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Gênero: Multiplicidade de Representações e Práticas Sociais. ST 38
Paulo Fernando de Souza Campos
Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – ENOEEUSP/FAPESP
Palavras-chave: História da Enfermagem – Mulheres Negras – Representações – Identidade
Profissional

A Exclusão de Mulheres Negras da Enfermagem Profissional Brasileira:
entre Práticas e Representaçõesi

A pesquisa em história no Brasil muito recentemente incorporou a história das
mulheres como perspectiva de investigação. A década de 1980 marcou definitivamente a
produção historiográfica acerca das ações e acontecimentos praticados por mulheres, que
incluíssem mulheres ou que houvesse participação feminina. Contar a história das mulheres
ou suas experiências não só contribuiu para retirá-las da penumbra, na qual foram duramente
colocadas, mas favoreceu ao rompimento de uma escrita da história estanque e esquemática.
Narrada de forma unilateral, a historiografia tradicional pouco mencionava os enredos
femininos. O positivismo que norteou a escrita da história, até seguramente a passagem para o
século XX, relegava experiências de mulheres avaliando-as como inferior em relação aos
fatos que deveriam ser perpetuados pois, ainda que existissem, não eram protagonistas. A
escrita da história impunha uma visibilidade restritiva à participação das mulheres no
processo histórico, algo similar ao padrão de comportamento a elas imposto e que as
classificavam como dóceis, frágeis, abnegadas, submissas, voltadas para o lar, a educação dos
filhos e manutenção da ordem doméstico-familiar, ações compreendidas como menores na
escala que regia a escrita da história. O que deveria ser perpetuado eram os feitos de grandes
homens, forjados com glória e opulência, atrelando o devir histórico a personagens
masculinos.
Deste modo, se as mulheres foram excluídas da história (PERROT, 1988), as mulheres
negras foram duplamente segregadas. A condição feminina aliada ao traço negro afrodescendente desqualificava ainda mais a participação da mulher negra na história do Brasil,
sempre representada como escrava, praticante do sexo venal, doméstica ou depreciada em
seus padrões de beleza, moral e comportamentos (SANTOS, 2004). George Reid Andrews
(1998) indica que, no Brasil, as elites políticas e dominantes estabeleceram um imaginário
social fundado na realidade continuada da pobreza e marginalização dos negros, imaginário
assumido como a confirmação da preguiça, ignorância, estupidez e incapacidade que os
caracterizavam, tal qual propunha a ideologia da vadiagem cujas bases remontavam as teses
da herança racial. Nestes termos, perceber como se deu o processo de exclusão de mulheres
negras e a resistência dessas mulheres às fabricações discursivas que as desqualificavam,
torna-se fundamental para o estudo da formação da identidade profissional da enfermagem
brasileira.
Tratando especificamente a história do Brasil, é possível afirmar que o paradigma
darwinista social utilizado pelas elites políticas e dominantes na Primeira República (18891930) afirmava que negros seriam naturalmente degenerados, projetando-os como
sexualmente pervertidos, sujeitos de moral duvidosa ou desviantes sociais, fazendo recair
sobre essa parcela significativa da população nacional uma suspeição generalizada. Políticas
públicas, ordens médicas e regras de convívio social nivelavam diferenças entre negros e
brancos, estes últimos identificados sempre como superiores. Tais princípios eram usados,
inclusive, como critérios para definição social de uma pessoa, o que poderia incluí-la ou o seu
contrário.
As normas impostas pelo bio-poder, que atingiam habitação, higiene, alimentação,
sexualidade, religião, literatura, entre outros, produziam juízos de valor que restringiam
possibilidades. Como degenerados ou criminosos natos, negros não poderiam ou não
deveriam participar da esfera social mais ampla na medida em que a contaminaria física e
moralmente, como apregoavam médicos e também advogados (SOUZA CAMPOS, 2003).
Nas origens da sociedade republicana, quando não assumidos como crias da casa, negros
eram representados como páreas, dada a cristalização de imagens que os associavam a classes
sociais perigosas, marcando profundamente as relações sociais no Brasil nas décadas iniciais
da República. Assimilados como primitivos diante do estágio evolutivo da espécie humana
discursos médicos e jurídicos, transformados em práticas, localizavam na parcela negra da
população nacional o perigo da degeneração da raça e outras formas de contaminação social,
problema que a ideologia do branqueamento há muito pretendia resolverii.
As visibilidades decorrentes desse processo formalizam a investigação em torno dos
modos de exclusão racial e de gênero no ofício da enfermagem durante a primeira metade do
século XX. Vale dizer, ao perscrutar a história das mulheres negras no âmbito da história da
enfermagem, pretende-se perceber os alcances da opinião pública, forjada pela medicina
social, sobre o contingente negro do Brasil contribuindo, assim, para o estudo das
representações construídas para as mulheres negras, especificamente, as que interferem na
formação da identidade profissional da enfermagem brasileira.
A história da enfermagem torna-se particularmente interessante para a história das
mulheres negras. Em sua origem profissional, os cursos de formação deveriam evitar a
presença negra - assim como a masculina - nos quadros discentes, resultado de um processo
de seleção rigidamente instituído. Tal impedimento encontrava suporte no modelo
educacional assumido como padrão profissional no Brasil, proposto originalmente por
Florence Nigthingale (1820-1910), precursora da enfermagem moderna, bem como em suas
intenções de moralizar a ação do cuidado, anteriormente identificada como prática
desqualificada e desqualificadora, exercida por mulheres desviantes, vulgares e marginaisiii.
Contrariando a concepção de democracia que fundou o regime republicano no Brasil,
bem como os antecedentes históricos da ação do cuidado realizado em território brasileiro,
para a admissão em uma escola de enfermagem considerada padrão era preciso ser mulher,
branca, possuir formação educacional e religiosa, esta preferencialmente cristã, entre outros
pré-requisitos que restringiam as possibilidades de seleção. Recuperando a documentação que
registra a trajetória da história da enfermagem no Brasil, é possível encontrar episódios
originais que permitem analisar as relações interétnicas no âmbito da formação profissional.
Um desses episódios, vividos por dirigentes e alunas da Escola de Enfermeiras do
Departamento Nacional de Saúde Pública, fundada em 1923 na cidade do Rio de Janeiro,
desvela o problema:
É verdade que a política de organização da escola tinha sido evitar,
diplomática e estrategicamente, a admissão de negros, até que a opinião
pública em relação à profissão de enfermagem tivesse mudado. Isto era
fundamental se pretendia atrair mulheres de melhor classe... mesmo a
Academia Naval colocava obstáculos para impedir a admissão de candidatos
negros. Todas as vezes em que moças de cor se candidatavam para entrar na
escola, havia sempre outras boas razões para que elas não fossem
qualificadas, por isso nenhum problema havia surgido até então. Na verdade,
havia já na escola três estudantes que, apesar de brancas, mostravam alguns
traços de sangue negro. Foi enviada uma carta à imprensa comunicando que
nenhuma pretendente havia sido rejeitada por causa da cor, mas não foi
convincente, e o Departamento de Saúde achou que seria aconselhável
permitir o ingresso de uma moça negra, se acaso se apresentasse alguma que
preenchesse todos os requisitos para a admissão. Esta candidata apareceu em
março, juntamente com as demais pretendentes sob forte suspeita de que
havia sido mandada por um dos jornais, e foi admitida. Isto provocou uma
enxurrada de protestos por parte da alunas, mas, após considerar a questão, o
Conselho de Estudantes finalmente decidiu que qualquer manifestação de
rejeição ou de descortesia para com uma colega de classe demonstraria falta
de respeito e de vontade de cooperar, e assim não houve mais dificuldades.
As estudantes deixaram claro, contudo, que esperavam que não fosse
admitida nenhuma outra negra por algum tempo (MOREIRA, 1999).

O documento revela que a admissão de uma negra e outras “...que apesar de brancas,
mostravam alguns traços de sangue negro...” no interior dos quadros acadêmicos da referida
escola derruba a tese da ignorância e dos desvios que as caracterizavam, motivos pelos quais
estas seriam naturalmente impossibilitadas de ingressar nos cursos profissionalizantes. O
registro comprova que independente da origem étnica ou condição social, mulheres negras
poderiam preencher os pré-requisitos exigidos a uma futura enfermeira, o que permite trazer o
debate para o campo das representações (CHARTIER, 1991). As evidencias que o registro
evoca permitem observar, por outro lado, a resistência de mulheres negras na conquista de seu
espaço social, intelectual e profissional, o que implica repensar as bases que forjaram a
identidade profissional da enfermagem brasileira ou então, qual seria o motivo para a
exclusão das mulheres negras da formação profissional?
Analisando a documentação, é possível observar que o desejo de não ver o episódio
repetido consubstancia a historiografia recente, quando esta afirma que a sociedade brasileira
sempre rejeitou o convívio com aqueles que um dia foram seus cativos, justificando a
natureza das restrições impostas (DOMINGUES, 2000). As relações de interdependência
entre as práticas do cuidado e as populações negras no Brasil sempre foram muito próximas,
ainda que pouco estudadas. Durante todo o processo histórico do Brasil, era intensa a
participação de mulheres negras como parteiras, amas de leite, negras domésticas e mães
pretas, ou seja, mulheres que cuidavam de enfermos, velhos e crianças - mesmo que para o
cuidado das crianças muitas devessem abandonar os seus próprios filhos (DEIAB, 2005).
A avaliação histórica da origem brasileira da enfermagem profissional permite supor
que a interpretação do cuidado como prática desqualificadora, realizada por mulheres
ignorantes, brutalizadas ou vulgares, encontrava na mulher negra o perfil acabado, motivo que
a exclui da formação profissional. A mulher negra, no Brasil, assumia as características da
enfermagem pré-nightingaleana, tal qual o que Mrs. Sairey Gamp foi para a enfermagem
inglesaiv. Ou seja, a presença negra na enfermagem brasileira favoreceria a permanência de
uma memória inglória, pautada em representações transformadas em correlatos de verdade,
assumindo como cabais as representações que as teorias da degenerescência imprimiam às
populações pobres e negras do Brasil. Isto posto, é possível afirmar que o intrincado processo
de apropriação dos bens culturais e a espoliação das diferentes culturas afro-descendentes
marginalizaram as mulheres negras no seu próprio mundo, eliminando da memória histórica
da enfermagem nacional ações que, no passado, resultaram na prática efetiva do cuidado.

Referências bibliográficas
CHARTIER, R. O Mundo como Representação, Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n.11, p.
173-191, jan./abr. 1991.
DEIAB, R. de A. A Memória afetiva da escravidão, Revista de História da Biblioteca
Nacional, ano 1, n. 4, p. 36-40, out. 2005.
DOMINGUES, P. J. Uma História mal Contada. Negro, racismo e trabalho no pós-abolição
em São Paulo (1989-1930). São Paulo, 2000, 370 f. Dissertação (Mestrado em História)
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, Universidade de São Paulo.
HOUFBAUER, A. Uma história do branqueamento ou o negro em questão. São Paulo, 1999,
375 f. Tese (Doutorado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, Universidade
de São Paulo.
MIRANDA, C. M. L. O Risco e o bordado. Um estudo sobre formação de identidade
profissional. Rio de Janeiro: EEAN/UFRJ, 1986.
MOREIRA, M. C. N. A Fundação Rockefeller e a construção da identidade profissional de
enfermagem n Brasil na Primeira República. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 3, p.
621-645, nov. 1998 fev.1999. p. 637.
OGUISSO, T. Trajetória Histórica e Legal da Enfermagem. Barueri: Manole, 2005.
PERROT, M. Os excluídos da história: homens, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988.
SANTOS, G. A. Mulher negra, homem branco. Rio de Janeiro: Pallas, 2004.
SOUZA CAMPOS, P. F. de. Os crimes de preto Amaral. Representações da degenerescência
em São Paulo. 1920. Assis, 2003. 325 f. Tese (Doutorado em História) Faculdade de Ciências
e Letras - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
i

Este texto é parte da pesquisa de pós-doutorado desenvolvida junto ao Departamento de Orientação Profissional da
Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – ENO/EEUSP sob supervisão da Profa. Dra. Taka Oguisso e
intitulada: A Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo e a Formação da Identidade Profissional Brasileira.
Bolsista FAPESP.
ii
De acordo com Andréas Holfbauer (1999), a ideologia do branqueamento já se fazia presente como fundamento da
sociedade brasileira desde o Brasil Colônia. O autor afirma que somente em 1950, a idéia do branqueamento como
pensamento e representação dominante na sociedade brasileira perde sua legitimidade sem, contudo, desaparecer.
iii
Nightingale é considerada a pioneira da Enfermagem Moderna por fundar, após a experiência da Guerra da Criméia
(1853-1856), a Nightingale Training School for Nurses at St. Thomas Hospital, primeira escola profissional de
enfermagem, em Londres, multiplicando seu modelo de ensino pelo mundo, tal como ocorreu no Brasil no início do
século XX com a Reforma Carlos Chagas (OGUISSO, 2005).
iv
Charles Dickens, em seu romance Martin Chuzzlevitt, cujo cenário recupera Londres no final do século XIX,
caracteriza a cuidadora pré-nightingaleana como sempre gorda, pesada, gulosa, cruel, corrupta, promíscua e recendendo
a rum, figura personificada por Mrs.Sairey Gamp (MIRANDA, 1996).

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Exclusão de mulheres negras na enfermagem

  • 1. Gênero: Multiplicidade de Representações e Práticas Sociais. ST 38 Paulo Fernando de Souza Campos Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – ENOEEUSP/FAPESP Palavras-chave: História da Enfermagem – Mulheres Negras – Representações – Identidade Profissional A Exclusão de Mulheres Negras da Enfermagem Profissional Brasileira: entre Práticas e Representaçõesi A pesquisa em história no Brasil muito recentemente incorporou a história das mulheres como perspectiva de investigação. A década de 1980 marcou definitivamente a produção historiográfica acerca das ações e acontecimentos praticados por mulheres, que incluíssem mulheres ou que houvesse participação feminina. Contar a história das mulheres ou suas experiências não só contribuiu para retirá-las da penumbra, na qual foram duramente colocadas, mas favoreceu ao rompimento de uma escrita da história estanque e esquemática. Narrada de forma unilateral, a historiografia tradicional pouco mencionava os enredos femininos. O positivismo que norteou a escrita da história, até seguramente a passagem para o século XX, relegava experiências de mulheres avaliando-as como inferior em relação aos fatos que deveriam ser perpetuados pois, ainda que existissem, não eram protagonistas. A escrita da história impunha uma visibilidade restritiva à participação das mulheres no processo histórico, algo similar ao padrão de comportamento a elas imposto e que as classificavam como dóceis, frágeis, abnegadas, submissas, voltadas para o lar, a educação dos filhos e manutenção da ordem doméstico-familiar, ações compreendidas como menores na escala que regia a escrita da história. O que deveria ser perpetuado eram os feitos de grandes homens, forjados com glória e opulência, atrelando o devir histórico a personagens masculinos. Deste modo, se as mulheres foram excluídas da história (PERROT, 1988), as mulheres negras foram duplamente segregadas. A condição feminina aliada ao traço negro afrodescendente desqualificava ainda mais a participação da mulher negra na história do Brasil, sempre representada como escrava, praticante do sexo venal, doméstica ou depreciada em seus padrões de beleza, moral e comportamentos (SANTOS, 2004). George Reid Andrews (1998) indica que, no Brasil, as elites políticas e dominantes estabeleceram um imaginário
  • 2. social fundado na realidade continuada da pobreza e marginalização dos negros, imaginário assumido como a confirmação da preguiça, ignorância, estupidez e incapacidade que os caracterizavam, tal qual propunha a ideologia da vadiagem cujas bases remontavam as teses da herança racial. Nestes termos, perceber como se deu o processo de exclusão de mulheres negras e a resistência dessas mulheres às fabricações discursivas que as desqualificavam, torna-se fundamental para o estudo da formação da identidade profissional da enfermagem brasileira. Tratando especificamente a história do Brasil, é possível afirmar que o paradigma darwinista social utilizado pelas elites políticas e dominantes na Primeira República (18891930) afirmava que negros seriam naturalmente degenerados, projetando-os como sexualmente pervertidos, sujeitos de moral duvidosa ou desviantes sociais, fazendo recair sobre essa parcela significativa da população nacional uma suspeição generalizada. Políticas públicas, ordens médicas e regras de convívio social nivelavam diferenças entre negros e brancos, estes últimos identificados sempre como superiores. Tais princípios eram usados, inclusive, como critérios para definição social de uma pessoa, o que poderia incluí-la ou o seu contrário. As normas impostas pelo bio-poder, que atingiam habitação, higiene, alimentação, sexualidade, religião, literatura, entre outros, produziam juízos de valor que restringiam possibilidades. Como degenerados ou criminosos natos, negros não poderiam ou não deveriam participar da esfera social mais ampla na medida em que a contaminaria física e moralmente, como apregoavam médicos e também advogados (SOUZA CAMPOS, 2003). Nas origens da sociedade republicana, quando não assumidos como crias da casa, negros eram representados como páreas, dada a cristalização de imagens que os associavam a classes sociais perigosas, marcando profundamente as relações sociais no Brasil nas décadas iniciais da República. Assimilados como primitivos diante do estágio evolutivo da espécie humana discursos médicos e jurídicos, transformados em práticas, localizavam na parcela negra da população nacional o perigo da degeneração da raça e outras formas de contaminação social, problema que a ideologia do branqueamento há muito pretendia resolverii. As visibilidades decorrentes desse processo formalizam a investigação em torno dos modos de exclusão racial e de gênero no ofício da enfermagem durante a primeira metade do século XX. Vale dizer, ao perscrutar a história das mulheres negras no âmbito da história da enfermagem, pretende-se perceber os alcances da opinião pública, forjada pela medicina social, sobre o contingente negro do Brasil contribuindo, assim, para o estudo das
  • 3. representações construídas para as mulheres negras, especificamente, as que interferem na formação da identidade profissional da enfermagem brasileira. A história da enfermagem torna-se particularmente interessante para a história das mulheres negras. Em sua origem profissional, os cursos de formação deveriam evitar a presença negra - assim como a masculina - nos quadros discentes, resultado de um processo de seleção rigidamente instituído. Tal impedimento encontrava suporte no modelo educacional assumido como padrão profissional no Brasil, proposto originalmente por Florence Nigthingale (1820-1910), precursora da enfermagem moderna, bem como em suas intenções de moralizar a ação do cuidado, anteriormente identificada como prática desqualificada e desqualificadora, exercida por mulheres desviantes, vulgares e marginaisiii. Contrariando a concepção de democracia que fundou o regime republicano no Brasil, bem como os antecedentes históricos da ação do cuidado realizado em território brasileiro, para a admissão em uma escola de enfermagem considerada padrão era preciso ser mulher, branca, possuir formação educacional e religiosa, esta preferencialmente cristã, entre outros pré-requisitos que restringiam as possibilidades de seleção. Recuperando a documentação que registra a trajetória da história da enfermagem no Brasil, é possível encontrar episódios originais que permitem analisar as relações interétnicas no âmbito da formação profissional. Um desses episódios, vividos por dirigentes e alunas da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública, fundada em 1923 na cidade do Rio de Janeiro, desvela o problema: É verdade que a política de organização da escola tinha sido evitar, diplomática e estrategicamente, a admissão de negros, até que a opinião pública em relação à profissão de enfermagem tivesse mudado. Isto era fundamental se pretendia atrair mulheres de melhor classe... mesmo a Academia Naval colocava obstáculos para impedir a admissão de candidatos negros. Todas as vezes em que moças de cor se candidatavam para entrar na escola, havia sempre outras boas razões para que elas não fossem qualificadas, por isso nenhum problema havia surgido até então. Na verdade, havia já na escola três estudantes que, apesar de brancas, mostravam alguns traços de sangue negro. Foi enviada uma carta à imprensa comunicando que nenhuma pretendente havia sido rejeitada por causa da cor, mas não foi convincente, e o Departamento de Saúde achou que seria aconselhável permitir o ingresso de uma moça negra, se acaso se apresentasse alguma que preenchesse todos os requisitos para a admissão. Esta candidata apareceu em março, juntamente com as demais pretendentes sob forte suspeita de que havia sido mandada por um dos jornais, e foi admitida. Isto provocou uma enxurrada de protestos por parte da alunas, mas, após considerar a questão, o Conselho de Estudantes finalmente decidiu que qualquer manifestação de rejeição ou de descortesia para com uma colega de classe demonstraria falta de respeito e de vontade de cooperar, e assim não houve mais dificuldades.
  • 4. As estudantes deixaram claro, contudo, que esperavam que não fosse admitida nenhuma outra negra por algum tempo (MOREIRA, 1999). O documento revela que a admissão de uma negra e outras “...que apesar de brancas, mostravam alguns traços de sangue negro...” no interior dos quadros acadêmicos da referida escola derruba a tese da ignorância e dos desvios que as caracterizavam, motivos pelos quais estas seriam naturalmente impossibilitadas de ingressar nos cursos profissionalizantes. O registro comprova que independente da origem étnica ou condição social, mulheres negras poderiam preencher os pré-requisitos exigidos a uma futura enfermeira, o que permite trazer o debate para o campo das representações (CHARTIER, 1991). As evidencias que o registro evoca permitem observar, por outro lado, a resistência de mulheres negras na conquista de seu espaço social, intelectual e profissional, o que implica repensar as bases que forjaram a identidade profissional da enfermagem brasileira ou então, qual seria o motivo para a exclusão das mulheres negras da formação profissional? Analisando a documentação, é possível observar que o desejo de não ver o episódio repetido consubstancia a historiografia recente, quando esta afirma que a sociedade brasileira sempre rejeitou o convívio com aqueles que um dia foram seus cativos, justificando a natureza das restrições impostas (DOMINGUES, 2000). As relações de interdependência entre as práticas do cuidado e as populações negras no Brasil sempre foram muito próximas, ainda que pouco estudadas. Durante todo o processo histórico do Brasil, era intensa a participação de mulheres negras como parteiras, amas de leite, negras domésticas e mães pretas, ou seja, mulheres que cuidavam de enfermos, velhos e crianças - mesmo que para o cuidado das crianças muitas devessem abandonar os seus próprios filhos (DEIAB, 2005). A avaliação histórica da origem brasileira da enfermagem profissional permite supor que a interpretação do cuidado como prática desqualificadora, realizada por mulheres ignorantes, brutalizadas ou vulgares, encontrava na mulher negra o perfil acabado, motivo que a exclui da formação profissional. A mulher negra, no Brasil, assumia as características da enfermagem pré-nightingaleana, tal qual o que Mrs. Sairey Gamp foi para a enfermagem inglesaiv. Ou seja, a presença negra na enfermagem brasileira favoreceria a permanência de uma memória inglória, pautada em representações transformadas em correlatos de verdade, assumindo como cabais as representações que as teorias da degenerescência imprimiam às populações pobres e negras do Brasil. Isto posto, é possível afirmar que o intrincado processo de apropriação dos bens culturais e a espoliação das diferentes culturas afro-descendentes
  • 5. marginalizaram as mulheres negras no seu próprio mundo, eliminando da memória histórica da enfermagem nacional ações que, no passado, resultaram na prática efetiva do cuidado. Referências bibliográficas CHARTIER, R. O Mundo como Representação, Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n.11, p. 173-191, jan./abr. 1991. DEIAB, R. de A. A Memória afetiva da escravidão, Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 1, n. 4, p. 36-40, out. 2005. DOMINGUES, P. J. Uma História mal Contada. Negro, racismo e trabalho no pós-abolição em São Paulo (1989-1930). São Paulo, 2000, 370 f. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, Universidade de São Paulo. HOUFBAUER, A. Uma história do branqueamento ou o negro em questão. São Paulo, 1999, 375 f. Tese (Doutorado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, Universidade de São Paulo. MIRANDA, C. M. L. O Risco e o bordado. Um estudo sobre formação de identidade profissional. Rio de Janeiro: EEAN/UFRJ, 1986. MOREIRA, M. C. N. A Fundação Rockefeller e a construção da identidade profissional de enfermagem n Brasil na Primeira República. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 3, p. 621-645, nov. 1998 fev.1999. p. 637. OGUISSO, T. Trajetória Histórica e Legal da Enfermagem. Barueri: Manole, 2005. PERROT, M. Os excluídos da história: homens, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SANTOS, G. A. Mulher negra, homem branco. Rio de Janeiro: Pallas, 2004. SOUZA CAMPOS, P. F. de. Os crimes de preto Amaral. Representações da degenerescência em São Paulo. 1920. Assis, 2003. 325 f. Tese (Doutorado em História) Faculdade de Ciências e Letras - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
  • 6. i Este texto é parte da pesquisa de pós-doutorado desenvolvida junto ao Departamento de Orientação Profissional da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – ENO/EEUSP sob supervisão da Profa. Dra. Taka Oguisso e intitulada: A Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo e a Formação da Identidade Profissional Brasileira. Bolsista FAPESP. ii De acordo com Andréas Holfbauer (1999), a ideologia do branqueamento já se fazia presente como fundamento da sociedade brasileira desde o Brasil Colônia. O autor afirma que somente em 1950, a idéia do branqueamento como pensamento e representação dominante na sociedade brasileira perde sua legitimidade sem, contudo, desaparecer. iii Nightingale é considerada a pioneira da Enfermagem Moderna por fundar, após a experiência da Guerra da Criméia (1853-1856), a Nightingale Training School for Nurses at St. Thomas Hospital, primeira escola profissional de enfermagem, em Londres, multiplicando seu modelo de ensino pelo mundo, tal como ocorreu no Brasil no início do século XX com a Reforma Carlos Chagas (OGUISSO, 2005). iv Charles Dickens, em seu romance Martin Chuzzlevitt, cujo cenário recupera Londres no final do século XIX, caracteriza a cuidadora pré-nightingaleana como sempre gorda, pesada, gulosa, cruel, corrupta, promíscua e recendendo a rum, figura personificada por Mrs.Sairey Gamp (MIRANDA, 1996).