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Apresentado em II Colóquio Prazer do Texto, UFBA, 2006
As Investigações Filosóficas de Wittgenstein:
Estilo e Método
Alexandre N. Machado
Universidade Federal da Bahia
anmachado@ufba.br
1. Clareza
Wittgenstein publicou apenas dois textos durante sua vida: um livro curto e denso,
o Tractatus Logico-Philosophicus, e um artigo curtíssimo, “Algumas Observações
Sobre a Forma Lógica”, que foi posteriormente considerado fraco pelo próprio
autor, mas que deu início a um processo de crítica a certas idéias do Tractatus. A
maioria esmagadora dos seus escritos permaneceu inédita. Uma parte foi aos pou-
cos publicada postumamente em forma de livros e, recentemente, o restante foi
entregue ao público em formato digital. Dentre as publicações póstumas, está a
principal obra da sua fase madura, as Investigações Filosóficas, o livro sobre o qual
me propus falar hoje (doravante Investigações).
Essa retenção dos seus escritos denuncia muito o peculiar modo como Witt-
genstein os encarava. No prefácio às Investigações, publicado em 1953, dois anos
após sua morte, ele explica um pouco sua atitude relacionando-a com algo que nos
interessa diretamente aqui, a saber, o modo como o livro foi escrito:
Escrevi todos esses pensamentos como observações, parágrafos curtos, dos quais há
algumas vezes uma longa cadeia sobre o mesmo tema, enquanto que algumas vezes
faço uma mudança repentina, saltando de um tópico para outro. ― Era minha inten-
ção primeiramente reunir tudo isso em um livro cuja forma eu planejei de modo di-
ferente em diferentes épocas.
Após várias tentativas mal sucedidas de fundir meus resultados em um tal todo,
compreendi que nunca teria sucesso. O melhor que eu poderia escrever jamais seria
mais do que observações filosóficas.
Mais adiante ele diz:
Pouco tempo atrás [o prefácio foi escrito em 1945] eu realmente desisti da idéia de
publicar minha obra em vida. Ela costumava, de fato, ser reavivada de tempos em
tempos: principalmente porque fui forçado a saber que meus resultados (que comu-
niquei em lições, textos datilografados e discussões), mal-entendidos de vários mo-
dos, mais ou menos mutilados ou enfraquecidos, estavam em circulação.
Nessas passagens Wittgenstein afirma que não publicou seus resultados porque não
conseguiu encontrar uma forma de organizá-los que o satisfizesse. E essa dificul-
dade se deveu ao fato de sua melhor escrita ser constituída de observações, ou ano-
tações, isto é, pequenas reflexões constituídas de poucas frases. A grande maioria
dos escritos de Wittgenstein não está organizado na forma tradicional de um trata-
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do ou ensaio, com capítulos e secções bem definidos. Desde seus primeiros escri-
tos, anteriores ao Tractatus, Wittgenstein filosofava enchendo cadernos e mais
cadernos com observações. Algumas vezes pedia que alguém as datilografasse, as
recortava em tiras e fazia montagens colando-as sobre folhas de papel. Fazia isso
várias vezes, a fim de encontrar a melhor ordenação. Algumas dessas tiras foram
encontradas presas com clipes a algumas páginas do manuscrito das Investigações.
Não havendo indicação exata de onde Wittgenstein pretendia inseri-las, os editores
optaram por colocá-las ao pé da página, separada por uma linha. Wittgenstein não
apenas organizava e reorganizava suas observações, mas também as corrigia, mui-
tas vezes hesitando entre um modo e outro de expressar o que pensava, um cuidado
provavelmente estimulado por seu contato com George Edward Moore. Norman
Malcolm, um aluno de Wittgenstein, escreveu em suas recordações sobre o seu
mestre: “Ele observou que se alguém estivesse tentando encontrar as palavras exa-
tas para expressar uma distinção sutil de pensamento, Moore era absolutamente a
melhor pessoa a se consultar.” (p. 56) Muitos artigos de Moore contêm uma longa
introdução onde ele procura deixar claro em que sentido não quer que sejam enten-
didos os principais termos ali usado e as principais tese ali defendidas.
Essas informações sobre o processo de edição a que Wittgenstein submetia
seus escritos servem para mostrar que, apesar da sua insatisfação final com a forma
dos seus escritos manifestada no prefácio às Investigações, ele era extremamente
cuidadoso com seu modo de expressão e com a ordenação das suas observações.
Esse cuidado extremo é o que explica boa parte daquela insatisfação. Ele se devia a
um certo temor mooreano de ser mal-entendido, como mostra a passagem acima
em que ele se refere à mutilação do seu pensamento. E esse temor, por sua vez, se
devia ao modo como Wittgenstein concebia o principal objetivo da filosofia: a
clarificação dos pensamentos com vistas a dissolver os problemas filosóficos.
Wittgenstein acreditava que, num certo sentido, os problemas filosóficos não deve-
riam ser resolvidos, que as perguntas filosóficas não deveriam ser respondidas, mas
que deveriam ser abandonadas após o reconhecimento de que repousavam sobre
um mal-entendido acerca das regras da nossa linguagem, sobre uma falta de clareza
a respeito do que todos nós, de algum modo, já sabemos. A reorganização e revisão
a que submetia suas observações visavam oferecer, em cada caso, uma ordenação
do nosso conhecimento lingüístico que propiciasse uma visão clara do funciona-
mento da nossa linguagem, visão essa que deveria dissipar o mal-entendido que
estava na origem do problema filosófico.
2. Ritmo: a tarefa do leitor e o papel das perguntas
Wittgenstein estava bem consciente do caráter lacônico das suas observações filo-
sóficas. Essa era uma das razões porque ele dizia que seus escritos deveriam ser
lidos lentamente. Em Cultura e Valor (ou, numa tradução literal do título original
em alemão, Miscelânea de Observações), ele diz: “Algumas vezes uma frase pode
ser entendida apenas se for lida no tempo [no sentido musical] certo. Minhas frases
devem todas ser lidas devagar.” (p. 65; grifo de Wittgenstein) Esse ritmo de leitura
também está relacionado a outros dois pontos concernentes ao estilo de escrita
filosófica de Wittgenstein. O primeiro ponto é expresso também no prefácio às
Investigações. Ele diz: “Eu não gostaria de poupar as outras pessoas do trabalho de
3
pensar. Mas, se possível, estimular os pensamentos de alguém.” A apresentação
dos resultados do seu trabalho filosófico não é algo que o leitor deva ou possa con-
templar passivamente. Parte do trabalho dessa apresentação deve ser feita pelo
próprio leitor. Isso é uma maneira de se dizer que o texto não é uma mera apresen-
tação de resultados. Wittgenstein acredita que os resultados são compreendidos de
uma forma clara, forma essa que propicia uma avaliação correta desses resultados,
somente se o leitor os vir como resultado do seu próprio esforço de pensamento e,
por isso, como seus resultados. Nesse sentido, o método de escrita do texto das
Investigações se assemelha muito ao método de escrita das Meditações Metafísicas
de Descartes. Descartes e Wittgenstein nos convidam a meditar. Quando diz que
suas frases devem ser lidas lentamente, Wittgenstein não quer dizer que devamos
levar mais tempo do que o usual desde a leitura da primeira palavra até a leitura da
última palavra das suas frases, como se lêssemos em câmera lenta. Ao invés disso,
o que ele tem em mente é o tempo reservado ao trabalho de pensar que ele deixa ao
leitor por meio de cada frase. E ele se serve com abundância de certas convenções
lingüísticas para frear a pressa do leitor: pontos, aspas simples, aspas duplas, itáli-
cos, parágrafos, travessões normais, travessões longos. Em outra passagem de Cul-
tura e Valor ele diz isso explicitamente: “Realmente quero diminuir a velocidade
de leitura com minhas incessantes marcas de pontuação. Pois gostaria de ser lido
lentamente. (Como eu próprio leio.)” (1984, p. 77)
O segundo ponto relacionado ao tempo de leitura dos escritos de Wittgenste-
in é o seguinte: ele acreditava que se poderia escrever um livro de filosofia que
conteria apenas perguntas. E parte da explicação disso está na seguinte passagem
das Observações Sobre os Fundamentos da Matemática:
Para resolver estes problemas filosóficos, deve-se comparar coisas que nunca ocor-
reu a ninguém seriamente comparar.
Nesse campo pode-se perguntar toda sorte de coisas que, embora pertençam ao
tópico, ainda não levam ao seu centro.
Uma particular série de perguntas leva ao centro e para fora. As restantes acabam
sendo respondidas incidentalmente.
É enormemente difícil encontrar o caminho até o centro.
Ele avança via novos exemplos e comparações. Os banais não o mostram. [p.
376]
A metáfora do caminho até o centro do tópico aqui deve ser entendida da seguinte
forma: as questões nos fazem ver um tópico gerador de problemas filosóficos de
novas perspectivas. A partir de uma dessas perspectivas (ou seja, por meio de um
desses caminhos abertos por perguntas) podemos ver claramente um aspecto do
tópico cuja negligência ou falta de atenção o fazia parecer misterioso, intrigante,
enigmático. O centro aqui não representa algo oculto, mas algo importante a que,
mesmo estando à vista, não prestamos atenção. Mas justamente porque não lhe
prestamos atenção, parece oculto, como se estivesse cercado por algo que nos im-
pede de vê-lo (como os óculos que procuramos quando os estamos usando). É claro
que um livro consistindo apenas de perguntas deveria ser lido muito mais lenta-
mente que um livro composto de uma série de asserções, pois, nesse caso, ao leitor
ficaria óbvio que o autor está a delegar-lhe tarefas que não são realizadas pela sim-
ples leitura do texto. As Investigações estão repletas de perguntas que Wittgenstein
não responde, ao menos não explicitamente.
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3. O método antidogmático
O uso de perguntas também está relacionado ao esforço de Wittgenstein para evitar
o dogmatismo, ou seja, afirmações injustificadas, e de dirigir a atenção para o que
ele acreditava ser sua principal contribuição para a filosofia: o método. Essa ênfase
sobre o método leva alguns comentadores a dizer que as Investigações consistem
num conjunto de exercícios do método (ou métodos) proposto por Wittgenstein (cf.
§133). Em uma passagem das Lições sobre os Fundamentos da Matemática, co-
mentando a atitude do matemático Allan Turing, que assistia às suas aulas, Witt-
genstein diz:
Uma das grandes dificuldades que encontro ao explicar o que quero dizer é essa: vo-
cê está inclinado a colocar nossa diferença de um modo, como uma diferença de o-
piniões. Mas não estou tentando persuadir você a mudar de opinião. Estou apenas
tentando recomendar uma espécie de investigação. Se há uma opinião envolvida,
minha única opinião é que essa espécie de investigação é imensamente importante e
grandemente contra a inclinação de alguns de vocês. [p. 103]
Algo que ele diz na primeira dessa série de lições explica em que sentido ele não
quer fazer Turing mudar de opinião:
A investigação consiste em chamar atenção para fatos que vocês conhecem tão bem
quanto eu, mas esqueceram, ou pelo menos não estão imediatamente em seu campo
de visão. Eles serão fatos totalmente triviais. Não direi qualquer coisa que qualquer
um possa disputar. Ou se alguém disputar, desistirei desse ponto e passarei a dizer
alguma outra coisa. [p. 22]
E na mesma lição em que ele se dirige a Turing citada acima ele diz:
Se eu pudesse arranjar na sua ordem apropriada certos fatos bem conhecidos, então
ficaria claro que Turing e eu não estamos usando a palavra “experimento” de modo
diferente. [p. 102]
Deixando de lado o detalhe sobre a palavra “experimento” (Wittgenstein queria
mostrar que um cálculo matemático não é um experimento), o que nos interessa
dessas passagens é que Wittgenstein acreditava que em filosofia deveríamos sem-
pre proceder de afirmações indisputáveis para afirmações indisputáveis até que,
desse modo, se realize uma ordenação do que já sabemos que torne claro algo que a
desordem nos impedia de ver. E para aplicar esse método antidogmático, nada me-
lhor do que perguntas.
4. O modo de expressão que não esconde as diferenças
Na sua busca por clareza nas Investigações e nos seus demais escritos, Wittgenste-
in segue dois princípios metodológicos básicos que estão em uma curiosa coopera-
ção e tensão mútuas. Por um lado está um princípio mais tolerante e permissivo,
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por assim dizer: “Diga o que quiser, desde que isso não o impeça de ver o que o-
corre.” (Investigações, §79). Torna-se mais fácil entender esse princípio se exami-
narmos sua relação com a frase que ele uma vez cogitou como o mote das Investi-
gações, “Vou te mostrar diferenças” (Shakespeare, Rei Lear, Ato I, cena IV), e um
exemplo das distinções que ele queria mostrar: a distinção entre filosofar e produzir
teorias (cf. Investigações, §109). Depois de perceber todas as diferenças que Witt-
genstein queria mostrar, alguém poderia ainda ver tantas semelhanças entre filoso-
far e produzir teorias que acharia justificado dizer que filosofar é produzir teorias.
É nesse ponto que o princípio de Wittgenstein mencionado acima desempenha seu
papel. A Wittgenstein não importa tanto que paremos de dizer que a filosofia pro-
duz teorias. Importa mais que dizer isso não nos impeça de ver as diferenças que
ele queria mostrar. E é nesse espírito que devemos interpretar suas negações; elas
pretendem apontar para diferenças, contra o que ele chama de “ânsia por generali-
dade” típica dos filósofos.
Por outro lado, um outro princípio metodológico serve como alerta dos peri-
gos de se ser muito permissivo com nosso modo de expressão: “Um modo de ex-
pressão inadequado é um modo seguro de permanecer em confusão. Ele como que
nos impede o caminho para fora dela.” (Investigações, §339) Um caso que ilustra
bem a obediência de Wittgenstein a esse princípio é o abandono da palavra “lógi-
ca” em favor da palavra “gramática” a partir do assim chamado período intermedi-
ário do desenvolvimento da sua filosofia. Com esse procedimento, ele queria evitar
uma série de pressuposições errôneas que o público a quem ele se dirigia naquela
época associava ao uso da palavra “lógica”. Ao mesmo tempo ele queria chamar
atenção para aspectos da lógica da nossa linguagem cuja percepção era, então, de
certa forma, bloqueada pelo uso da palavra “lógica”. Nos seus últimos escritos,
Sobre a Certeza e Observações Sobre as Cores, ele volta a usar a palavra “lógica”
mais abundantemente. Nas Observações Sobre as Cores, o substantivo “gramática”
ocorre apenas uma vez e o adjetivo “gramatical”, nenhuma. Em Cultura e Valor,
ele diz: “Algumas vezes tem-se que retirar uma expressão da linguagem para en-
viá-la à limpeza, ― e então pode-se pô-la de volta em circulação.” (p. 44)
5. O diálogo com a voz da tentação
No prefácio às Investigações, logo após admitir que sua melhor escrita consistia de
observações, Wittgenstein diz: “meus pensamentos logo se paralisavam se eu ten-
tasse forçá-los em uma única direção contra sua inclinação natural…”. O que ele
fez, portanto, foi expor seus pensamentos do modo como eles lhe ocorriam natu-
ralmente, algumas vezes saltando repentinamente de um tópico para outro. Nos
seus escritos, Wittgenstein como que pensa escrevendo, assim como suas aulas, ele
como que pensava em voz alta. Mas imediatamente após a última frase citada ele
acrescenta, com uma ênfase expressa por meio de um grande travessão: “――― E
isso estava, é claro, conectado com a própria natureza da investigação”. A ênfase
deixa claro que sua dificuldade não consistia simplesmente numa incapacidade de
seguir os padrões acadêmicos para a escrita de textos, mas sim numa incapacidade
de abandonar o curso de pensamento que a própria natureza da investigação sugeria
em detrimento desses padrões. E isso muitas vezes consistia em dar atenção a uma
objeção ou dúvida durante o curso de uma reflexão.
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E aqui tocamos em outro importante aspecto do etilo de escrita filosófica de
Wittgenstein: seu caráter dialógico. Nas Investigações e nos seus demais escritos,
freqüentemente ocorrem perguntas e afirmações entre aspas duplas ou após um
travessão. Essa é a “voz da tentação”, a voz que e expressa aquilo que se está natu-
ralmente tentado a dizer sobre um determinado assunto abordado e que, na grande
maioria dos casos, está, de um ou outro modo, errada. Se não se leva esse aspecto
do seu estilo de escrita filosófica em consideração, pode-se cometer erros banais de
interpretação, como atribuir uma contradição a Wittgenstein baseado no que ele diz
em um trecho entre aspas e em um trecho sem aspas. Deve-se ter muito cuidado
também ao se atribuir aquilo que é dito pela voz da tentação a um determinado
filósofo. A voz da tentação é, primariamente, a voz de Wittgenstein. Ela expressa o
que ele está tentado a dizer. Mas, é claro, essa tentação tem importância filosófica
apenas se não for uma idiossincrasia. Wittgenstein começa as Investigações com
uma citação em latim de um trecho das Confissões de Santo Agostinho, um autor
que ele respeitava e admirava muito, e passa boa parte do restante do livro critican-
do a concepção de linguagem ali expressa. Sobre isso, Norman Malcolm afirma:
“[Wittgenstein] uma vez me disse que resolveu começar as Investigações com uma
citação das Confissões [de Santo Agostinho] não porque ele não podia encontrar a
concepção expressa naquela citação também em outros filósofos, mas porque essa
concepção deve ser importante se uma mente tão formidável [great] a sustentou.”
(pp. 59-60) Mas não se deve pensar que a voz da tentação é sempre de Santo Agos-
tinho, nem que ela deva ser coerente, pois ela pode expressar tendências diferentes
de pensamento em diferentes pontos da investigação. Algumas vezes trata-se da
tendência do próprio “autor do Tractatus”, com Wittgenstein se refere a si mesmo
em uma passagem das Investigações (§23).
Mudando-se apenas o modo de apresentação das frases, alguns trechos das
Investigações podem ser reconstruídos como diálogos, em que o interlocutor tem
voz muito ativa, em contraste com alguns interlocutores de Sócrates em alguns
diálogos de Platão. Wittgenstein faz questão que essa voz fale sempre que tiver
algo a dizer. Ele não quer calá-la por meio de um movimento brusco de pensamen-
to, como a apresentação de um definitivo argumento refutador, embora argumentos
possam fazer parte desse esforço. Em Zettel, Wittgenstein diz: “Ao filosofar não
podemos exterminar uma doença do pensamento. Ela deve seguir seu curso natu-
ral, e a cura lenta é a que é importante.” (§382) Como vimos, Wittgenstein preten-
de oferecer um novo modo de se abordar os problemas filosóficos; pretende nos
fazer ver os problemas de perspectivas que ainda não os víamos. E nossa aborda-
gem dos problemas filosóficos que Wittgenstein pretende alterar. E isso, natural-
mente, não se faz por meio de um argumento refutador; não se faz “rapidamente”.
Ao invés de oferecer uma oposição ostensiva à tentação de se formular teorias filo-
sóficas, Wittgenstein pretende, de certa forma, incentivar a expressão dessa tenta-
ção, oferecendo formulações alternativas daquilo que ela está tentada a dizer, para
que, dessa forma, as suposições problemáticas que estavam implícitas nessas tenta-
tivas de teorização possam ficar explícitas. Na mesma lição citada acima, em que
se refere a Turing, Wittgenstein comenta a observação do matemático David Hil-
bert que ninguém nos expulsaria do paraíso que Cantor (outro matemático) havia
criado, fazendo alusão à teoria dos números transfinitos de Cantor. Wittgenstein
diz:
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Eu diria: “Eu não sonharia em tentar expulsar qualquer um para fora desse paraíso.”
Eu tentaria fazer algo totalmente diferente: eu tentaria mostrar a vocês que não é um
paraíso ― de tal modo que vocês sairiam por conta própria. Eu diria: “Vocês são
bem-vindos ai; apenas olhem à sua volta.” [Lições sobre os Fundamentos da Mate-
mática, p. 103]
6. Tractatus
Foi dito que a voz da tentação nas Investigações é, algumas vezes, a voz do autor
do Tractatus. Wittgenstein faz uma observação sobre isso no prefácio às Investiga-
ções:
Quatro anos atrás tive ocasião de reler meu primeiro livro (o Tractatus Logico-
Philosophicus) e explicar suas idéias a alguém. Repentinamente me pareceu que de-
veria publicar aqueles velhos pensamentos e os novos juntos: que os últimos poderi-
am ser vistos na luz correta apenas em contraste e contra o pano de fundo do meu
velho modo de pensar.
Há uma enorme controvérsia sobre como se deve interpretar essa passagem. O
problema consiste em determinar em que medida as Investigações constituem uma
crítica ao Tractatus e em que medida elas estão em continuidade com o Tractatus.
Algo, no entanto, é incontroverso: Wittgenstein está dizendo que o leitor não en-
tenderá corretamente as Investigações se não conhecer o Tractatus. E isso significa
conhecer a filosofia do Tractatus, o que não necessariamente envolve ler o livro,
pois como Wittgenstein diz na primeira frase do prefácio ao Tractatus, “[e]sse livro
talvez seja entendido apenas por quem já tenha alguma vez pensado por si próprio
o que nele vem expresso ― ou pelo menos algo semelhante.” (p. 131) O leitor das
Investigações deve pelo menos ter pensado algo semelhante à filosofia do Tracta-
tus. Por que? ― alguém poderia perguntar. Certa vez Wittgenstein disse a Norman
Malcolm que a única alternativa à filosofia da Investigações era a filosofia do
Tractatus. Certo ou errado, isso mostra como Wittgenstein encarava o papel do
conhecimento da filosofia do Tractatus na compreensão das Investigações. O Trac-
tatus procura levar às últimas conseqüências certas intuições muito básicas e natu-
rais sobre a natureza da lógica e da linguagem, algumas das quais são alvos das
reflexões críticas contidas nas Investigações. O ponto importante aqui é que essas
intuições são difíceis de resistir e, uma vez assumidas, torna-se difícil evitar as
conseqüências que Wittgenstein extrai delas no Tractatus. O conhecimento da filo-
sofia do Tractatus é importante para se compreender as Investigações, portanto,
não apenas porque o Tractatus faz parte da biografia intelectual de Wittgenstein,
mas porque ele representa uma formulação sistemática de certas tentações filosófi-
cas básicas e naturais que ele critica nas Investigações.
Mas quais são os alvos dessas críticas? Ou seja, o que no Tractatus é critica-
do pelas Investigações? Como foi dito, isso é matéria de controvérsia. E uma parte
dessa controvérsia gira em torno de como se deve interpretar o Tractatus. Vou
abordar de passagem apenas dois pontos inter-relacionados dessa controvérsia so-
bre a relação entre o Tractatus e as Investigações. O primeiro ponto diz respeito à
relação entre o significado e o uso de uma expressão lingüística.
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É bem sabido que, nas Investigações, Wittgenstein procura mostrar que o
significado de uma expressão lingüística é determinado pelo seu uso (§§30, 43), o
que tem como conseqüência que expressões inúteis, sem uso, não têm significado,
não importando o que se passe na cabeça ou mente do seu usuário. Uma expressão
lingüística, portanto, não seria dotada de significado por meio de um ato mental
independente das nossas práticas de usar expressões lingüísticas para realizar nos-
sas atividades cotidianas (o que inclui a ciência). Alguns intérpretes acreditam que
esse ponto da filosofia das Investigações está em continuidade com a filosofia do
Tractatus, que no seu primeiro livro, Wittgenstein não defende a tese que a lingua-
gem se conecta ao mundo — e, através dessa conexão, é dotada de significado —
por meio de operações mentais privadas. Essa interpretação (defendida principal-
mente por Cora Diamond e James Conant) vai de encontro com a interpretação
tradicional do Tractatus e, por isso, merece o nome de interpretação revisionista.
Algo que parece uma evidência para a interpretação revisionista é um con-
junto de afirmações do Tractatus que relacionam significado e uso (cf. 3.11, 3.326-
3.328, 6.211). Mas tomar essas afirmações como tal evidência depende muito de
como se interpreta a noção de uso e a relação entre uso e significado no Tractatus.
O simples fato de Wittgenstein afirmar que o uso manifesta o significado por si só
não mostra que, no Tractatus e nas Investigações, ele entendia da mesma forma a
noção e de uso e a relação entre uso e significado. A diferença que importa aqui é,
por um lado, entre práticas públicas e (supostas) práticas privadas e, por outro,
entre a manifestação do significado no uso e a constituição do significado pelo uso.
Em nenhuma passagem do Tractatus Wittgenstein afirma, como ele o faz nas In-
vestigações, que o uso de uma expressão constitui o seu significado ou que o signi-
ficado de uma expressão é o seu uso.
Há uma passagem em que Wittgenstein afirma que o que a navalha de Oc-
kham significa é que expressões inúteis não tem significado (3.328). Mas “inútil”
significa ali “eliminável pela análise”. Suponhamos que digamos algo por meio
uma frase “S”, que contém uma expressão aparentemente referencial “a”. Se a aná-
lise de “S” mostrar que podemos dizer a mesma coisa que diz “S” por meio da
frase “Q” sem usarmos a expressão “a” ou qualquer sinônimo, então isso mostra
que “a” é eliminável pela análise e, por isso, a suposta entidade que “a” parecia
nomear não necessita ser admitida. A navalha de Ockham, portanto, ao eliminar as
expressões inúteis nesse sentido, elimina as entidades desnecessárias. Mas essa
idéia de utilidade nada tem a ver com a idéia de utilidade que, segundo as Investi-
gações, determina o significado de uma expressão lingüística. Mesmo que a ex-
pressão “a” seja inútil do ponto de vista do Tractatus, ela pode ser muito útil nas
nossas práticas cotidianas públicas. E são essas últimas que, segundo as Investiga-
ções, determinam o significado.
E o que dizer do ato mental privado de dotar uma expressão de significado?
O Tractatus incluía um tal ato na sua filosofia da linguagem e da lógica? Minha
resposta é que incluía. Seria necessário bastante tempo para expor de maneira clara
as razões para se justificar essa resposta. Por isso, vou apenas indicar aqui a direção
que elas tomam. O primeiro fato a ser destacado é que, segundo o Tractatus, o
pensamento expresso por uma frase da linguagem ordinária (aquilo que o autor do
Tractatus chama de sentido da frase) possui uma complexidade lógica de que os
usuários da linguagem ordinária não estão conscientes e que não se revela na estru-
tura gramatical da frase das frases ordinárias. Por isso, é necessária a análise lógica
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para revelar essa complexidade. Mas a análise, justamente por ser uma análise,
apenas torna explícito o que já está implícito no sentido da frase, torna explícito o
que é, de alguma forma, pensado quando se pensa o sentido da frase, por mais ig-
norante que o usuário da frase seja sobre questões de filosofia da linguagem e da
lógica. Isso parece mostrar que nenhum ato público constitui esse ato de pensar o
sentido da frase; caso contrário, bastaria descrever esse ato ou atos para se descre-
ver a estrutura lógica do sentido da frase. Portanto, a discrepância entre a estrutura
lógica e a estrutura gramatical das frases parece exigir que o ato de se pensar o
sentido da frase seja um ato mental. Mas ele deveria ser um ato mental privado, no
sentido em que apenas o executante desse ato poderia conhecê-lo? Se houvesse
uma conexão necessária entre esse ato mental e o comportamento lingüístico públi-
co, então esse ato mental não seria privado. Nesse caso, bastaria descrever o com-
portamento lingüístico público para descrever a lógica da nossa linguagem. Entre-
tanto, segundo o Tractatus, nenhuma descrição do comportamento lingüístico pú-
blico é suficiente para se descrever a lógica da nossa linguagem.
Nas Investigações, Wittgenstein submete essa idéia de um ato mental priva-
do doador de significado a uma severa crítica (§§243-315). Ele procura mostrar
que, em um âmbito privado, não há objetividade, pois não se pode traçar uma dis-
tinção entre o que é e o que parece ser. Essa parte do livro é normalmente denomi-
nada “argumento da linguagem privada”. Esse argumento faz parte das suas refle-
xões sobre a noção de seguir uma regra (§§143-242). Algumas secções antes de
iniciar as reflexões sobre a linguagem privada, Wittgenstein afirma que o ato de
seguir uma regra faz parte de uma prática (§202), ou seja, de uma atividade reitera-
da normativa, e, por isso, não poderia ter sido realizado apenas uma vez na história
da humanidade. As reflexões sobre a linguagem privada visam, então, mostrar que
uma prática privada não é possível.
Um outro ponto em torno do qual gira a controvérsia sobre a relação entre o
Tractatus e as Investigações e que gostaria de abordar é o ponto de vista ou pers-
pectiva a partir do qual se realiza a atividade de filosofar. No Tractatus, o objetivo
da filosofia era descrever a forma comum à linguagem, ao pensamento e á realida-
de. Essa descrição deveria ser feita de um ponto de vista sub specie aeterni (6.45),
isto é, do ponto de vista da eternidade, ou, como diz Hilary Putnam, de um ponto
de vista do olho de Deus. Isso implica que aquilo sobre o qual se reflete em filoso-
fia é algo que não é afetado pelas vicissitudes cotidianas relacionadas ao uso da
linguagem. Portanto, o exame dessas vicissitudes seria irrelevante para as investi-
gações filosóficas. Isso está relacionado com a idéia de a priori do Tractatus. As
formas que interessam à filosofia, segundo o Tractatus, são independentes não
apenas do valor de verdade de qualquer frase, mas independentes do sentido de
qualquer frase, embora não independente de que frases tenham sentido e valor de
verdade. As formas que interessam à filosofia são independentes, portanto, de
qualquer fato particular que ocorra no mundo, embora não sejam independentes de
que fatos ocorram no mundo e que possam ocorrer. Nas Investigações, Wittgenste-
in promove uma mudança radical nesse ponto da sua filosofia. Ele abandona a tese
da independência do sentido em relação ao valor de verdade de qualquer frase. Ele
passou a ver que o sentido das frases da nossa linguagem dependia da verdade de
frases que enunciavam certos fatos empíricos muito gerais, tal como a regularidade
da natureza, o que inclui a regularidade no comportamento dos usuários da lingua-
gem. Essa relação entre o sentido de uma frase e a verdade de outras se chama
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pressuposição. “P” pressupõe “Q” se, e somente se, “P” não tiver sentido no caso
de “Q” ser falsa. As Investigações e toda filosofia tardia de Wittgenstein podem ser
descritas como uma tentativa de mostrar algumas das principais pressuposições da
nossa linguagem. Mas fazer o sentido das nossas frases depender de fatos naturais
muito gerais parece abolir a lógica (§242), ou, como Wittgenstein às vezes diz, a
dureza do “deve” lógico, da necessidade lógica. Isso parece assim porque o ter
sentido de uma frase empírica é o seu expressar uma possibilidade lógica. Portanto,
se o sentido de uma frase depende de certos fatos empíricos, perece que as possibi-
lidades lógicas dependem de fatos empíricos. Creio que o reconhecimento das
pressuposições do sentido não nos obriga a abandonar a convicção de que o que é
lógico é necessário, embora nos obrigue a abandonar a concepção de necessidade
do Tractatus. Entretanto, mostrar isso em detalhe extrapolaria os objetivos desse
pequeno texto.
7. Jogos de linguagem
Muitos dos problemas filosóficos com os quais Wittgenstein lida são, segundo ele,
frutos de idealizações. Idealizações surgem quando seguimos os caminhos aponta-
dos por melhorias. Por exemplo: quanto menor a resistência do ar, mais rápido nos
deslocamos no espaço. Analogamente, quanto menor forem as ambigüidades e
sinonímias da nossa linguagem, quanto menor for a dependência da nossa expres-
são em relação ao contexto, às vicissitudes do uso, mais claro e determinado será
aquilo que queremos dizer. Como bem aponta Kant, a idealização pode levar à
ilusão que as condições ideais do vôo (a metáfora do conhecimento) são aquelas
em que não há nenhuma resistência do ar (a metáfora da sensibilidade). Mas, é
justamente a resistência do ar, que parece imperfeição, que nos sustenta no vôo.
Contra essas idealizações ilusórias em filosofia da linguagem e da lógica, Witt-
genstein afirma que devemos retornar ao solo áspero do uso contextualizado da
linguagem.
No Tractatus, Wittgenstein pensava que a linguagem ordinária estava em
perfeita ordem lógica. Por isso, ele nunca propôs uma reforma lógica na linguagem
ordinária, nunca propôs a construção de uma linguagem ideal. O que ele achava
imperfeito na linguagem ordinária era a sua expressão ou notação: essa expressão
ocultava as formas lógicas e, por isso, era um obstáculo para a expressão clara dos
pensamentos absolutamente determinados que constituem os sentidos das suas
frases. Por isso, ele propunha uma notação ideal: um sistema de sinais que expres-
sava com absoluta clareza a forma lógica de cada afirmação.
Nas Investigações, Wittgenstein critica boa parte das exigências lógicas que
estavam por detrás desse projeto de construção de uma notação ideal. E uma das
principais maneiras de fazer essa crítica é a descrição do que Wittgenstein chama
de jogos de linguagem. Jogos de linguagem são atividades mais ou menos comple-
xas em que a linguagem é usada. Eles podem ser reais ou fictícios. Os jogos de
linguagem fictícios servem de objetos comparação que, por contraste, exibem os
aspectos lógicos da nossa linguagem e, desse modo, mostram o quão distante as
exigências lógicas do Tractatus estão da lógica da nossa linguagem. Vejamos esse
ponto por meio de um exemplo. No começo das Investigações, após citar e fazer os
primeiros comentários sobre já mencionada passagem das Confissões de Santo
11
Agostinho, Wittgenstein passa imediatamente a descrever um jogo de linguagem.
Segundo Wittgenstein, Santo Agostinho apresenta uma imagem da essência da
linguagem segundo a qual o significado de uma palavra é um objeto no lugar do
qual a palavra está. Para iniciar sua luta contra o enfeitiçamento dessa imagem,
Wittgenstein diz:
Pense no seguinte jogo de linguagem: envio alguém às compras. Dou-lhe uma tira
de papel com os sinais “cinco maçãs vermelhas”. Ele leva a tira de papel ao vende-
dor, que abre a gaveta em que estão os sinais “vermelhas”; então ele procura numa
tabela a palavra “vermelho” e encontra na sua frente um modelo da cor; então ele re-
cita a série dos números cardinais ― suponho que a saiba de cor ― até a palavra
“cinco” e a cada número ele retira da gaveta uma maçã da mesma cor do modelo.
―― É desse modo e similares que operamos com palavras. ―― “Mas como ele
sabe onde e como deve procurar a palavra ‘vermelho’ e o que deve fazer com a pa-
lavra ‘cinco’?” ―― Bem, eu suponho que ele age como eu descrevi. Explicações
devem ter um fim em algum lugar. ― Mas qual é o significado da palavra “cinco”?
― Sobre uma tal coisa não se falou aqui, apenas sobre como a palavra “cinco” é u-
sada. [§1]
Wittgenstein descreve um modo de se operar com as palavras “cinco”, “maçã” e
“vermelho”. O seu interlocutor não está satisfeito com essa descrição. Ele quer
saber qual é o significado de cada palavra e acredita que a descrição do uso não
apresenta esse significado. Parece que ele pensa que o uso supõe o conhecimento
do significado. Com a descrição desse jogo de linguagem simples Wittgenstein
pretende dar um primeiro passo na tentativa de mostrar que o acesso ao uso é sufi-
ciente para adquirirmos o domínio da linguagem. Algumas vezes as palavras são,
de fato, usadas como etiquetas que estão no lugar de certos objetos. Mas supor toda
palavra adquire significado por estar no lugar de um objeto nos envia à caça de
quimeras, como os números platônicos, por exemplo.
8. História da filosofia
As reflexões de Wittgenstein contidas nas Investigações têm um grande impacto
crítico sobre a filosofia tradicional. Não obstante, nas Investigações encontramos
pouquíssimas referências explícitas a outros filósofos e apenas uma citação literal.
Essa escassez de trabalho exegético e de história da filosofia é um reflexo da con-
cepção de filosofia de Wittgenstein. Em Cultura e Valor ele diz:
Constantemente ouvimos que a filosofia não progride, que estamos ainda ocupados
com os mesmos problemas filosóficos que os gregos. Aqueles que dizem isso, toda-
via, não entendem por que isso é assim. É porque nossa linguagem tem permanecido
a mesma e continua nos seduzindo a fazer as mesmas perguntas. Enquanto houver
um verbo “ser” que parece que funciona do mesmo modo como “comer” e “beber”,
enquanto houver os adjetivos “idêntico”, “verdadeiro”, “falso”, “possível”, enquanto
falarmos de uma corrente do tempo e da expansão do espaço, etc., etc., as pessoas
continuarão tropeçando nas mesmas dificuldades enigmáticas e admirando algo que
nenhuma explicação parece ser capaz de clarificar. [Cultura e Valor, p. 22]
12
A história da filosofia é, para Wittgenstein, em grande parte, uma sucessão de con-
fusões gramaticais e de tentativas equivocadas de lidar com essas confusões. No
entanto, algumas vezes essas tentativas envolvem intuições gramaticais corretas. A
história da filosofia, portanto, é, principalmente, uma fonte de problemas filosófi-
cos e de intuições gramaticais. Mas não é necessário ter conhecimento da história
da filosofia para que esses problemas surjam. Eles surgem naturalmente devido à
forma superficial da nossa linguagem. Parafraseando Kant, é como uma dialética
natural da linguagem. A solução desses problemas, ou sua dissolução, também não
necessita do conhecimento da história da filosofia. Ela depende apenas de uma
organização do nosso conhecimento do uso da linguagem. Enfim, para Wittgenste-
in, embora a filosofia possa ser auxiliada pela história da filosofia, ela pode ser
realizada sem a história da filosofia. É claro que se alguém quiser entrar num deba-
te que vem ocorrendo ao longo da história da filosofia, então deverá estudar a his-
tória desse debate. Mas a necessidade de conhecimento histórico é, nesse caso, a
mesma que tem um físico, por exemplo, que quer entrar num debate sobre questões
de física que vem ocorrendo ao longo da história da física. Também é claro que, ao
estudar a história de um debate, o filósofo se deparará com questões exegéticas.
Mas a necessidade de lidar com questões exegéticas é a mesma que tem um físico
quando está estudando obras sobre física, embora, talvez, em um grau maior. Aliás,
é a mesma necessidade que enfrenta qualquer pessoa que está a dialogar.
Mas se a filosofia não tem uma dependência essencial em relação à história
da filosofia, por que há tantas disciplinas de história da filosofia num curso de filo-
sofia (e, alguma vezes, nenhuma de história da física no curso de física)? Essa é
uma pergunta para ser respondida em uma outra ocasião.
Referências Bibliográficas
Malcolm, Norman (1984). Ludwig Wittgenstein: A Memoir. Segunda edição. Ox-
ford: Oxford University Press.
Wittgenstein, Ludwig (1998). Culture and Value [Cultura e Valor]. Segunda edi-
ção revisada. G.H. von Wright (ed.). Trad. Peter Winch. Oxford: Blackwell.
Wittgenstein, Ludwig (1996). Remarks on the Foundations of Mathematics [Ob-
servações Sobre os Fundamentos da Matemática]. Revised edition. G.H. von
Wright, Rush Rhees & G.E.M. Anscombe (eds.). Trad. G.E.M. Anscombe.
Oxford: Basil Blackwell.
Wittgenstein, Ludwig (1994). Tractatus Logico-Philosophicus. Bilíngue Ale-
mão/Português. Trad. Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: EDUSP.
Wittgenstein, Ludwig (1993). “Some Remarks on Logical Form” [Algumas Obser-
vações Sobre a Forma Lógica]. em Ludwig Wittgenstein: Philosophical Oc-
casions. James Klagge & Alfred Nordmann (eds.). Indianapolis: Hackett
Publishing Company.
Wittgenstein, Ludwig. (1975). Lectures on the Foundations of Mathematics [Lições
Sobre os Fundamentos da Matemática]. From the notes of R.G. Bosanquet,
13
Norman Malcolm, Rush Rhees, & Yorick Smythies. Cora Diamond (ed.).
Chicago: University of Chicago Press.
Wittgenstein, Ludwig (1958). Philosophical Investigations [Investigações Filosófi-
cas]. Bilíngue Alemão/Inglês. G.E.M. Anscombe & Rush Rhees (eds.). Trad.
G.E.M. Anscombe. Oxford: Blackwell.

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  • 1. 1 Apresentado em II Colóquio Prazer do Texto, UFBA, 2006 As Investigações Filosóficas de Wittgenstein: Estilo e Método Alexandre N. Machado Universidade Federal da Bahia anmachado@ufba.br 1. Clareza Wittgenstein publicou apenas dois textos durante sua vida: um livro curto e denso, o Tractatus Logico-Philosophicus, e um artigo curtíssimo, “Algumas Observações Sobre a Forma Lógica”, que foi posteriormente considerado fraco pelo próprio autor, mas que deu início a um processo de crítica a certas idéias do Tractatus. A maioria esmagadora dos seus escritos permaneceu inédita. Uma parte foi aos pou- cos publicada postumamente em forma de livros e, recentemente, o restante foi entregue ao público em formato digital. Dentre as publicações póstumas, está a principal obra da sua fase madura, as Investigações Filosóficas, o livro sobre o qual me propus falar hoje (doravante Investigações). Essa retenção dos seus escritos denuncia muito o peculiar modo como Witt- genstein os encarava. No prefácio às Investigações, publicado em 1953, dois anos após sua morte, ele explica um pouco sua atitude relacionando-a com algo que nos interessa diretamente aqui, a saber, o modo como o livro foi escrito: Escrevi todos esses pensamentos como observações, parágrafos curtos, dos quais há algumas vezes uma longa cadeia sobre o mesmo tema, enquanto que algumas vezes faço uma mudança repentina, saltando de um tópico para outro. ― Era minha inten- ção primeiramente reunir tudo isso em um livro cuja forma eu planejei de modo di- ferente em diferentes épocas. Após várias tentativas mal sucedidas de fundir meus resultados em um tal todo, compreendi que nunca teria sucesso. O melhor que eu poderia escrever jamais seria mais do que observações filosóficas. Mais adiante ele diz: Pouco tempo atrás [o prefácio foi escrito em 1945] eu realmente desisti da idéia de publicar minha obra em vida. Ela costumava, de fato, ser reavivada de tempos em tempos: principalmente porque fui forçado a saber que meus resultados (que comu- niquei em lições, textos datilografados e discussões), mal-entendidos de vários mo- dos, mais ou menos mutilados ou enfraquecidos, estavam em circulação. Nessas passagens Wittgenstein afirma que não publicou seus resultados porque não conseguiu encontrar uma forma de organizá-los que o satisfizesse. E essa dificul- dade se deveu ao fato de sua melhor escrita ser constituída de observações, ou ano- tações, isto é, pequenas reflexões constituídas de poucas frases. A grande maioria dos escritos de Wittgenstein não está organizado na forma tradicional de um trata-
  • 2. 2 do ou ensaio, com capítulos e secções bem definidos. Desde seus primeiros escri- tos, anteriores ao Tractatus, Wittgenstein filosofava enchendo cadernos e mais cadernos com observações. Algumas vezes pedia que alguém as datilografasse, as recortava em tiras e fazia montagens colando-as sobre folhas de papel. Fazia isso várias vezes, a fim de encontrar a melhor ordenação. Algumas dessas tiras foram encontradas presas com clipes a algumas páginas do manuscrito das Investigações. Não havendo indicação exata de onde Wittgenstein pretendia inseri-las, os editores optaram por colocá-las ao pé da página, separada por uma linha. Wittgenstein não apenas organizava e reorganizava suas observações, mas também as corrigia, mui- tas vezes hesitando entre um modo e outro de expressar o que pensava, um cuidado provavelmente estimulado por seu contato com George Edward Moore. Norman Malcolm, um aluno de Wittgenstein, escreveu em suas recordações sobre o seu mestre: “Ele observou que se alguém estivesse tentando encontrar as palavras exa- tas para expressar uma distinção sutil de pensamento, Moore era absolutamente a melhor pessoa a se consultar.” (p. 56) Muitos artigos de Moore contêm uma longa introdução onde ele procura deixar claro em que sentido não quer que sejam enten- didos os principais termos ali usado e as principais tese ali defendidas. Essas informações sobre o processo de edição a que Wittgenstein submetia seus escritos servem para mostrar que, apesar da sua insatisfação final com a forma dos seus escritos manifestada no prefácio às Investigações, ele era extremamente cuidadoso com seu modo de expressão e com a ordenação das suas observações. Esse cuidado extremo é o que explica boa parte daquela insatisfação. Ele se devia a um certo temor mooreano de ser mal-entendido, como mostra a passagem acima em que ele se refere à mutilação do seu pensamento. E esse temor, por sua vez, se devia ao modo como Wittgenstein concebia o principal objetivo da filosofia: a clarificação dos pensamentos com vistas a dissolver os problemas filosóficos. Wittgenstein acreditava que, num certo sentido, os problemas filosóficos não deve- riam ser resolvidos, que as perguntas filosóficas não deveriam ser respondidas, mas que deveriam ser abandonadas após o reconhecimento de que repousavam sobre um mal-entendido acerca das regras da nossa linguagem, sobre uma falta de clareza a respeito do que todos nós, de algum modo, já sabemos. A reorganização e revisão a que submetia suas observações visavam oferecer, em cada caso, uma ordenação do nosso conhecimento lingüístico que propiciasse uma visão clara do funciona- mento da nossa linguagem, visão essa que deveria dissipar o mal-entendido que estava na origem do problema filosófico. 2. Ritmo: a tarefa do leitor e o papel das perguntas Wittgenstein estava bem consciente do caráter lacônico das suas observações filo- sóficas. Essa era uma das razões porque ele dizia que seus escritos deveriam ser lidos lentamente. Em Cultura e Valor (ou, numa tradução literal do título original em alemão, Miscelânea de Observações), ele diz: “Algumas vezes uma frase pode ser entendida apenas se for lida no tempo [no sentido musical] certo. Minhas frases devem todas ser lidas devagar.” (p. 65; grifo de Wittgenstein) Esse ritmo de leitura também está relacionado a outros dois pontos concernentes ao estilo de escrita filosófica de Wittgenstein. O primeiro ponto é expresso também no prefácio às Investigações. Ele diz: “Eu não gostaria de poupar as outras pessoas do trabalho de
  • 3. 3 pensar. Mas, se possível, estimular os pensamentos de alguém.” A apresentação dos resultados do seu trabalho filosófico não é algo que o leitor deva ou possa con- templar passivamente. Parte do trabalho dessa apresentação deve ser feita pelo próprio leitor. Isso é uma maneira de se dizer que o texto não é uma mera apresen- tação de resultados. Wittgenstein acredita que os resultados são compreendidos de uma forma clara, forma essa que propicia uma avaliação correta desses resultados, somente se o leitor os vir como resultado do seu próprio esforço de pensamento e, por isso, como seus resultados. Nesse sentido, o método de escrita do texto das Investigações se assemelha muito ao método de escrita das Meditações Metafísicas de Descartes. Descartes e Wittgenstein nos convidam a meditar. Quando diz que suas frases devem ser lidas lentamente, Wittgenstein não quer dizer que devamos levar mais tempo do que o usual desde a leitura da primeira palavra até a leitura da última palavra das suas frases, como se lêssemos em câmera lenta. Ao invés disso, o que ele tem em mente é o tempo reservado ao trabalho de pensar que ele deixa ao leitor por meio de cada frase. E ele se serve com abundância de certas convenções lingüísticas para frear a pressa do leitor: pontos, aspas simples, aspas duplas, itáli- cos, parágrafos, travessões normais, travessões longos. Em outra passagem de Cul- tura e Valor ele diz isso explicitamente: “Realmente quero diminuir a velocidade de leitura com minhas incessantes marcas de pontuação. Pois gostaria de ser lido lentamente. (Como eu próprio leio.)” (1984, p. 77) O segundo ponto relacionado ao tempo de leitura dos escritos de Wittgenste- in é o seguinte: ele acreditava que se poderia escrever um livro de filosofia que conteria apenas perguntas. E parte da explicação disso está na seguinte passagem das Observações Sobre os Fundamentos da Matemática: Para resolver estes problemas filosóficos, deve-se comparar coisas que nunca ocor- reu a ninguém seriamente comparar. Nesse campo pode-se perguntar toda sorte de coisas que, embora pertençam ao tópico, ainda não levam ao seu centro. Uma particular série de perguntas leva ao centro e para fora. As restantes acabam sendo respondidas incidentalmente. É enormemente difícil encontrar o caminho até o centro. Ele avança via novos exemplos e comparações. Os banais não o mostram. [p. 376] A metáfora do caminho até o centro do tópico aqui deve ser entendida da seguinte forma: as questões nos fazem ver um tópico gerador de problemas filosóficos de novas perspectivas. A partir de uma dessas perspectivas (ou seja, por meio de um desses caminhos abertos por perguntas) podemos ver claramente um aspecto do tópico cuja negligência ou falta de atenção o fazia parecer misterioso, intrigante, enigmático. O centro aqui não representa algo oculto, mas algo importante a que, mesmo estando à vista, não prestamos atenção. Mas justamente porque não lhe prestamos atenção, parece oculto, como se estivesse cercado por algo que nos im- pede de vê-lo (como os óculos que procuramos quando os estamos usando). É claro que um livro consistindo apenas de perguntas deveria ser lido muito mais lenta- mente que um livro composto de uma série de asserções, pois, nesse caso, ao leitor ficaria óbvio que o autor está a delegar-lhe tarefas que não são realizadas pela sim- ples leitura do texto. As Investigações estão repletas de perguntas que Wittgenstein não responde, ao menos não explicitamente.
  • 4. 4 3. O método antidogmático O uso de perguntas também está relacionado ao esforço de Wittgenstein para evitar o dogmatismo, ou seja, afirmações injustificadas, e de dirigir a atenção para o que ele acreditava ser sua principal contribuição para a filosofia: o método. Essa ênfase sobre o método leva alguns comentadores a dizer que as Investigações consistem num conjunto de exercícios do método (ou métodos) proposto por Wittgenstein (cf. §133). Em uma passagem das Lições sobre os Fundamentos da Matemática, co- mentando a atitude do matemático Allan Turing, que assistia às suas aulas, Witt- genstein diz: Uma das grandes dificuldades que encontro ao explicar o que quero dizer é essa: vo- cê está inclinado a colocar nossa diferença de um modo, como uma diferença de o- piniões. Mas não estou tentando persuadir você a mudar de opinião. Estou apenas tentando recomendar uma espécie de investigação. Se há uma opinião envolvida, minha única opinião é que essa espécie de investigação é imensamente importante e grandemente contra a inclinação de alguns de vocês. [p. 103] Algo que ele diz na primeira dessa série de lições explica em que sentido ele não quer fazer Turing mudar de opinião: A investigação consiste em chamar atenção para fatos que vocês conhecem tão bem quanto eu, mas esqueceram, ou pelo menos não estão imediatamente em seu campo de visão. Eles serão fatos totalmente triviais. Não direi qualquer coisa que qualquer um possa disputar. Ou se alguém disputar, desistirei desse ponto e passarei a dizer alguma outra coisa. [p. 22] E na mesma lição em que ele se dirige a Turing citada acima ele diz: Se eu pudesse arranjar na sua ordem apropriada certos fatos bem conhecidos, então ficaria claro que Turing e eu não estamos usando a palavra “experimento” de modo diferente. [p. 102] Deixando de lado o detalhe sobre a palavra “experimento” (Wittgenstein queria mostrar que um cálculo matemático não é um experimento), o que nos interessa dessas passagens é que Wittgenstein acreditava que em filosofia deveríamos sem- pre proceder de afirmações indisputáveis para afirmações indisputáveis até que, desse modo, se realize uma ordenação do que já sabemos que torne claro algo que a desordem nos impedia de ver. E para aplicar esse método antidogmático, nada me- lhor do que perguntas. 4. O modo de expressão que não esconde as diferenças Na sua busca por clareza nas Investigações e nos seus demais escritos, Wittgenste- in segue dois princípios metodológicos básicos que estão em uma curiosa coopera- ção e tensão mútuas. Por um lado está um princípio mais tolerante e permissivo,
  • 5. 5 por assim dizer: “Diga o que quiser, desde que isso não o impeça de ver o que o- corre.” (Investigações, §79). Torna-se mais fácil entender esse princípio se exami- narmos sua relação com a frase que ele uma vez cogitou como o mote das Investi- gações, “Vou te mostrar diferenças” (Shakespeare, Rei Lear, Ato I, cena IV), e um exemplo das distinções que ele queria mostrar: a distinção entre filosofar e produzir teorias (cf. Investigações, §109). Depois de perceber todas as diferenças que Witt- genstein queria mostrar, alguém poderia ainda ver tantas semelhanças entre filoso- far e produzir teorias que acharia justificado dizer que filosofar é produzir teorias. É nesse ponto que o princípio de Wittgenstein mencionado acima desempenha seu papel. A Wittgenstein não importa tanto que paremos de dizer que a filosofia pro- duz teorias. Importa mais que dizer isso não nos impeça de ver as diferenças que ele queria mostrar. E é nesse espírito que devemos interpretar suas negações; elas pretendem apontar para diferenças, contra o que ele chama de “ânsia por generali- dade” típica dos filósofos. Por outro lado, um outro princípio metodológico serve como alerta dos peri- gos de se ser muito permissivo com nosso modo de expressão: “Um modo de ex- pressão inadequado é um modo seguro de permanecer em confusão. Ele como que nos impede o caminho para fora dela.” (Investigações, §339) Um caso que ilustra bem a obediência de Wittgenstein a esse princípio é o abandono da palavra “lógi- ca” em favor da palavra “gramática” a partir do assim chamado período intermedi- ário do desenvolvimento da sua filosofia. Com esse procedimento, ele queria evitar uma série de pressuposições errôneas que o público a quem ele se dirigia naquela época associava ao uso da palavra “lógica”. Ao mesmo tempo ele queria chamar atenção para aspectos da lógica da nossa linguagem cuja percepção era, então, de certa forma, bloqueada pelo uso da palavra “lógica”. Nos seus últimos escritos, Sobre a Certeza e Observações Sobre as Cores, ele volta a usar a palavra “lógica” mais abundantemente. Nas Observações Sobre as Cores, o substantivo “gramática” ocorre apenas uma vez e o adjetivo “gramatical”, nenhuma. Em Cultura e Valor, ele diz: “Algumas vezes tem-se que retirar uma expressão da linguagem para en- viá-la à limpeza, ― e então pode-se pô-la de volta em circulação.” (p. 44) 5. O diálogo com a voz da tentação No prefácio às Investigações, logo após admitir que sua melhor escrita consistia de observações, Wittgenstein diz: “meus pensamentos logo se paralisavam se eu ten- tasse forçá-los em uma única direção contra sua inclinação natural…”. O que ele fez, portanto, foi expor seus pensamentos do modo como eles lhe ocorriam natu- ralmente, algumas vezes saltando repentinamente de um tópico para outro. Nos seus escritos, Wittgenstein como que pensa escrevendo, assim como suas aulas, ele como que pensava em voz alta. Mas imediatamente após a última frase citada ele acrescenta, com uma ênfase expressa por meio de um grande travessão: “――― E isso estava, é claro, conectado com a própria natureza da investigação”. A ênfase deixa claro que sua dificuldade não consistia simplesmente numa incapacidade de seguir os padrões acadêmicos para a escrita de textos, mas sim numa incapacidade de abandonar o curso de pensamento que a própria natureza da investigação sugeria em detrimento desses padrões. E isso muitas vezes consistia em dar atenção a uma objeção ou dúvida durante o curso de uma reflexão.
  • 6. 6 E aqui tocamos em outro importante aspecto do etilo de escrita filosófica de Wittgenstein: seu caráter dialógico. Nas Investigações e nos seus demais escritos, freqüentemente ocorrem perguntas e afirmações entre aspas duplas ou após um travessão. Essa é a “voz da tentação”, a voz que e expressa aquilo que se está natu- ralmente tentado a dizer sobre um determinado assunto abordado e que, na grande maioria dos casos, está, de um ou outro modo, errada. Se não se leva esse aspecto do seu estilo de escrita filosófica em consideração, pode-se cometer erros banais de interpretação, como atribuir uma contradição a Wittgenstein baseado no que ele diz em um trecho entre aspas e em um trecho sem aspas. Deve-se ter muito cuidado também ao se atribuir aquilo que é dito pela voz da tentação a um determinado filósofo. A voz da tentação é, primariamente, a voz de Wittgenstein. Ela expressa o que ele está tentado a dizer. Mas, é claro, essa tentação tem importância filosófica apenas se não for uma idiossincrasia. Wittgenstein começa as Investigações com uma citação em latim de um trecho das Confissões de Santo Agostinho, um autor que ele respeitava e admirava muito, e passa boa parte do restante do livro critican- do a concepção de linguagem ali expressa. Sobre isso, Norman Malcolm afirma: “[Wittgenstein] uma vez me disse que resolveu começar as Investigações com uma citação das Confissões [de Santo Agostinho] não porque ele não podia encontrar a concepção expressa naquela citação também em outros filósofos, mas porque essa concepção deve ser importante se uma mente tão formidável [great] a sustentou.” (pp. 59-60) Mas não se deve pensar que a voz da tentação é sempre de Santo Agos- tinho, nem que ela deva ser coerente, pois ela pode expressar tendências diferentes de pensamento em diferentes pontos da investigação. Algumas vezes trata-se da tendência do próprio “autor do Tractatus”, com Wittgenstein se refere a si mesmo em uma passagem das Investigações (§23). Mudando-se apenas o modo de apresentação das frases, alguns trechos das Investigações podem ser reconstruídos como diálogos, em que o interlocutor tem voz muito ativa, em contraste com alguns interlocutores de Sócrates em alguns diálogos de Platão. Wittgenstein faz questão que essa voz fale sempre que tiver algo a dizer. Ele não quer calá-la por meio de um movimento brusco de pensamen- to, como a apresentação de um definitivo argumento refutador, embora argumentos possam fazer parte desse esforço. Em Zettel, Wittgenstein diz: “Ao filosofar não podemos exterminar uma doença do pensamento. Ela deve seguir seu curso natu- ral, e a cura lenta é a que é importante.” (§382) Como vimos, Wittgenstein preten- de oferecer um novo modo de se abordar os problemas filosóficos; pretende nos fazer ver os problemas de perspectivas que ainda não os víamos. E nossa aborda- gem dos problemas filosóficos que Wittgenstein pretende alterar. E isso, natural- mente, não se faz por meio de um argumento refutador; não se faz “rapidamente”. Ao invés de oferecer uma oposição ostensiva à tentação de se formular teorias filo- sóficas, Wittgenstein pretende, de certa forma, incentivar a expressão dessa tenta- ção, oferecendo formulações alternativas daquilo que ela está tentada a dizer, para que, dessa forma, as suposições problemáticas que estavam implícitas nessas tenta- tivas de teorização possam ficar explícitas. Na mesma lição citada acima, em que se refere a Turing, Wittgenstein comenta a observação do matemático David Hil- bert que ninguém nos expulsaria do paraíso que Cantor (outro matemático) havia criado, fazendo alusão à teoria dos números transfinitos de Cantor. Wittgenstein diz:
  • 7. 7 Eu diria: “Eu não sonharia em tentar expulsar qualquer um para fora desse paraíso.” Eu tentaria fazer algo totalmente diferente: eu tentaria mostrar a vocês que não é um paraíso ― de tal modo que vocês sairiam por conta própria. Eu diria: “Vocês são bem-vindos ai; apenas olhem à sua volta.” [Lições sobre os Fundamentos da Mate- mática, p. 103] 6. Tractatus Foi dito que a voz da tentação nas Investigações é, algumas vezes, a voz do autor do Tractatus. Wittgenstein faz uma observação sobre isso no prefácio às Investiga- ções: Quatro anos atrás tive ocasião de reler meu primeiro livro (o Tractatus Logico- Philosophicus) e explicar suas idéias a alguém. Repentinamente me pareceu que de- veria publicar aqueles velhos pensamentos e os novos juntos: que os últimos poderi- am ser vistos na luz correta apenas em contraste e contra o pano de fundo do meu velho modo de pensar. Há uma enorme controvérsia sobre como se deve interpretar essa passagem. O problema consiste em determinar em que medida as Investigações constituem uma crítica ao Tractatus e em que medida elas estão em continuidade com o Tractatus. Algo, no entanto, é incontroverso: Wittgenstein está dizendo que o leitor não en- tenderá corretamente as Investigações se não conhecer o Tractatus. E isso significa conhecer a filosofia do Tractatus, o que não necessariamente envolve ler o livro, pois como Wittgenstein diz na primeira frase do prefácio ao Tractatus, “[e]sse livro talvez seja entendido apenas por quem já tenha alguma vez pensado por si próprio o que nele vem expresso ― ou pelo menos algo semelhante.” (p. 131) O leitor das Investigações deve pelo menos ter pensado algo semelhante à filosofia do Tracta- tus. Por que? ― alguém poderia perguntar. Certa vez Wittgenstein disse a Norman Malcolm que a única alternativa à filosofia da Investigações era a filosofia do Tractatus. Certo ou errado, isso mostra como Wittgenstein encarava o papel do conhecimento da filosofia do Tractatus na compreensão das Investigações. O Trac- tatus procura levar às últimas conseqüências certas intuições muito básicas e natu- rais sobre a natureza da lógica e da linguagem, algumas das quais são alvos das reflexões críticas contidas nas Investigações. O ponto importante aqui é que essas intuições são difíceis de resistir e, uma vez assumidas, torna-se difícil evitar as conseqüências que Wittgenstein extrai delas no Tractatus. O conhecimento da filo- sofia do Tractatus é importante para se compreender as Investigações, portanto, não apenas porque o Tractatus faz parte da biografia intelectual de Wittgenstein, mas porque ele representa uma formulação sistemática de certas tentações filosófi- cas básicas e naturais que ele critica nas Investigações. Mas quais são os alvos dessas críticas? Ou seja, o que no Tractatus é critica- do pelas Investigações? Como foi dito, isso é matéria de controvérsia. E uma parte dessa controvérsia gira em torno de como se deve interpretar o Tractatus. Vou abordar de passagem apenas dois pontos inter-relacionados dessa controvérsia so- bre a relação entre o Tractatus e as Investigações. O primeiro ponto diz respeito à relação entre o significado e o uso de uma expressão lingüística.
  • 8. 8 É bem sabido que, nas Investigações, Wittgenstein procura mostrar que o significado de uma expressão lingüística é determinado pelo seu uso (§§30, 43), o que tem como conseqüência que expressões inúteis, sem uso, não têm significado, não importando o que se passe na cabeça ou mente do seu usuário. Uma expressão lingüística, portanto, não seria dotada de significado por meio de um ato mental independente das nossas práticas de usar expressões lingüísticas para realizar nos- sas atividades cotidianas (o que inclui a ciência). Alguns intérpretes acreditam que esse ponto da filosofia das Investigações está em continuidade com a filosofia do Tractatus, que no seu primeiro livro, Wittgenstein não defende a tese que a lingua- gem se conecta ao mundo — e, através dessa conexão, é dotada de significado — por meio de operações mentais privadas. Essa interpretação (defendida principal- mente por Cora Diamond e James Conant) vai de encontro com a interpretação tradicional do Tractatus e, por isso, merece o nome de interpretação revisionista. Algo que parece uma evidência para a interpretação revisionista é um con- junto de afirmações do Tractatus que relacionam significado e uso (cf. 3.11, 3.326- 3.328, 6.211). Mas tomar essas afirmações como tal evidência depende muito de como se interpreta a noção de uso e a relação entre uso e significado no Tractatus. O simples fato de Wittgenstein afirmar que o uso manifesta o significado por si só não mostra que, no Tractatus e nas Investigações, ele entendia da mesma forma a noção e de uso e a relação entre uso e significado. A diferença que importa aqui é, por um lado, entre práticas públicas e (supostas) práticas privadas e, por outro, entre a manifestação do significado no uso e a constituição do significado pelo uso. Em nenhuma passagem do Tractatus Wittgenstein afirma, como ele o faz nas In- vestigações, que o uso de uma expressão constitui o seu significado ou que o signi- ficado de uma expressão é o seu uso. Há uma passagem em que Wittgenstein afirma que o que a navalha de Oc- kham significa é que expressões inúteis não tem significado (3.328). Mas “inútil” significa ali “eliminável pela análise”. Suponhamos que digamos algo por meio uma frase “S”, que contém uma expressão aparentemente referencial “a”. Se a aná- lise de “S” mostrar que podemos dizer a mesma coisa que diz “S” por meio da frase “Q” sem usarmos a expressão “a” ou qualquer sinônimo, então isso mostra que “a” é eliminável pela análise e, por isso, a suposta entidade que “a” parecia nomear não necessita ser admitida. A navalha de Ockham, portanto, ao eliminar as expressões inúteis nesse sentido, elimina as entidades desnecessárias. Mas essa idéia de utilidade nada tem a ver com a idéia de utilidade que, segundo as Investi- gações, determina o significado de uma expressão lingüística. Mesmo que a ex- pressão “a” seja inútil do ponto de vista do Tractatus, ela pode ser muito útil nas nossas práticas cotidianas públicas. E são essas últimas que, segundo as Investiga- ções, determinam o significado. E o que dizer do ato mental privado de dotar uma expressão de significado? O Tractatus incluía um tal ato na sua filosofia da linguagem e da lógica? Minha resposta é que incluía. Seria necessário bastante tempo para expor de maneira clara as razões para se justificar essa resposta. Por isso, vou apenas indicar aqui a direção que elas tomam. O primeiro fato a ser destacado é que, segundo o Tractatus, o pensamento expresso por uma frase da linguagem ordinária (aquilo que o autor do Tractatus chama de sentido da frase) possui uma complexidade lógica de que os usuários da linguagem ordinária não estão conscientes e que não se revela na estru- tura gramatical da frase das frases ordinárias. Por isso, é necessária a análise lógica
  • 9. 9 para revelar essa complexidade. Mas a análise, justamente por ser uma análise, apenas torna explícito o que já está implícito no sentido da frase, torna explícito o que é, de alguma forma, pensado quando se pensa o sentido da frase, por mais ig- norante que o usuário da frase seja sobre questões de filosofia da linguagem e da lógica. Isso parece mostrar que nenhum ato público constitui esse ato de pensar o sentido da frase; caso contrário, bastaria descrever esse ato ou atos para se descre- ver a estrutura lógica do sentido da frase. Portanto, a discrepância entre a estrutura lógica e a estrutura gramatical das frases parece exigir que o ato de se pensar o sentido da frase seja um ato mental. Mas ele deveria ser um ato mental privado, no sentido em que apenas o executante desse ato poderia conhecê-lo? Se houvesse uma conexão necessária entre esse ato mental e o comportamento lingüístico públi- co, então esse ato mental não seria privado. Nesse caso, bastaria descrever o com- portamento lingüístico público para descrever a lógica da nossa linguagem. Entre- tanto, segundo o Tractatus, nenhuma descrição do comportamento lingüístico pú- blico é suficiente para se descrever a lógica da nossa linguagem. Nas Investigações, Wittgenstein submete essa idéia de um ato mental priva- do doador de significado a uma severa crítica (§§243-315). Ele procura mostrar que, em um âmbito privado, não há objetividade, pois não se pode traçar uma dis- tinção entre o que é e o que parece ser. Essa parte do livro é normalmente denomi- nada “argumento da linguagem privada”. Esse argumento faz parte das suas refle- xões sobre a noção de seguir uma regra (§§143-242). Algumas secções antes de iniciar as reflexões sobre a linguagem privada, Wittgenstein afirma que o ato de seguir uma regra faz parte de uma prática (§202), ou seja, de uma atividade reitera- da normativa, e, por isso, não poderia ter sido realizado apenas uma vez na história da humanidade. As reflexões sobre a linguagem privada visam, então, mostrar que uma prática privada não é possível. Um outro ponto em torno do qual gira a controvérsia sobre a relação entre o Tractatus e as Investigações e que gostaria de abordar é o ponto de vista ou pers- pectiva a partir do qual se realiza a atividade de filosofar. No Tractatus, o objetivo da filosofia era descrever a forma comum à linguagem, ao pensamento e á realida- de. Essa descrição deveria ser feita de um ponto de vista sub specie aeterni (6.45), isto é, do ponto de vista da eternidade, ou, como diz Hilary Putnam, de um ponto de vista do olho de Deus. Isso implica que aquilo sobre o qual se reflete em filoso- fia é algo que não é afetado pelas vicissitudes cotidianas relacionadas ao uso da linguagem. Portanto, o exame dessas vicissitudes seria irrelevante para as investi- gações filosóficas. Isso está relacionado com a idéia de a priori do Tractatus. As formas que interessam à filosofia, segundo o Tractatus, são independentes não apenas do valor de verdade de qualquer frase, mas independentes do sentido de qualquer frase, embora não independente de que frases tenham sentido e valor de verdade. As formas que interessam à filosofia são independentes, portanto, de qualquer fato particular que ocorra no mundo, embora não sejam independentes de que fatos ocorram no mundo e que possam ocorrer. Nas Investigações, Wittgenste- in promove uma mudança radical nesse ponto da sua filosofia. Ele abandona a tese da independência do sentido em relação ao valor de verdade de qualquer frase. Ele passou a ver que o sentido das frases da nossa linguagem dependia da verdade de frases que enunciavam certos fatos empíricos muito gerais, tal como a regularidade da natureza, o que inclui a regularidade no comportamento dos usuários da lingua- gem. Essa relação entre o sentido de uma frase e a verdade de outras se chama
  • 10. 10 pressuposição. “P” pressupõe “Q” se, e somente se, “P” não tiver sentido no caso de “Q” ser falsa. As Investigações e toda filosofia tardia de Wittgenstein podem ser descritas como uma tentativa de mostrar algumas das principais pressuposições da nossa linguagem. Mas fazer o sentido das nossas frases depender de fatos naturais muito gerais parece abolir a lógica (§242), ou, como Wittgenstein às vezes diz, a dureza do “deve” lógico, da necessidade lógica. Isso parece assim porque o ter sentido de uma frase empírica é o seu expressar uma possibilidade lógica. Portanto, se o sentido de uma frase depende de certos fatos empíricos, perece que as possibi- lidades lógicas dependem de fatos empíricos. Creio que o reconhecimento das pressuposições do sentido não nos obriga a abandonar a convicção de que o que é lógico é necessário, embora nos obrigue a abandonar a concepção de necessidade do Tractatus. Entretanto, mostrar isso em detalhe extrapolaria os objetivos desse pequeno texto. 7. Jogos de linguagem Muitos dos problemas filosóficos com os quais Wittgenstein lida são, segundo ele, frutos de idealizações. Idealizações surgem quando seguimos os caminhos aponta- dos por melhorias. Por exemplo: quanto menor a resistência do ar, mais rápido nos deslocamos no espaço. Analogamente, quanto menor forem as ambigüidades e sinonímias da nossa linguagem, quanto menor for a dependência da nossa expres- são em relação ao contexto, às vicissitudes do uso, mais claro e determinado será aquilo que queremos dizer. Como bem aponta Kant, a idealização pode levar à ilusão que as condições ideais do vôo (a metáfora do conhecimento) são aquelas em que não há nenhuma resistência do ar (a metáfora da sensibilidade). Mas, é justamente a resistência do ar, que parece imperfeição, que nos sustenta no vôo. Contra essas idealizações ilusórias em filosofia da linguagem e da lógica, Witt- genstein afirma que devemos retornar ao solo áspero do uso contextualizado da linguagem. No Tractatus, Wittgenstein pensava que a linguagem ordinária estava em perfeita ordem lógica. Por isso, ele nunca propôs uma reforma lógica na linguagem ordinária, nunca propôs a construção de uma linguagem ideal. O que ele achava imperfeito na linguagem ordinária era a sua expressão ou notação: essa expressão ocultava as formas lógicas e, por isso, era um obstáculo para a expressão clara dos pensamentos absolutamente determinados que constituem os sentidos das suas frases. Por isso, ele propunha uma notação ideal: um sistema de sinais que expres- sava com absoluta clareza a forma lógica de cada afirmação. Nas Investigações, Wittgenstein critica boa parte das exigências lógicas que estavam por detrás desse projeto de construção de uma notação ideal. E uma das principais maneiras de fazer essa crítica é a descrição do que Wittgenstein chama de jogos de linguagem. Jogos de linguagem são atividades mais ou menos comple- xas em que a linguagem é usada. Eles podem ser reais ou fictícios. Os jogos de linguagem fictícios servem de objetos comparação que, por contraste, exibem os aspectos lógicos da nossa linguagem e, desse modo, mostram o quão distante as exigências lógicas do Tractatus estão da lógica da nossa linguagem. Vejamos esse ponto por meio de um exemplo. No começo das Investigações, após citar e fazer os primeiros comentários sobre já mencionada passagem das Confissões de Santo
  • 11. 11 Agostinho, Wittgenstein passa imediatamente a descrever um jogo de linguagem. Segundo Wittgenstein, Santo Agostinho apresenta uma imagem da essência da linguagem segundo a qual o significado de uma palavra é um objeto no lugar do qual a palavra está. Para iniciar sua luta contra o enfeitiçamento dessa imagem, Wittgenstein diz: Pense no seguinte jogo de linguagem: envio alguém às compras. Dou-lhe uma tira de papel com os sinais “cinco maçãs vermelhas”. Ele leva a tira de papel ao vende- dor, que abre a gaveta em que estão os sinais “vermelhas”; então ele procura numa tabela a palavra “vermelho” e encontra na sua frente um modelo da cor; então ele re- cita a série dos números cardinais ― suponho que a saiba de cor ― até a palavra “cinco” e a cada número ele retira da gaveta uma maçã da mesma cor do modelo. ―― É desse modo e similares que operamos com palavras. ―― “Mas como ele sabe onde e como deve procurar a palavra ‘vermelho’ e o que deve fazer com a pa- lavra ‘cinco’?” ―― Bem, eu suponho que ele age como eu descrevi. Explicações devem ter um fim em algum lugar. ― Mas qual é o significado da palavra “cinco”? ― Sobre uma tal coisa não se falou aqui, apenas sobre como a palavra “cinco” é u- sada. [§1] Wittgenstein descreve um modo de se operar com as palavras “cinco”, “maçã” e “vermelho”. O seu interlocutor não está satisfeito com essa descrição. Ele quer saber qual é o significado de cada palavra e acredita que a descrição do uso não apresenta esse significado. Parece que ele pensa que o uso supõe o conhecimento do significado. Com a descrição desse jogo de linguagem simples Wittgenstein pretende dar um primeiro passo na tentativa de mostrar que o acesso ao uso é sufi- ciente para adquirirmos o domínio da linguagem. Algumas vezes as palavras são, de fato, usadas como etiquetas que estão no lugar de certos objetos. Mas supor toda palavra adquire significado por estar no lugar de um objeto nos envia à caça de quimeras, como os números platônicos, por exemplo. 8. História da filosofia As reflexões de Wittgenstein contidas nas Investigações têm um grande impacto crítico sobre a filosofia tradicional. Não obstante, nas Investigações encontramos pouquíssimas referências explícitas a outros filósofos e apenas uma citação literal. Essa escassez de trabalho exegético e de história da filosofia é um reflexo da con- cepção de filosofia de Wittgenstein. Em Cultura e Valor ele diz: Constantemente ouvimos que a filosofia não progride, que estamos ainda ocupados com os mesmos problemas filosóficos que os gregos. Aqueles que dizem isso, toda- via, não entendem por que isso é assim. É porque nossa linguagem tem permanecido a mesma e continua nos seduzindo a fazer as mesmas perguntas. Enquanto houver um verbo “ser” que parece que funciona do mesmo modo como “comer” e “beber”, enquanto houver os adjetivos “idêntico”, “verdadeiro”, “falso”, “possível”, enquanto falarmos de uma corrente do tempo e da expansão do espaço, etc., etc., as pessoas continuarão tropeçando nas mesmas dificuldades enigmáticas e admirando algo que nenhuma explicação parece ser capaz de clarificar. [Cultura e Valor, p. 22]
  • 12. 12 A história da filosofia é, para Wittgenstein, em grande parte, uma sucessão de con- fusões gramaticais e de tentativas equivocadas de lidar com essas confusões. No entanto, algumas vezes essas tentativas envolvem intuições gramaticais corretas. A história da filosofia, portanto, é, principalmente, uma fonte de problemas filosófi- cos e de intuições gramaticais. Mas não é necessário ter conhecimento da história da filosofia para que esses problemas surjam. Eles surgem naturalmente devido à forma superficial da nossa linguagem. Parafraseando Kant, é como uma dialética natural da linguagem. A solução desses problemas, ou sua dissolução, também não necessita do conhecimento da história da filosofia. Ela depende apenas de uma organização do nosso conhecimento do uso da linguagem. Enfim, para Wittgenste- in, embora a filosofia possa ser auxiliada pela história da filosofia, ela pode ser realizada sem a história da filosofia. É claro que se alguém quiser entrar num deba- te que vem ocorrendo ao longo da história da filosofia, então deverá estudar a his- tória desse debate. Mas a necessidade de conhecimento histórico é, nesse caso, a mesma que tem um físico, por exemplo, que quer entrar num debate sobre questões de física que vem ocorrendo ao longo da história da física. Também é claro que, ao estudar a história de um debate, o filósofo se deparará com questões exegéticas. Mas a necessidade de lidar com questões exegéticas é a mesma que tem um físico quando está estudando obras sobre física, embora, talvez, em um grau maior. Aliás, é a mesma necessidade que enfrenta qualquer pessoa que está a dialogar. Mas se a filosofia não tem uma dependência essencial em relação à história da filosofia, por que há tantas disciplinas de história da filosofia num curso de filo- sofia (e, alguma vezes, nenhuma de história da física no curso de física)? Essa é uma pergunta para ser respondida em uma outra ocasião. Referências Bibliográficas Malcolm, Norman (1984). Ludwig Wittgenstein: A Memoir. Segunda edição. Ox- ford: Oxford University Press. Wittgenstein, Ludwig (1998). Culture and Value [Cultura e Valor]. Segunda edi- ção revisada. G.H. von Wright (ed.). Trad. Peter Winch. Oxford: Blackwell. Wittgenstein, Ludwig (1996). Remarks on the Foundations of Mathematics [Ob- servações Sobre os Fundamentos da Matemática]. Revised edition. G.H. von Wright, Rush Rhees & G.E.M. Anscombe (eds.). Trad. G.E.M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell. Wittgenstein, Ludwig (1994). Tractatus Logico-Philosophicus. Bilíngue Ale- mão/Português. Trad. Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: EDUSP. Wittgenstein, Ludwig (1993). “Some Remarks on Logical Form” [Algumas Obser- vações Sobre a Forma Lógica]. em Ludwig Wittgenstein: Philosophical Oc- casions. James Klagge & Alfred Nordmann (eds.). Indianapolis: Hackett Publishing Company. Wittgenstein, Ludwig. (1975). Lectures on the Foundations of Mathematics [Lições Sobre os Fundamentos da Matemática]. From the notes of R.G. Bosanquet,
  • 13. 13 Norman Malcolm, Rush Rhees, & Yorick Smythies. Cora Diamond (ed.). Chicago: University of Chicago Press. Wittgenstein, Ludwig (1958). Philosophical Investigations [Investigações Filosófi- cas]. Bilíngue Alemão/Inglês. G.E.M. Anscombe & Rush Rhees (eds.). Trad. G.E.M. Anscombe. Oxford: Blackwell.