista que o levavam a expressar uma convicção intelectual determinista de um atavismo de sub-raça, do qual constituria-se o povo brasileiro, confrontavam-se constantemente com uma crença na possibilidade de construção de uma sociedade humana mais justa e igualitária. A sua prática talvez diga mais do homem Rodolfo Theophilo, que a irregularidade de concepções e das contradições dos seus escritos. Apesar do caráter desigual dos temários e dos textos, há algo que nos permite perceber uma unidade na obra Scenas e Typos: em todos os textos fica evidente o homem íntegro, defensor intransigente dos valores morais e cristãos que professava e fazia questão de afirmar, o cidadão com um profundo sonho de justiça social e militante atento e engajado nas lutas do seu tempo. A publicação de Sccenas e Typos em 1919, pelo Editor Assis Bezerra, da Typographia Minerva, diz não somente do pensamento de Rodolfo Theophilo. A opção da Fundação Waldemar Alcântara de garantir a publicação em formato fac- similar dos livros que compõem a Biblioteca Básica Cearense tem um grande mérito, pois, com isto, preserva elementos importantes no que se refere à possibilidade do pesquisador ter acesso à materialidade do livro na sua forma original, hoje um dos veios de pesquisa bastante fecundos quando se trata de uma história social do livro e da leitura. No caso da obra Scenas e Typos, vários destes aspectos podem interessar ao estudioso, desde o seu formato, a ortografia vigente na época da sua publicação, os cuidados do Editor Assis Bezerra ao agregar uma listagem com as obras do autor, a recomposição do catálogo
  • 11. de publicações da Typographia Minerva e a sua inserção editorial em Fortaleza, enfim, elementos estes e outros que por muito tempo foram desprezados e que hoje são considerados importantes na contextualização de uma obra ou das diferentes formas de trabalho que se agregam a um texto publicado. Por este caminho, os estudiosos têm tentado superar também uma velha querela em que conteúdo e forma exclufam-se mutuamente. Os que se interessam pela história social da cultura no Ceará só têm que festejar mais essa iniciativa da Fundação Waldemar Alcântara. * Dra. Ivone Cordeiro Barbosa, Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará.
  • 12. Rodolpho beophilo O O. OQ Scenas é Typos SUMMARIO O Ceará ferreiro da maldição. O bebedouro. Moedeiros falsos. Através do passado. Aitruismo. A imprevidencia do Cearense. As plantas assassinas, A troca da costella. Porque fui industrial? O supplicio da aranha. O opio. assess CEARÁ — FORTALEZA Editor ASSIS BEZERRA.—Typ. Minerva 1919
  • 13. DO MESMO AUTOR mea pipe Historia da Secca do Ceará (1877 a 1880). Seccas do Ceará, segunda metade do Se- culo XIX. Á secca de 1915. A Fome — romance. Os Brilhantes « Maria Ritta « O Paroara « A Violação-—conto, Violencia. Botanica elementar. Botanica elementar—de collaboração com o Dr. Garcia Redondo. Sciencios naturaes em contos. Libertação do Ceará. O Cundurú-—contos. Memorias de um engrossador. Lyra rustica—versos, Telesias Monographia da mucuná. Scenas e Typos. Variola e vaccinação em 1904. Variola e vaccinação em 1909. A entrar para o prelo: A sedição do Juazeiro. Curso elementar de Historia Natural. Coberta de Tacos. Occaso — versos Em preparação: “À secca de 1919.
  • 14. D q PRESADOS AMIGOS, Qutonio Sado e D. Lhice Sadie.25, | Com um affectuoso abraço do | . Rodolpho Bheophilo
  • 15. Pag. 18 20 « 70 86 Errata Dentre os numerosos erros typographicos, que se encontram neste livro, corrigimos aqui alguns mais graves, a saber : Linha 5º 3 6 7! 15º 128 30? 3 3º o os 23º 9º 1º 142 26º “24 e 28º 23º 3 23º em vez de leia-se serrarem-lhe serrar-lhe em com a casa á casa idiosyncratica idiosyncrasica instructivo instinctivo era empregado fôra empregado Fazem Faz fazem faz fará farão anthenas antheras pela da amanheciam “amanhecia tingiam “tingia somniferus somniferum as chama lhes chama foliolas foliolos Valisnerio Valisnéria nepanthas nepenthas colépteros coleópteros
  • 16. H Nim Pag. Linha em vez de eia-sel 114 6: Sobre Ponde 125 24 iizeram fizeram 133 8 cabras cobaias 136 302 camisa cara 141 20% objectivado ' corporificado Alem dos erros apontados, devem ser sup- primidas na leitura as palavras—tanto cabedal— a paginas 85, linha 23º A paginas 111, linha 1º, falta a primeira pa- lavrã do periodo, que deve ser lido assim: - Terminados estes, a tampa, etc.
  • 17. Ape» D Ceasá ferreiro da maldição Bella terra de Iracema, terra de areias brancas, de mar verde esmeralda, em que, á noite, o céo é azul como em: paragem alguma do mundo. Terra minha amada. como és formosa, como és infeliz! ... * Quando sahiste do cahos, quando te in- dividualizaste á face do planeta, entrando na communhão do Cosmos, os fados te sagraram martyr, e a Natureza te deu bel- lezas como não deu ás tuas irmãs, Nasceste sofírendo as inclemencias de um clima vario, predestinada ao martyrio, ora calcinada pelo sol, ora afogada nas aguas que cahem do céo. Martyressão os teus filhos desde os tempos dos caboclos nús, Representas o papel do ferreiro da mal... dição. o Nasceste com a sacola do mendigo pen- durada ao pescoço, não pela ociosidade de teus filhos, que são fortes, sobrios, opero-
  • 18. 4 sos, mas pela posição que te coube na for- mação da terra. " Outros padecem maiores desgraças, tor- “turas mais cruciantes, agonias mais lentas, mortes. mais tragicas. Os que vivem no polo, no gelo, sem flora, entre uma fauna de feras, condem- -nados ao frio eterno, a umi alimentação de azeite, são muitas vezes mais desgraça- dos do que os teus filhos. Os esquimós têm um tormento perenne. Têm noites interminas, insomnias de annos. Os que habitam as regiões dos vulcões, vivendo uma “vida de apprehensões e re- ceios, na imminencia sempre de um cata-. clysmo, sem uma noite de somno tranquillo, vendo o instante de serem tragados pelos terremotos ou carbonizados pelas lavas, -são mais infelizes tambem. A morte destes. é mais tragica, porem suave, porque é ins- tantanea. Os que são enterrados vivos, es- tes não; os minutos antes de perderem a consciencia devem ser de uma angustia su- prema. A asphyxia que os mata é rapida, quasi instantanea, a morte de teus filhos é lenta, é a fome chronica consumindo aos pou- "cos as reservas do organismo, depaupe- rando-o lentamente, inanindo-o, embotando os sentidos, pervertendo as qualidades psy-
  • 19. 5 chicas, até chegar a inanição, o marasmo, à morte! e. Aquelles que se acabam pelos cami- nhos, antes de chegarem ao porto de sal- vação, são mais felizes, embora fiquem sem cova e sem cruz, apodrecendo nas .estradas, cevando a gula dos urubus. ' Para que vencer a estrada da fome e cahir na estrumeira de um abarracamento de retirantes? .. - Cahir nessa verminá humana é atolar- se em todos os vícios. A inconstancia do clima fez-te madrasta de teus proprios filhos. A tua uberdade, as espessas camadas de humus, quaes as dos deltas do Nilo, esterilizam-se pela falta absoluta do orvalho do céo. Foste condemnada a viver de lagrimas quando tuas irmãs vivem de risos. Mái amantissima, com um seio farto as- sistes de quando em quando a fome ma- tar teus filhos. És entretanto mais feliz do que tuas irmãs, porque tua prole é forte, enrijada na tremenda lucta pela vida, com- batendo as inclemencias da Natureza. A secca uma vez por outra os exila, porem onde chegam não se deixam morrer de nostalgia: luctam e vencem. Foi assim que a Amazonia foi desbra- vada e povoada, Arrostando ali os peri.. gos de um solo pantanoso, ass intemperies
  • 20. 6 de um clima ingrato, o ataque dos selva- gens e das feras, rompendo tremedaes,. charnecas e urzaes, deixando os caminhos eriçados de cruzes de companheiros que ficavam mortos por toda a casta de fla- gellos, conseguiram cultivar e civilizar aquella grande terra. A secca fez de teus filhos os bandei- rantes do norte. Levaram a luz e illumi- naram o entendimento de seus irmãos sel- vagens. Não os fizeram felizes. A felicidade é uma cousa toda relativa. Os nossos maio- res indios viviam mais felizes do que nós vivemos. A civilização augmenta-nos os gozos a custa de lagrimas de sangue. A cultura do espirito não aniquilla no homem a ferocidade das bestas feras. O caboclo nú era mais humano do que o ho: mem moderno: aquelle matava para comer e este mata para destruir. Os gazes asphy- xiantes são uma prova. Os aeroplanos, os submarinos e outros inventos do engenho humano são machinas terriveis de destruição quando ao serviço da maldade. Os teus filhos eram selvagens, mas eram livres. A civilização é um captiveiro. Ella nos trouxe grandes males: molestias que não tinhamos e vícios que não conheciamos. Aperfeiçoou em nós os máus instinctos.
  • 21. pd ! reina A besta humana será sempre a mesma. O homem das cavernas é igual ao homem dos palacios. A differença é que aquelle an- dava nú e este anda vestido, O homem mo- derno mata com mais arte, furta com mais astucia e corrompe com elegancia, A flexa é mais humana do que a guilho- tina. O curare não tem o cortejo deshumano e lugubre da navalha da justiça, Mata sem os funebres e aterradores apparatos da morte, A -victima cahe ferida no seu sensorio. Morre sem conhecer as horas terribilissi- "mas do oratoriv, sem aguardar o momento de levarem-na para o matadouro. À humanidade será sempre uma vasa in- fecta, Da vermineira surgem divindades. Da podridão brotam lyrios immaculados. E' o contraste da noite e do dia. Pasteur, São Vicente de Paulo, Jenner e S. Francisco de Assis vêm das trevas projectando luz !... Cabral foi um criminoso arrancando o Brasil do desconhecido. | - Na communhão brasileira, tu és o fer- reiro da maldição. Tuas irmãs contam com a regularidade das estações, com a estabi- lidade do clima. Se não tens certas pragas que as perseguem, se não conheces o frio das geadas, a chuva de graniso, que arrasa as searas em instantes, a praga de gafa-
  • 22. 8 nhotos, o calor que insola, tens outros fla- gellos. devidos á anomalia de teu clima. A tua meteorologia é anomala, como são anomalos os seres que crias em teu seio. A planta da terra das seccas não tem zona propria para nascer e viver. As familias não escolhem terrenos, nem os individuos loga- res. Vegetaes ha que vivem nas praias, tendo as vagas a beijar-lhes as raizes. Individuos semelhantes vegetam nas serras a centenas de metros acima do nivel do mar e ainda outros vivem no alto sertão. O homem cearense tem a. mesma ano- malia da planta. Materialmente é de “uma resistencia organica assombrosa. Resiste á tome, á sede como nenhum outro homem de qualquer região da terra. E - Moralmente é um ser anormal, é um heroe. Coloniza a Amazonia e faz a aboli- ção do elemento servil! À jangada cearense symboliza a fraternidade humana. O janga- deiro vem do abysmo, das luctas com o oceano, acostumado a fitar o espaço que se não mede, e o mar de que não vê o fim, com alma cheia de piedade, afinada pela melopéa nostalgica das vagas. O Dragão do Mar fecha o porto do Ceará aos negreiros do Sul. E” um monstro que tem garras, mas tem um coração de santo. os O cearense é nomade por atavismo. Abandona a terra mãe, filhos pequenos, es-
  • 23. 9 posa, amigos, para acompanhar o primeiro aventureiro que q convida a deixar o tor- rão do berço. Vae, cumpre o fado, e depois cortado de saudades da terra dos verdes mares bravios, volta. Chegando, ajoelha-se, fita o céu azul da Terra da Luz, depois curva-se com grande reverencia, beija as areias brancas da praia e exclama commovido : minha terra, como és bonita. Tens a felicidade de ser muito amada por teus filhos. Elles serão os párias do Brasil emquanto os governos quizerem. : Não és tu que és ingrata; ingrato é o clima que te coube na meteorologia do mundo. Teus filhos vivem a mourejar noite e dia numa labuta sem treguas, cobrindote de searas, e ás vezes antes do amadurecimento dos fructos, vae-se o orvalho do céu, o sol dardeja raios de fogo, as vagens e as espi- gas inclitam-se das hastes, amarellecem e seccam sem terem geradas as sementes. Ou- tras vezes não é o sol que cresta as searas, é a inundação que as mata, afogando-as. Os rios, aquelles mesmos que o verão corta, ta- zendo no-leito um rosario de poços, assu
  • 24. 10. mtas mem proporções de correntes caudaes, sa- hem do leito e vão devastando o que en- conttam nas margens. Terra mãe, coube a teus filhos a sorte do ferreiro da maldição, quando tem ferro não tem carvão.
  • 25. (EEN SN Ne O bebedonto — nn q Estavamos em plena secca, 'Amanhecia. Um crepusculo fulvo allu- miava a terra com a clar idade de um incen- dio ao longe. “A pretidão da noite esmaecia. Já come- çava a se individualisar o contorno da flo- resta, a silhueta das montanhas ao longe. — À luz foi pouco à pouco se tornando mais “viva. No oriente assomou o sol, sem nuvens que lhe velassem.o disco. Parecia uma braza, uma esphera candente, suspensa no horizonte, visto atravez da ramaria secca das arvores. A floresta completamente despida, núa, sómente esqueletos negros, tendo na timbria acceso o facho que a incendiou, era de uma eloquencia tragica ! ... Amanhecia, e não se ouvia o trinado de uma ave, 0 zumbir de um insecto ! - Reinava o silencio das cousas mortas. Como manifestação da vida percebiam-
  • 26. 2 se os- gemidos do gado na agonia da fome, o crocitar dos urubús nas carniças: Amanhecia ... a claridade mais intensa tornava a tristeza daquelles logares. Melhor seria que continuassem dissolvidos no borrão da noite. O vento de leste, o gerador da secca, á proporção que o dia crescia, augmentava de intensidade. Começára. por uma aragem branda, tão branda que não arrepiaria a plumagem de uma ave, se é que destes domínios da mort não tivessem emigrado para as praias os can. tores da matta, e agora, dia alto, remoinhava do sertão afóra, estalejando, torcendo e que- brando a ramaria secca das arvores! Do solo combusto e negro, levantava as folhas em remoinho; aquelle funil de folhas mortas ia se atufar em medas no tronco das ar- vores. Logo que 0 dia alteou, o gado deixou as malhadas e foi caminho do bebedouro. Lugu- bre era aquelle cortejo de famintos. Muitas re- zes não se puderam levantar; resupinas no solo, ainda vivas eram devotadas pelos urubús. A atonia da inanição e o marasmo da fome não permittiam o movimento de um mus- culo, a menor acção de defesa contra os corvos. O repasto, a entrada do banquete come- çou pelos olhos da victima. Aquellas pupil- las negras, que a fome havia dilatado, em
  • 27. nana, estagnação melancholica se fitavam nas figu- ras pretas e agoureiras de seus matadores, até que o bico adunco da rapina neilas se enter-, rasse como a ponta de um espinho, e então tudo escurecia, e a morte chegava produ- zida pela cruciante dôr da punhalada. O cortejo ia caminho da aguada. Eca uma procissão de esqueletos. Um gado ar- repiado, quasi sem fórma. caminhava trambs- cando. Muitas rezes iam ficando pelo cami- “nho; e, cahidas que fossem, iam-n'as devo- rando ainda vivas os uubús, Ãos uivos da ventania casava-se o croci- tar do: corvos, em lucta por um maior pe- daço de intestino. Quando o vencedor con- seguia apoderar-se do quinhão disputado, vôava de espaço a fora, com o farr apo de tripa pendurado do bico! . E o céo, de puro azul desaphira, se ar- queava indiferente a tanta míseria, esbatendo na azulin tela o pedaço de terra condem- nado, tio eloquentemente representado por aquella scena macabra: corvos volteando em Inrgas espiraes sobre as victimas da “Tomé ! O repasto dos corvos era miseravel. A presa, pode-se dizer, era sómente ossos, couro e visceras mirradas. Poucas rezes conseguiam chegar ao be- bedouro. Ahi, desde que o sol sahiu, uma dezena de homens combatiam contra a sec-
  • 28. Ra cura do solo querendo com os seus alviões arrancar agua das entranhas da terra. Era uma lucta titanica! .. Mettidos em uma socava, no leito de um rio, guardada por altas ribanceiras, aquelles heroes, aquelles fortes, dignos rebentos de uma raça privilegiada pela resistencia e pela resignação, rasgavam a terra em demanda d'agua para os seus gados. E a terra ia vertendo avaramente o pre- cioso liquido, consoante a sua formação geo- logica em gottinhas que mal davam para hu- medecer a superficie dos ferros que a reta-. lhavam. A essa luta ingente assistia o gado, olhando das ribanceiras para a excavação. O olhar amortecido, quasi apagado das rezes se fitava nos trabalhadores, e estes, compade- cidos da sorte do; animaes, com mais afan proseguiam no serviço. o Algumas rezes mais sedentas lambiam a terra humida para illudir a sêde. Era meio dia; e o sol, descendo a. pino, numa vertical de fogo mordia em cheio o dorso dos trabalhadores, cuja pelle aljofrada de suor parecia envernizada. O calor era asphyxiante no fundo da so- cava. A luz do sol, reflectida por aquelle solo nú, encaúdeava. Os lagedos incrusfados de mica, de
  • 29. 15 quartzo, completamente expostos, sem uma mancha de musgo nem uma sombra de ca- ctus, feridos pela luz, faiscavam em reverbe- rações de cegar. Os trabalhadores offegavam, mas não es- moreciam. . O at ambiente, fortemente aquecido fre- mia em vibrações perennes. A” proporção que a excavação descia, a humidade ia-se acabando aos poucos. Acabou-se a camada de areia e com ella a esperança de agua proxima. Os ferros al- cançaram a piçarra. Tremenda foi a desillu- são. Era impossivel vencer aquella camada cuja espessura não se podia avaliar. Os trabalhadores puzeram os ferros aos hombros e subiram. Os olhos das rezes instinctivamente se fi-. taram nos sertanejos. De alguns cahiram la- grimas. Parece que comprehendiam a reti- rada daquelles homens e a sua. sentença de morte. “Os matutos olhavam com grande piedad para o gado, quando viram vir, caminho do bebedouro, um touro de desmedida estatura, esqueletico, trambecando. O Faisca !! O Faisca !.. : exclamaram a uma voz. Aquella exclamação de espanto deante de uma rez que só tinha ossos e pelangas era
  • 30. 16 “muito justa: o Faisca havia sido o touro mais famoso daquelles sertões. Agora, vencido, cambaleando sem forças para dar um chouto, procurava o bebedouro rendido pela sede. Um dos homens que ali : estavam, de quasi cincoenta annos, muito vi- goroso ainda, espadaúdo, de bôa muscula- tura, olhava com grande interesse para o ani- mal que se approximava. —E' o Faísca... Só o reconheço pela armação, pelo tamanho, pelo ferro e pelo sig- nal da testa, disse o matuto aos companhei- ros. | O touro approximou-se da ribanceira e parou. O sertanejo chegou-se a elle e, com grânde reverencia e muita piedade, acari- nhou-o alisando-lhe o pello-arrepiado repeti- das vezes. À rez era uma riina. Às cristas dos quadris haviam furado o couro, e das feridas marejava uma salmoura fetida !... O touro parecia sentir o afago do serta- nejo. Voltou a cabeça e fitou no matuto seu olhar morto, melancholico, quasi apagado. O vaqueiro apiedou-se mais do animal. Aquelles olhos sem luz, de uma ternura do- entia, quem diria fossem os mesmos olhos de outr'ora — vivos, faiscantes, cujo iris de gran” des pupillas negras estava sempre afogado
  • 31. M numa esclerotica de sangue e agora se afoga- vam núma esclerotica moribunda!. O miseravel estado da rez trouxe á mente do sertanejo a lembrança da ultima vez que a vira. Que saudades tinha daquelle tempo! Evocavã o passado, um passado apenas de: cinco annos, e as recordações lhe acudiam á mente o desalentando. Comparava aquell=s "mesmos lugares, cheios de vida outr'ora e hoje reduzidos, pela secca, a uma extensa queimada com as tristezas de um vasto ce- miterio! Da floresta opulentamente enfo- lhada, rica de seiva e de perfumes, nem mais um gommo a expandir-se em flores; restava sómente o esqueleto, a ramaria morta a bracejar no espaço, numa blasphe- mia muda fitando o sol,o seu grande as- sassino sem uma folha que abrigasse um in- secto ! Era em agosto, e aterra regorgitava d'agua. Os açudes, as lagoas, as ipueiras sangravam desde março. Os rios corriam ainda de nado de ribanceira a ribanceira. Por toda a parte risos, cantos e flores. Via-se a natureza na alacridade que lhe dera um inverno farto!... Era assim o sertão na derradeira tenta- tiva que fizeram para capturar o Faisca. | Vinte vaqueiros dos mais afamados do logar tendo descoberto o bebedouro do no- vilho, foram esperal-o.
  • 32. 18 Todos prelibavam o gozo de vel-o preso, com surrupeia, caminhando para o curral como um boi manso. Ahi haviam de, por suprema affronta, castral-o e serrarem-lhe as pontas. À vaqueirama tinha por certa a prisão do Faisca. Vestidos de couros novos, montados em cavallos amesti ados, seguidos por uma matilha de mais de vinte cães de gado, amanheceram no bebedouro. Ahi estiveram até anoitecer e o Faisca não appareceu. - No dia seguinte, ao quebrar da barra, já estava a vagueirama a postos. Outro dia perdido : o novilho não veio á aguada. Voltaram ao bebedouro na madrugada do dia seguinte. Sertam dez horas da manhã quando as- somou o Faísca no extremo da varzea onde costumava beber. Os vaqueiros haviam tomado posição. O novilho entrou na varzea, a passo, meio. sarapantado, resfclegando a miudo. Queria conhecer pelo faro se havia gente na matta. José Bernardo era o vaqueiro mais famanaz daquelia ribeira e como tal che- fiava a vaqueirama. Um dos vaqueiros mor- didos de impaciencia não se conteve. An- tes do touro chegar á fonte e botar a boca nagua gritou:
  • 33. 19 "—Olhe o boi, seu Zé Bernardo. O touro assustou-se e desapareceu em procura da catinga. Os vaqueiros acompanharam- no. Tanto corria o novilho como a vagitei- rama. À sorte estava lançada. Se o Faisca conseguisse sahir da Var- zea e entrar na matta, a partida estava per- dida. Suppuzeram derribal-o antes que al- cançasse a matta, mas enganaram-se: o bi- cho enterrou se de matto a dentro e com elle enrabichada a vaqueirama. Segundos de- pois o silencio daquelles ermos era que- brado por um ruido surdo semelhante ao rolar de trovões ao longe. O estalejar dos pãos que o touro ia quebrando contra o peito, o ladrar dos cães, o grito dos va- queiros, o tropel das cavalgaduras, tudo'se fundia no som cavo e longo e o echo re- petia ao longe na crista dos outeiros ergui- «dos na planície. O ruido foi esmorecerido aos poucos até que se acabou. Uma hora de- pois voltavam os vaqueiros sem o Faisca, todos arranhados, tendo um delles um braço quebrado. Tinham botado o touro no mato. Esta ultima reminiscencia da vida do touro fez crescer, mais ainda a piedade do matuto. Era um forte que a fome havia vencido. Sorte egual estava, talvez, reser- vada para elles, que não eram bichos.
  • 34. . 20 O touro conservava fito o olhar no vaqueiro, como se estivesse lendo os pensa- mentos deste. Olhava-o agora em olhos cheios d'agua. O matuto, em lagrimas, tam- bem se despediu do vencido e com os com- panheiros voltou a casa. No dia seguinte voltariam a procurar agua, cavando outro bebedouro.
  • 35. E segErgo E Moedeiros falsos eme Zs Um destes dias a chuva não me deixou sahir de casa, pela manhã, como costumo. À temperatura estava agradabilissima, 23 centigrados. Recolhi-me ao gabineie e ahi scismava nas cousas da vida, sentindo uma volupia, que só a alma do cearense é capaz de sentir, ouvindo o tamborilar da chuva no telhado. À agua ia cahindo das nuvens, ora numa garôa fina e meúda, ora em bategas fortes que fustigavam ós vidros das janellas. Estas manifestações de inverno o Ceará devia recebel-as com festas, porque festejaria a sua paz, um anno de bonança. Esquecemos que estamos sempre no in- terrégno de uma secca que vai e outra que vem, e que a secca é a nossa suprema an- gustia. Esquecemos depressa o flagello. Em 1915 tivemos um repiquete de secca que matou milhares de rezes, mais animaes
  • 36. 22 do gtie homens. Bastou o inverno de 1916 para apagar em nós aquellas tristes e do- lorosas lembranças. Não festejamos a chegada do inverno, não lhe damos as bôas-vindas, com cantos e flores, porque pensamos que nunca mais o homem e os seus rebanhos morrerão de fome nos campos e nas estradas, que a in- clemencia da natureza jamais fará victimas. Somos indiferentes á vinda do fertili- zador da terra, e no entanto por qualquer futilidade engalana- -se a nossa capital, feste- jando uma data sem importancia. Em 1915, quando Fortaleza tinha alguns mil retirantes e os bandos precatorios per- corriam as capitaes dos outros Estados, pe- dindo esmolas. para nos matar a fome, nós festejavamos a chegada de um vaso da nossa marinha de guerra, offereciamos á sua digna officialidade bailes e banquetes a «cham- pagne». A chuva continuava, e eu, para matar O tempo, procurei um livro. Fui á estante e o primeiro em que puz a mão foi- <O Pão» —da gloriosa — «Pada- ria Espiritual». Feliz coincidencia! Tinha com que me deleitar, ia remoçar vinte-annos, viver das gratas recordações do passado, em que meu espirito de moço tinha illusões e era crente.
  • 37. 2 Aquellas folhas estavam impregnadas do perfume suave das flores da mocidade. “Nellas eu acharia um lenitivo aos des- enganos da velhice, ás saudades dos tem- pos idos, das illusões que ficariam perdi- das pelos ínvios caminhos da existencia, se avivariam, mas me confortando, como bem disse o Garrett. Abri o livro e me vi cercado dos meus bons e queridos companheiros da Padaria, dos quaes a morte levou a maioria ainda no alvorecer da vida. o “ Transportei-me em espirito áquelles tem- pos e fui cavando o passado. o Que agradaveis reminiscencias! As ses-. sões aos sabbados, aquelles inesqueciveis se- rões litterarios, eu os estava assistindo; as figuras que eu via espiritualmente se cor- porizavam e eu as estava vendo como naquella epoca, A illusão era perfeita! Que saudade me pungia todo! ... Todos el- les ao redor de mim, como se a mór parte delles pudesse se erguer do sepulchro e para mim vir! Via o Almeida Braga em plena virili- dade, vigoroso e forte, com a sua logica de ferro e fina «verve», a sustentar para- doxos; o Sabino Baptista, alma toda affec- tiva, bom poeta, a applaudir as anecdotas de José Carvalho, outro bello talento, tendo em grande conta os seus ascendentes, entte os
  • 38. 28 quaes figura D. Barbara, com as suas garga- lhadas homericas; o Antonio Bezerra, de to- dos nós o mais velho, uma cabeça de 50 an- nos com um cerebro de creança, poeta e his- toriador, a fazer espirito relatando episodios comicos de sua mocidade ou recitando tre- chos de seu Zé Guedes ou do paletot de crescimento; o Antonio Salles, magro, mo- reno e pallido de dispepsia, com seu olhar scintillante, trincando um charuto a recitar bellissimos versos que nos enchiam de en- thusiasmo; o Arthur Theophilo, muito fran- zino, um problema de homem, mas espirito gigante, a ler em voz fraca e rouca o seu conto — «O caso do Sargento» — no qual não sei o que era mais admiravel, a forma ou a concepção; o José Carlos Junior, nosso padeiro-mór, pequeno, no qual a natureza | descurou do physico, mas em compensação | se esmerou no espirito, a ler com dicção clara as bellas paginas de seu romance em preparação, — «Os canhões amarellos»; o An- tonio de Castro, muito forte e vigoroso, aca- nhado como um collegial a recitar lindas estrophes de suas Marinhas; o Ulysses Be- serra, um magricela, com o qual a natureza foi ingrata quando lhe armou o arcabouço, mas penitenciou-se de tal injustiça, dando- lhe um bom intellecto, a recitar as suas «Paginas Soltas»; o Roberto de Alencar, de nós o mais moço, 6 nosso Benjamin, a
  • 39. 25. ler com grande timidez as suas «Rosas» ; o Lopes Filho, moreno e magro, um bom poeta, a recitar com emphase os seus ver- sos <O cahir das Folhas»; Waldemiro Ca- valcante, um grande espirito, republicano historico, que morreu desilludido dos ho- mens, da Republica, e que ajudou a fazel-a e que acabou martyrizado por uma molestia cruel, porém com uma fortaleza de animo “fóra do commum e uma resignação evange- lica, com sua physionomia sympathica e attrahente, rosto muito branco e barba longa à Nazareno, fazendo contraste com a es- pessa cabelleira negra, a ler bonitos tre- chos de prosa e apurado estylo; o José Nava, muito alto e magro, de rosto com- prido, muito novo ainda, imberbe, desem- baraçado, espirito folgazão, a ler os seus ensaios literarios; o Cabral de Alencar, Ca- bralzinho, como nós lhe chamavamos, por ser rachítico, um emulo do Arthur Theo- philo no corpo e no espirito,a estrear com um bellissimo conto tão empolgante que o Almeida Braga, finda a leitura, que foi ou- vida em absoluto sileúcio, perguntou-lhe: menino, isso foi escripto por você ? Henri- que Jorge, outro magricela, pequeno, hoje um reputado maestro, a executar no violino trechos classicos, cujas harmonias nos ex- tasiavam; Xavier de Castro, a recitar os seus bellissimos chromos, quadros do viver do
  • 40. 26 povo, verdadeiras aguarellas que muito nos deleitavam; o Eduardo Saboya, moreno e folgazão, de pequena estatura, mas a reve- lação de um grande espirito, embora ado- lescente, recitando alguns capítulos do seu conto de estréa «Contos do Ceará» ; Luiz Sá, um adoradôr de Miguel Angelo, muito desconfiado, sempre meio escondido, com grande talento, mas pensando que as nos- sas pennas valiam mais do que o seu pincel, a nos dar bellos frescos, paisagens da nossa natureza; Francisco do Valle, muito vigo- roso, com muita saude, a recitar um soneto fazendo o perfil do Marcos Serrano. E essa pleiade de intellectuaes, os nossos futuros scientistas e literatos, da qual dois terços são mortos ia desfilando pelo meu espirito e fazendo que todo vibrasse de uma saudade que me pangia, que me tras- passava, saudade da minha mocidade, sau- dades daquelles amigos. A reorganização da Padaria deu-se em 28 de Setembro de 1894, como se verá da acta da installação a seguir : Forno da Padaria Espiritual, na Forta- leza, 28 de Setembro de 1894. Presentes os padeiros Moacyr Jurema, Frivolino Catavenio, Satyro Alegrete, Aure- lio Sanhassú, Corregio del Sarto e Anatolio Gerval. Moacyr Jurema dirigiu interina- mente a fornada,
  • 41. 21 No intuito de preencher diversas vagas occorridas no seio da Padaria foram convi- dados dez rapazes de letras os quaes se acha- vam presentes tomando como nomes de guerra os que aqui vão diante dos outros que lhes dá o vulgo a saber: José Carlos Ju- -nior — Frei Bernardo ; Rodolpho Theophilo — Marcos Serrano ; Almeida Braga — Paulo Gi- ordano; Valdemiro Cavalcante — Ivan d'Asof; Antonio Bezerra —- André Carnauba; José Carvalho — Cariry Brauna; Xavier de Cas- tro -Bento Pesqueiro; Eduardo Saboya — Braz Tubiba; José Nava -Gil Navarra e Roberto de Alencar — Benjamin Cajuhy. Moacyr Jurema fez a leitura do interes- sante Retrospecto da vida da Padaria a con- tar de 30 de Maio de 1892 da sua fundação. Como esse trabalho não estivesse completo á falta de tempo por isso ficou a conclusão para ser lida na proxima sessão de sexta- feira. Foi unanimemente approvado o decreto de expulsão fulminado ha tempos contra o ex-padeiro Polycarpo Estouro, sujeito que, com uma. impudencia abaixo de qualquer qualificativo insolente, juntou-se á burguezia para hostilizar-nos. Foi igualmente votada a exclusão de Lu - cio Jaguar e Tullio Guanabara que no Rio de Janeiro onde residem actualmente, falta -
  • 42. 28 ed açao ram de uma maneira lastimavel á confiança que nelles depositava a Padaria. Resolveu-se não tomar por hora conhe- cimento da renuncia que fez Venceslau Tu- piniquim do cargo de Padeiro-mór, encar- regando-se Paolo Giordano de entender-se com elle sobre o caso, o que determinou o adiamento da eleição que se pretendia fa- zer para esse cargo. Decidiu-se que cada padeiro apresente em todas as sessões um trabalho qualquer desde o poema até a anecdota. Accordou-se que o «Retrospecto» apre- sentado por Moacyr Jurema seja impresso em folheto para ser distribuido por esse mundo de Deus. E finalmente combinou-se que as ses- sões da Padaria serão d'ora em vante se- manaes, nas sextas-feiras, na casa do padeiro que para isso for previamente intimado. Terminou a fornada pela leitura de um curioso trabalho sobre Occultismo e Ex- trambotismo que provocou um forte ataque de nervos em André Carnahúba e cyclopi- cas gargalhadas ao Paolo Giordano. A's 91/4, depois do café, suspendeu-se a tornada, designando-se para a de sexta- feira proxima a casa de Marcos Serrano, onde o café será substituido por vinho de cajú.
  • 43. 29 Se alguma coisa mais se passou é recla- marem, porque eu só me lembro disto. Moacyr Jurema, Padeiro-mór interino; Frivolino Catavento, 1.º Forneiro interino; Satyro Alegrete, Bento Pesqueiro, Corregio del Sartó, Anatolio Gerval, Braz Tubiba, Gil Navarra, Benjamin Cajuhy, Marcos Ser- rano, Bruno Jacy. Em tempo: Frei Bernardo pediu e lhe foi concedido que em vez deste nome de guerra usasse do de —- Bruno Jacy — do qual se servirá sempre que estiver em suas fun- cções. 28—- 10 — 1894, — Moacyr Jurema. Depois daquellas reminiscencias, come- cei a folhear «O Pão», Abri o primeiro numero, a chronica da semana, assignada por Lopo de Mendoza, ou seja Arthur Theophilo. Pagina escripta em portuguez de lei cheia de poesia e de verdades. Era a primeira vez que <O Pão» circulava, depois de um longo interregno. A antíga Padaria, composta quasi na sua totalidade de bohemios, mas que reunia em st os maiores talentos da epoca, Antonio Sal- les, Adolpho Caminha, Lívio Barreto, Alvaro Martins e outros, havia desapparecido. Para se fazer uma idéa da velha Pada- ria, cujos estatutos foram approvados em sessão de Maio de 1892, vou transcrever al- guns dos seus artigos. ,
  • 44. 30 Art. XIX. E” prohibido fazer qualquer referencia á rosa de Malherbe e escrever nas folhas perfumadas de albuns. Art. XXVI. São considerados desde já inimigos naturaes da Padaria os padres, os alfaiates e a polícia. Nenhum padeiro deve perder occasião de patentear seu desagrado a éssa gente, “Art. XXXVIII. As mulheres como entes frageis que são merecerão todo nosso apoio, exceptuadas as fumistas, as freiras e as pro- fessoras ignorantes. XXVIII. Será punido com expulsão im- mediata o Padeiro que recitar ao piano. XLV. O Padeiro que por infelicidade tiver um visinho que aprenda clarinete, piston ou qualquer outro instrumento irri- tante, dará parte disto á Padaria, que traba- lhará para dar termo a semelhante supplicio. A acta da installação da antiga «Padaria Espiritual» é concebida nestes termos: Forno da Padaria Espiritual, 30 de Maio de 1802. 1.2 fornada. — Direcção interina do 1.º forneiro Moacyr Jurema, por se achar au- sente o Padeiro-mór, Venceslau Tupiniquim: Presentes os Padeiros Moacyr Jurema, Lucio Jaguar, Frivolino Catavento, Alcino Bandolim, Miguel Lynce, Felix Guanabarino, Polycarpo Estouro, Lucas Bizarro, Ignacio Mongubeira, Anatolio Gerval, Salasot Mi-
  • 45. 31 rim, Corregio del Sarto, Tullio Guanabara, José Marbry, Silvino Batalha, Paulo Kanda- laskaia. Compareceram muitos cidadãos igna- ros de mais ou menos importancia e algumas donzellas. A's 71/2 da noite começou a Fornada pela Leitura do Programma de installação feita pelo Gaveta, que exerceu interinamente as funcções de 1.º forneito. Moacyr Jurema leu a carta dirigida a Ramalho Ortigão e Felix Guanabarino a di- rigida a Guerra Junqueiro. Foram lidas as seguintes producções : «Cuidado ...», soneto de Moacyr Jurema ; «Alfredo Peixoto», quadras de Polycarpo Estouro; «Pobre», soneto de Lucas Bizarro; «Recordações», soneto de Tullio; «Padaria do Amôr», poesia de Anatolio Gerval. Em seguida, foram executadas as produc- ções musicaes - «Pão Duro», valsa de Sa- lasot Mirim, e «Padaria Espiritual», polka do flautista Nascimento. O edificio da Padaria achava-se emban- deirado e adornado de iestões de flores na- turaes e retratos de celebridades artísticas. Tocava nos intervallos a banda de musica do Batalhão de Segurança do Ceará. Aca- bou-se a fornada ás 8 1/2 da noite. Depois de retirarem-se os cidadãos ignaros, serviu- se cerveja aos Padeiros que fizeram espirito até 10 da noite.
  • 46. 32 Todos sahiram então á rua acompanha- dos de violinos, flauta e violão, e dirigiram- . se em serenata ao Café Tristão, onde toma- ram café. Percorreram diversas ruas e che- garam afinal á Avenida Ferreira, onde cada qual tomou seu rumo. E foi assim que se rea- lizou a primeira fornada da Padaria Espi- ritual. Eu, Frivolino Catavento, 1.º forneiro in- terino, que o digo, é porque o vi. Venceslau Tupiniquim, Jovino Guedes; Moacyr Jurema, Antonio Salles; Frivolino Catavento, Ulysses Bezerra; Alcino Bando- lim, Carlos Victor; Anatolio Gerval, Lopes Filho; Paulo Kandalaskaia, J. Victoriano; Tullio Guanabara, Themistocles Machado; Lucas Bizarro, Livio Barreto; Corregio del Sarto, Luiz Sá; Lucio Jaguar, Tiburcio de Freitas; Silvino Batalha, J. Moura Caval- cante; Felix Guanabarino, Adolpho Cami- nha: Salasot Mirim, Henrique Jorge; Igna- cio Mongubeira, Gastão de Castro; José Marbry, Raymundo Theophilo Moura; Mi- guel Lynce, J. dos Santos. Essa aggremiação de bohemios deu grande incremento ás letras patrias, tornan- do-se notavel e conhecida em todo o Paiz. Durou pouco. Dissolveu-se por terem-se mu- dado de Fortaleza alguns e outros deste mundo. Os que aqui ficaram, em numero de 6
  • 47. 33 mais ou menos, reorganizaram a Padaria, dando-lhe um tom mais sério. Foi eleito Padeiro-mór José Carlos Ju- nior, que morria tempo depois e foi por mim substituido, À segunda phase da Padaria Espiritual foi um successo, o que attestam o jornal «O Pão» e uma duzia de livros publicados em prosa e verso. Continuando a leitura da chronica de Lopo de Mendoza, encontrei estes periodos : «Não ha póvo que tenha como o Brasileiro menor noção de obrigações civicas Não ha Brasileiro que não lave um sello ser- vido para utilizal-o de novo, ou que não dê uma risada gostosa ao commetter uma tran- sação qualquer lesiva da Fazenda Nacio- nal. E isto sem a menor cerimonia, sem escrupulos, «honestissimamente». Estes conceitos, estas verdades inconcus- sas que naquelle tempo subscrevi e hoje, com mais de vinte annos de convivencia com os homens, mais conhecedor de suas miserias, de suas torpezas, subscreveria com mais con- sciencia ainda, foram recebidas por alguns burguezes em Fortaleza na ponta da espada. Julgaram-se offendidos e devolveramo jornal, escrevendo nelle palavras descortezes e até ínsultos. Guardo essas reliquias, essas velharias ao lado de outras, não menos ca- ras, porém noutro sentido, como «O Tempo»,
  • 48. 34 pasquim que aqui se editou á custa dos co- fres publicos no tempo dos Acciolys, que eram seus proprietarios. Este pasquim já consolou a um amigo meu, o notavel engenheiro Arrojado Lisbôa, que aqui foi insultado em boletim profusa- mente distribuido. Mostrando-me elle o pasquim, disse-lhe : peior fizeram commigo e mostrei-lhe a col- lecção d'<«O Tempo» e nella um romance pornographico, entrando na vida do meu muito presado amigo, dr. Waldemiro Ca- valcanti e por mim assignado. A” vista disso, o dr. Arrojado consolou-se. Não conservando na memoria o nome dos que deyolveram «O Pão» e curioso de relembral-os, fui ao limbo e os arranquei de lá, amarellentos, empoeirados, cheios de bolor. Que decepção não foi a minha, quando encontrei. entre aquellas figuras, tidas, há vinte annos, como honradas, e tão puras, tão susceptiveis que se melindraram com os con- ceitos do Arthur, três passadores de moedas falsas ! O destino tem dessas ironias e o tempo nos reserva essas surpresas. Faço ponto porque estou com a tenta- ção de escrever o nome dos três patifes que passam por honrados senhores. Entre elles ha .
  • 49. Através do passado — cão e Eu. ouvia missa dominical na igreja do Rosariô, em que me baptisaram, havia mais de meio seculo, Este pequeno templo, antes de edificada a Sé, servia de matriz. Frequentavam-n'o então o governador da capitania e a élite da cidade, composta de portuguezes. Era tambem a igreja dos escravos, mas isto uma vez no anno. Tinha patrimonio e irmandade. Celebrava-se nella a festa da padroeira, com missa cantada e assistencia real. Ainda alcancei esse tempo, que já vai longe. Era o dia dos captivos o dia 6 de Janeiro, dia de Reis. Em seu dia, esses desgraçados eram li- vres, tanto que tinham patria como os seus imperantes. A” hora da missa, seguiam para a igreja o rei, a rainha e a córte. O rei era um preto já idoso, de manto, sceptro e corda. À rainha, uma escrava, meio velha, acom-
  • 50. 36 panhada de suas damas de honor. Na Capel- la-mór estava armado o throno, em que se deviam sentar suas majestádes. Logo que chegava o rei com a sua côr- te, entrava a missa, que era cantada, com repiques de sinos e foguetes. O casal de es- cravos sentava-se no throno com ares de quem estava convencido da realidade da scena, representada tambem pelos reis dos brancos tão ou mais ridículos de sceptro e “corôa do que elle. Acabada a missa, sahia o cortejo real de cidade a fóra até o pala- cio, em que passava o resto do dia a co- mer, a beber, a dansar, festejando as pou- cas horas de liberdade que todos os annos lhe concediam os senhores da terra, que primeiro libertou os seus escravos. Fortaleza nesse tempo era uma aldeia, as casas mal acabadas, baixas, as ruas tor- tas, como as que ainda hoje existem na Tra- vessa do Rosario, que vai sahir na Praça dos Voluntarios. O cunho de belleza que tem hoje a cidade deu-lh'o o boticario Fer- reira, quando Presidente da Camara Mu- nicipal. ' Fortaleza era edificada em um areal sá- faro, como se vê ainda hoje nos suburbios, o que muito difficultava o transito. As senhoras de distincção iam á missa em palanquim, Entre estas estava minha avó paterna, para quem o marido, o portuguez
  • 51. BL Manoel José Theophilo, negociante abasta- do, mandára vir da terra um muito lindo. “Comprára uma parelha de escravos, pa- recidos, como se fossem cavallos de sége. Aos domingos, lá iam aquelles desgraçados, atrelados, carregando a senhora para a igreja. Quando minha avó me contava esta historia, eu, que era-tão abolicionista quanto ella es- cravagista, condemnava aquella barbarida- de; a velhinha ria-se e dizia-me que o es- cravq, vinha do começo do mundo. Um domingo, eu ouvia missa na igreja do Rosario, na Capella-mór, e, não sei por- que, me veio á lembrança um caso ali suc- cedido com meu bisavô, o Sr. Manoel Gas- par de Oliveira, licenciado em medicina e cirurgia pelo physico-mór do Reino, no tempo que o melhor tratado de therapeutica era o de João Curvo Sem Medo. Eu via a figura do licenciado, como a pintava minha avó, sua filha, no dia do acon- tecimento que tanto influiu no destino delle. O Sr. Manoel Gaspar cra um homem alto, magro, de pernas finas e um pouco - tortas. la sempre á missa trajando á côrte. Vestia casaca e calções curtos de velludo, que mais salientavam a tortura das pernas mettidas em meias de sêda côr de carne, sa- patos de verniz de entrada baixa, com fivel- las de ouro, cabelleira empoada, com ra-
  • 52. 38 bicho; tal era a toilette e a figura do meu avoengo nos dias de missa ! Era filho do agricultor portuguez Ânto- nio Gaspar de Oliveira, dono do sítio Pre- cabura e outros, em Aquiraz. Do consorcio deste portuguez com uma senhora da celebre familia Feitosa sahiram alguns filhos, entre estes o meu bisavô, Ma- noel Gaspar de Oliveira, D. Luiza Gaspar de Oliveira Bevilaqua, avó de Clovis Be- vilaqua, e Maria Gaspar de Oliveira, que se casou com o portuguez Manoel Rodri- gues Samico. Uma das filhas deste casal, D. Izabel Samico, casou com o portuguez Manoel José Theophilo, e deste consorcio sahiram dez filhos, entre os quaes onotavel jurista, Dr. Manoel Theophilo Gaspar de Oliveira, o Dr. Marcos José Theophilo, me- dico, meu pai, e D. Maria do Carmo Theo- philo e Silva, mãe do poeta Juvenal Galeno. No mesmo logar, em que eu ouvia mis- sa, em um domingo tambem, mas no amno de 1821, o Sr. Manoel Gaspar de Oliveira, vestido á côrte, soffreu uma descortezia a que o seu genio, altivo em demasia, deu fó- ros de affronta, Não havia entrado a missa, e já se acha- va meu bisavô perfilado na Capella-mór, todo reverente com os olhos fitos no Cruci- ficado, esperando que começasse o sacrifício. Estava naquella adoração muda sua alma
  • 53. 39 de crente, quando o despertou, batendo-lhe no hombro, um soldado da guarda do go- vernador Robim, para dizer-lhe estas pala- vras que quasi o fulminaram: — Aqui só quem ouve missa é o Sr. Go- vernador e sua real familia. Manoel Gaspar ouviu a intimação e o seu espirito vibrou num arrepio de revolta. A imagem da Patria desenhou-se em sua mente, e elle sentiu a posição humilhante della, serva de um paiz pequeno, de homens atrevidos e ambiciosos que levavam o seu poderio até dentro dos templos ! Quiz gritar ali mesmo, perante o Deus que irmanou os homens, a independencia de sua patria, que- brar os ferros do grilhão portuguez. Humilhado sahiu da igreja rumo de casa. la desesperado. Aquelle grande espi- rito não se conformava com o captiveiro. Chegando ao lar, disse á mulher numa voz cujo timbre exprimia a tempestade que lhe ia n'alma: — Senhora D. Joanna, arrume as malas que em terra em que marinheiro manda até dentro da igreja, eu não moro! Aquellas palavras. eram uma sentença, um facto consumado. Entrar a mulher em considerações, não demoveria o marido do seu proposito. Nun- ca houve na vida quem fizessse o Sr. Manoel Gaspar mudar de opinião. Quem seria capaz
  • 54. 40 aaa de fazel-o torcer o rumo, uma vez conven- cido de que ia direito? A Senhora D. Joanna valeu-se das la- grimas, porem, inutilmente. Tempos depois, meu bisavô, com mu- lher e filhos, formando grande caravana, deixava Fortaleza em rumo do sertão. Quando perguntavam qual era o seu destino, respondia : -uma terra que seja dos brasileiros. Em Baturité fez estação, obrigado pelo adeantado estado de gravidez da mulher, até que esta teve creança e acabou o res- guardo. Restabelecida a Senhora D. Joanna, pro- seguiram a viagem, estacionando em Qui- xadá. Ahi, encontrando meu bisavô muitos doentes, demorou-se no serviço de sua pro- fissão um anho, tempo em que lhe nasceu mais um filho. Logo que minha bisavó poude fazer via- gem, puzeram-se a caminho. A travessia agora era longa, cem leguas talvez, no rigor do inverno, com crean- cinhas de peito. Só o animo varoni! do Sr. Manoel Gas- par e o seu espirito forte venceriam as agruras de tão penoso caminho. Diversas vezes escaparam da morte na travessia dos rios, que o inverno fazia cau- daes.
  • 55. 41 No rio Jaguaribe, quasi morreram afo- gados em consequencia do viramerto de uma balsa. Si não fosse meu bisavô um eximio nadador, e não possuisse uma pre- sença de espirito fóra do commum, ter-se- ia ali acabado com todos os seus. Depois dos dias penosissimos daquelia ingrata jornada, chegou o aventureiro ao Tauhá, terra de sua mãe. Os seus avós os receberam e hospeda- ram com carinho, completamente esqueci- dos da offensa que lhes fizéra a filha fu- gindo para casar. Não se lembravam mais da scena pas- sada, havia quarenta annos, quando deram por falta de sua primogenita, uma linda ra- pariga de vinte annos, a mais bella flôr -da- quella ribeira. Toda a familia Feitosa poz-se em cam- po, á pista. Quem se atreveria a offender áquelles senhores feudaes no domírio absoluto do bacamarte, que não pagasse com a vida!... Foi decretada a sentença de morte do atrevido que teve a ousadia de raptar uma Feitosa, fosse um principe, para com ella casar-se. Reunida a familia em conselho, foi ac- cordado que o irmão mais velho da rapta- da partisse immediatamente com quatro pei- tos-largos, dos mais perversos e valen- tes, no encalço dos fugitivos. Encontrados
  • 56. que fossem, seria morto o raptor e deixado aos urubús, sem cova e sem cruz, e a rapta- da, trazida á casa paterna, para, sé conser- vasse a innocencia, ser mettida em custodia o resto da vida; impura, morta á faca. Ouvida a sentença, o seu executor sahiu ao pateo da fazenda e disparou um baca- marte bocca de sino. Mal o signal foi ou- vido, correram á casa grande escravos e ag-: gregados. Dadas as ordens, foram cumpri- . das immediatamente. Prômpta a matalotagem e recolhida aos surrões, sellados os cavallos, que fogosos ginêteavam, partiu a expedição, | em numero de cinco cavalleiros. lam vestidos de couro, de faca á cinta e bacamarte a tiracol- lo. Qual seria o itinerario, se ignoravam o ru- mo que os fugitivos seguiam? Havia des- confiança de que fosse raptor Antonio Gas- par de Oliveira, que estava no lugar mas- cateando e desapparecera no dia em que a moça fugiu. Rastejaram as estradas que de- sembocavam na villa e encontraram em uma dellas rasto de animaes, que não eram dali. Os rastejadores affirmavam que os fugitivos iam rumo das praias e nesse rumo seguiram os perseguidores. À travessia era longa, cem leguas talvez, por invios caminhos, rompendo ás vezes cer- rados de espinhos, de cipós e de malicias, e ainda em tempo de rigorosa invernia, pi-
  • 57. 43 sando um chão, que se afundava de baixo dos pés dos cavallos. No primeiro dia, correram a bom cor- rer na ancia de encontrar o par. No segun- do dia, os cavallos começaram a fraquear. Feitosa, conhecendo que naquella andadura em breve ficariam a pé, que os cavallos - estavam poltrões, diminuiu a marcha. Os noivos iam á grande distancia. A certeza de serem perseguidos, as peripecias encontradas a cada instante nos estreitos ca- minhos que serpeavam á sombra de uma floresta virgem e secular, o receio do ata- que de animaes ferozes, habitantes daquelles ermos, não arrefeciam os desejos, não im- pediam o idyllio. No fim de algumas horas de viagem, já se pertenciam, gozando as delícias da- quele amor primeiro, mergulhados no sií- lencio da natureza virgem. Quantas vezes, dormindo no melhor dos conchegos, no-meio da matta, em noite en- luarada é serena, defendidos “das feras por uma fogueira valente, accesa na visinhança do rancho, despertaram assustados com a gargalhada hysterica, lugubre da mãe da lua, pousada no cimo da mais elevada oi- ticica ! A serie de interjeições, ah... ah... ah... modulada em larynge de aço e sacudida naquella solidão, ia ondulando pelo espaço,
  • 58. 44 repetindo-se nos outeiros, até de todo per- der-se nus confins da matta, A viagem ia-se fazendo entre beijos e transes. Um dia, o idyllio esteve quasi acabando em tragedia. Foi á margem do Jaguaribe. O rio estava pelos mattos. A correnteza das aguas era tal que não respeitava vetustos troncos de arvores colossaes, No meio do| rio desciam os destroços e as victimas da inundação. Balseiros boiavam, fluctuavam -á mercê da corrente. Cadaveres de animaes e tambem de creaturas humanas passavam boiando. Para dar a nota comica do qua- dro, os restos de uma casa arrancada pela cheia, desciam, e sobre a pequena ilha de garranchos cantava um papagaio uma chu- la que lhe haviam ensinado. O momento era critico. Os perseguido- res talvez estivessem perto e a travessia do rio impunha-se immediatamente. Antonio Gaspar quasi não sabia nadar ; mas a Feitosa era uma piaba. Urgia uma decisão. O momento não per- míttia delongas. Atravessariam o rio ou se- riam alcançados pelos matadores. Gaspar esmoreceu; porem a Feitosa, as- sumindo o commando, ordenou aos dois.ar- reeiros que se preparassem para atrevessar O rio. Montados em cavalletes de mulungú, ati- raram-se á agua. Os tres iam de conserva ao
  • 59. 45 portuguez. No meio do rio, foram envolvi- dos em um balseiro e quasi se afogaram. Afi- nal, chegaram vivos á margem opposta. Dias depois, chegaram ao Aquiraz, em paz e a salvamento. - Antonio Gaspar não quiz demorar um instante a legitimidade de sua união. Esta- vam casados perante Deus e a natureza, mas era preciso receberem-se em matrimo- nio perante o3 homens. Assim em trajos de viagem, antes de entrarem em casa, apei- aram-se á porta do vigario, que os acom- panhou á porta da matriz e os uniu com o “sacramento. No dia seguinte, pela manhã, Feitosa entrava na villa com os matadores. Ao saber do casamento da irmã, regres- sou sem ter querido vel-a, não tomando uma vindicta, porque estava fóra dos seus do- minios. Era no meio dos parentes, dessa gente barbara, que meu bisavô, um espirito adean- tado, liberal, ia conviver emquanto repousa- va das fadigas de uma viagem cheia de. pe- ripecias. Naquelle meio, com todos os defeitos dos lugares sertanejos habitados por gente Sem educação domestica e civica, em que vencia o direito da força e não a força do direito, o Sr. Manoel Gaspar sentiu-se mal, O que mais o contrariava eram as senzalas,
  • 60. 46 ver aquellas dezenas de brasileiros sem fa- mília e sem patria, como bestas de carga, trabalhando noite e dia para os senhores. - Pouco ter-seiia demorado ali, se não pre- cisasse refazer as forças e descançar as ca- valgaduras. Para não estar inactivo,'o que era in- compativel com o seu temperamento, explo- rava os terrenos na esperança de encontrar alguma jazida de ouro. Admira que Manoel Gaspar de Oliveira tivesse naquelle tempo conhecimentos de mi- neralogia. Que os tinha, é um facto; como os obteve, não sei. Em um outeiro proximo á villa do Tau- há, povoação naquelle tempo, encontrou in- dicios de jazidas de ouro á pouca profundi- dade do solo. Communicou o facto ao avô e este lhe offereceu vinte escravos para as explorações. Os trabalhos começaram pela excavação do solo nos lugares em que Gaspar de Oli- veira suppunha encontrar os veieiros auri- “Teros. A terra, com as entranhas rasgadas até o sub-solo, não dava erperança de ouro. À uma dezena de metros da superficie do chão, appareceram, misturados a uma - ganga quartzosa, pedras finas: topazios, ame- | thistas, rubis e algumas variedades de quar- tzo hyalino sem côr ou colorido e um pe-
  • 61. 47 queno diamante. Gaspar retirou as pedras e guardou-as. Em outra excavação, não muito distan- te, depois de uma profundidade de cerca de vinte metros, appareceu um filão aurifero rico de pepitas. . A! vista do metal, meu bisavô, em vez de alegrar-se, sentiu profunda tristeza. Guia- do até aquelle momento pelo seu genio. aventureiro, não pensou que a sua desco- berta pudesse trazer-lhe consequencias fataes. Reilectiu no perigo a que se expunha, naquelles ermos, á discrição de gente bar- bara e sanguinaria, que não lhe tinha maior affeição, mostrando um tão grande thesouro. Fez aterrar a excavação, deu por findas as explorações e voltou á presença do avô, a quem entregou alguns kilogrammas de pedras, algumas preciosas. O velho não quiz acceitar OS seixos, conforme chamou ás pe- tiras que lhe déra o neto. A classificação e a ignorancia do velho Feitosa me fizeram lembrar um caso pareci- do. Uma feita, encontrei na secretária de um rico commerciante em Fortaleza, servindo de peso de papeis, uma bella fórma primiti- va de quartzo amethista. Gabei aquella pre- ciosidade do cinzel da Natureza. O nego- ciante fitou-me e disse, na sua santa ignoran- cia, que se eu queria, podia levar o seixo. -Agradeci o regio presente, que passou a ser
  • 62. 48 uma preciosidade, uma raridade no meu pequeno museu de Historia Natural. O Sr. Manoel Gaspar disse ao avô não ter encontrado ouro. Dias depois, deixava o Tauhá, sem destino certo. A viagem conti. nupu a ser penosa por causa do rigoroso inverno. Mezes depois, chegava a caravana á mar- gem do rio S. Francisco, na Bahia. À natu- reza ali já era outra. A fauna e a flora, dit- ferentes. A matta era mais alta, mais densa; os animaes, de outras especies; o céo, nais triste, mais baixo; a luz, mais baça, eas noi- tes menos estrelladas, Começou ahi a nos- talgia da senhora minha bisavó. Até então não havia articulado uma queixa, feito uma recriminação ao marido. Sabia que nunca mais voltaria ao seu querido Ceará. O meu bisavô lhe havia dito: despe- ça-se por uma vez desta terra, á qual nun- ca mais voltará. Ella sabia que elle não dizia uma cousa para não cumprir. Mulher muito temente a Deus, não dei- xava de resar muito e pedir para que o exílio não fosse eterno. Era uma bôa crca- tura. O seu maior defeito era, á moda do tempo, castigar rigorosamente os filhos por qualquer falta, com as celebres surras de pé no pescoço. Nesse ponto, era cruel, tan- to que o marido, quando se ausentava, lhe
  • 63. 49 dizia ao despedir-se:— Sra. D. Joanna, aqui ficam os seus enteados, —apontando-lhe os filhos. -A vida, á margem do S. Francisco, teria sido de gosos, se não fossem as phantasias do Sr. Manoel Gaspar. À Natureza ali era outra. Agua em abun- dancia e bôa, muito peixe e saborosos fruc- tos silvestres. Não havia duvida que estavam em uma terra farta, em que não precisavâm trabalhar para comer. A abundancia de recursos naturaes não seduzia a Sra. D. Joanna nem faziam es- quecer o Ceará. Prefecia a seccura de sua terra, condemnada aos flagellos das seccas. Que saudades não tinha do seu Aracaty e das varzeas do Jaguaribe, cobertas de carnahu- beiras seculares! Trocaria, de bom grado aquelles gordos robalos, as saborosas curi- matans, creadas ali no rio, pelas tainhas do Cócó ou pelas trahyras dos açudes do ser- tão. A's doces jaboticabas côr de vinho, pre- feria as roxas e pequenissimas mapirungas dos taboleiros de sua terra. De que lhe serviam tão bôas comidas, -se ella as ingeria chorando? O Sr. Manoel Gaspar regalava-se com aquelles bons peixes, aquelles saborosos frtu- “ctos, aquella agua fina e doce que, com- parada com a agua salôbra, cheia de ca-
  • 64. 50. parrosa, dos sertões de sua terra, era uma delicia beber. À Sra, minha bisavó, vendo-o comer com o melhor appetite, exprobava-lhe a dureza do coração. Elle respondia-lhe que era cos- mopolita, que a nossa terra é aquella em que nos damos bem. Em pouco tempo, o espirito de meu bi- savô estava completamente adaptado áquel- le meio e identificado com aquella gente. O que concorreu para que elle se im- puzesse á estima dos sertanejos foi a medi- cina, curando alguns enfermos, e sua ci- rurgia, amputando a perna de um pobre homem, que, sem a operação, teria morrido. Além disso, convivia com o povo, ia ás suas festas, ás suas pescarias, nas quaes tar- rafcava com grande pericia. Manejava a farrafa como o bisturi. Mudando de terra, longe do arrócho de Rubim, não esqueceú a aironta soffrida na igreja do Rosario. A idéa de uma patria li- vre não o deixava. Com grande surpreza sua, encontrou naquelles tabaréos ignoran- tes egual sentir. Elles tambem desejavam, queriam uma patria livre, a quéda do do- minio portuguez, a independencia do Brasil. Encontrando ali espalhada a semente da liberdade, foi doutrinando, accendendo mais . com o seu verho inspirado o amor da patria, para que ella germinasse e crescesse,
  • 65. 51 Aquella phantasia de meu bisavô, a rea- lização do sonho fóra de tempo o ia per- dendo. A idéa espalhou-se como por encanto; a faisca, pequena em começo, ateou um in- cendio, e delle sahiria a patria livre, se em tempo os vassalos do rei, em numero mui- to superior aos naturaes, não a houvessem apagado. Manoel Gaspar de Oliveira, o chefe do movimento patriotico, proclamou a inde- pendencia do Brazil ás margens do Rio S. Francisco, na Bahia, ao mesmo tempo que D. Pedro | gritava — Independencia ou mor- te—-ás margens do Ypiranga, em S. Paulo, no dia 7 de Setembro de 1822. Avisados os patriotas de que um grupo de portuguezes, numeroso e bem armado, vi- nha prendel-os, resolveram, pela defficiencia de meios, dispersar-se. A casa do Sr. Manoel Gaspar foi cer- cada pelos vassalos do rei. Meu bisavô havia fugido e se occultára em uma gruta, no cimo de um oiteiro pro- ximo, de onde, com um oculo, observava o cerco de seu lar. Minha bisavó e a filha, esta, mocinha de 12 amnos, que depois foi minha avó, quando se aproximaram os portuguezes, em algazarra infernal, dando vivas ao rei e morras aos caboclos do Brazil, tiveram a
  • 66. 52 feliz lembrança de esconder nos seios toda a correspondencia trocada entre meu bisavô e os seus correligionarios. Cercada a casa, invadiram-n'a e proce- deram á mais rigorosa devassa. Todos os moveis foram revistados. Não encontrando documentos comprobatorios da sedicção, retiraram-se. O Sr. Manoel Gaspar, desapontado com o desfecho do sonho, levantou o acampamen- to e partiu em rumo da capital da Bahia, Em S. Salvador, soube com immensa sa- tisfação que o Brasil já era dos brasileiros. À sua alma de patriota exultou. la ago- ra viver em uma patria livre. Para dar azas á sua phantasia, ao seu espirito, que se aptazia em viver de so- nhos, emprehendeu uma viagem ao Rio de Janeiro, onde faria valer os seus serviços á causa da independencia do Brasil. Os grandes do Imperio acataram-n'o, trataram-n'o com grande distincção e offere- ceram-lhe o lugar de Cirurgião-mór das tro- pas na Bahia. Recusou. Queria ser o admi- nistrador das terras do Espirito Santo. Gos- tava de aventuras. Não sendo concedido o que pedira, na- da mais quiz e voltou para S. Salvado:. Um mez gastou na viagem no brigue S. João. Quasi naufragou nos Abrolhos. A fa-
  • 67. 53 milia já havia perdido a esperança do seu regresso, quando elle chegou. Deixou a prolissão, que só exercia para os desvalidos, c fez-se industrial. A! margem do rio Jaguaribe, a poucos kilometros da villa deste nome, estabeleceu uma fabrica de sabão. Ahi o encontrou meu pai, por acaso, quando cursava a Faculdade de Medicina da Bahia. No fim de pouco tempo de residencia ali, tinha conquistado a estima e o respeito de todos pela sua caridade sem limites, Estive, quando estudante na Bahia, na casa em que viveu longos annos o Sr. Ma- noel Gaspar, e que foi o exílio de minha bisavó. Ali a Sra. D. Joanna envelheceu choran- do saudades de sua amada terra. O lugar era medonho, optimo para um presídio. Nunca mais esqueci a impressão que senti na tarde em que ali cheguei, embora depois deste crepusculo vesperal os cajueiros qua- renta vezes tenham ficado em primavera. Era ao pôr do sol, mas um pôr de sol prosai- co, sem cambiantes, uma orgia de côres, sem delicadas nuances na tela do firmamento, sem escamas de cirrus no zenith, para se corarem de rosa, no momento em que a. loura cabeça do astro se sumisse no occaso. O ultimo raio do sol poente bruxoleou no |
  • 68. 54 instante em que a canôa abicou ao porto da fazenda de meu bisavô. Era um casarão tosco, acaçapado, le- vantado quasi á beira do rio Jaguaripe. Entrei: esperava-me meu tio José, o unico dos filhos do meu bisavô, que, depois de homem; não regressou ao Ceará, após a morte dos paes, c isso porque a sua terra lhe estáva interdicta pelo casamento: com uma sobrinha, da qual se havia separado logo depois do sacramento. Logo que entrei para a sala de visitas, fechou-se a porta. Minutos depois, entrou uma preta velha, esqualida, trazendo um candieiro de azeite com os quatro bicos a- cesos, e collocou no centro de uma mesa dizendo: - — Louvado seja nosso senhor Jesus Christo. Meu tio levantou-se, persignou-se, tirou o bonnet e respondeu : — Para sempre seja louvado e sta mãe Maria Santissima. Bôa noite, meu sobrinho. Em que meio estava eu!... Com a cla- tidade pude avaliar a figura de meu tio. Era um homem de estatura regular, cheio do corpc, quasi velho. Os traços da physionomia eram mais ou menos regulares. À testa era abaúlada e o nariz um pouco adunco. Um ar de triste-
  • 69. 55 za cobria-lhe as feições, que mais accentuava o olhar apagado de ruminante farto. Aquelle olhar morto, estacionado, volta- do para dentro do eu, sempre diante da mesma imagem, que lhe havia torturado o espirito, e havia vinte annos o condemnára ao isolamento, fazia pena á gente. Conversámos até nove horas da noite sobre a família, sobre o Ceará. No meio da conversação, aquella alma sup- pliciada por um amor infeliz, não corres- pondido, desabafava num suspiro longo e doloroso, que lhe sahia do coração amar- gurado. Em uma pausa da palestra, meu tio levantou-se, indicando-me um canapé pro- ximo, armado em cama, e me disse : dormi- rá ali, e entrou. Deitei-me, e ferrei no somno. A' meia noite, com grande espanto meu, fuí despertado por meu tio que, me accor- dando, disse : — Vamos tomar banho. Extranhando o convite, estremunhado, perguntei: — Tomar banho ? —Sim, para ceiarmos e depois dormir- mos. Obedeci, acompanhando o velho. A! porta de um quarto parou e fez-me signal para entrar. Achei-me em um banhei-
  • 70. 56 ro, onde se viam uma bacia de folha de Flandres com agua morna, uma chaleira com agua quente ao lado, e perto uma cadeira com uma toalha é um sabonete. Meu tio ficou do lado de fóra. Fingi lavar-me, abri a toalha e sahi. Fomos juntos para a mesa, sentamo-nos e a preta do candieiro serviu chá, café, pão, biscoutos. Finda a ligeira refeição, voltei ao dor- mitorio, acompanhado de meu tio, que me deu bôa noite e entrou. A's seis horas da manhã fui despertado pelo velho, no melhor do somno. Abriram-se as portas. Que desgosto senti, quando o sol en- trou de casa a dentro e vi, fóra, um céo baixo, quasi em cima do telhado, empana- do de vapores, que se moviam ao sopro do verto sul, que uivava, desenfreado, torcen- do a ramaria dos mangues! Que triste despertar da natureza!,.. Um rio candaloso, de aguas escuras correndo tristemente, sem majestade, sem marulhos, nem espumas, fazia amortecer aquelle quadro apagado de bellezas e encantos. Senteime e fui sósinho contando as horas. Não mais me apparecu meu tio, Eu já sentia vertigens de fome. Quando soaram doze horas e o jejum
  • 71. 57 havia reduzido a uma chaga o meu esto- mago de hyperchlorydrico, eis que chegou meu tio, fechado em seus scismares, e cha- mou-me para almoçar. Almoçámos a fartar, maiormente eu, que tinha o estomago numa vacuidade lastima- vel. O primeiro prato foi o celebre carurú bahiano, servido com acaçá. | Com a fome com que estava, me atirei com gula ao prato. Caro custou-me o ata- que ao petisco. O primeiro bocado deixou- me todo queimado, como se eu tivesse engo- lido brazas. As lagrimas corriam-me sen: eu querer e os espirros acompanhavam-n'as. À scena era de fazer rir, mas nem por isso meu tio deixou um instante o seu ar de meditação. Acabado o almoço, voltámos á sala e meu tio retirou-se. Farto como uma giboia, refestelei-me em uma cadeira de espaldar de sola, ruminando idéas, lucido nesses instan- tes mais do que nos outros todos da vida. Atirando baforadas de um charuto bahiano, bem ordinario, consoante os meus haveres, na beatitude de um animal repleto, a fazer o chylo, eu olhava quasi sem ver para as cambalhotas dos botos brincando no meio do rio. Aquelles momentos de grande lucidez de espirito, nos quaes tenho imaginado
  • 72. 58 muitas scenas de meus livros, foram tendo perturbações, eclypses, até que afinal se apa- garam em uma modorra, em um estado que não era do somno nem da vigilia. Assim estive uma hora talvez. Quando accordei, achei a sala ainda mais solitaria e prosaica, Durante o dia, meu tio appareceu-me algumas vezes, conversava um pouco e re- colhia-se ao interior da casa. A's Ave-Marias, portas fechadas, por causa dos mosquitos, que em nuvens se le- vantavam dos mangues. Falando-me do fe- chamento da casa, meu tio disse-me que . aquelles insectos, que pareciam feitos de la- ma, eram venenosos. Contou-me então um caso horrendo ali acontecido, havia muitos annos. Em uma fazenda proxima, á margem do Jaguaripe, morava um mulato rico, casado com certa mulher branca, nova, de uma rara belleza. O mulato tinha comprado aquelle retiro para isolar-se com a companheira, pelo ciume exagerado que tinha della. Passaram- se os tempos. A paz do lar não era pertur- bada. Ali ninguem ia. De homens só havia o dono da casa e os escravos. Segregada do mundo, aquella mulher nova, exuberante de seiva e de vida, apai- xonou-se por um escravo, muito claro e
  • 73. Ra novo como ella, Encontrára naquelle ho- mem, que as condições, a raça, os precon- ceitos separavam della por um abysmo,o os- so do seu osso, a carne da sua carne. Os seus appetites não satisfeitos pela frieza do marido, um homem quasi velho, fo- ram o maior factor de sua queda. | “Amaram-se. Ella, pisando sobre todas - as convenções sociaes, arriscando a vida na “transposição de tão perigoso passo, fez do captivo seu amante. O marido soube e premeditou a sua vin- gança; daria ao amante um genero de mor- te horrorosa. Nunca Othello algum imaginou morte mais cruel, mais tragica para a sua Desde- mona. Ao escravo fez eunuco e depois o en- terrou vivo. A adultera foi levada á falsa-fé á margem do rio, ao pôr do sol. Ahi a obrigou a despir-se; depois, a crucificou em uma arvore. Os ultimos raios da luz amortecidos, quasi apagados pelas brumas da noite, deixavam perceber na claridade do crepusculo, que morria, a figura esculptu- ral daquella Venus de carne em toda a nudez e exuberancia de fórmas. Aquelle corpo branco, ligeiramente ro- seo em alguns pontos, de linhas e contor- nos suaves, illuminou-se frouxamente pelo derradeiro raio do sol poente. Naquelle ins-
  • 74. 60 tante, morreu o derradeiro lampejo da luz, que se apagou no occaso ,.. À escuridão tudo envolveu no sudario negro, para que ficasse sem testemunhas aquelle acto de bruteza humana. Pela manhã, quando a luz voltou á ter- “ra e as aves deixaram os ninhos para em cantares saudar c sol, não se viu mais o bel- lo corpo branco da crucificada, mas o ca- daver violado de uma mulher informe, cu- ja inchação era tamanha que destruira li- nhas e contornos, reduzindo a plastica da sua figura exculptural a uma bruta e cha- ta massa. Meu'tio relatou-me o facto, fechado em sua tristeza, sem que, nos transes mais tra- gicos, um traço se alterasse em suas feições. Que imperturbavel calma! Aquella historia me abalou os nervos. A minha imaginação ia completando a nar- rativa, enchendo as lacurias deixadas por meu tio em suas reticencias, nos pontos que julgava offender a minha pudicicia de ado- lescente, Eu ia mentalmente me deleitando com o horrivel da scena, com o pendor in-- nato que tenho para as situações intensas. Avaliava, como se estivesse vendo, sen- tindo, como se estivesse dentro da victima. Nos primeiros momentos que se segui- ram á bestial torpeza, numa revolta impo- tente contra a violencia, ella se quedou,
  • 75. 61 talvez, aniquilada, esperando o acabamento para remila do martyrio. A morte a esprei- tava, o fim não seria tardio, o epilogo do cruciante supplicio estava proximo. Pareciasme a mim estar vendo o corpo branco da desgraçada, envolto em uma nu- vem negra de mosquitos, que, ainda bem não lhe tocavam a pelle setinada, já a fe- riam com as trombas, inoculando veneno e sugando o sangue. Via os insectos invadirem os olhos, que ella defendia, arreando as palpebras. Aquel- les argueiros de lama, uma vez presos, fun- diam-se nas lagrimas e espalhavam-se pelo globo do olho, queimando-o como um caus- tico. A dôr da queimadura era tamanha, que um doloroso arrepio arrepanhava a pelle numa crispação completa. Parecia-me a mim estar observando a sensação, que elia teve, quando os seus olhos se entupiam de mosquitos, e o seu gesto instinctivo, querendo ir em soccorro delles, e vendo-se de mãos atadas! Os mosquitos penetravam por todas as aberturas do corpo, numa cócega imperti- nente, picando as mucosas. A titilação que faziam nas fossas nasaes, produzindo repe- tidos e violentos espirros, acabaram conges- - tionando as mucosas, obstruindo a abertu- - Ta das ventas.
  • 76. 62 Sem folego, descerrou os labios. O en- xame de mosquitos entrou na bocca e des- ceu-lhe na garganta. Accessos de tosse sacu- diam o corpo numa convulsão perenne. A glote constrangia-se num espasmo incom- pleto, determinando um começo de aphyxia. Eu via o entrebuchamento daquelle cor- po, procurando quebrar os laços que o pren- diam. Baldados esforços, pois elles mais se apertavam, enterrando as cordas finas de ptassava nas carnes dos pulsos e tornozellos. Pouco depois, a pelle macia do corpo envenenado pelos mosquitos se foi intumes- cendo, como se tivesse soffrido uma fric- ção de urtigas, levantando-se polmões ao mesmo tempo que um prurido de endoide- cer se espalhava por elle inteiro, num phre- nesi, que foi até á perda: dos sentidos, até o momento em que a victima se quedou na agonia da morte. Quando meu tio acabou de contar-me a historia, convidou-me para jantar. Acabado o jantar, dormitorio, somno até meia noite, banho e ceia. Assim passei oito dias no Cahype, onde pretendia passar os tres mezes de ferias. Ê Não supportava mais aquelle viver de tristezas. : A figura da preta, velha, escaveirada,
  • 77. 63 embrutecida no captiveiro, a repetir todas as tardes a saudação angelica, à hora das saudades e das despedidas da luz, arranha- va-me os nervos, como o attrito secco de uma lima amolando um serrote. Os dias ali eram tão semelhantes como o papel de copiar musica. Apenas houve uma excepção, um pas- seio que fiz á Estiva, para visitar o antigo solar de meu avô, onde nasceu minha mãe. A viagem foi de duas horas, em canôa, subindo o Jaguaripe. — Cheguei á Estiva pela manhã e saltei no porto mais perto do sobrado em que morou meu avô, Sr. Claudio Nunes Sarmento. Pa- ra lá me dirigi. Pouco caminhei para en- contrar um grande sobrado, onde havia nas- cido minha mãe, com as paredes bem en- cardidas pelo tempo, occupado agora por mi- nha tia Izidora, solteirona, maior de cincoenta annos, torta de um olho e filha do segun- do matrimonio de meu avô. Dei-me a conhecer. À velha abraçou-me chorando pelo olho são. Disse-me que de parentes proximos só existia ella. Convidou-m> a visitar toda a casa. Accedi da melhor vontade. Estive no quarto em que minha mãe nasceu; aposento espaçoso que, havia meio seculo, não recebia mão de cal.
  • 78. 64 Levou-me minha tia á trazeira da casa e mostrou-me o fronco, onde viveu o ulti- mo macaco africano, o Macussi. Disse-me ella que o pai tinha o fraco, - para não dizer a extravagancia de ter sem- pre um macaco da Africa na corrente. Quan- do um morria, mandava vir outro. Depois, mpstrou-me a senzala, um gru- po de pequenas casas em que moravam mais de cem captivos. A tia, uma escravocata rubra, chamou a minha attenção, com gran- de gaudio seu, para esse instrumento de tortura, o tronco, que ainda ali estava para attestar o grande attentado á liberdade hu- mana. Disse-lhe ser aquillo uma ignominia, que ella devia fazer desapparecer aquella mise- ria que muito infamava a memoria de seu pai. Benzeu-se, escandalisada de minhas idéas. A's dez hotas da manhã, regressava eu ao Cahype. Cheguei precisamente á hora do almoço. O dia correu como os outros. Na ultima noite de presídio, meu tio, por despedida, conversou commigo até a re- gtmental hora do banho, contando-me factos da vida intima do Sr. Manoel Gaspar. “Cresceu em mim a admiração que tinha por meu bisavô. Elle vivêra como um santo na terra que
  • 79. 65 adoptára. A caridade que praticára chega- va á obsessão. Morreu septuagenario. O seu enterro foi uma apotheose, feita pela população daquellas paragens ao seu medico, ao seu bemfeitor. Mais de cem canôas comboiavam a lan- cha em que ia o corpo descendo o rio Ja- guaripe. O cortejo seguia em silencio sepulchral, Ouviam-se soluços que se misturavam ao som triste do marulhar das aguas. Coberto de bençãos, entrava emo Nada o corpo em que habitou um grande espirito. AS
  • 80. SE trt A 40 0040600000 0000200002 6120000. MA | Mtenismo O altruismo é a quinta essencia do ego- ismo. Muitos classificarão de paradoxo: este meu pensar. Vou dar as razões por que assim entendo. . À semente do bem, espalhada profusa- mente, sem distincção de terreno, germina, fructífica e o semeador, as mais das vezes, colhe bonitos fructos. . Acontece tambem o terreno ser sáfaro e, completa a germinação, as tenras plantas se estiolam e morrem. Em começo da vida tive uma noção muito clara do valor da pratica do bem, por um facto que muito impressionou minh'al- ma de adolescente. À esse tempo, eu era empregado da Casa Commercial de Albano & Irmão. Estava alli penando, na aprendizagem de uma profissão para a qual absolutamen- te não tinha vocação. O caixeiro, nesse tempo, era igual a um
  • 81. 67 creado, ou valia ménos ainda. À saúde de um escravo inspirava mais cuidado, por- que o escravo tinha valor intrínseco, valia dinheiro, eo caixeiro não. Aquelle menos- preço com que eramos tratados me humi- lhava, meu espirito se revoltava e, numa ancia de liberdade, vibrava todo. Como se mudaram os tempos ! Ha cincoenta annos, a classe caixeiral, essa agremiação de desclassificados, quiz fazer. uma sociedade beneficente e reuniu- "se para lançar-lhe as bases, fazer os estatutos, “Reunimo-nos nos baixos do sobrado do Jus- ta, na rua Formosa, hoje Barão do Rio Bran- co. Era geral o contentamento. Mal sabia- mos nós que decepção nos estava reserva- da. No dia seguinte, os patrões tiveram conhecimento da nossa reunião e fomos prohibidos de levar a idéa avante. Passaram-se alguns annos e de novo surgiu a idéa de se fazer uma sociedade de caixeiros, e appareceu o Reform Club. A idéa vingou, porque outros já eram o3 - tempos; e como tudo evolúe, temos hoje à benemerita "Phenix Caixeiral”, uma poten- cia nas armas e nos serviços, que presta, cultivando o espirito de seus associados. Quando fundámos a nossa primeira as- sociação de caixeiros, a qual durou um dia, mal sabia eu que de futuro seria socio benemerito da futura sociedade de que ha-
  • 82. 68 viamos lançado em terra a semente, semen- te que levou annos a germinar pela curteza de espirito dos homens daquelle tempo. O chefe da casa em que eu era empre- gado era o Coronel José Francisco da Sil- va Albano, depois Barão de Aratanha, meu parente affim, homem bom e que podia ter minorado os meus padecimentos, se outro fosse o seu modo de pensar. Havia feito fortuna no commercio e entendia que era o melhor ramo da actividade humana. Tan- to isto é uma verdade, que dos seus tres filhos varões, todos educados na Europa, nenhum foi doutor; dois são negociantes e um padre. Eu tinha herdado de meu pae um nome immaculado, mas tambem uma grande pobreza. Elle havia morrido aos quarenta e tres annos, deixando seis crianças na or- phandade. Eu era o mais velho. Cabia-me o dever de ser homem e velar pela sorte de meus irmãos. Mas, como sahir da minha obscuridade e collocar-me? Só o livro podia livrar-me daqueile captíveiro. Mas como che- gar ao livro, se os meus patrões entendiam que para vencer na vida não precisava sa- ber ler? Luctei como um desesperado. Que de- cepções soffri !... O meu temperamento era ardente, o meu genio arrebatado. Os soffrimentos foram modificando as minhas inelinações. Era poeta: comecei aos
  • 83. 69 onze arros a fazer máus versos, como ainda “hoje os faço máus. Lia Casemiro de Abreu e achava a sorte delle parecida com a mi- nha. Às jeremiadas do cantor das «Prima- veras» me enchiam a alma de muita pieda- de e do desejo de me acabar tuberculoso “como o poeta. Que grande ventura não se- “ria a minha de entisicar aos desoito annos e depois, muito triste e muito pallido, con- templara minha Dulcinéa, que, toda amôr, choraria o meu precoce acabamento ! Foi nesse tempo, ou no tempo desses amores, que eu, fazendo de D. Quixote, apanhei um formidavel catarrho, que hoje, consoante a moda, seria uma influenza ou grippe, que me acompanhou até a velhice e ia realizando os.meus sonhos de moço: morrer como Casemiro de Abreu... Acamei-me por muitos dias. Tinha febre 4 tarde e suores á noite, | Aquelles symptomas me enchiam de sa- tisfação, porque eram o começo do acaba- mento, da morte romantica com que me aprazia sonhar... Como pernicioso é o contagio dos ac- tos máus! A suggestão pela leitura nos es- piritos fracos e levianos é uma cousa fatal. A' leitura quotidiana das ”"Primaveras” ia-me matando. "A noite na taberna”, de Alvares de Azevedo, fez grande numero de estroinas
  • 84. 70. e bebedos. Quando cursei a Academia da Bahia, estava ainda muito em moda este poetae tambem Castro Alves com as suas bombas. Eu já tinha mais idade, melhor senso do que no iempo das “Primaveras” e, sobre- tudo, uma verdadeira e idiosyncratica oge- riza, como ainda hoje tenho, ao aleool, ao jogo e ás multidões. Foi o que me salvou de ser um bebedo, porque um companhei- ro de crua, mito meu affeiçoado, de quan- do em quando fazia noites na taberna. À molestia se prolongava, porque assim eu queria, O tratamento que eu tinha era quasi nenhum. Morava em um quarto, ao rez do chão, e tinha por enfermeira uma afilhada: da baroneza de Aratanha, a Malvina, crea- tura muito feia, porem muito bôa. Compa- decida de mim, levava-ms uns caldos e uns mingáus e tambem algumas palavras de conforto, falando na minha Dulcinéa. Os meus patrões, vendo que não me res- tabelecia, mandaram-me para Arronches, hoje ' Porangaba, para a casa da minha familia. A entrada naquelle abençoado lar, onde havia muita virtude ao lado de muita po- breza, despertou-me, accordou-me a cons- ciencia e chamou-me ao cumprimento do dever. À bondade e o carinho com que me
  • 85. 71 recebeu a minha santa mãe de criação, tão bôa e tão santa, que nunca senti falta da minha verdadeira mãe, a qual perdi aos quatro annos, me chamaram á vida. Estava em Arronches quando recebi um convite de um agricultor da serra de Aratanha, o sr. Henrique Gonçalves da Justa, que foi na vida o meu maior amigo, a quem devo em parte o que sou e tambem a formação do meu caracter, para convalescer em sua casa. Eu não conhecia aquelle cavalheiro, po- rém mitiha mãe me informou que elle era uma pessõa abastada, de posição social e que se havia casado com certa moça de uma fami- lia muito pobre, mas muito virtuosa, que fôra nossa vizinha e muito protegida por meu pae. O serviço que ella queria me pres- tar era feito á memoria de seu amigo, de seu medico, de seu protector. As palavras de minha mãe me fizeram reflectir no caso. Dias depois de recebido o convite, che- gou-me a conducção. Era em junho e foi pela manhã que sahi com destino a Pacatu- ba. Ia montado em um burrico possante, ser- rano e manso. O animal só tinha tres anda- duras, passo, chouto e galope. Aquelle ca- minhar de cavalgadura de S. Jorge não sa- tisfazia à pressa que eu tinha de chegar. Fustiguei o burrico e este, em vez de ac- celerar a marcha, gemeu. Fustiguei-o al-
  • 86. 72 gumas vezes repetidas e elle apressou o passo, mas num chouto tão aspero, tão du- ro, que me provocou um accesso de tosse, que quasi me suffocou. Parei e tive uma phobia, que me apa- vorou, de ter uma syncope, cahir do burro, não voltar mais á vida e ser encontrado re- supino e morto no meio da estrada. Ah! phobias, como me têm martyrizado no cor- rer da vida! Têm sido tantas, e cada qual mais estapafurdia, que só ellas dariam um grosso volume! Segui cultivando a minha phobia, indif- ferente ás bellezas daquella sorridente ma- nhã de fim de inverno. Que contraste fazia, a natureza alacre, o festival das aves, o verde-gaio dos brotos, o verde escuro das folhas com as tristezas de minh'alma, a as- sistir ao meu funeral! Caminhava por aquella estrada de areias brancas, marginada pela matta em flôr, onde os insectos e a passarada entoavam hymnos ao fertilizador dos campos. Eu passava indiferente por aquellas bellezas, fechado dentro de mim mesmo, a cultivar o meu tormento. E que idéas terrorosas, as minhas ! Eu já estava morto, soffria agora por minha mãe. Que agonia cruciante a della, quando recebesse a fiova de miriha morte e que su-
  • 87. 73 prema angustia, a sua, quando entrasse o meu cadaver, dentro de uma rede car- “regada por gente infima! Que desespero não sentiria, quando me descobrisse o rosto branco, illuminado outr'ora por olhos de um castanho claro, que ella cobria de bei- jos, agora de uma pallidez cadaverica, he- diondo, mutilado em parte pelo bico dos urubús! Eu tinha muito respeito humano, esta maldita lepra que róe a humanidade desde os primeiros tempos. E por isso mesmo padecia. A noticia que dariam os jornaes de minha morte tragica, estupida, igual á da besta que morre no campo e é comida pelas aves negras, me alanceava a alma. Que indifferença daquella imprensa venal e pôdrel Eu era um desclassificado, bem o sabia, mas o meu fim e, sobretudo, a idade em que tão prosaicamente me acabava, me- reciam que eu fosse melhor tratado. Diriam laconica e seccamente que fôra encontrado morto, meio comido dos urubús, na estra- da de Pacatuba, um caixeiro da importan- te casa commercial de Albano & Irmão... la no cultivo impertinente da minha dôr, quando cheguei ao Timbó, lugar que havia escolhido para descançar. O sol descia a pino e mordia-me as cos- tas, produzindo o ardôr de uma fricção de urtigas.
  • 88. 74 Abeirei-me da primeira casa á margem da estrada. Era um casarão de tacaniça, al- pendrado, com curral ao lado. Annunciei- me com o-—oh! de casa-da pragmatica, mas em voz tão sumida, que penso não che- gou á trazeira da vivenda. Apeei-me e bati com força com o chicote na porta. Minutos depois, appareceu-me uma mu- lher, bastante idosa. que me saudou meio aborrecida. Pedi-lhe rahtcho: e ella indicou-me uma tripeça, fixa no chão do copiar. Sentei- me, e pedi-lhe agua. Eu estalava de sêde e tinha a bocca secca como lingua de papa- gaio. À velha entrou e pouco tempo depois voltou, trazendo um caneco de folha de Flan- dres, coberto de ferrugem e cheio de um liquido barrento. Tomei o caneco e fiquei arripiado, he- sitando em levalio á bocca. Repugnava-me, não tanto a mistura de barro e caparrosa que ia beber, porém os beiços do caneco, aquelles beiços que ha- viam sido tocados por milhares de beiços, muitos dos quaes nojentos, cheios de ulce- ras, syphiliticos até... Afinal, fiz um gran- de esfôrço e bebi alguns golles da mixor- dia, que tinha um gosto terrivel e salôbro. Entreguei o caneco á velha, agradecen- do. Eu devia ter estampados no rosto os si-