Este livro é uma versão ligeiramente adaptada da minha tese de doutoramento, concluida em 1999. O contexto em análise é S Joao da Madeira e o estudo das relações de trabalho entre a fábrica e a comunidade.
Rebeliao de classe media_precariedade de movimentos sociais
Entre a Fábrica e a Comunidade: Subjetividades e Práticas de Classe no Operariado do Calçado
1. Elísio Estanque
ENTRE A FÁBRICA E A COMUNIDADE
subjectividades e práticas de classe no operariado do calçado
Editora Afrontamento, Porto - 2000
2. Entre a Fábrica e a Comunidade
ÍNDICE
Agradecimentos ................................................................................................................. 7
Introdução ........................................................................................................................ 9
I PARTE
PROBLEMÁTICA TEÓRICA E PERSPECTIVA ANALÍTICA
Capítulo 1
ENTRE A CLASSE E A COMUNIDADE: ESTRUTURA DE CLASSES, INDUSTRIALIZAÇÃO
E IDENTIDADES CULTURAIS EM MUDANÇA
1.1 - Análise de classes e estrutura de classes ....................................................................................... 20
1.1.1 - Dilemas em torno da análise estrutural das classes ............................................................. 00
1.1.2 - O conceito de “lugares contraditórios de classe” (modelo Wright I) .................................. 00
1.1.3 - Novos desenvolvimentos no modelo de Wright (modelo Wright II)...................................... 00
1.2 - Identidade e comunidade na formação da classe operária ........................................................ 40
1.2.1 - Identidade e identificação .................................................................................................... 00
1.2.2 - Comunidade e emancipação................................................................................................. 00
1.2.3 - O problema do enquadramento espacial .............................................................................. 00
1.2.4 - A formação da classe operária, a comunidade e a acção colectiva ..................................... 00
1.3 - Controle, consentimento e despotismo: regimes de acumulação e
relações na produção ..................................................................................................................... 77
1.3.1 - Classe e processos produtivos, de Braverman a Burawoy ................................................... 00
1.3.2 - Regimes despóticos e regimes hegemónicos......................................................................... 00
1.3.4 - Relações de consentimento, sistemas de poder e novos despotismos ................................... 00
1.4 - Lazer, Cultura Popular e Controle Recreativo ............................................................................ 96
1.4.1- Lazer e classes sociais ........................................................................................................... 00
1.4.2 - Cultura popular e cultura de massas ................................................................................... 00
1.4.3 - O lazer popular e a comunidade nos regimes autoritários .................................................. 00
Capítulo 2
PROCEDIMENTOS ANALÍTICOS E METODOLÓGICOS
2.1 - Hipóteses de partida ....................................................................................................................... 101
2.2 - Orientação metodológica ............................................................................................................... 105
2.2.1 - Compreensão e auto-reflexão ............................................................................................... 111
2.2.2 - O macro e o micro ................................................................................................................ 111
2.2.3 - O método de caso alargado .................................................................................................. 111
2.2.4 - As técnicas de recolha utilizadas ........................................................................................... 111
10
3. Entre a Fábrica e a Comunidade
II PARTE
EVOLUÇÃO HISTÓRICA: INDÚSTRIA, LAZER E COMUNIDADE
Capítulo 3
INDUSTRIALIZAÇÃO, MOVIMENTO OPERÁRIO E TRADIÇÃO FESTIVA NA
VIRAGEM DO SÉCULO
3.1 - A chapelaria, o calçado e o movimento operário local ................................................................ 122
3.1.1 - A primeira fase de industrialização: a chapelaria e o calçado ............................................ 222
3.1.2 - Condições de vida do operariado nos princípios do século ................................................. 222
3.1.3 - Associativismo e clivagens ideológicas na chapelaria e no calçado .................................... 222
3.1.4 - Movimento grevista e acção operária na chapelaria e no calçado ...................................... 222
3.2 - Cultura, festa e tradição nas comunidades locais ........................................................................ 150
3.2.1 - Expressividade popular, religiosidade e mercado ............................................................... 222
3.2.2 - Alguns contrastes de classe: a vida quotidiana na viragem do século ................................. 222
3.2.3 - O discurso bairrista e o novo estatuto de vila e de concelho ............................................... 222
Capítulo 4
SOB A TUTELA DO ESTADO NOVO: ACÇÃO COLECTIVA E PRÁTICAS DE LAZER,
ENTRE A REGULAÇÃO E A RESISTÊNCIA
4.1 - Impactos locais do Condicionamento Industrial ......................................................................... 181
O sector da chapelaria ........................................................................................................ 000
O crescimento do sector do calçado ................................................................................... 000
A indústria metalúrgica e o caso da “Oliva” ..................................................................... 000
4.2 - Exemplos de resistência operária local: militância sindical e política durante o salazarismo . 193
4.3 - Controle recreativo e práticas culturais no Estado Novo............................................................ 217
4.3.1 - Instituições estatais e festividades locais ............................................................................. 000
4.3.2 - As formas locais de lazer e a moral dominante .................................................................... 000
A taberna ............................................................................................................................. 000
Cinemas e cafés ................................................................................................................... 000
O campismo ......................................................................................................................... 000
O desporto ........................................................................................................................... 000
4.3.3 - A acção da FNAT em S. João da Madeira e o caso da “Oliva” .......................................... 000
III PARTE
TENDÊNCIAS RECENTES: AS CLASSES, A FÁBRICA E A COMUNIDADE
Capítulo 5
A ESTRUTURA DE CLASSES NA REGIÃO DO CALÇADO: MOBILIDADE
SOCIAL, SUBJECTIVIDADES E PRÁTICAS ASSOCIATIVAS
5.1 - Caracterização da estrutura de classes da região ........................................................................ 256
5.2 - Mobilidade social intergeracional ................................................................................................. 267
5.3 - Subjectividades ambivalentes: emancipação e conservadorismo ............................................... 000
5.4 - Os problemas sociais identificados: entre o optimismo e a resignação ...................................... 000
11
4. Entre a Fábrica e a Comunidade
5.5 - Práticas associativas e acções de protesto ..................................................................................... 000
5.6 - Os usos do lazer e a massificação do consumo ............................................................................. 000
Capítulo 6/ Capítulo 6-A
ESTUDO DE CASO: RESISTÊNCIA, CONSENTIMENTO E EVASÃO NUMA
FÁBRICA DE CALÇADO/ UMA EXPERIÊNCIA NA FÁBRICA
O Sociólogo na Fábrica: fragmentos de um “Diário de Campo” .................................... 298
6.1 - A importância da linha de montagem no processo de fabrico .................................................... 000
6.2 - Disciplina, poder, consentimento e resistência ............................................................................. 000
6.2.1 - O patrão e os operários ........................................................................................................ 000
6.2.2 - Os encarregados e o poder: uma posição de fronteira ....................................................... 000
6.2.3 - Os jogos de poder do colectivo operário .............................................................................. 000
6.3 - Evasão e humor: rituais de descompressão ..................................................................................
6.3.1 - Os intervalos e as brincadeiras sexistas ...............................................................................
6.3.2 - Jogo e humor na produção .....................................................................................................
6.3.3 - Ambiguidades e heterogeneidades de classe ........................................................................
CONCLUSÃO ......................................................................................................................................... 423
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 000
ANEXOS ................................................................................................................................................. 000
12
5. Entre a Fábrica e a Comunidade
AGRADECIMENTOS
O presente estudo destinou-se inicialmente a uma tese de doutoramento em
sociologia cuja defesa teve lugar na Universidade de Coimbra em Julho de 1999.
Embora tenha procedido a algumas alterações para esta edição em livro, manteve-se, no
essencial, a mesma estrutura expositiva. Apesar da pesquisa ter sido recentemente
concluída, os primeiros trabalhos que realizei sobre este tema tiveram o seu início há
alguns anos atrás no âmbito da actividade académica que tenho vindo a desenvolver na
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e no Centro de Estudos Sociais1.
Muitos colegas e amigos contribuíram com o seu incentivo e solidariedade para que
as inúmeras hesitações e dificuldades com que me deparei ao longo deste percurso,
pudessem ser ultrapassadas. Não sendo possível enumerar todos aqueles que de um
modo ou de outro me apoiaram, cabe-me no entanto destacar alguns nomes, de pessoas
e instituições, que mais de perto me acompanharam nesta tarefa.
Em primeiro lugar, cabe um agradecimento especial a Boaventura de Sousa Santos,
meu orientador científico, pela permanente motivação, confiança e apoio que me tem
dedicado desde que em 1985 integrei a equipa de investigadores por ele liderada. A
solidariedade que prontamente manifestou nas fases de maior inquietação e desânimo
por que passei, em especial durante a observação participante que realizei na fábrica, foi
decisiva para levar por diante este projecto.
Em segundo lugar, quero expressar a minha gratidão aos colegas, companheiros do
Centro de Estudos Sociais, da Revista Crítica de Ciências Sociais e da FEUC, que desde
sempre se interessaram pelo meu trabalho e comigo partilharam o dia-a-dia de vida
académica ao longo das diferentes etapas desta caminhada. Sem o acolhimento e as
palavras de incentivo que de um modo geral recebi e sem o ambiente de diálogo
informal no âmbito dos projectos e seminários do CES, as dificuldades de realização
deste estudo teriam sido, sem dúvida, muito maiores. Gostaria de destacar o estímulo
intelectual que obtive da parte do João Arriscado Nunes; os entusiasmos e angústias
1 Entre eles contam-se o Relatório de Síntese das Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica,
intitulado A Empresa em Contexto: relações de poder e cultura local na indústria do calçado em S. João
da Madeira, Coimbra, FEUC, 1990. Os projectos realizados no CES e que mais directamente se
relacionam com o actual tema, foram os seguintes: Estado, Economia e Reprodução Social na
Semiperiferia do Sistema Mundial: O Caso Português, coordenado por Boaventura de Sousa Santos
(CES/FEUC, 1992); Turismo e Cultura em Portugal: quatro estudos sobre mentalidades, práticas e
impactes sociais (CES/FEUC, 1995), coordenado por Carlos Fortuna; Estrutura de Classes e Trajectórias
de Classe em Portugal (CES/FEUC, 1997), sob a minha coordenação e em colaboração com José Manuel
13
6. Entre a Fábrica e a Comunidade
partilhados com o José Manuel Mendes, meu parceiro no projecto de pesquisa sobre as
classes sociais em Portugal; os incentivos que obtive do meu amigo João Peixoto,
sobretudo no período inicial do meu trabalho académico em Coimbra; o apoio que
recebi dos jovens colegas Hermes Costa e Daniel Francisco; a troca de ideias e o
permanente interesse, solidariedade e amizade do António Casimiro Ferreira; as
cumplicidades que mesmo à distancia foram preservadas com os colegas do ISCTE,
Cristina Lobo, Anália Torres, João Camarate, Ana Paula Nunes, Salomé Marivœt e
Rosa Parkinson. E para a colega e amiga Graça Capinha, pelas muitas ideias que
trocámos ao longo destes anos, vai uma palavra de especial gratidão.
Agradeço em terceiro lugar, às instituições que financiaram projectos, viagens e
estágios, directa ou indirectamente relacionados com a pesquisa: Fundação Calouste
Gulbenkian, Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, Comissão
Fulbright, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, Reitoria da
Universidade de Coimbra. À Universidade de Wisconsin-Madison, em especial ao
Professor Erik Olin Wright e ao Departamento de Ciências Sociais, que me acolheram
durante as estadias que aí efectuei em 1992 e 1994.
Cumpre-me igualmente agradecer ao Sindicato dos Operários do Calçado, Malas e
Afins dos Distritos de Aveiro e Coimbra, sediado em S. João da Madeira, que me
disponibilizou os seus serviços, e especialmente ao seu dirigente Manuel Graça, pelo
seu interesse e pelo incansável apoio ao longo de vários anos. Às Câmaras Municipais
de S. João da Madeira e de Santa Maria da Feira, nomeadamente os serviços das
respectivas bibliotecas que sempre me facilitaram o acesso a diferente documentação.
Ao Director do jornal “O Regional”, daquela localidade, igualmente por me ter
facilitado o acesso aos seus arquivos. À empresa que me acolheu nessa cidade para o
trabalho de observação participante, nomeadamente o apoio entusiástico do seu
proprietário merece ser destacado pelo contributo que prestou a esta pesquisa. Para os
trabalhadores dessa empresa que me receberam e comigo partilharam esses momentos
inesquecíveis e me transmitiram abertamente aspectos importantes das suas vidas – em
especial para os amigos mais próximos, como o Acácio, o Cunha, o Manuel, o tio
António, a Cila e a Celeste –, vão a minha amizade e solidariedade.
Uma palavra de especial gratidão é ainda devida à Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra e ao Centro de Estudos Sociais, instituições onde trabalho e
Mendes. Estes projectos foram financiados pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica,
no quadro do Programa Estímulo para as Ciências Sociais.
14
7. Entre a Fábrica e a Comunidade
que, por esse motivo, são também a minha casa. Aos seus funcionários e colaboradores,
o meu sincero reconhecimento, em especial aos serviços da biblioteca, da secretaria e da
secção de informática da FEUC e ao pessoal do CES: o Nuno Serra, a Maria Lassalete
Simões e a Sandra Nogueira.
Finalmente, agradeço também aos meus alunos da cadeira de Classes,
Desigualdades e Identidades – sobretudo os que a frequentaram no ano lectivo de
1998/1999 – com quem partilhei muitas das minhas perplexidades e entusiasmos em
torno desta pesquisa.
15
8. Entre a Fábrica e a Comunidade
INTRODUÇÃO
As temáticas da classe e da comunidade têm suscitado inúmeras reflexões e
debates nas ciências sociais, na sequência dos quais se vem assistindo a uma
reformulação teórica significativa em torno desses conceitos. Sem dúvida que tais
elaborações conceptuais derivam, em boa medida, dos processos de fragmentação social
a que, quer a classe, quer a comunidade têm estado sujeitos, no quadro do capitalismo
global de finais do milénio.
É sabido que os grandes processos de transformação social no capitalismo
decorrem sob ritmos e temporalidades diferentes, consoante o grau de modernização das
sociedades e o lugar que cada uma ocupa no sistema mundial. O facto de a sociedade
portuguesa ser marcada por traços de periferia na sua relação com os países centrais
significa, entre outras coisas, que ela encerra fenómenos cuja natureza contraditória e
polifacetada é porventura mais evidente do que nas sociedades de capitalismo avançado.
Algumas das tendências de mudança que vêm ocorrendo em Portugal ao longo das
últimas três décadas remetem-nos por vezes para problemas já identificados nos países
centrais noutras épocas históricas. Contudo, não deve esquecer-se que cada sociedade e
cada contexto particular contêm as suas próprias especificidades – históricas, socio-
económicas, políticas e culturais – e obedecem a variados ritmos de mudança.
O presente estudo desenvolve-se em torno do núcleo industrial de S. João da
Madeira (SJM)2, localidade tradicionalmente ligada à produção chapeleira, mas
actualmente mais conhecida por ser a zona de maior concentração da indústria do
calçado. O seu principal objectivo é analisar o processo histórico de desenvolvimento
16
9. Entre a Fábrica e a Comunidade
industrial desta região e o seu impacto na estruturação da classe trabalhadora, através da
observação das suas práticas, subjectividades e atitudes, e dando especial atenção às
formas adaptativas e de resistência de um operariado situado entre as pressões da
indústria e a lógica comunitária e semi-rural das colectividades da região.
Desde as últimas décadas do século XIX que esta região tem conhecido profundas
mudanças induzidas pelo impacto da industrialização e suas formas de adaptação a nível
local. Todavia, reconhece-se hoje que, apesar das transformações, adaptações e
resistências produzidas pela articulação entre a produção fabril e as comunidades locais
ao longo do tempo, os traços de ruralidade e a força da tradição cultural têm subsistido à
presença crescente da lógica capitalista. Num contexto de desenvolvimento tardio, como
este, as linhas de ruptura e de continuidade socioeconómicas e culturais parecem
condensar no tempo algumas das clivagens e ambiguidades do sistema capitalista mais
geral, e simultaneamente fazem emergir o carácter contraditório e dramaticamente
disruptor que esse sistema tem vindo a impor à humanidade desde os primórdios da era
moderna.
Pretende-se, assim, compreender até que ponto as lógicas de classe modeladas
pelas relações de produção incorporaram e reproduziram os vínculos e afinidades
colectivas estruturados a partir das raízes comunitárias. As formas de consentimento e
resistência dos trabalhadores serão observadas, quer no terreno das subjectividades e
representações, quer no domínio das práticas e dos comportamentos concretos e tendo
presentes, por um lado, a dimensão produtiva e das relações de trabalho, e, por outro, as
actividades desenvolvidas na comunidade, nomeadamente a esfera dos consumos e das
práticas de lazer.
2 Localidade que daqui para diante será simplesmente designada por “SJM”. O objecto de estudo inclui
os concelhos de S. João da Madeira, Oliveira de Azeméis e Stª. Maria da Feira. Como se poderá ver no
Anexo 1, neles se concentra a grande maioria das empresas do sector do calçado.
17
10. Entre a Fábrica e a Comunidade
Como se verá na apresentação das principais hipóteses e dos procedimentos
metodológicos que guiaram a investigação (Capítulo 2), a perspectiva de análise
adoptada pretende não só dar conta das especificidades regionais atrás referidas, mas ao
mesmo tempo captar os impactos locais de algumas das conjunturas políticas e
estratégias institucionais que mais marcaram a sociedade portuguesa ao longo do século
XX. A análise é, assim, historicamente balizada por três períodos distintos: um período
que vai de finais do século XIX até aos anos vinte do último século, em que se pretende
acompanhar a primeira fase de industrialização e implantação do mercado nesta região e
o seu impacto sobre o movimento operário local e as actividades festivas ligadas aos
rituais da comunidade rural; um segundo período que corresponde à vigência do Estado
Novo, no qual a acção institucional e a ideologia salazarista desempenharam um papel
decisivo na tentativa de impor às classes trabalhadoras comportamentos conformistas e
disciplinados, tanto na esfera laboral como nas actividades recreativas e de lazer; e,
finalmente, um período que vai do pós-25 de Abril à actualidade continuando a articular
a dimensão do trabalho industrial com a da massificação dos consumos e dos usos do
“tempo-livre”.
Na sua organização formal, o livro divide-se em três partes: uma primeira parte diz
respeito à apresentação do quadro teórico e às metodologias e hipóteses de partida; uma
segunda parte centra-se na evolução histórica desde finais do século XIX até à queda do
Estado Novo; e uma terceira parte, mais centrada na actualidade, analisa a estrutura de
classes da região e apresenta estudos de caso baseados na observação directa da vida
social local nas suas diversas vertentes, em especial no quotidiano dos trabalhadores nas
suas relações com a actividade sindical, o ambiente fabril e as comunidades locais. Estas
grandes linhas de abordagem desdobram-se em nove capítulos que passarei a sumariar.
18
11. Entre a Fábrica e a Comunidade
No Capítulo 1, dá-se conta das principais linhas de reflexão e discussão teórica e
conceptual que serviram de inspiração ao modelo de análise adoptado. As questões da
classe e da comunidade ocupam aqui um lugar decisivo e serão tratadas, quer
separadamente, na medida em que se ligam a tradições teóricas distintas, quer na sua
interconexão, na medida em que remetem para linhas de investigação em que as duas
vertentes se encontram estreitamente ligadas. É precisamente na base dessa articulação
que se desenrola o principal fio condutor do presente livro. Além disso, como é
evidente, esta problemática não poderia deixar de conduzir-nos para outros percursos
teóricos que directa ou indirectamente se prendem com o tema em estudo. Posso
adiantar desde já alguns dos pontos que mereceram maior aprofundamento: as
discussões no campo da análise estrutural das classes nos anos setenta e as
reformulações teóricas que esta corrente tem vindo a promover nos últimos tempos,
nomeadamente através das contribuições de Erik Olin Wright (cujo modelo de análise
será utilizado no estudo da estrutura de classes da região); os conceitos de comunidade e
identidade serão discutidos enquanto instrumentos teóricos de grande actualidade que
poderão situar a análise das práticas e subjectividades operárias, bem como a dimensão
do consumo e do lazer, em quadros analíticos capazes de permitir articular a classe com
outras esferas de acção e de produção de sentido; os problemas da acção colectiva e da
consciência de classe serão tratados, não apenas à luz dos modelos estruturais, mas
sobretudo à luz do enquadramento comunitário do operariado e da sua histórica
vinculação aos contextos locais (em que as análises históricas de E. P. Thompson,
constituem uma referência importante); o tema dos regimes de acumulação e dos
sistemas de poder em vigor nas empresas, bem como a sua articulação com o mercado e
a comunidade fornecem importantes pistas de explicação para os mecanismos de
consentimento e controle que emergem na esfera da produção (dando-se aqui maior
19
12. Entre a Fábrica e a Comunidade
realce aos estudos de Michael Burawoy); as actividades culturais, de lazer e o campo do
consumo constituem igualmente um campo de reflexão a ter em conta, tanto no que se
refere à compreensão das culturas operárias e populares (às quais, desde sempre, as
experiências do movimento operário e sindical estiveram ligadas), como pela
importância decisiva que assumiram no desenvolvimento das políticas disciplinares
levadas a cabo pelos estados fascistas e autoritários. Estes são alguns dos principais
tópicos que foram objecto de discussão teórica.
O Capítulo 2 destina-se à apresentação das principais hipóteses de trabalho e nele
se procede a uma breve discussão em torno das opções metodológicas seguidas. Aí se
realça a pluralidade de instrumentos de pesquisa a que recorri, destacando-se a ênfase
dada à análise qualitativa, à sociologia reflexiva e ao método de observação participante
(utilizado no estudo de caso efectuado numa empresa de calçado).
No Capítulo 3, entra-se na análise histórica. Procede-se, por um lado, ao estudo do
processo de industrialização e do movimento operário local a partir do último quartel do
século de oitocentos, o qual foi animado sobretudo pelos operários chapeleiros. Por
outro lado, apresentam-se e analisam-se algumas das formas e rituais festivos,
procurando relacioná-las com as identidades tradicionais, mas tendo presente os efeitos
da implantação industrial e da expansão do mercado. Assume-se aqui um tipo de
abordagem de características etnográficas, na medida em que me pareceu interessante
retratar alguns dos ambientes populares da época, a fim de observar mais de perto os
modos de vida das populações, tanto nas dificuldades económicas e laborais em que se
encontravam como na esfera das actividades lúdicas e rituais festivos em que
participavam. O objectivo é mostrar como os modos de vida comunitários e as
experiências operárias foram a pouco e pouco sendo modeladas não só pela lógica
económica moderna e pela acção do mercado, mas também pelo discurso moralista e
20
13. Entre a Fábrica e a Comunidade
burguês que nessa altura começou a impor-se de forma mais nítida. Ainda neste
contexto, referem-se aspectos ligados ao fenómeno do “bairrismo”, promovido pelas
elites locais, cujo impacto disruptor sobre as identidades tradicionais e de classe foi
muito significativo.
O Capítulo 4 dá continuidade à abordagem histórica, mas agora tendo como pano
de fundo o aparelho de Estado salazarista e a sua articulação com as instituições e os
interesses das classes dominantes da região. O discurso local, com os seus contornos
moralistas, continua a promover o sentimento bairrista em nome do progresso industrial
da vila, reproduzindo no mesmo passo o carácter nacionalista, autoritário e conservador
da ideologia do regime. Exemplos de resistência operária ao salazarismo são aqui
apresentados a partir de relatos e histórias de vida de dois activistas político-sindicais
ligados ao sector do calçado que foram vítimas de perseguição e repressão do regime,
assim como outros documentos onde algumas situações e movimentos grevistas são
testemunhados, apesar da fraca capacidade combativa do operariado. As formas de
ocupação dos “tempos livres” – as festas locais, a taberna, o cinema, os espectáculos, os
hábitos de vida dos jovens etc. – e a tentativa dos organismos locais e estatais em tutelá-
las e discipliná-las são igualmente analisadas, dando-se aqui algum destaque ao papel da
FNAT e à sua presença numa das empresas de maior significado local neste período (a
fábrica metalúrgica “Oliva”). Pretende-se assim mostrar os impactos da acção
disciplinadora e doutrinária do regime e das suas delegações e agentes locais (incluindo
os sectores da burguesia industrial por ele protegidas), sublinhando a sua relevância na
modelação dos hábitos de consumo dos trabalhadores, mas ao mesmo tempo sem
esquecer as capacidades de resistência da cultura popular estruturada a partir do
cruzamento entre a experiência fabril e as comunidades tradicionais. A dimensão
comunitária (e as formas locais de consumo e de lazer) revela-se aqui um elemento
21
14. Entre a Fábrica e a Comunidade
fundamental para se perceberem as ambiguidades de uma classe que simultaneamente
sofre as pressões da exploração na fábrica e reproduz a sua identidade em íntima
sintonia com a vida na comunidade.
O Capítulo 5 analisa a estrutura de classes da região a partir do modelo de análise
de Erik Olin Wright e interpreta os seus resultados – obtidos a partir de um inquérito à
população activa –, equacionando-os com as dimensões analíticas referidas,
nomeadamente os aspectos históricos e contextuais. Com base nesta abordagem, será
possível não só caracterizar a estrutura regional das classes como compará-la com os
resultados referentes à sociedade portuguesa no seu conjunto (recolhidos através da
mesma metodologia)3. De registar é o facto de estes resultados quantitativos
comprovarem variados aspectos respeitantes às classes sociais desta região assinalados
noutros capítulos, além de sublinharem o elevado peso morfológico da categoria
proletária, o esvaziamento das classes médias comparativamente com os valores do
continente, e as altas taxas de mobilidade intergeracional, bem como de imobilidade.
Por outro lado, também no plano das atitudes políticas, das práticas associativas e
ocupações de tempo livre, por exemplo, os valores que aqui aparecem são
particularmente reveladores da natureza contraditória e ambígua dos comportamentos
deste sector da classe operária.
Na última parte do estudo surgem, lado a lado, o Capítulo 6 e o que designei como
Capítulo 6-A (alternando-se entre as páginas ímpares e pares), ambos centrados na
experiência de observação participante efectuada numa empresa de calçado. O primeiro,
procura analisar as relações na produção, girando o seu principal fio condutor em torno
das relações de poder na empresa e das práticas de resistência e consentimento dos
operários. Quer as contradições estruturais entre os trabalhadores e o patrão, quer as
22
15. Entre a Fábrica e a Comunidade
dinâmicas de jogo e interacção do quotidiano fabril serão aqui tratadas com algum
detalhe. Se em termos estratégicos e de resistência organizada os trabalhadores
evidenciam um certo individualismo e parecem submeter-se ao poder arbitrário do
patrão e dos encarregados, já quando se observam de perto as suas atitudes espontâneas,
os rituais e os jogos que desenvolvem no espaço produtivo é notória a presença de
atitudes de resistência, ainda que de características tácitas e que se manifesta sobretudo
através uma rebeldia dissimulada, feita de gestos contidos e de silêncios, ou seja, uma
postura de contrariedade nunca completamente manifesta. Outros aspectos são aqui
objecto de análise detalhada, tais como os jogos sexistas, as clivagens entre os
encarregados e a situação específica em que se encontram no contexto da empresa, o
ritmo de trabalho e o stress, a selectividade que preside às atitudes autoritárias das
chefias, o uso do saber técnico por parte dos operários como fonte informal de poder, as
relações afectivas e transações amorosas dentro da fábrica, a importância do sentimento
de evasão e de fuga, as actividades fora da empresa (de trabalho e de lazer), as atitudes
perante o sindicato, etc. O Capítulo 6-A diz respeito às reflexões, notas pessoais e outras
questões relacionadas com o decurso da investigação – que decorreu de 26 de Fevereiro
a 3 de Maio de 1996 –, em especial os dilemas e angústias que esta metodologia
levantou. Em coerência com o que desde o início assumi ser uma abordagem
compreensiva e auto-reflexiva, decidi realçar essa dimensão autobiográfica e de
envolvimento pessoal e, nesse sentido, apresento-a aqui sob a forma de Diário de
Campo e em contraponto com a exposição mais analítica e interpretativa do Capítulo 6.
Finalmente, apresentam-se as principais conclusões da pesquisa, onde se salienta a
natureza eminentemente contraditória deste segmento da classe trabalhadora portuguesa,
em cujas práticas e orientações se inscrevem as múltiplas adaptações, resistências e
3 Refiro-me ao inquérito às classes sociais em Portugal que foi realizado a partir do Centro de Estudos
Sociais, cujo projecto de investigação foi por mim dirigido, em colaboração com o colega José Manuel
23
16. Entre a Fábrica e a Comunidade
ambiguidades socioculturais em que assentou a dinâmica de expansão industrial da
região.
Mendes (cf. Estanque e Mendes, 1998).
24
17. Entre a Fábrica e a Comunidade
Capítulo 1
ENTRE A FÁBRICA E A COMUNIDADE: ESTRUTURA DE CLASSES, INDUSTRIALIZAÇÃO
E IDENTIDADES CULTURAIS EM MUDANÇA
Este estudo centra-se num segmento social – o operariado industrial – que desde
sempre ocupou um lugar decisivo nas discussões em torno da “classe”. Mas isso não
significa que a pesquisa se circunscreva à “análise de classes”, em sentido restrito. O
conceito de classe e os debates teóricos que desencadeou, em especial no interior da
corrente marxista, constitui o ponto de partida para uma análise das práticas e
subjectividades operárias a partir da combinação entre três dimensões distintas: o
processo histórico de industrialização; as relações de produção e o ambiente fabril; e as
vivências quotidianas dos trabalhadores na esfera da comunidade e do consumo. O
objectivo é, como referi na introdução, equacionar as múltiplas conexões e
impregnações entre estas diferentes esferas da vida social local a fim de compreender a
sua incidência sobre as identidades e formas de acção colectiva que caracterizam o
operariado do calçado e o contexto sociocultural em que se insere.
Procurar-se-á neste capítulo esclarecer as principais linhas de abordagem teórica
em que o estudo se apoiou. Entre elas, destacam-se: a análise marxista das classes, em
especial o modelo de Erik Olin Wright que serviu de base à caracterização da estrutura
de classes da região; a reflexão em torno dos conceitos de identidade e comunidade,
tanto em termos genéricos como no que se refere às classes e ao operariado industrial; a
formação histórica da classe operária e a importância da sua vinculação às comunidades
tradicionais; os regimes de acumulação e sistemas de poder, nomeadamente os regimes
despóticos e hegemónicos analisados por Michael Burawoy; e, finalmente, as questões
do lazer e da cultura popular na sua relação com as classes e o operariado, que serão
abordadas à luz das políticas de controle recreativo levadas a cabo pelos estados
25
18. Entre a Fábrica e a Comunidade
autoritários europeus nos anos vinte e trinta, incluindo as suas repercussões no caso
português.
1.1 - Análise de classes e estrutura de classes
As discussões em torno da classe são, como se sabe, recorrentes desde Marx e
Weber. Mais recentemente, e em especial após o colapso dos sistemas comunistas e
socialistas da Europa do Leste, alguns dos ataques à análise marxista das classes sociais
ganharam novo vigor. Contudo, apesar das polémicas sobre o “declínio” ou a “morte”
da classe (Clarke e Lipset, 1991; Clarke et al., 1993; Hout et al., 1993; Pakulsky, 1993;
Pakulsky e Waters, 1996a e 1996b), sobre a perda de centralidade do conceito ou a
premência da sua reformulação (Wright, 1985, 1989, 1997a; Callinicos, 1991), o que é
facto é que a produção teórica centrada na análise de classes está longe de ter perdido a
sua pertinência e actualidade. Em articulação ou não com outras temáticas, envolvendo
ou não análise empírica substantiva, as conceptualizações à volta da noção de classe
social continuam a assumir-se como um tema fundamental na literatura sociológica
actual4.
4 Desde a escola neoweberiana (Parkin, 1968, 1978 e 1979; Hindess, 1987; Giddens e Held, 1990; McAll,
1992; Esping-Andersen, 1993; Crompton, 1993; Butler e Savage, 1995; Pakulsky e Waters, 1996a,
1996b; Marshall, 1990 e 1997), aos contributos do marxismo estrutural e do chamado “marxismo
analítico” (Therborn, 1978, 1980 e 1983; McNall et al., 1991; Mayer, 1994; Chilcote e Chilcote, 1992;
Roemer, 1982a e 1994; Wright et al., 1992; Wright, 1985, 1989, 1994, 1996 e 1997a), passando pelas
discussões em torno dos novos movimentos sociais e da emancipação (Pizzorno, 1985; Touraine, 1985;
Arrighi et. al., 1989; Eyerman e Jamison, 1991; Ray, 1993; Aronowitz, 1992; Offe, 1985b; Calhoun,
1991 e 1994; Cohen e Arato, 1994; Melucci, 1989; Eder, 1993; Santos, 1994 e 1995; Maheu, 1995;
Laclau, 1996), é inquestionável a vitalidade da produção teórica e da investigação empírica que, directa
ou indirectamente, continua a tomar a classe e a análise das classes como um campo incontornável no
estudo das desigualdades sociais, da acção colectiva e da mudança sociocultural nas sociedades actuais.
Também em Portugal, apesar da institucionalização tardia da sociologia no nosso país, a análise de
classes teve um papel fundamental no desenvolvimento das ciências sociais: a investigação de Sedas
Nunes e David Miranda (1969); os estudos dirigidos por Eduardo de Freitas, Teixeira de Sousa,
Villaverde Cabral e Ferreira de Almeida (Sousa e Freiras, 1973; Freitas, 1973 e Freitas et al., 1976); a
análise de Mozzicafreddo (1981); a pesquisa de Marques e Bairrada (1982); os trabalhos de João Ferrão
(1982, 1985 e 1990) e Jorge Gaspar (1987); os estudos desenvolvidos pela equipa do ISCTE (Almeida,
1986; Almeida et al., 1988 e 1994; Costa, 1987; Costa et al., 1990); os trabalhos recentes de Villaverde
Cabral (1997). Estas são algumas das contribuições mais relevantes da sociologia portuguesa para a
análise das classes sociais na nossa sociedade. Para além desses trabalhos, refira-se ainda a pesquisa
apoiada no modelo de Erik Wright em que esteve envolvido o autor deste livro (Estanque, 1997; Mendes,
1997; Estanque e Mendes, 1998 e 1999).
26
19. Entre a Fábrica e a Comunidade
A presente investigação não se assume – disse-o no início –, como uma análise de
classes em termos genéricos. Mas a classe é aqui, claramente, um dos conceitos em
questão. Nesse sentido, começarei por dar atenção à abordagem estrutural, na medida
em que ela constituiu um dos principais campos de produção e reflexão teórica da
análise marxista das classes (incluindo no próprio pensamento de Marx). O modelo de
Wright é aqui privilegiado, não só por ser um dos que mais contributos analíticos tem
prestado à sociologia das classes e porque tem vindo a proceder a constantes
reactualizações (Wright, 1989 e 1997a) – apesar das limitações que encerra e das
críticas que tem suscitado –, mas também porque em alguns pontos desta pesquisa (em
especial no Capítulo 5) irei utilizar como termo de comparação a análise recentemente
efectuada à estrutura de classes portuguesa com base nessa matriz teórica (Estanque e
Mendes, 1998). Essa dimensão do estudo, para além de permitir a comparação entre os
resultados do país e da região, será também objecto de uma análise compreensiva à luz
do processo histórico de industrialização e dos seus efeitos sobre as práticas e
subjectividades do operariado, no contexto local. A esse propósito, os estudos históricos
desenvolvidos por E. P. Thompson sobre a formação da classe operária inglesa
merecerão particular atenção. Em suma, tanto a perspectiva estrutural e abstracta como
a perspectiva histórica e conjuntural das classes constituem duas dimensões de análise
que podem completar-se no estudo de contextos concretos, não obstante o facto de (quer
uma quer outra) serem ao mesmo tempo ilustrativas das inúmeras contradições e
ambiguidades que, desde o próprio Marx5, têm acompanhado a teoria marxista das
classes no seu conjunto.
5 Na clássica distinção de Marx classe em si/ classe para si reflecte-se a oposição – presente de forma
difusa e muitas vezes incoerente na sua obra – entre a visão abstracta de cariz estruturalista e a visão
subjectivista, de cariz historicista ou sociopolítico (Giddens, 1975). Pode dizer-se que daí resultaram duas
linhas distintas de orientação do pensamento marxista ao longo do século XX. A primeira orientou-se
mais para a definição rigorosa dos conceitos, elaborando os critérios que permitissem mapear categorias,
fracções e fronteiras, esperando com isso estabelecer correspondências entre categorias abstractas e
27
20. Entre a Fábrica e a Comunidade
1.1.1 - Dilemas em torno da análise estrutural das classes
Principalmente a partir de finais da década de sessenta assistiu-se a uma
proliferação sem precedentes de estudos e reflexões de base marxista virados para a
análise da estrutura das classes nas sociedades capitalistas. Daí resultaram obras de
elevada elaboração conceptual e apoiadas numa sofisticação técnica e metodológica até
então inexistentes6. Os contributos teóricos de pensadores como Althusser e Balibar
(1970, 1975 e 1976), Poulantzas (1971, 1974), Carchedi (1977), Lukács (1971),
Miliband (1969 e 1987) e Wright (1981, 1985), ao lado do aparecimento de programas
de investigação sobre as classes em sociedades concretas, deram lugar a toda uma
profusão de pesquisas de inspiração marxista que conjugaram, pela primeira vez, o
desenvolvimento simultâneo da reflexão teórica e da análise empírica. Mas, apesar da
vitalidade do debate e das diversas linhas de pesquisa que o acompanharam, a classe
permaneceu ao longo da década de setenta “um conceito essencialmente contestado” ou
seja, “um conceito que não apenas ocupa um lugar numa teoria científica, mas serve
como campo de batalha a inúmeras disputas metodológicas, políticas e ideológicas”
(Conolly, 1972). Neste contexto, as contradições permaneceram entre as diversas
correntes marxistas, uma vez que, como reconhece Wright, “ou a cuidadosa
investigação empírica efectuada não era directamente orientada para abordagens
alternativas da análise de classes ou se desencadearam debates especulativos e
classes concretas (nomeadamente as correntes estruturalistas marcadas pelo pensamento de autores como
Althusser, Poulantzas e Wright, que adiante irei discutir). A segunda mostrou-se em geral mais sensível
ao estudo das conjunturas e processos de mudança, e centrou-se em especial na análise histórica e na
acção política do operariado inglês e americano do século passado (Thompson, 1987; Hobsbawm, 1984;
Tilly et al., 1975; Tilly, 1996; Jones, 1984, 1989), bem como no estudo aprofundado dos processos
produtivos (Lockwood 1966; Braverman, 1974; Gutman, 1977; Edwards, 1979).
6 Deverá reconhecer-se, todavia, que a preocupação com a construção rigorosa de categorias analíticas
orientadas para a análise empírica das classes foi partilhada pelos weberianos que, tal como os marxistas,
sentiram a necessidade de conceber instrumentos de análise mais ajustados à natureza complexa e à
profundidade das transformações ocorridas nas sociedades ocidentais. Pode ainda adiantar-se que
enquanto os primeiros pretenderam sobretudo contribuir para a “construção empírica” das classes – em
especial sob o impulso do funcionalismo americano –, os marxistas procuraram antes de mais desenvolver
os fundamentos teóricos de análise da estrutura de classes.
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21. Entre a Fábrica e a Comunidade
abstractos cujos resultados serviam para ilustrar selectivamente os vários argumentos e
não para avaliar especificamente as diferentes alternativas” (Wright, in Prefácio a
Estanque e Mendes, 1998). A resposta a estas dificuldades procurou afirmar-se através
da estreita combinação entre o maior refinamento conceptual e os resultados da pesquisa
empírica. A linha de pesquisa lançada por Erik Olin Wright em 1979 – o Projecto
Comparativo da Análise de Classes – orientou-se justamente para a recolha sistemática
de dados comparáveis entre uma variedade de países, de maneira a que o debate pudesse
tornar-se mais focalizado nos resultados empíricos obtidos7.
As polémicas assim instaladas no próprio campo marxista permitiram, por um
lado, lançar novas bases para o avanço da investigação sociológica em torno das classes
e, por outro lado, recolocaram a reflexão no terreno do pensamento de Marx,
nomeadamente, a partir das propostas para a sua “releitura” empreendidas sob
influência de Althusser (Althusser et al., 1970; Poulantzas, 1971 e 1974). O problema
da articulação entre o económico e o político ocupou um lugar central nestes debates, o
que, em boa medida, se liga ao facto de as definições abstractas de Marx terem, em
muitos casos, sido contrariadas pelas transformações históricas e pela prática política8.
7 Da parte dos teóricos weberianos, as iniciativas então desencadeadas surgiram como reacção à falência
do paradigma parsoniano do status-attainment – que pretendia medir a mobilidade observada a partir das
mudanças estruturais na divisão social do trabalho e com base em escalas de medição do status – e
procuraram clarificar as formas de articulação entre a estrutura socioeconómica e a acção de classe no
terreno político-social. Tal como aconteceu com o campo rival, também neste caso se pode dizer que se
assistiu a uma crescente inovação e vitalidade, quer a nível conceptual e teórico, quer no campo da
investigação empírica, o que, em certos casos, resultou num diálogo académico e numa reflexão teórica
mais estreitamente ligados aos conceitos de raiz marxista, especialmente a propósito dos processos de
mobilidade social e trajectórias de classe (cf., entre outros, Goldthorpe 1969 e 1980; Erikson e Goldthorpe,
1993; Lenski, 1966; Giddens, 1975 e 1982; Lipset, 1975; Blau, 1975; Parkin, 1974 e 1979; Dahrendorf,
1982; Sorensen, 1986; Marshall, 1990; Marshall e Rose, 1990; Crompton, 1993; Esping-Andersen,1993;
Pakulsky e Waters, 1996a e 1996b).
8 No entanto, é justo lembrar – como chamou a atenção Stuart Hall (1982) – que o próprio Marx não
deixou de apontar alguns factores de complexidade no que respeita às articulações entre o económico e o
não-económico na estrutura das classes: “são as fases de desenvolvimento do modo de produção que
fornecem a condição necessária, embora não suficiente, para uma teoria marxista das classes: não é o
económico, num sentido mais evidente, que „determina‟. (…) São as relações sociais e materiais em que
os homens produzem e reproduzem as suas condições materiais de existência que „determinam‟ – o como
continua por elucidar. A desigual distribuição das riquezas económicas, mercadorias e poder (…) é, para
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22. Entre a Fábrica e a Comunidade
Exemplo disso é a visão acerca do antagonismo das classes (no quadro da teoria do
materialismo histórico): de facto, nunca as classes rivais se confrontaram como “dois
exércitos inimigos colocados frente a frente” (Balibar, 1991). E foi à volta desse pano
de fundo que a discussão sobre a relação entre as instâncias do económico e do político
– o mesmo é dizer, em torno dos tradicionais antagonismos marxianos, classe em si/
classe para si e infraestrutura/ superestrutura – procurou responder à questão da
correspondência entre as classes enquanto categorias abstractas e enquanto actores
concretos da luta política9. Mas, apesar da tónica repetidamente colocada na
determinação “final” do económico sobre as outras instâncias da formação social, por
parte de Althusser10, o mesmo autor não deixou de reconhecer a complexidade das
relações entre o económico e as diversas condicionantes históricas: “a contradição entre
capital-trabalho nunca é simples, mas sempre tornada específica pelas formas e
circunstâncias historicamente concretas da superestrutura… pela situação histórica
interna e externa” (Althusser e Balibar, 1970)11.
Marx, não a base mas o resultado da distribuição prévia dos agentes da produção capitalista em classes e
relações de classe (…)” (Hall, 1982: 31).
9 Evidentemente que, do pondo de vista marxista, um dos factores que mais directamente interfere com a
“superestrutura” política da sociedade capitalista, prende-se com o Estado (veja-se, adiante, a nota 9,
sobre a concepção de Poulantzas). De um modo geral, estas correntes põem o acento tónico na
capacidade de dominação e na procura de homogeneização político-cultural por parte do Estado
capitalista, recorrendo para isso a uma vasta gama de aparelhos ideológicos e repressivos (Althusser,
1975). Na sua busca de coesão e integração social, o Estado “desorganiza as classes como classes”
(Lukáks, 1971:65), ou seja, a lógica que preside à acção do Estado tem em vista impedir que, sob o efeito
de uma multiplicidade de lutas, os grupos humanos – em especial os mais desapossados – sejam vistos e
se vejam a si próprios como membros de uma classe ou como membros de uma colectividade específica,
para serem simplesmente vistos como membros “da sociedade” (Przeworsky, 1978).
10 Algumas das formulações de Althusser (1975 e 1976; Althusser e Balibar, 1970) e o historicismo
abstracto de Lukács (1971) tonaram-se objecto de uma cerrada crítica, mas ao mesmo tempo esses
importantes trabalhos relançaram o debate marxista, reposicionando a discussão no pensamento de Marx
e denunciando algumas das deturpações a que o mesmo vinha sendo sujeito.
11 O próprio Lenine se referiu à existência de “interesses de classe absolutamente heterogéneos, lutas
sociais e políticas absolutamente contrárias [as quais terão emergido] (…) na sequência de uma situação
histórica absolutamente única” (Lenine, 1969). A definição de classe que Lenine formulara em 1919
tinha-se tornado uma referência central no campo marxista: “classes são vastos grupos de homens que se
distinguem pelo lugar que ocupam num sistema historicamente definido de produção social, pela sua
relação (na maioria das vezes fixada e consagrada pelas leis) face aos meios de produção, pelo seu papel
na organização social do trabalho, portanto, pelos modos de obtenção e importância da parte das riquezas
sociais de que dispõem” (Lenine, 1969: 425).
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23. Entre a Fábrica e a Comunidade
Poulantzas veio entretanto introduzir novos elementos na abordagem estrutural
das classes. Para este autor, as relações sociais de produção são relações de
interdependência estruturadas na base da propriedade privada legalmente garantida pelo
Estado burguês. E isto segundo um modelo de dominação e de poder cuhjo objectivo
fundamental é a manutenção e a reprodução do modo de produção capitalista12. Um
conceito marcante no debate sobre a visão estruturalista foi o de determinação
estrutural das classes (Poulantzas, 1974), o qual aponta no sentido de que as relações de
classe se estruturam, não apenas a partir de elementos de natureza económica, mas
simultaneamente pelas dimensões política e ideológica. As relações de produção são
relações de classe apoiadas em poderes de classe que, como tais – sublinha Poulantzas –
, “estão constitutivamente ligados às relações políticas e ideológicas que os consagram e
os legitimam. Estas relações não se acrescentam simplesmente às relações de produção
„já lá‟, mas estão elas próprias presentes de forma específica em cada modo de
produção, na constituição das relações de produção” (Poulantzas, 1974: 24). A luta de
classes é parte integrante da própria formação das classes, e, portanto, não se trata de
conceber a estrutura económica de um lado, e a luta de classes sob a forma de relações
ideológicas e políticas, de outro lado. Ao procurar conceber a noção de ideologia como
um conjunto de práticas materiais (e não enquanto sinónimo de “sistema de ideias”),
12 Na concepção de Poulantzas, o Estado capitalista é definido na base da sua relativa autonomia face às
diferentes classes e fracções de classe, a qual lhe garante a capacidade de preservar e reproduzir o bloco-
no-poder. Traduzindo a linha do marxismo estruturalista, o Estado é visto por Poulantzas como um
sistema dinâmico que não está acima da luta de classes. Enquanto relação de forças condensada, que
interfere nas – e ao mesmo tempo incorpora as – contradições da sociedade, ele articula a conflitualidade
social e simultaneamente esconde-a. Boa parte da actividade do Estado e da sua eficácia social e política
deve-se, portanto, à sua não transparência. Enquanto fábrica de ideologia o papel do Estado ganha maior
relevo por aquilo que omite do que por aquilo que mostra. Todavia, ambas as vertentes são indissociáveis
na acção ideológica do Estado, embora cada uma dessas componentes se possa sobrepor à outra em
diferentes períodos históricos. Respostas contrárias podem até ter funções semelhantes, do ponto de vista
dos objectivos apaziguadores do Estado (Poulantzas, 1978). Embora pretenda ultrapassar as concepções
de Estado-coisa (visão instrumentalista de Lenine) e de Estado-sujeito, a sua conceptualização não deixa
de acentuar a ideia de “receptáculo” (onde se repercute a luta de classes) e a visão negativa ou reactiva
(face à vivacidade atribuída à luta e à conflitualidade social e de classe), em vez do papel activo e
empreendedor na relação entre a acção institucional e a sua intervenção na economia, na cultura e na
31
24. Entre a Fábrica e a Comunidade
Poulantzas parece aqui olhar mais para a dimensão reprodutiva do que para a esfera
restrita da produção. Todavia, não fica claro até que ponto as vertentes ideológica e
política continuam ou não a ser concebidas como instâncias secundárias onde se
projecta o económico mas que a ele permanecem subordinadas, ou seja – como também
alertou Mozzicafreddo (1981) –, sendo a produção sempre social, e se as “lutas” e
“práticas” (investidas de ideologia e de política) são a base da estruturação das classes,
não se percebe de que forma entram na própria constituição da “determinação
estrutural”, uma vez que, na sua perspectiva, a relativa autonomia de níveis aponta para
a determinação “final” do económico. O conceito de determinação estrutural das classes
de Poulantzas pode, contudo, permitir pensar as estruturas e práticas políticas e
ideológicas como dimensões sociais do comportamento humano situadas, não “de fora”
das bases que as determinam, mas que, enquanto elementos do social (incluindo o
económico), participam nas estruturas de “determinação” e, ao mesmo tempo, tomam
parte da sua constituição e transformação (Mozzicafreddo, 1981: 40-41)13.
1.1.2 – O conceito de “lugares contraditórios de classe” (modelo Wright I)
Um dos fenómenos que mais contribuiu para dar novo curso às velhas polémicas
sobre as teses da “proletarização” versus “emburguesamento” das classes intermédias
sociedade em geral, aspectos que mais tarde outros autores vieram a realçar (Evens et al., 1985; Jessop,
1990; Offe, 1984 e 1985a; Offe e Wiesenthal, 1984; Mann, 1987).
13 O próprio Marx, ao discutir a noção de indivíduo, perece diagnosticar, desde logo, a importância do
factor ideológico na criação do trabalhador “livre”. Na verdade, ele rejeitou claramente a assunção
veiculada pelos economistas clássicos que tomava os indivíduos num sentido natural, biológico, como um
dado – os “indivíduos desprovidos” da sociedade mercantil –, como se estivessem de fora, disponíveis
para posteriormente se tomarem como a “base” das classes. O homem, observou Marx, é produto de
muitas determinações: “a sociedade não é apenas um conjunto de indivíduos; é a soma das relações que os
indivíduos estabelecem uns com os outros. É como se alguém dissesse que, do ponto de vista da
sociedade, escravos e homens livres não existem; são todos homens. De facto, isso é o que eles são fora da
sociedade. Ser escravo ou cidadão é uma relação socialmente determinada entre um indivíduo A e um
indivíduo B. O indivíduo A não é, enquanto tal, escravo. Ele só é escravo na, e através da, sociedade”
(Marx, 1973: 265). Ainda a este propósito, José Barata-Moura refere-se ao problema ontológico da relação
entre o indivíduo e o colectivo no pensamento de Marx, sublinhando que “o colectivo não é uma „coisa‟ –
fora, acima ou ao lado daqueles que materialmente o integram –, não é uma generalidade substancializada
distinta dos seus portadores e da sua actuação enquanto tais. O colectivo são indivíduos actuando de um
modo determinado. O colectivo é um processo dialéctico de trabalho” (Barata-Moura, 1997: 304).
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25. Entre a Fábrica e a Comunidade
foi o notório crescimento da chamada classe média nas sociedades avançadas – “este
grupo que não é grupo, esta classe que não é classe, este estrato que não é estrato”, na
curiosa acepção de Dahrendorf (1982: 56) –, crescimento esse que abalou
profundamente os pressupostos político-ideológicos do marxismo ortodoxo. Grande
parte do debate entre Poulantzas e Wright girou à volta desse fenómeno (se bem que,
enquanto marxistas, ambos recusaram e combateram as teses liberais ou funcionalistas
que acentuavam a crescente igualdade de oportunidades fornecida pelo sistema)14.
Principalmente devido à importância que dava ao critério ideológico, bem como ao
critério do chamado “trabalho improdutivo” (trabalho não directamente produtor de
mais valia), Poulantzas considerou que um vasto conjunto desses trabalhadores
assalariados integraria uma nova categoria de classe que, aliás, correspondia a um
“prolongamento” de uma classe já existente: a nova pequena burguesia (designação
que, em boa medida, justificou pela semelhança de traços ideológicos – o
individualismo, o feiticismo do poder, etc. – entre o sector dos empregados dos serviços
e a „velha‟ pequena burguesia).
Erik Wright, por seu lado, tecendo diversas críticas a Poulantzas15, tentou
especificar os fundamentos possíveis da unidade política da “classe média”, embora
14 O crescente protagonismo destas categorias intermédias remete para o conhecido fenómeno da
mobilidade social, a qual, embora reflicta a relativa perda de rigidez da estrutura social não significou um
simples aumento das oportunidades para os filhos da classe operária (como pretenderam algumas
correntes liberais e funcionalistas), tendo antes gerado mecanismos mais complexos na dinâmica social,
mecanismos esses que se traduziram simultaneamente em movimentos de “ascensão”, de “declínio” e de
“reprodução” em termos das disparidades de poder e de estatuto social. Diversos autores preferem falar
de “trajectórias de classe” em vez de “mobilidade social” (cf. Bertaux, 1978; Bourdieu, 1979; Almeida,
1984; Almeida et al., 1994; Goldthorpe, 1984 e 1992; Butler e Savage, 1995; Rodriguez, 1989).
15 A crítica ao critério do trabalho produtivo devido à sua irrelevância em termos das consequências
práticas para a determinação dos interesses de classe, a crítica ao conceito de pequena burguesia, pelo
excessivo ênfase colocado nas características subjectivas dessa classe, a crítica à exagerada importância
atribuída à dimensão ideológica, aspectos que teriam consequências negativas devido, por um lado, à
secundarização do papel da estrutura de classes na determinação do conflito e, por outro, à perda de
centralidade do conceito marxista de relações de produção (Wright, 1981: 40-56). Alguns dos critérios
relativamente consensuais entre os marxistas em termos de uma definição formal mínima da classe, são os
seguintes: a) a classe é um conceito intrinsecamente relacional; b) as relações em que se encontram as
classes conferem-lhes interesses objectivos; c) tais interesses são de natureza antagónica; d) esse
antagonismo deriva da relação de exploração inerente ao modo de produção capitalista; e) tal processo de
33
26. Entre a Fábrica e a Comunidade
aceitasse que esta categoria não constitui uma classe no sentido marxista. Em
alternativa, contrapõe o seu próprio modelo, construído em torno do conceito de lugares
contraditórios nas relações de classe (modelo Wright I) (Wright, 1981). Tais lugares de
classe são identificados não apenas no quadro do modo de produção capitalista (ou seja,
na base das relações de produção capitalistas), mas sim tendo em conta as articulações
complexas entre diferentes modos de produção que historicamente coexistem numa
mesma formação social (leitura que neste ponto é partilhada por ambos os autores).
Wright concebe um esquema triangular a partir das três classes tradicionais: burguesia e
proletariado (modo de produção capitalista) e pequena burguesia (modo de produção
mercantil simples)16. A razão pela qual alguém é considerado parte da pequena
burguesia ou da burguesia, e, por outro lado, a razão pela qual alguém é considerado
parte da pequena burguesia ou do proletariado é aferida em função de critérios como a
propriedade dos meios de produção, a autonomia na produção, o controle sobre a força
de trabalho alheia e a autoridade ou a posição nas relações de poder (Wright, 1981). A
mudança ocorrida na separação entre propriedade e controle, a distinção (parcial) entre
propriedade económica e controle, e a diferença entre “controle sobre os meios físicos
de produção” e “controle do processo de produção” são alguns dos factores que Wright
toma como centrais pelo seu alcance nas relações de classe. Assim, por exemplo,
enquanto o controle sobre os meios físicos e sobre o processo de produção constituem
factores incluídos nas relações de apropriação de mais-valia, o controle sobre a força de
trabalho faz parte das relações de dominação e autoridade. Em síntese, este primeiro
exploração fundamenta-se no modelo de organização da produção, ou seja, nas relações sociais de
produção (Wright, 1983: 11-13; 1985: 34-37).
16 Ao longo desses três eixos é possível detectar diversas posições de classe (ou “lugares contraditórios”),
primeiro, as situadas entre a pequena burguesia e cada uma das classes polares do modo de produção
dominante – a burguesia ou o proletariado (lugares situados entre o modo de produção mercantil simples
e o modo de produção capitalista), e, segundo, as posições situadas entre cada uma das classes polares do
modo de produção capitalista. Considerando que o impacto do desenvolvimento capitalista sobre a esfera
produtiva se repercute em fenómenos como: a) a progressiva perda de controle sobre o processo de
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27. Entre a Fábrica e a Comunidade
modelo de Wright resulta da articulação entre seis critérios: 1) controle sobre os
recursos e investimentos (propriedade económica); 2) controle sobre os meios físicos de
produção (posse); 3) controle sobre a força de trabalho alheia (posse); 4) propriedade
legal sobre capital e imóveis (propriedade jurídica); 5) situação legal de empregador
(propriedade jurídica); 6) venda de trabalho assalariado. Como consequência, esta
tipologia traduz-se num conjunto de oito categorias de classe: por um lado, as três que
correspondem a situações inequívocas: burguesia, proletariado e pequena burguesia; por
outro lado, cinco lugares contraditórios de classe: pequenos empregadores, empregados
semi-autónomos, gestores, gestores-consultores e supervisores (Wright, 1981: 66).
Este primeiro modelo revelou diversas insuficiências teóricas e dificuldades de
operacionalização analítica, postas a nu pelo próprio terreno empírico. Eis algumas das
situações “anómalas” consideradas como reveladoras das deficiências do modelo: a
distinção entre as situações polares e os lugares contraditórios de classe não permite a
identificação de categorias de classe enquanto portadoras de interesses opostos (como
era objectivo declarado do autor); o caso dos empregados semiautónomos, considerados
numa situação distinta da classe operária devido à maior autonomia face às suas tarefas,
aspecto que, além de não pressupor nenhuma diferença essencial em termos de
interesses de classe, é definido com base num critério contingencial (que pode até ser
exterior ao processo produtivo) e não deriva das relações sociais de produção. Como
mais tarde reconheceu Wright, um porteiro poderia possuir mais autonomia do que, por
exemplo, um piloto de aviação, daí resultando que este último estaria mais firmemente
numa localização da classe operária do que o primeiro. A autonomia e a dominação,
enquanto critérios de pertença de classe, foram sobrevalorizados e deixam transparecer
trabalho por parte da classe operária; b) a diferenciação das funções do capital; e c) a crescente
complexificação das hierarquias no espaço produtivo (Wright, 1981: 59-66).
35
28. Entre a Fábrica e a Comunidade
um excessivo pendor institucional, ou seja, uma lógica demasiado dependente das
hierarquias da empresa e das posições funcionais no seio da divisão técnica do trabalho.
1.1.3 - Novos desenvolvimentos no modelo de Wright (modelo Wright II)
Deste modo, o combate crítico foi, em certa medida, dando lugar à própria
autocrítica do autor e as reformulações que se seguiram começaram a traduzir-se num
segundo modelo, cuja sistematização – sempre acompanhada de abundante pesquisa
empírica e respectivos modelos estatísticos – apareceu na obra Classes (Wright, 1985).
Este modelo reconstruído (Wright II) procurou recuperar o conceito marxista de
exploração para o centro da análise, considerando que o antagonismo de interesses entre
as classes passa necessariamente pela existência de relações de exploração. A
dominação, por si só, não chega para definir interesses objectivos antagónicos. Este é, no
entanto, um ponto delicado. Trata-se da tese das opressões múltiplas, segundo a qual as
sociedades capitalistas se caracterizam por uma pluralidade de mecanismos de
dominação, cada um deles exercendo uma forma particular de opressão: a desigualdade
sexual, o racismo, o colonialismo, o poder económico, etc. Uma boa ilustração da
diferença entre opressão e exploração é retirada da esfera familiar: a opressão dos filhos
pelos pais não implica a existência de interesses materiais (ou interesses “objectivos”)
opostos entre uns e outros. O mesmo se pode dizer dos grupos sociais em situações de
opressão não-exploradora – como acontece com os marginais, os pobres, os
desempregados, as minorias étnicas, etc. – que, por não traduziram uma relação de
interdependência com os opressores poderiam, do ponto de vista destes, ser banidos sem
que isso afectasse a sua condição, ou seja, ao contrário da situação de exploração, o
opressor não “precisa” do esforço produtivo do oprimido17. Por isso, a relação
17 Wright refere-se à diferença entre situações de opressão não-exploradora e situações de exploração
recorrendo aos exemplos históricos da colonização da América do Norte e da África do Sul. “No caso da
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29. Entre a Fábrica e a Comunidade
dominação/opressão não chega, por si só, para definir os interesses objectivos em causa.
Só a exploração pode estruturar as principais clivagens classistas porque só ela produz
interesses materiais antagónicos, visto que só neste caso o explorador “precisa” do
explorado para acumular riqueza e este último precisa do primeiro para sobreviver.
Relações de exploração geram, inevitavelmente, interesses objectivos contraditórios (já
que nenhum indivíduo tem um interesse objectivo em ser explorado) ainda que os
mesmos sejam camuflados através de atitudes subjectivas de anuência ou de
aceitação18. Daí a insistência do autor em que o conceito de exploração deve continuar
no centro da análise das classes.
Esta acepção em torno dos interesses objectivos (ou fundamentais) não deixou de
dar azo a acusações de ortodoxia e de voluntarismo. Conforme apontaram alguns dos
críticos de Writght, a crença implícita de que o verdadeiro interesse da classe operária
coincide com o interesse no socialismo reflecte, antes de mais, “uma arbitrária atribuição
de interesses, por razões de natureza política” (Laclau e Mouffe, 1985: 83). A questão
dos “interesses de classe”, além de ser um dos pontos mais combatidos e vulneráveis
deste modelo – bem como uma das noções que melhor exprimiu o dogmatismo marxista
em geral –, remete directamente para o problema da acção e da identidade de classe, a
que voltarei mais adiante. É, pois, imperioso reconhecer as dificuldades de Wright em
opressão não-exploradora os opressores ficariam felizes se os oprimidos simplesmente desaparecessem. A
vida teria ficado mais fácil para os colonos europeus na América do Norte se o continente não estivesse já
habitado por pessoas. O genocídio é assim uma estratégia potencial para a opressão não-exploradora. O
que não é uma opção numa situação de exploração económica porque os exploradores precisam do
trabalho dos explorados para o seu bem-estar material. Não é por acidente que culturalmente temos o
hediondo ditado „o único índio bom é o índio morto‟, mas não outros ditos como „o único trabalhador
bom é o trabalhador morto‟ ou „o único escravo bom é o escravo morto‟. Fará sentido dizer „o único
trabalhador bom é o trabalhador obediente e consciencioso‟, mas não que „o único trabalhador bom é o
trabalhador morto‟. O contraste entre a América do Norte e a África do Sul no tratamento dos povos
indígenas reflecte esta diferença pungente: na América do Norte, onde os povos indígenas foram
oprimidos (através da expulsão coerciva das terras), mas não explorados, o genocídio foi a política
primária de controlo social em face da resistência; na África do Sul, onde a população colona europeia
dependia fortemente do trabalho africano para a sua própria prosperidade, essa não podia ser uma opção”
(Wright, 1997a: 11-12).
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30. Entre a Fábrica e a Comunidade
libertar-se de alguns dos insolúveis equívocos que o marxismo estrutural introduziu na
análise abstracta das classes, aspectos que se foram tornando mais claros à medida que
outras clivagens sociais concorrentes com a classe foram sendo reconhecidas19.
Apesar da vulnerabilidade de Wright a algumas destas críticas (Wright, 1989,
1997a e 1997b)20, a classe – definida num sentido estrutural – continua a ser tomada
pelo autor como um mecanismo que além de encerrar, ele próprio, uma forma particular
de opressão, é dotado de capacidade para impor limites às outras formas de opressão
(embora não as “determine” directamente), ou seja, o conceito de classe é o único que
transporta simultaneamente mecanismos de opressão e de exploração. Todavia, é
questionável se a dominação é menos importante que a exploração. A propensão humana
para a acção é muitas vezes mais constrangida pela dominação/opressão do que pela
exploração. Como principal referência teórica, Wright inspirou-se abundantemente em
John Roemer (1982b)21, o qual considera que a exploração e as classes são, à partida,
fenómenos relativamente independentes um do outro. Para além disso, procura mostrar a
possibilidade teórica da existência de sociedades com exploração mas sem classes
sociais (Costa, 1987). As desigualdades sociais são analisadas como consequência de
mecanismos de exploração capazes de proceder à transferência de sobretrabalho de uns
grupos sociais para outros, ou seja, existe uma relação causal entre o bem-estar de uns e
18 Ao contrário da conhecida equação liberal – segundo a qual os interesses do indivíduo correspondem
aos seus interesses expressos –, em Wright, o verdadeiro interesse está longe de coincidir com os
interesses manifestos do agente.
19 Como mostraram alguns estudos sobre as desigualdades, a mudança e a acção colectiva que surgiram
nos últimos dez anos (cf. Balibar e Wallerstein, 1991; Aronowitz, 1992; Eder, 1993; Cohen e Arato,
1994; Calhoun, 1994; Crompton, 1993 e 1997).
20 Em artigo recente sobre a questão da diferença sexual, parecem claras as crescentes cedências de
Wright, ou seja, a tendência em considerar ambos os factores (classe e diferença sexual), com
semelhantes capacidades de estruturação das desigualdades: “o marxismo e o feminismo são as duas
tradições teóricas que mais atenção têm dado à tentativa de compreensão destas formas de opressão. No
passado dispendeu-se muita energia teórica em debates de carácter metateórico sobre se se deveria
conferir uma prioridade geral a um ou a outro destes feixes de processos causais. Uma das conquistas do
progresso teórico destes últimos anos consistiu em superar essas preocupações” (Wright, 1997b).
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31. Entre a Fábrica e a Comunidade
a privação de outros. Ao contrário da teoria do valor-trabalho de Marx, Roemer defende
que pode haver exploração, por exemplo, num modelo de sociedade em que todos sejam
proprietários dos meios de produção e trabalhem em regime de autoprodução (economia
de subsistência sem mercado de trabalho), pressupondo-se para tal a existência de bens
produtivos e instrumentos técnicos desiguais à partida. Se, como demonstra Roemer
(1982b, 1986), o produtor X produzir mais mercadorias que o produtor Y dispendendo o
mesmo tempo de trabalho, ao trocá-las no mercado concorrencial, X pode obter um
cabaz de mercadorias maior que Y, tendo dispendido um esforço igual ou inferior, o que
significa que X explora Y. Em tal situação a exploração poderia acontecer, mesmo na
ausência de classes.
O mesmo autor postula ainda a existência de um processo de correspondência
entre classes e exploração, o qual tem lugar no quadro de um modelo de economia de
subsistência com mercado de trabalho. Neste caso, as classes emergem a partir da
diferença (qualitativa e quantitativa) na relação com os meios de produção. À existência
ou não existência de propriedade dos meios de produção e ao desigual volume de
propriedade, correspondem diferentes classes: os que vendem força de trabalho, os que
compram força de trabalho e os que não vendem nem compram força de trabalho. Em tal
situação é a propriedade a base da exploração e trata-se, portanto, de exploração
capitalista (com base na apropriação de mais-valia no processo de trabalho).
Segundo os modelos de Roemer, a desigual distribuição de recursos e a troca de
bens no mercado bastam para gerar transferência de mais-valia. São, portanto, dois os
tipos de recursos produtivos que estão na base desses processos: 1) – recursos alienáveis
(bens físicos, propriedade material); e 2) – recursos inalienáveis (capacidades,
habilidades, qualificações). As desigualdades nos primeiros dão origem à exploração
21 Os modelos propostos por este autor e a sua contribuição para as “novas e velhas questões” sobre a
teoria das classes foram objecto de importante reflexão e síntese teórica realizada por António Firmino da
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32. Entre a Fábrica e a Comunidade
capitalista e as desigualdades nos segundos dão origem ao que Roemer designa por
exploração socialista22. Olin Wright acrescenta-lhes duas novas modalidades (que se
vêm juntar àquelas): 3) – recursos em pessoas (posse de força de trabalho) e 4) –
recursos organizacionais (controle dos mecanismos de decisão nas organizações). A
desigual distribuição dos primeiros refere-se especificamente à sociedade feudal, uma
vez que aí, diferentemente do capitalismo, nem todos possuíam uma unidade de força de
trabalho, visto que os servos não eram sequer proprietários do seu próprio corpo,
enquanto os senhores possuíam a força de trabalho dos seus servos. Deste modo, a
exploração feudal assenta na transferência directa do sobretrabalho a partir da
propriedade da força de trabalho alheia. Por sua vez, a desigual distribuição de recursos
organizacionais dá lugar a uma forma de exploração considerada dominante nas
sociedades de “socialismo de Estado” (onde as estruturas organizacionais do Estado se
estendiam a toda a sociedade) – a exploração socialista23.
Segundo Wright, as diferentes modalidades de recursos desigualmente distribuídos
combinam-se de forma complexa nas “sociedades concretas”, para darem origem a
múltiplas formas de exploração. Assim, ao propor o seu actual mapa das localizações de
classe, desde logo nos adverte que “na maior parte das sociedades haverá muitas
posições na estrutura de classes que são simultaneamente exploradoras e exploradas
segundo as diferentes dimensões das relações de exploração” (Wright, 1989a: 8).
Concretamente, nas sociedades capitalistas, o autor considera a combinação de três tipos
Costa (1987).
22 Escuso-me, por razões óbvias, de aprofundar a análise de Roemer, mas refira-se que uma segunda
componente de grande importância no contexto da sua “teoria geral da exploração” é inspirada na teoria
dos jogos. Dela se infere que as estratégias de retirada dos actores, perante as “alternativas viáveis” em
face de escolhas entre, por exemplo, participar no “jogo” feudal, capitalista, ou socialista, se tornam
condicionantes fulcrais das práticas e dos seus processos de estruturação em termos classistas (cf. Roemer,
1982a e 1982b; e Costa, 1987).
23 Em todo o caso, a noção de “exploração organizacional” ou “exploração burocrática” parece algo
ambígua, principalmente quando aplicada às sociedades capitalistas. De facto, não é fácil vislumbrar
situações em que aos desapossados dos meios de produção seja permitido estruturar com sucesso o “poder
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33. Entre a Fábrica e a Comunidade
principais de exploração: exploração capitalista (baseada no desigual controle dos meios
de produção); exploração organizacional ou burocrática (desigual controle de recursos
organizacionais ou de autoridade); e exploração por credenciais ou qualificações
(desigual controle de qualificações escassas ou credenciais escolares). Se nas actuais
sociedades a única forma de exploração fosse de tipo capitalista, todos os assalariados
pertenceriam à classe operária. Porém, tendo em atenção as outras formas de exploração
será possível visualizar divisões internas de classe, pondo em relevo, por exemplo,
localizações da “classe média” onde se combinam múltiplas formas de exploração e em
que algumas dão lugar a situações ambíguas (que, no fundo, correspondem a lugares
contraditórios nas relações de classe), ou seja, situações que podem ser
simultaneamente exploradas (porque, por exemplo, não possuem os meios de produção)
e exploradoras (porque, por exemplo, possuem elevadas credenciais ou diplomas
académicos). O referido esquema dá então lugar a uma estrutura com um conjunto de
doze “localizações de classe” (o que, obviamente, não significa advogar a existência de
doze classes) as quais, embora correspondendo a uma estrutura abstracta, condicionam
no concreto as práticas individuais e as formas possíveis de acção colectiva24.
Uma das vantagens desta proposta reside justamente nas possibilidades que abre à
análise das chamadas “classes médias” a partir de um ponto de vista marxista,
permitindo visualizar diferentes lógicas de acção e diferentes estratégias segundo
critérios que se reconhecem hoje decisivos, como é o caso das qualificações (ou
credenciais escolares) e dos instrumentos de poder (recursos organizacionais ou
da organização”, em especial se se pretender usá-lo contra o proprietário. Por isso, dificilmente este factor
pode ser visto como uma relação independente.
24 Sobre a tipologia das doze localizações de classe e a sua operacionalização, ver Wright (1985: 64 e ss.).
No âmbito do presente estudo, o modelo de análise de Wright assume maior relevância no que respeita aos
resultados da estrutura regional das classes na zona da indústria do calçado (que apresentarei no Capítulo
6). A abordagem aí efectuada, embora apoiada nos pressupostos teóricos e metodológicos de Wright,
analisa os resultados obtidos recorrendo à dimensão histórica e cultural, ou seja, dando atenção a factores
que se aproximem mais da teoria weberiana.
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34. Entre a Fábrica e a Comunidade
autoridade) de que se dispõe nas relações de trabalho. Mas há aqui incongruências
difíceis de ultrapassar.
Primeiro, o conceito de exploração é, na prática, utilizado num sentido puramente
quantitativo e, em termos operativos, as distinções são efectuadas arbitrariamente, o que
contraria o pressuposto de que a análise marxista é fundamentalmente relacional.
Segundo, não se vê como os três critérios – propriedade, recursos organizacionais (ou
autoridade) e credenciais escolares – se relacionam uns com os outros. Terceiro, é
duvidoso que a desigual distribuição de recursos em credenciais e em autoridade possam
ser concebidas como formas de exploração com o mesmo nível de importância da
exploração capitalista (propriedade e extracção directa de mais-valia), pois esta é a única
relação que, além de produzir lucro, implica relações intrínsecas de interdependência
entre explorado/ explorador. Por último, o procedimento de Wright no que respeita ao
tratamento da dimensão político-social – das formações de classe, da consciência de
classe e da subjectividade – levanta sérias dúvidas, em particular a sua insistência nas
articulações “objectivas” entre as posições estruturais e as formas de consciência
confunde-se com a ortodoxia essencialista, como lhe têm apontado alguns dos seus
críticos neoweberianos e pós-marxistas (Marshall et al., 1988; Laclau e Mouffe, 1985).
É importante nesta altura lembrar as aproximações de Wright ao pensamento de
Weber, particularmente notadas nos seus últimos trabalhos (Wright, 1997a e 1997b). Na
verdade, a abordagem estrutural das classes poderá sair enriquecida se for combinada
com factores mais identificados com o weberianismo, como sejam a dimensão
comunitária e a mobilidade social. O próprio Wright aponta, como se disse, as vantagens
de “marxianizar o weberianismo”25, considerando que o elo estrutural que liga
25 Em algumas formulações, o próprio conceito de “exploração” surge como elo de ligação entre as duas
tradições. É o que acontece quando, por exemplo, John Roemer fala em “exploração de status” ou em
“exploração socialista” e quando se admite que, em termos abstractos, pode haver exploração mesmo num
modelo de sociedade sem mercado de trabalho, ou seja, com todos os produtores a serem proprietários dos
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35. Entre a Fábrica e a Comunidade
explorador e explorado na produção afecta as capacidades de mercado e as
oportunidades de vida dos membros das classes sociais em presença e, assim, o conflito
distributivo está em articulação com as relações de exploração sediadas na produção.
Recorrendo a uma parábola da banda desenhada – a história do shmoo (Wright, 1997a:
4) – o autor procura mostrar como os recursos e meios de vida que os trabalhadores da
indústria possam encontrar fora da empresa constituem uma dimensão que – embora
tenha lugar através das relações de mercado e não na relação directa capital/trabalho –
faz parte dos mecanismos de exploração, já que o enriquecimento de uns é efectuado à
custa da privação de outros. Neste caso, a exploração não é incompatível com o
compromisso entre as classes desde que as actividades complementares (na verdade, o
equivalente aos shmoos) se mantenham insuficientes para a subsistência do trabalhador,
acabando por favorecer simultaneamente os operários e o capitalista. Ou seja, enquanto
os primeiros podem reforçar o seu baixo salário, mantendo ao mesmo tempo o emprego
(por isso não têm interesse que a fábrica feche as portas), o segundo beneficia com isso,
pelo menos enquanto tais rendimentos paralelos forem insuficientes por si sós, e os
assalariados, à falta de melhores alternativas, forem obrigados a trabalhar para um patrão
que lhes paga mal26. Com esta ilustração o autor pretende mostrar como as relações de
mercado têm de facto uma interferência directa na estruturação das classes visto que tais
mecanismos de mercado, apesar de facilitarem certas formas de compromisso, não
deixam de se apoiar no antagonismo de interesses e na lógica exploradora.
seus meios de produção, os próprios mecanismos de mercado fornecem as bases da exploração. Wright
adere claramente a esta ideia quando, no seu último livro, desenvolve a metáfora do “efeito shmoo”
(Wright, 1997a; cf. também Estanque e Mendes, 1998). Para uma síntese desta discussão e em particular
dos modelos de Roemer, ver Costa (1987).
26 Mas se, por hipótese, a situação se alterasse no sentido de se obterem benefícios crescentes a partir, por
exemplo, da actividade agrícola, é provável que muitos trabalhadores preferissem trocar a fábrica pelo
trabalho na agricultura, fazendo escassear a mão-de-obra na indústria e consequentemente inflaccionando
os salários aí praticados.
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36. Entre a Fábrica e a Comunidade
Por outro lado, a localização “directa” na estrutura de classes, sendo muitas vezes
insuficiente para explicar tanto as práticas como as orientações subjectivas dos
indivíduos, faz apelo a outras mediações, como sejam a interferência “indirecta” das
redes sociais (familiares e de amizade) e das trajectórias pessoais ou intergeracionais na
definição da posição de classe mediada, enquanto factor influente na explicação das
práticas e subjectividades individuais ou colectivas27. Efectivamente, parece cada vez
mais insustentável a ideia de que a estrutura de classes possa, por si só, fornecer
explicações plausíveis para a compreensão das subjectividades e comportamentos
colectivos, uma vez que na verdade não existem quaisquer interesses “essenciais” ou
“objectivos” directamente atribuíveis à posição de classe28. Se esta continua a ser um
elemento importante, ela deve conjugar-se com outros factores de natureza histórica,
contextual e cultural, nomeadamente o fenómeno das identidades.
O problema da acção colectiva e a questão dos “interesses” – classistas ou não –
podem ser equacionados com as identidades. Muito embora esse seja um tema que
abordarei mais à frente vale a pena adiantar que diversos autores o introduzem nas
discussões sobre a acção de classe. Por exemplo, Ted Benton prefere utilizar em vez do
conceito de “interesses”, a noção de “objectivos” (Benton, 1981), considerando que
estes são inerentes às práticas sociais e se manifestam sobretudo no seu conteúdo
simbólico. Esta ideia é sublinhada por Firmino da Costa quando afirma que “em
sociedade, cada actor ou categoria de actores não só tem um, mas diversos objectivos
possíveis, ligados à variedade de identidades colectivas sobreponíveis ou
27 Alguns resultados da sociedade portuguesa referentes às permeabilidades de classe entre diferentes
gerações e à posição de classe do cônjuge e do amigo mais próximo foram publicados noutro lugar
(Estanque e Mendes, 1998). Para novas discussões entre o modelo de Wright e a diferença sexual, ver
Wright (1997b) e Crompton (1997).
28 Michael Burawoy afirma que Wright faz concessões ao idealismo, ao formular o conceito de
“interesses de classe objectivos”, assumindo, implicitamente, que a classe operária tem um interesse
objectivo no socialismo (Burawoy, 1989).
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37. Entre a Fábrica e a Comunidade
alternativamente colocáveis” (Costa, 1987: 77)29. Quer isto dizer que a tomada de
consciência dos “interesses de classe” não deriva directa e “objectivamente” dos lugares
de classe, uma vez que estes apenas estão em condições de desenvolver interesses
potenciais. De qualquer dos modos, os interesses manifestam-se sempre no quadro de
identidades sociais em relação às quais estão, em certa medida, dependentes (Marshall,
1997: 52). Como frisou Pizzorno (1981), a identidade precede os interesses. Isto vai
também ao encontro da leitura dos pós-marxistas Laclau e Mouffe (1985), para quem
são sobretudo a experiência e as práticas que condicionam a subjectividade e a vontade
dos actores, e não tanto o processo inverso.
Numa linha semelhante, os autores da escola neoweberiana de Essex (Marshall et
al., 1988), admitem que no caso da classe operária, as identidades sociais sejam
primariamente oriundas da produção, mas sublinham: “isso não é sempre verdade nem
tem consequências uniformes. Identidades sectoriais, tanto como identidades de classe,
podem emergir de experiências particulares de trabalho, mas elas não têm de ser
permanentes ou duráveis. Podem ser activadas em circunstâncias particulares, por
exemplo, no contexto de uma disputa industrial ou quando a fábrica está sob ameaça de
encerramento, mas noutras ocasiões permanecem latentes. Nessas alturas, as esferas da
vida fora do trabalho são provavelmente as mais salientes para activar as identidades
sociais. Na verdade, para alguns indivíduos estas identidades podem modelar outras
identidades potenciais” (Marshall et al., 1988: 273).
De um modo geral, pode dizer-se que a explicação da acção colectiva da classe
trabalhadora com base nas solidariedades da colectividade operária tem vindo a sofrer
29 Como refere Firmino da Costa, daqui deriva “a possibilidade de objectivos alternativos e o facto de
uma parte importante da luta de classes consistir em tentar-se persuadir outros de que os seus „interesses
verdadeiros‟ são uns, e não outros, ou seja, em advogar mudanças de identidade, em procurar induzir
orientações preferenciais, não para umas, mas para outras identidades colectivas”. Citando Benton, pode
ler-se no mesmo texto: “tentar persuadir alguém de que um certo curso de acção, em vez dum outro
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38. Entre a Fábrica e a Comunidade
uma crescente contestação30. É certo que o pressuposto evolucionista da teoria do
materialismo histórico, bem como o pendor determinista e abstracto que acompanhou a
teoria das classes no passado, são formalmente rejeitados por Erik Wright (1997a;
Wright et al., 1992). No entanto, a grande preocupação do autor com o rigor conceptual
e a operacionalidade dos modelos estatísticos parecem ir de par com uma certa perda de
vitalidade crítica, fazendo com que alguns dos seus “equipamentos analíticos” apareçam
hoje envoltos num excessivo relativismo. A abordagem de Wright é ontologicamente
forte, mas epistemologicamente fraca. Ao advogar que as classes têm uma existência
concreta, independentemente do que se passa num dado quadro “mental” ou
“conceptual”31, parece esquecer que, apesar de tudo, a realidade é inseparável do sujeito
que a pretende captar e “moldada” pelo próprio acto de conhecer.
Uma análise realista das estruturas e da acção de classe exige a captação das
configurações concretas de ideologias, identidades culturais e práticas de classe inseridas
em contextos históricos particulares. Ou seja, a análise estruturalista das classes pode ser
útil a uma abordagem como a que está em causa neste estudo, mas é necessário
complementá-la com outras perspectivas que permitam uma compreensão mais profunda
e qualitativa da realidade social, capaz de captar os processos históricos e os contextos
socioculturais concorrentes com a estrutura de classes na modelação da acção colectiva.
As práticas e experiências vividas no processo produtivo e na comunidade não só se
inscrevem nas estruturas mais gerais do capitalismo, mas revestem-se de significados
qualquer, é do seu interesse significa tomar parte na constituição e/ou reconstituição da sua identidade
social e pessoal” (Costa, 1987: 77).
30 A perda de centralidade da classe nos processos políticos e na transformação social mais geral,
caminha de par com a emergência de outro tipo de fenómenos e de clivagens identitárias (socioculturais,
étnicas, sexuais, etc.), assunto a que irei referir-me no ponto seguinte (cf. Korpi, 1983; Goldthorpe, 1984;
Maheu, 1995; Eder, 1993; Aronowitz, 1992; Burawoy, 1985 e 1989; Pakulsky e Waters, 1996a).
31 Uma tentativa de demarcação face a Ernesto Laclau (e a outros críticos), segundo o qual “os objectos
não são nunca dados como meras „existências‟ mas, são sempre articulados no seio de totalidades
discursivas” (Laclau, 1990: 109). Alguns acusam-no de ser como o viajante meticuloso que “passa o
tempo a fazer as malas para não ir a lado nenhum”.
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