1. Gustavo Rodrigues Zaraya (15000290); JOA (DIURNO)
Gymnopédie I
Eu ando muito, sabe? Sempre andei muito. Nunca andei, entretanto, com
um objetivo. Muitas vezes penso em andar e saio caminhando, não para
encontrar, mas para fugir, fugir da solidão, do abandono, da ânsia pela resposta.
A ânsia causada pela impossibilidade de encontrar a resposta, aquela que nos
acolhe e nos ensina a chave para o mistério da vida.
Ando pela cidade. E olho. Olho exaustivamente a cidade enquanto ando.
Em círculos contínuos, ao infinito, eu olho e tenho a impressão de que não vejo.
Ver exige vísceras e eu ainda não estou pronto para dar as minhas. Ver
necessita o despojamento das ilusões. Mas, não. Ainda não estou pronto para
aceitar a loucura, a loucura que destoa do sorriso por sorrir mais, que destoa da
lágrima por esbanjar felicidade. Não quero esta loucura, a loucura do saber.
Saber exige a luta. Exige olhar para o mundo e ver a si mesmo. E ver a si
mesmo é escapar de si mesmo. Meu leitor, é claro, invariavelmente medíocre,
não entenderá. É certo que tudo o que escapa da nossa vida, do nosso
entendimento, nos parece medíocres. Fruto de nossa prepotência e infantilidade.
Pense assim, acho você, que me lê, medíocre porque não o entendo. É
um saldo da nossa amizade. E também falo contigo que julga entender este
texto. Meu senhor: você entende o nada. Isto aqui é alma. Não é palavra.
E o que você sente é o julgo. As almas não devem ser julgadas. Elas
gritam por amparo e compaixão. A sua também, no presente.
Grita por compaixão.
Este texto surgiu ao acaso, enquanto ontem eu voltava justamente de uma
caminhada – não mais andando, mas desenvolvendo. Encontrei o olhar, não o
meu, mas o do meu outro eu: o de um velho. Imóvel. Medonho.
Estava em pé, na mureta do vão do MASP. Exatamente, senhores, em
pé, de costas ao vão, imóvel. Ninguém o via.
2. Perguntei a uma moça sentada: “ele vai se matar?”. Ela me disse: “está
aí há muito tempo. Há dias. Imóvel. É maluco, moço”.
Vida-Morte naquele corpo, em pé, imóvel. De costas para a morte, vendo
a vida. O olhar imóvel. Absoluto.
Por pudor não disse, mas é claro que era um mendigo. Um absoluto
mendigo, de barba e pele maltratadas. De odores e muitas mágoas. Talvez, do
olhar mais sábio e impenetrável que já vi.
Sim, mais do que olhar, eu vi aquele olhar. E por mais que eu não o
compreenda, e não compreendo até hoje, aquilo ali desfigurava máscaras.
A cidade não é feita de pedra. A cidade é feita de corpos. E de crianças
abandonadas, crianças com barba, crianças que apesar de não serem vítimas,
precisam de ajuda. Duma ajuda direcionada ideologicamente à fome da África.
Mas negada nas esquinas, às mãos pedintes, aos olhares apaixonados dos
mendigos.
Aquele homem olhava ao nada. Mas via a si mesmo na cidade. Via a sua
alma, e, por isso, via a todos. Via o grito de socorro, íntimo, silencioso, que urra
pela resposta. Pela resposta chamada não de paixão, mas de sintonia.
A sintonia humana da eternidade.
Fui embora. E fugi de mim mesmo em sonhos profundos e secretos.
Achei, por um momento, que a vida não valia a pena.
Mas dos céus, como tinta cremosa, estrelada, desceram as galáxias do
firmamento e ficaram derramadas na linha do horizonte. Abençoando a nossa
esperança. Destruindo a barreira de carros, de concreto, das rosas e dos nojos.
Simples, como a natureza promete a vida. Imensas como o amor promete o que
somos nós.
No amanhã.
(E assim que o homem mais humilde de todos se aproximou do mendigo
e lhe ofereceu a sua atenção, profunda e gratuita, o eco de toda uma civilização
estremeceu e resplandeceu. É que a aurora, então, iluminou a esperança, boba,
piegas – e secretamente austera e brutal – de um adolescente).