Este documento apresenta conceitos-chave relacionados a acesso à terra, território, boa governança e participação. Define acesso à terra não apenas como acesso ao solo, mas também aos recursos e infraestrutura associados. Explica que território se refere tanto a áreas rurais quanto urbanas. Por fim, destaca que boa governança requer participação ativa e inclusiva de todos os grupos, incluindo jovens.
5. VCONTEÚDO
SUMÁRIO EXTECUTIVO.............................................................................................................................................................................................VII
CONCEITOS GERAIS: O QUE ENTENDEMOS POR ACESSO À TERRA, TERRITÓRIO, BOA GOVERNANÇA E PARTICIPAÇÃO?................................01
Acesso à terra................................................................................................................................................................................................................................01
Boa governança..............................................................................................................................................................................................................................03
EM QUE CONDIÇÕES A JUVENTUDE VIVE E ACESSA À TERRA NA CIDADE DE SÃO PAULO?...............................................................................07
O acesso à terra na cidade de São Paulo......................................................................................................................................................................................10
ASPECTOS JURÍDICOS DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE NO DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO......................................................21
Aspectos Constitucionais: formas de participação popular na democracia brasileira.................................................................................................................21
A Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e a Participação Popular.................................................................................................................................25
O Direito à Cidade .........................................................................................................................................................................................................................26
Gestão democrática da cidade......................................................................................................................................................................................................29
Estatuto da Juventude...................................................................................................................................................................................................................33
O direito à participação social e política e as estratégias de inclusão da juventude..................................................................................................................35
O direito à cidade, um direito da juventude..................................................................................................................................................................................37
Incluindo a juventude no desenvolvimento urbano. Sinergias entre o Estatuto da Cidade e o Estatuto da Juventude..............................................................38
Participação da juventude na governança da terra na Cidade de São Paulo...............................................................................................................................39
Considerações sobre a participação formal na cidade de São Paulo...........................................................................................................................................45
Participação informal.....................................................................................................................................................................................................................46
Participação pela ação ..................................................................................................................................................................................................................51
ESTUDOS DE CASO................................................................................................................................................................................................75
Depoimentos de jovens que participaram da aplicação da metodologia.....................................................................................................................................81
CONCLUSÃO............................................................................................................................................................................................................85
1 Quão amigáveis à juventude são os processos / mecanismos de participação estabelecidos para melhorar a governança da cidade?...............................85
2 Quais são as barreiras e oportunidades para promoção da participação dos/as jovens na governança da terra no contexto urbano?..................................87
3 Que ferramentas podem fortalecer o engajamento dos/as jovens em processos de tomada de decisão na cidade de São Paulo? ......................................89
Reflexões finais..............................................................................................................................................................................................................................90
NOTAS.......................................................................................................................................................................................................................91
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................................................................................................................94
CONTEÚDO
7. VIISUMÁRIO EXTECUTIVO
SUMÁRIO EXTECUTIVO
Essa publicação tem o intuito de compartilhar
os resultados do projeto Juventude e
Território – um olhar jovem sobre governança
da cidade. O projeto nasceu como um
dos resultados da parceria entre o Global
Land Tool Network (GLTN), cujo objetivo é
contribuir para a diminuição da pobreza por
meio da reforma agrária, da melhoria da
gestão da terra e da garantia do direito a
ocupação e propriedade para todos e todas,
e a ONU-Habitat, agência da Organização
das Nações Unidas (ONU) responsável
por promover a discussão e o avanço de
questões relacionadas à moradia e ao
desenvolvimento urbano sustentável.
Nos últimos anos, ambas organizações
desenvolveram projetos e materiais
de referências para a compreensão do
acesso à terra sob as perspectivas de
gênero e comunidades de base. Estas
experiências deram origem a uma terceira
linha de pesquisa focada na juventude, uma
outra lacuna identificada a partir de dois
importantes fatores do contexto atual: o
grande número da população jovem mundial
e a urbanização acelerada.
Cerca de um quarto (24,7%) da população
mundial tem entre 15 e 29 anos (U.S. Census
Bureau, 2014), a maior quantidade de jovens
que já existiu1
. Para 2030, a previsão é de
que 60% da população urbana terá menos de
18 anos, a maioria deles vivendo em favelas
e assentamentos informais (ONU-Habitat,
2013). No entanto, pouco se fala de juventude
quando se fala em acesso à terra e, ainda
menos, quando se trata do acesso à terra no
contexto urbano. Qual a relação da juventude
com a terra na cidade? Como a juventude
tem acesso à terra? Como as políticas
públicas municipais a incorporam? Os/as
jovens se preocupam mais com o espaço
público do que com moradia e propriedade?
Essas são algumas das perguntas sobre as
quais o GLTN e a ONU-Habitat vêm refletindo
e os temas sobre os quais tem buscado
desenvolver conteúdo referencial, com o
intuito de fornecer subsídios para a criação
de uma política global, construída a partir de
experiências locais articuladas por jovens.
Dessa maneira, promoveram projetos de
pesquisa em cinco países: Brasil, Iêmen,
Nepal, Quênia e Zimbábue, sendo São Paulo
a cidade escolhida para o projeto piloto no
Brasil. Todos esses países fazem parte das
regiões que atualmente têm mais jovens
em suas populações. É estimado que 85%
8. VIII
da juventude global (15 a 24 anos) vive em países em
desenvolvimento (ONU-Habitat, 2011). Além disso,
as cidades desses países são responsáveis por 90%
do crescimento da população urbana mundial (ONU-
Habitat, 2013).
Cada projeto abordou um aspecto da relação
juventude-terra, e o enfoque de São Paulo foi a
participação da juventude na governança da terra.
Esse tema foi escolhido, pois o GLTN e a ONU-Habitat
entendem que a melhoria da governança da terra é
fundamental para o alcance de uma série de resultados
de desenvolvimento e para a não marginalização
de segmentos populacionais (ONU-Habitat, 2013).
Entendem também que, dada a diferença de percepção
de adultos e jovens sobre o acesso e o direito à terra,
as vozes da juventudes precisam ser ouvidas. Apesar
da juventude estar nas agendas políticas e sociais –ser
considerada como ator essencial para o futuro das
nações e estar no centro dos recentes acontecimentos
de mobilizações e protestos ao redor do mundo todo–,
os/as jovens ainda não são suficientemente envolvidos/
as e/ou legitimados/as nos processos de governança.
Assim, as estratégias utilizadas para a realização do
projeto foram:
• Compreensão dos principais conceitos relacionados
ao tema pesquisado, a partir de referências
acadêmicas e de organismos governamentais e
multilaterais;
• Análise jurídica das leis vigentes relacionadas à
temática para entender o quão responsivas elas
são à juventude, o que se pretende com elas e
quais são as lacunas para sua implementação
(Constituição Federal, Estatuto da Cidade e Estatuto
da Juventude);
• Análise contextual com base em indicadores
oficiais;
• Conversas informais com representantes do poder
público e movimentos sociais para compreensão
dos espaços e formas de participação existentes;
• Questionário online para ampliação de referência
sobre a visão da juventude acerca da temática e
suas formas de participação;
• Estudos de casos junto a jovens da periferia e do
centro da cidade para levantamento de percepções
e práticas sobre o acesso à terra e o participação da
juventude na governança da terra na cidade;
9. IXSUMÁRIO EXTECUTIVO
• Data Mining para mapeamento de mecanismos e
formas de participação da juventude em processos
de governança e soluções para cidades.
Sabemos que este é somente um pequeno retrato da
realidade que traz consigo limitações, no entanto, esse
retrato apresenta importantes informações e ideias
sobre formas de atuação político-sociais. Esperamos
que este processo se estenda e ajude a incentivar a
participação da juventude na governança da cidade
de São Paulo. Neste caminho, poderemos juntos/as
fortalecer as formas de participação e metodologias de
intervenção existentes e encontrar novas. Acreditamos
no poder colaborativo das pessoas e setores para
encontrarmos soluções mais efetivas. Aumentar a
percepção de que vivemos em rede é premissa deste
trabalho, assim como valorizar essa maneira de atuação
e organização –a partir da construção coletiva, por meio
do encontro entre pessoas na cidade e com a utilização
das várias possibilidades da internet.
10. CONCEITOS GERAIS:
O QUE ENTENDEMOS POR
ACESSO À TERRA, TERRITÓRIO,
BOA GOVERNANÇA E
PARTICIPAÇÃO?
11. 01CONCEITOS GERAIS: O QUE ENTENDEMOS POR ACESSO À TERRA, TERRITÓRIO, BOA GOVERNANÇA E PARTICIPAÇÃO?
CONCEITOS GERAIS: O QUE ENTENDEMOS POR ACESSO À
TERRA, TERRITÓRIO, BOA GOVERNANÇA E PARTICIPAÇÃO?
Para se refletir sobre juventude e governança da cidade
é importante entender alguns conceitos que dão base
a esses termos e que são associados a sua prática.
São eles: acesso à terra, território, boa governança e
participação.
Acesso à terra
Tradicionalmente o acesso à terra é ligado ao acesso
ao “solo”, “chão”, ou ao fato de se ter uma propriedade.
Porém, uma nova visão, mundialmente difundida pelo
GLTN e pela ONU-Habitat, tem sido cada vez mais
adotada. Essa visão consiste em pensar o acesso e o
direito à terra integralmente. Ou seja, acesso à terra
não é somente o acesso à terra “em si”, mas também
a seus recursos e infraestrutura, tais como habitação,
alimentação, transporte, lazer e economia.
Consiste, igualmente, em entender que quando
falamos em terra, falamos tanto de áreas rurais quanto
das áreas urbanas e, por isso, dos grandes desafios
que estamos vivendo: mudanças climáticas, desastres
naturais, urbanização acelerada, segurança alimentar,
fontes de energia, pobreza, oportunidades de trabalho,
governança, entre outros. Todos esses desafios estão
fortemente ligados à questão territorial e demandam
soluções para problemas como insegurança do direito
a ocupação e propriedade, uso não sustentável da
terra, expansão urbana desigual, baixa capacidade
institucional para resolução de conflitos etc.
Dessa maneira, as razões de falta de acesso à terra são
complexas e advêm de um conjunto de situações, não
apenas de questões de regularização da terra ou de
custo de posse.
Entre elas, quando se trata do ambiente urbano,
estão o preconceito geracional – uma das
principais dificuldades que afetam a juventude –, as
desigualdades de gênero, as desigualdades raciais, os
padrões de urbanização e distribuição geográfica, as
relações de poder, entre outras.
TERRA E DIREITOS HUMANOS
Já parou pra pensar que para termos nossos direitos
efetivados precisamos necessariamente termos acesso
à terra? Abaixo alguns exemplos.
Direitos econômicos: terra para subsistência, geração
de ativos econômicos, geração de renda, local de
trabalho, acesso à serviços, capacitações etc.
Direitos sociais: terra para abrigo e vida familiar,
recreação, educação, espaços públicos, parques, saúde
etc.
Direitos culturais: terra para eventos comunitários,
práticas religiosas e de culturas tradicionais,
entretenimento, eventos culturais e artísticos etc.
Direitos civis e políticos: terra disponibilizada para
projetos de juventude, para informação, para mídia,
para consultas públicas etc.
12. 02
Território
Para abordar o acesso à terra a partir do referencial das
cidades, é preciso que o tratemos junto ao conceito de
território.
Isso porque por “território” se entende o lugar onde
determinado Estado exerce sua soberania; o espaço
de terra onde a Constituição e as leis daquele Estado
são aplicáveis.2
Ou seja, “é o espaço ao qual se
circunscreve validade como ordem jurídica estatal”
(DALLARI, 2013, p. 87). É neste espaço –no território–
que as cidades organizam os equipamentos, bens e
serviços públicos que são oferecidos para a população.
É também neste espaço que se desenvolvem as
relações sociais, tanto entre indivíduos quanto entre
organizações públicas e privadas.
Por isso, duas dimensões são atribuídas ao território:
sua materialidade e os sentimentos que ele provoca
(HAESBAERT, 2004).
Apesar da primeira dimensão ser a mais amplamente
difundida, entendemos que é preciso dar especial
relevância à segunda, pois é no processo de
apropriação do espaço –o direito de criarmos cidades
que satisfaçam às nossas necessidades diretamente–
que muitos entendem estar o direito à cidade.3
Trata-se
da criação de laços afetivos e significados para com
o espaço e do cuidado com o coletivo. É sob essa
perspectiva também que se dá a definição de terra
/ território para os indígenas, pois, “para os índios,
a terra é um bem coletivo, destinado a produzir a
satisfação das necessidades de todos os membros da
sociedade. Todos têm o direito de utilizar os recursos
do meio ambiente, por meio da caça, pesca coleta e
agricultura. Embora o produto do trabalho possa ser
individual, as obrigações existentes entre os indivíduos
asseguram a todos o usufruto dos recursos” (MUSEU
DO ÍNDIO, 2014).
Youth and Land Responsiveness Criteria
Em seu esforço para promover a inclusão das
demandas da juventude no setor da terra, o GLTN
e a ONU-Habitat desenvolveram uma ferramenta
chamada Youth and Land Responsiveness Criteria –
YLRC (Critérios de Responsividade à Terra e Juventude).
O YLRC mais do que voltado à terra, é voltado para
as pessoas. Trata-se de uma ferramenta para fazer
com que a juventude e outras partes interessadas
no setor da terra dialoguem. Seu objetivo é avaliar
programas e políticas objetivamente para garantir que
as questões da juventude e da terra são abordadas de
forma equitativa, a fim de alcançar a segurança de
ocupação e posse para todos e todas. Essas questões
incluem a definição do papel da juventude no setor de
terra, seu conhecimento sobre o tema, sua participação
na governança e seu acesso à terra. A ferramenta
pode ser usada para avaliar outras ferramentas já
existentes e identificar onde e como elas podem ser
mais sensíveis às necessidades e preocupações da
juventude para terra.
Os diferentes critérios desta ferramenta foram
estabelecidos seguindo as várias reuniões consultivas
realizadas pelo GLTN e pela ONU-Habitat com jovens,
parceiros, profissionais e especialistas. Os critérios
reconhecem o fato de que os/as jovens podem assumir
responsabilidades de adultos mesmo quando são
menores de idade, que vivem uma fase de transição
com realidades complexas e , principalmente, que a
terra não é um tema exclusivo da idade adulta..
13. 03CONCEITOS GERAIS: O QUE ENTENDEMOS POR ACESSO À TERRA, TERRITÓRIO, BOA GOVERNANÇA E PARTICIPAÇÃO?
Dessa maneira, nossa proposta é enxergarmos o
território da cidade como um bem coletivo, onde
a diversidade das pessoas, relações e expressões
precisam ser valorizadas e os direitos de todos e todas
garantidos. Com essa compreensão, passamos a nos
apropriar mais do território, a reivindicar mais nossos
direitos e a participar mais da governança da cidade.
Boa governança
Governança é um conceito que assumiu distintos
significados ao longo do tempo. Segundo especialistas
em administração e desenvolvimento regional,
“Recorrendo às diferentes concepções sobre governança, com base em autores
referenciais, algumas expressões são recorrentes. Sem a preocupação de hierarquização,
destacam-se definições que fazem referência à: (1) uma nova forma de governar e de
formulação de políticas públicas, como um processo de tomada de decisão relativamente
horizontal, que inclui uma pluralidade de atores público, semi-público e privado, diferente
do antigo modelo hierárquico, não mais sustentado na dominação nem na violência
legítima, senão na negociação e cooperação com base em certos princípios submetidos
ao consenso; (2) um processo complexo de tomada de decisão que antecipa e ultrapassa
o governo, como um novo modelo de regulação coletiva, baseado na interação em rede
de atores públicos, associativos, mercantis e comunitários; (3) um conjunto complexo de
instituições e atores, públicos e não públicos, que agem num processo interativo (STOKER,
1998).” (CANÇADO; TAVARES; DALLABRIDA, 2013, p. 328)
No Brasil, o Programa Cidades Sustentáveis define
governança como um processo que “engloba a
forma como o território se organiza politicamente
e a participação da sociedade civil.” (PROGRAMA
CIDADES SUSTENTÁVEIS, 2013).
Quando se trata de governança da terra, o GLTN
articula-se com tais concepções e a coloca como
um conceito que “diz respeito às regras, processos
e estruturas por meio das quais as decisões sobre o
acesso e uso da terra são tomadas, a maneira pela
qual as decisões são implementadas e executadas,
e a maneira com que interesses conflitantes na terra
são geridos.” (ONU-Habitat, 2010, p.14, tradução dos
autores).
Assim, a governança da terra inclui não apenas
governo e instituições previstas na Lei, mas também
instituições e estruturas consuetudinárias4
e agentes
informais, sejam eles comunitários, religiosos,
ou outros, de acordo com o local. Inclui toda a
prática formal e informal que rege o acesso à terra
e as relações de poder. A estrutura de poder de
uma sociedade é, entre outras coisas, refletida na
governança da terra. Ao mesmo tempo, a governança
pode expressar a distribuição de poder na sociedade.
14. 04
Quem se beneficia com o quadro jurídico, institucional
e político atual relacionado à terra? Como esse
quadro interage com autoridades formais e sistemas
informais? Quais são as estruturas de incentivo para
uso da terra? Quais são as restrições? Quem tem qual
influência em como as decisões sobre o uso da terra
são tomadas? Como são aplicadas as decisões? Que
recursos existem para o gerenciamento de demandas?
(ONU-Habitat, 2010). É em razão de reflexões como
essas que torna-se importante pensar como se dá uma
“boa governança”, já que existem muitas maneiras de
se constituir relações políticas, sociais e de poder.
Na visão da ONU, a boa governança, no âmbito dos
governos, “promove a igualdade, a participação,
o pluralismo, a transparência, a responsabilidade
e o Estado de Direito de forma efetiva, eficiente e
duradoura.” (KI-MOON, 2009).
Especialmente em relação à terra, a ONU-Habitat
destaca que quando a governança da terra é eficaz,
o acesso equitativo à terra e a segurança de posse
e ocupação podem contribuir para a melhoria das
condições sociais, econômicas e ambientais. Ela pode
garantir que os benefícios advindos da terra e dos
recursos naturais sejam geridos com responsabilidade
e distribuídos de forma equitativa. A administração da
terra pode ser simplificada e tornada mais acessível e
eficiente (ONU-Habitat, 2010).
Por outro lado, uma governança fraca/deficiente,
seja na administração formal da terra ou nos acordos
de posse consuetudinários, afeta especialmente a
população pobre e as comunidades de base, podendo
deixá-las marginalizadas. Muitas vezes, seus direitos à
terra não são protegidos e, em muitas cidades, vivem
sob o medo constante de despejos, hoje comumente
15. 05CONCEITOS GERAIS: O QUE ENTENDEMOS POR ACESSO À TERRA, TERRITÓRIO, BOA GOVERNANÇA E PARTICIPAÇÃO?
justificados pelo “desenvolvimento”. Assim, a
governança fraca/deficiente também pode significar
que a terra não é utilizada adequadamente para criar
riqueza para o benefício de toda a sociedade ou país
(ONU-Habitat, 2010).
Participação
Apesar das definições de boa governança diferirem
em alguns aspectos, a maioria traz um elemento em
comum: a participação como eixo estruturante da boa
governança.
Participação é um conceito que varia e depende de
contextos históricos, sociais e políticos. Derivações
como participação comunitária, participação popular,
participação política, participação social, participação
cidadã etc., evoluíram em uma rede complexa de
“formas de participação”. Por isso, hoje, vão desde a
conquista e a concretização de direitos, e a efetivação
dos poderes conferidos à população, até a ação
e promoção de consciência social dos cidadãos e
cidadãs.
Assim, a participação faz parte dos campos social
(incluindo o cultural e o econômico), político e jurídico,
e varia em pelo menos três perspectivas: 1) na maneira
como se organiza; 2) na maneira como está relacionada
com o Estado e 3) na maneira como a legislação exige
do governo a sua implementação ou não (AVRITZER,
2008).
Consideramos neste projeto, portanto, a palavra
participação em seu amplo significado: influência
sobre políticas públicas; ação comunitária; ativismo ou
associativismo; movimentos e manifestações; exercício
e definição de direitos; controle social; (re)construção
da democracia, e assim por diante. Isso porque, se não
considerarmos o conjunto, veremos com limitação o
processo participativo.
Por isso, foram observados processos que dividimos
em duas categorias: participação formal (prevista em lei
e/ou promovida pelo governo) e participação informal
(não realizada ou promovida pelo governo).
Nesse sentido, para nós, boa governança da terra no
contexto urbano é um processo de desenvolvimento
acessível, participativo, transparente e mensurável, que
atende às necessidades e desejos da sociedade civil –
incluindo os dos/as jovens.
17. 07EM QUE CONDIÇÕES A JUVENTUDE VIVE E ACESSA À TERRA NA CIDADE DE SÃO PAULO?
São Paulo é uma das cidades onde a sociedade civil
mais se organizou após o início da redemocratização
do Brasil e onde começaram importantes movimentos
sociais nacionais, como o movimento nacional pela
reforma urbana (AVRITZER, 2008). No entanto, a
população paulistana, ainda hoje, sofre com grande
desigualdade social e territorial.
A cidade abriga 11.244.369 pessoas, das quais 25,83%
são jovens, em uma área de 1.521 km² –99,1% urbana
e 0,9% rural (IBGE, 2010). Um enorme espaço com
um índice de desenvolvimento humano municipal
(IDHM) considerado “muito alto” –0,805– (PNUD,
2013) e o maior PIB do país (IBGE, 2015), indicadores
que mascaram contextos bastante problemáticos. A
situação das periferias é muito diferente do cenário
traçado pelos dados econômicos e sociais médios
desses indicadores; são regiões de alta vulnerabilidade
social. Esse cenário é ainda mais preocupante quando
observamos, conforme mostra o mapa ao lado5
, que
os/as jovens estão concentrados/as justamente nessas
regiões.
EM QUE CONDIÇÕES A JUVENTUDE VIVE E ACESSA
À TERRA NA CIDADE DE SÃO PAULO?
PARTICIPAÇÃO DE JOVENS DE 15 A 19 ANOS NA POPULAÇÃO TOTAL
Fonte: Mapa da Vulnerabilidade Social do Município de São Paulo, 2000
18. 08
MAPA DA VULNERABILIDADE SOCIAL SETORES CENSITÁRIOS DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, 2004
Fonte: CEM-CEBRAP, 2004
As periferias paulistanas são regiões que convivem
com diversos tipos de falta de acesso. Por exemplo,
quando se tratam de equipamentos culturais e
esportivos, há 236 equipamentos públicos culturais
nos 96 distritos da cidade, sendo que em 24 desses
(muitos situados em periferias) não há nenhum
equipamento, enquanto 6 outros (todos centrais)
concentram 83 equipamentos –28 em apenas um
único distrito. No caso dos equipamentos esportivos, a
desigualdade aumenta. São 56 distritos sem nenhum
equipamento e um único concentrando 31 dos 459
disponíveis para uso público. A questão da mobilidade
também é um problema. Dados mostram que o tempo
médio gasto em deslocamentos diários na cidade é de
duas horas e, naturalmente, quem demora mais, vive
na periferia (REDE NOSSA SÃO PAULO, 2013).
Ou seja, em São Paulo, os/as jovens são uma parte
importante da população de áreas que enfrentam
grande vulnerabilidade social. Isso é revelado
também por uma pesquisa do Centro de Estudos da
Metrópole (CEM-CEBRAP) da Universidade de São
Paulo em parceria com a Secretaria de Assistência
Social de São Paulo (SAS-PMSP). Esse estudo divide a
população em alguns grupos, construídos em função
de sua precariedade socioeconômica e do percentual
de famílias jovens (ciclo de vida familiar). O mapa
abaixo mostra a variação desse índice no espaço e a
juventude como parte dos grupos mais vulneráveis.
19. 09EM QUE CONDIÇÕES A JUVENTUDE VIVE E ACESSA À TERRA NA CIDADE DE SÃO PAULO?
“O verdadeiro desafio, aquele que deveria ser
enfrentado antes de mais nada, é o de reverter a
lógica perversa da nossa urbanização, que relega
invariavelmente e impiedosamente os mais pobres
para o mais longe possível, no ato mesmo em que
o espaço urbano se produz. (...) Passados doze anos
da aprovação do Estatuto da Cidade, nem São Paulo
nem nenhum município brasileiro o aplicou de forma
sistêmica, integrada e completa.”
João Sette Whitaker Ferreira, 46 anos, arquiteto,
urbanista, economista, professor e membro do
Conselho da Cidade6
Especificamente em relação à questão habitacional,
a cidade tem 10,8% de seu domicílios (386.188) em
favelas e vive um contexto de especulação imobiliária e
déficit habitacional (Secretaria Municipal de Habitação,
2011). A valorização imobiliária em São Paulo foi de
197,4% entre janeiro de 2008 e janeiro de 2014 para
compra e de 95,9%, no mesmo período para aluguel
(Índice Fipe/Zap, 2014). Enquanto isso, entre janeiro de
2008 a dezembro de 2013 a inflação medida pelo IPCA
foi de 38,9% (Índice Fipe/Zap, 2014), o que mostra o
quão maior é a valorização dos imóveis em relação à
inflação.
Por consequência, tais dados se refletem no nível
de satisfação da população com a cidade. O IRBEM
(Indicadores de Referência de Bem-Estar no Município)
revela insatisfação em relação à estética da cidade,
desigualdade social, realidade da juventude, valores
sociais, habitação e transparência e participação.
Estética da cidade – média 5,0
Aparência da cidade;
Aparência de seu bairro;
Conservação dos monumentos históricos;
Conservação dos espaços públicos.
Desigualdade social – media 3,8
Igualdade no acesso à educação;
Igualdade no acesso à oportunidade de trabalho e emprego;
Igualdade no acesso ao serviço de saúde;
Igualdade no acesso à moradia;
Igualdade no acesso à justiça;
Distribuição de renda.
Juventude – média 4,8
Acesso ao ensino técnico profissionalizante e universitário;
Oportunidade do primeiro emprego aos/às jovens;
O grau de acesso a informações para os/as jovens na prevenção ao uso de
drogas;
Programas de prevenção da gravidez na adolescência;
O quanto as escolas são atrativas para os/as jovens;
Espaços culturais e centros de juventude nos bairros;
Tratamento dos policiais aos/às jovens.
Valores sociais – média 4,5
Solidariedade: espírito de grupo e respeito ao outro e à vida entre as
pessoas na cidade;
Cultura de paz e recusa à violência entre as pessoas na cidade;
Cidadania: participação da população na vida da cidade, exercendo direitos
e deveres;
Responsabilidades compartilhadas, consciência do coletivo entre as pessoas
na cidade;
Comportamento ético: conduta humana honesta e benéfica entre as pessoas
na cidade.
Abaixo o detalhamento das categorias pesquisadas e
suas respectivas valorações médias, determinadas a
partir de uma escala de 0 a 10 (IRBEM, 2013).
20. 10
Habitação – média 4,5
Qualidade de sua moradia;
Oferta e qualidade da coleta de esgoto em sua casa;
Quantidade de estações de metrô em seu bairro;
Políticas que permitem a aquisição da casa própria;
Políticas de reurbanização das favelas;
Oferta de planos habitacionais para todas as faixas salariais;
Soluções criadas para moradias em áreas de risco.
Transparência e participação – média 3,5
Obrigatoriedade do voto;
Espaços de participação política;
Seu grau de conhecimento dos meios de comunicação populares;
Acesso a informações úteis por telefone e internet;
O acesso as informações no portal da Prefeitura na internet;
Forma de participação na escolha dos subprefeitos;
Participação popular em conselhos das subprefeituras;
Acompanhamento das ações dos políticos eleitos;
Transparência dos gastos e investimentos públicos;
Punição à corrupção;
Honestidade dos governantes.
O acesso à terra na cidade de São Paulo
De acordo com as conversas realizadas para o projeto
junto a representantes do poder público, movimentos
sociais e jovens de São Paulo, quando se fala em
acesso à terra, a percepção mais recorrente é associá-
lo ao acesso à terra rural ou, quando se trata do
ambiente urbano, à moradia e propriedade.
A segunda percepção, também fortemente presente,
é o acesso à terra como acesso ao espaço público e,
somente quando se avança a discussão, como o direito
à cidade.
Com isso, pode-se perceber que a visão integral para o
acesso à terra falada anteriormente ainda não é a que
prevalece.
Todas as percepções mencionadas, moradia e
propriedade, espaço público e direito à cidade, estão
ligadas ao próprio processo de urbanização da cidade.
Representantes de movimentos sociais colocam que
a questão da moradia é central, pois ela afeta outros
serviços como educação, trabalho e aquisição de bens
de consumo. Sem moradia “há falta de endereço”
para acessar outros serviços. Colocam ainda que a
aquisição da moradia constitui um valor simbólico de
dignidade e, na mente de muitas famílias sem moradia,
“pré-requisito” para outros direitos.
Do lado do governo, o tema também é bastante
presente em termos de políticas e desafios. A questão
habitacional é centralizada na Secretaria Municipal
de Habitação (SMH) porém, por entenderem a
importância da agenda e a demanda existente por
parte da população, outras secretarias se articulam e
“Tem muito estranhamento da gestão pública
municipal em torno desse tema. Acesso à terra é muito
vinculado à luta agrária.”
William Nozaki, 32 anos, coordenador de promoção
do direito à cidade, Secretaria Municipal de Direitos
Humanos e Cidadania
21. 11EM QUE CONDIÇÕES A JUVENTUDE VIVE E ACESSA À TERRA NA CIDADE DE SÃO PAULO?
“Quem não tem casa acha que não tem mais nenhum
outro direito. A moradia é ‘poder’.”
Jô, coordenadora do programa Minha Casa Minha Vida
da Associação dos trabalhadores sem terra da zona
oeste e noroeste de São Paulo.
“Para o Movimento de População de Rua, dignidade é
a ‘chave da casa na mão’. Mesmo que não consigam
lidar com tudo o que implica ter uma moradia, o
imaginário é que a casa é ‘seu lugar no mundo’.”
Andréa Maria Ferreira, 44 anos, coordenadora adjunta
da Coordenação de Políticas para a População em
Situação de Rua da Secretaria Municipal de Direitos
Humanos e Cidadania.
incorporam políticas habitacionais para contribuírem
com o alcance de objetivos específicos, como,
por exemplo, o empoderamento de mulheres e a
igualdade racial. No entanto, a SMH ressalta que a
já mencionada alta demanda por terra é o grande
desafio para a implementação de políticas públicas
habitacionais. Para a aquisição de terras para projetos
de habitação, existe não só a disputa com o setor
privado, mas também a necessidade de articulação
com os interesses de outras secretarias, que
demandam terra para seus próprios serviços. Além
disso, muitas das terras analisadas são descartadas por
problemas de matrícula, contaminação, entre outros
problemas, e diversas outras, já ocupadas, precisam de
regularização.
A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano
(SMDU) acrescenta, ainda, mais alguns fatores que
compõe o desafio: o alto custo de desapropriação,
dificuldades operacionais com a estrutura burocrática
da prefeitura, a necessidade de mão de obra técnica
para avaliação nem sempre disponível e a incerteza em
relação ao processo, pois não é possível prever o custo
final da propriedade/imóvel, cujo valor é contestado
pelo proprietário e aferido via determinação judicial.
Já a fala dos movimentos de moradia, ressalta
principalmente a especulação imobiliária como um
dos principais problemas para o acesso à terra em São
Paulo. Por causa da intensa valorização dos terrenos e
dos imóveis, muitas famílias acabam vendendo suas
casas e indo cada vez mais para a periferia da cidade.
Outras, não conseguem comprar ou manter suas
casas nos bairros em que vivem ou que desejam viver.
Colocam, ainda, que isso impacta inclusive políticas
públicas já existentes.
22. 12
“Por que a terra pode ser privada se o ar e a água não
são? Não temos esse questionamento.”
Maurício Piragino, 50 anos, coordenador do Grupo de
Trabalho de democracia participativa da Rede Nossa
São Paulo e diretor da Escola de Governo São Paulo
“Quando terras são desapropriadas para construir
hospitais, escolas etc. ninguém contesta, quando é pra
habitação a pressão é enorme. A moradia encontra
muita resistência porque não é vista como um direito.”
Miriam Hermogenes, 40 anos, coordenadora de
relação com movimentos sociais, Secretaria Municipal
de Relações Governamentais
“Há uma cultura muito ruim de que habitação é
somente moradia, principalmente apartamento,
enquanto a habitação precisa da moradia e do resto da
cidade, calçada, luz, esgoto, área de lazer etc.”
Adele Lamm, 38 anos, assessora técnica da CDHU
O Minha Casa Minha Vida, principal programa
habitacional do governo federal brasileiro, por vezes
não consegue ser implementado na cidade de São
Paulo justamente por causa do custo da terra, pois os
preços dos terrenos tornam proibitivos a construção
das unidades habitacionais de acordo com teto de
preço estabelecido pelo programa.
23. 13EM QUE CONDIÇÕES A JUVENTUDE VIVE E ACESSA À TERRA NA CIDADE DE SÃO PAULO?
“O acesso a terra é tão difícil que é quase o sonho de
uma vida e não de uma faixa etária. Hoje em dia é
preciso dinheiro para conseguir moradia.”
Gustavo Vidigal, 40 anos, chefe de Gabinete da
Secretaria Municipal de Relações Internacionais e
Federativas
“É praticamente impossível uma pessoa solteira
conseguir entrar em um programa de habitação social.
Começamos a luta pela inclusão de “solteiros” no
programa Minha Casa Minha Vida, inicialmente pela
vulnerabilidade do segmento LGBT, o que acabou se
tornando um benefício para jovens, mas isso tá longe
de ser o suficiente.”
Jô, coordenadora do programa Minha Casa Minha Vida
da Associação dos trabalhadores sem terra da zona
oeste e noroeste de São Paulo
“Segurança habitacional não é necessariamente ter
propriedade, mas no Brasil eles estão vinculados.
Locação social, aluguel subsidiado, há outras soluções
nas quais é possível pensar.”
Tomás Wissembach, 33 anos, coordenador da
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano
Diante disso, dois caminhos são apontados como
diretrizes essenciais para melhorar o quadro
habitacional da cidade:
1. aumentar infraestrutura e oferta de empregos nas
periferias;
2. aumentar a densidade demográfica do centro
expandido, ou seja, nos locais onde já há
infraestrutura. E, com isso, buscar o equilíbrio de
ocupação e a contenção da desmedida valorização
das áreas.
Por fim, os movimentos de moradia destacam uma
outra dificuldade para a criação e implementação
de políticas habitacionais, que é o fato da habitação
não ser totalmente entendida como um direito pela
sociedade. A habitação, atualmente, é entendida como
bem de consumo; “Eu financio, eu compro”. Como
essa é a ideia corrente e como a maioria das pessoas
espera acessar suas moradias, tais políticas encontram
muitas barreiras, confrontando-se com opiniões de que
políticas de outros serviços como saúde e educação
são prioritárias.
Em relação à juventude, ambos governo e movimentos
de moradia colocam que moradia é majoritariamente
uma questão de “adulto”, dos “pais”, percepção
também afirmada pelo recente relatório da ONU-
Habitat, What Land Means to Youth [O que a terra
significa para a juventude] (ONU-Habitat, 2014).
24. 14
Alguns fatores podem ser atribuídos a isso. Apesar da
decisão sobre a moradia - aquisição, aluguel ou imóvel
familiar - ser uma decisão individual, muitas vezes ela
é feita em consulta com a família ou, em alguns casos,
até mesmo com a comunidade.
Além disso, esta escolha muda ao longo do tempo,
dependendo de fatores como emprego, casamento
ou coabitação, crianças, entre outros (ONU-Habitat,
2014). Por sua fase de vida, a maior parte dos/as jovens
não tem condições financeiras para comprar uma
propriedade, porém o acesso a uma propriedade não
se dá apenas baseado na condição financeira.
Fatores sociais também influenciam a disponibilidade
e possibilidade de moradia para jovens, como,
por exemplo, a influência do preconceito, seja ele
geracional, racial, de gênero, entre outros. Fianças de
aluguel para jovens muitas vezes são mais altas do
que para adultos. Proprietários dão preferência para
pessoas mais velhas e/ou com filhos, associando a
juventude a desordem, falta de confiança e assim
por diante (ONU-Habitat, 2014). Ao mesmo tempo,
é difícil o acesso à crédito para jovens e não há foco
na juventude nas políticas habitacionais. A SMH, por
exemplo, se posiciona a partir do objetivo de atender
toda a demanda municipal, porém, possui uma lista
de grupos prioritários os quais são: famílias, mulheres
chefe de família, idosos, pessoas com deficiência e
população em situação de rua.
Outro fator importante política habitacional no Brasil
é pensada sob o ponto de vista de renda e não de
faixa etária, enquanto a juventude é um dos públicos
com mais dificuldade de acesso à moradia, como
mostram os dados anteriormente apresentados.
Para a coordenadora de Estudos Setoriais Urbanos
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
Maria Piedade Morais, “é preciso diversificar a política
habitacional do país que sempre esteve calcada na
aquisição da casa própria. No fundo as pessoas não
precisam comprar uma casa. Se você é um jovem, por
exemplo, e não sabe onde vai trabalhar no futuro, não
precisa, necessariamente, comprar uma casa, tem é
que ter onde morar.7
” (MORAES, 2008)
25. 15EM QUE CONDIÇÕES A JUVENTUDE VIVE E ACESSA À TERRA NA CIDADE DE SÃO PAULO?
De acordo com o IPEA, os fatores que levam os/as jovens a morar ou não na casa dos pais e/ou mães são:
Entre os dependentes
• Local de residência: residir em uma região metropolitana ou município de grande porte aumenta a
probabilidade de dependência – reflexo de um mercado habitacional mais caro;
• Tipo de moradia: o/a jovem tende a permanecer mais tempo morando com os pais quando seus pais moram
em domicílios próprios regulares;
• Educação: quanto mais elevada a educação do/a jovem, maior a probabilidade de ele/a continuar como
dependente.
Entre os independentes
• Situação social: os/as jovens cadados/as e com emprego apresentam maior probabilidade de formar um novo
domicílio.
• Gênero: as mulheres são mais propensas a saírem da casa dos pais, muitas vezes visando constituir um
possível relacionamento.
• Aluguel: os aluguéis formais são a principal escolha dos/as jovens independentes.
• Idade: à medida que envelhecem, os/as jovens são mais propensos à independência. No entanto, a partir
de certa idade ocorre justamente o oposto – possivelmente uma situação de “conformismo”, de falta de
alternativas ou de assistência dos/as jovens aos pais idosos. (IPEA, 2012)8
Tais perspectivas vêm demonstrar que a percepção de
que moradia não é um tema sobre o qual o/a jovem
pensa é incorreta. A diferença de foco se dá em razão
de sua fase de vida, a qual faz com que a juventude
se volte a outras prioridades, como estudo, trabalho e
lazer.
E é o lazer, vinculado ao espaço público, que surge
quando se amplia a discussão sobre o acesso à terra e
juventude.
O acesso ao espaço público aparece pelo significado
sociocultural que os/as jovens têm com a terra. A
relação da juventude com a terra está ligada com
sua busca por identidade, comunidade e expressão
cultural. (ONU-Habitat, 2014). Nesse sentido, ocupar o
espaço público é compreendido como essencial para a
formação da identidade e expressão da juventude.
26. 16
Tanto governo municipal quanto movimentos
da sociedade civil entendem que hoje há um
esvaziamento do sentido “público” da convivência
e a expansão da cultura do medo e que, por isso,
é preciso trabalhar a reabertura e a ressignificação
do espaço público, bem como a recuperação do
sentimento de pertencimento à cidade. Isso se dá
principalmente, pela insuficiência e desigualdade de
espaços e equipamentos públicos, crescente expansão
de espaços privados de convivência - shoppings,
condomínios fechados etc. – burocratização das formas
de acesso ao espaço público existentes e violência.
No caso dos espaços privados há ainda um agravante:
o preconceito e a discriminação. O/A jovem da
periferia frequentemente se depara com “fronteiras”
implicitamente estabelecidas em locais que, em razão
do crescimento econômico, cada vez menos têm
“exclusividade” de ocupação pelas classes com maior
poder aquisitivo –como shoppings, aeroportos etc.
Por outro lado, segundo Marco Antônio Silva, assessor
da Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade
Racial, com o crescimentos da cidade, a deficiência
do sistema de transporte público e o preconceito,
os/as jovens da periferia começaram a buscar novas
maneiras de se divertir, o que fez com que eles/
as criassem uma relação mais direta com os locais
onde vivem. Com isso, nasceram movimentos como
o “100% Jardim Irene”, “Guaianazes na veia”, “Love
Cidade Tiradentes” e outros.
Em relação à violência, segundo o coordenador
municipal de juventude, Gabriel Medina, a restrição se
agrava pelas diversas formas de controle, repressão
e criminalização da juventude, período da vida
muito controlado, observado e tutelado. O controle
exacerbado, e muitas vezes militarizado, baseado
na percepção “jovem problema” coloca limites para
o acesso dos/as jovens aos espaços públicos, à sua
participação e à sua cidadania.
No âmbito das políticas públicas, a atual gestão
municipal declara colocar o acesso ao espaço público
como uma de suas temáticas centrais e diz basear-
se, principalmente, na requalificação dos espaços da
periferia e na promoção do direito à cidade.
“Shopping não é pra preto e pobre. Quando o jovem
corre atrás de outros espaços para lazer etc., pois na
periferia há grande limitações, ele se depara com essa
realidade em que a sociedade coloca benefícios pra
uma parcela pequena da população, percebendo que de
fato ele não tem possibilidade de transitar em diversos
espaços.”
Marco Antônio Silva, 41 anos, assessor da Secretaria
Municipal de Promoção da Igualdade Racial
“A gente tem falta de lazer na periferia. No meio desses
rolezinhos eu ouvi um monte de depoimentos de
pessoas da favela, postando no Facebook: só porque vai
com determinada roupa no shopping ou porque está
em muita gente, o segurança não deixa entrar. Teve
protesto outro dia num shopping por causa disso. Eles
não deixam entrar por causa da roupa, aparência, cor
da pele, mas se vão 20 pessoas arrumadinhas num
shopping eles não vão barrar.”
Jovem participante do Estudo de Caso Campo Limpo
27. 17EM QUE CONDIÇÕES A JUVENTUDE VIVE E ACESSA À TERRA NA CIDADE DE SÃO PAULO?
Finalmente, o direito, e consequentemente o acesso,
à cidade, é a abordagem que vem crescendo dentro
do atual governo e nos movimentos da sociedade
civil. Em razão disso, no ano de 2013, foi criada a
coordenadoria de direito à cidade dentro da Secretaria
Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. O intuito
da coordenadoria é dar respostas territoriais a questões
específicas. Por isso, busca-se a dimensão territorial
das diversas áreas – juventude, trabalho, drogas,
migrantes, etc.
Vale ressaltar, que a coordenadoria nasceu a partir
do processo de construção da política de juventude
municipal, estruturada em torno de três elementos:
prevenção à mortalidade da juventude negra,
qualificação do trabalho e educação e conexão da
cultura e dos modos de uso da cidade. Foi a partir da
reflexão sobre a articulação desses elementos que se
deu a percepção de que para o alcance dos objetivos
desejados, era preciso pensar a cidade como um todo.
“O jovem tem que ter o direito de se manifestar. Muitas
vezes estamos fazendo arte e não é pichação na
cidade. E os policiais já chegam com repressão, sem
diálogo, com violência”.
Depoimento coletado no evento Diálogos SP sobre
ocupação do espaço público.
“Entendemos terra como território e nossa intenção é
instalar o software humano no hardware urbano.”
William Nozaki, 32 anos, coordenador de promoção
do direito à cidade, Secretaria Municipal de Direitos
Humanos e Cidadania
Exemplos de políticas de acesso à cidade que
tem grande impacto na juventude
• Plano Juventude Viva
• Programa de Valorização de Iniciativas Culturais –
VAI
• Wifi nas praças
• Rede de ônibus 24 horas e Parque Ibirapuera 24
horas
28. 18
Acesso à terra e migração
Um tema pouco falado quando se trata de
desenvolvimento urbano é migração. No entanto, a
base da migração está justamente no acesso à terra.
“Quanto maior for a concentração de terra, maior a
migração dessa região. A terra e a produtividade da
terra, a capacidade de desenvolver riqueza, cultura,
soberania alimentar etc. está na base. O sonho do
migrante, porém, não é abordado em São Paulo.
Tudo se concentra mais no problema da moradia e
nas questões trabalhistas, não entra na discussão o
território. Além disso, é possível dizer que em nenhum
momento o/a migrante passa por um questionamento
se ele e cidadão/ã ou não. E esse é um assunto que
envolve diretamente a etapa da juventude. No mundo
a maioria dos/as migrantes é força de trabalho, então,
mais de 70% tem entre 17 e 32 anos”.
Paulo Illes, 39 anos, coordenador de políticas para
migrantes, Secretaria Municipal de Direitos Humanos
e Cidadania
Por parte da sociedade civil também é possível notar
também a ampliação da percepção do direito à cidade.
Além do Movimento Nacional de Reforma Urbana
(MNRU) e do Fórum Nacional da Reforma Urbana
(FNRU), principais movimentos da temática, cada vez
mais movimentos com pautas específicas justificam e
articulam suas demandas colocando-as como parte da
promoção do acesso à cidade.
É a partir de todas essas percepções, sobre como
tratar o acesso à terra e ao território, que abre-se o
caminho para a discussão sobre participação.
29. 19EM QUE CONDIÇÕES A JUVENTUDE VIVE E ACESSA À TERRA NA CIDADE DE SÃO PAULO?
31. 21ASPECTOS JURÍDICOS DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE NO DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO
Para avançar o debate acerca da participação da
juventude na governança da terra é necessário que
se atente às possibilidades jurídicas propostas pelo
sistema normativo brasileiro, uma vez que vivemos
em um Estado de Direito onde normas são um dos
elementos estruturadores das relações humanas.
Neste sentido, analisou-se essas possibilidades a
partir de três Leis principais. Primeiro, a Constituição
Federal, Lei Máxima do País, com foco nos aspectos
de participação popular e de desenvolvimento urbano.
Em segundo lugar, o Estatuto da Cidade, com ênfase
nas regulações referentes à Gestão Democrática
da Cidade, que legitima a participação popular para
criação do espaço urbano e, por fim, o recentemente
estabelecido Estatuto da Juventude, com uma leitura
dos mecanismos de participação propostos e das
referências às questões majoritariamente de cunho
urbano.
Desta maneira, fez-se uma aproximação entre
os aspectos jurídicos da participação popular,
especialmente de jovens, e a governança urbana,
objetivando encontrar sinergias e potencialidades.
Aspectos Constitucionais: formas de
participação popular na democracia
brasileira
Depois de um período ditatorial de vinte anos, em 1988
foi promulgada no Brasil uma nova Constituição Federal
(CF). Estabelecendo que o Brasil é uma República
Federativa constituída em um Estado Democrático de
Direito, já no preâmbulo é possível notar a inspiração
dos legisladores quando se expressaram no sentido
de que a presente Constituição visa “assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias”.
Tal inspiração resultou em um extenso texto
constitucional, abrangendo não só princípios, mas
verdadeiras regras para uma ampla gama de assuntos,
inclusive de cunho econômico, social e ambiental.
Estas características transformaram a Constituição
ASPECTOS JURÍDICOS DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE NO
DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO
32. 22
Brasileira em uma lei objeto de interesse e pesquisa
ao redor do mundo. Já em seu artigo 1º, parágrafo
único, a chamada “Constituição Cidadã” definiu que
“todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição”.
Foi assim estabelecido um modelo de democracia
participativa, que é amplo e integra múltiplos
mecanismos de participação para garantir o Estado
Democrático. Esse modelo de democracia participativa
inclui outros dois modelos de democracia, isto é,
a “democracia representativa” (ou “democracia
indireta”), que possibilita a eleição de representantes
políticos que agem como procuradores da população,
a eles cabendo a tomada de decisões e formulação
de políticas; e a “democracia semidireta”, que além
dos mecanismos da democracia representativa
inclui instrumentos como o referendo, o plebiscito,
a iniciativa popular e a ação popular. A democracia
participativa, por sua vez, como hoje se entende,
além de combinar os modelos indireto e semidireto,
busca cada vez mais aproximar o cidadão do processo
de elaboração e fiscalização de leis e políticas, tendo
como principal manifestação os debates, audiências e
consultas públicas.
Dessa maneira, as características principais
dos mecanismos de participação previstos
constitucionalmente são:
A eleição de representantes políticos se trata,
conforme mencionado, da expressão principal da
democracia indireta e se vincula diretamente à
cidadania, entendida como a faculdade do/a cidadão/ã
de gozar de seus direitos políticos, que são o conjunto
de direitos que regulam a forma de intervenção popular
no governo. É a manifestação principal da soberania
popular, que nos termos do artigo 14 da Constituição
Federal, “será exercida pelo sufrágio universal e pelo
voto direto e secreto, com valor igual para todos/as
e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e
iniciativa popular”.
No caso da eleição de representantes, o direito político
em questão é exatamente o direito de sufrágio, que
consiste na capacidade de eleger e ser eleito. É,
portanto, um direito que envolve a capacidade eleitoral
ativa (alistabilidade), ou seja, o direito de votar, e a
capacidade eleitoral passiva (elegibilidade), que é o
direito de ser votado.
Eleição de representantes políticos
33. 23ASPECTOS JURÍDICOS DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE NO DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO
A eleição de representantes se dá seguindo a estrutura federativa do Estado Brasileiro, ou seja, em nível
Municipal, Estadual e Federal (União), e nos âmbitos do Poder Legislativo e do Poder Executivo. Isto significa que
os cargos elegíveis são:
Legislativo Executivo
Município Vereador
Prefeito
Vice-Prefeito
Estado Deputado Estadual
Governador
Vice-Governador
União
Deputado Federal
Senador
Presidente
Vice-Presidente
Por fim, tanto para a alistabilidade quanto para a elegibilidade há requisitos mínimos a serem cumpridos, incluindo
idades mínimas.
Direito de votar
O direito de votar é ao mesmo tempo um dever. Conforme o artigo 14, §1°, I, o voto
é obrigatório aos brasileiros maiores de 18 anos (correspondendo à maioridade civil),
enquanto que para os brasileiros maiores de 16 anos e menores de 18 anos, para os
maiores de 70 anos e para os analfabetos, o voto é facultativo (art. 14, §1º, II).
Direito de ser votado
As condições de elegibilidade do cidadão brasileiro
estão elencadas no art. 14, §3º: ter nacionalidade
brasileira; estar em pleno exercício dos direitos
políticos; alistamento eleitoral; domicílio eleitoral na
circunscrição; filiação partidária; e idade mínima variável
de acordo com o cargo concorrido. São elas:
• 35 anos: Presidente/a e Vice-Presidente da
República; Senador.
• 30 anos: Governador/a e Vice-Governador do Estado
e do Distrito Federal.
• 21 anos: Prefeito/a e Vice-Prefeito Municipal;
Deputado Federal, Deputado Estadual e Distrital.
• 18 anos: Vereador/a.
O plebiscito é uma consulta ao povo sobre
determinado tema e, dependendo da resposta da
coletividade, será adotada ou não alguma medida
legislativa ou administrativa. É o método que foi
utilizado em 1993 (por determinação constitucional)
Plebiscito
34. 24
Referendo popular
Iniciativa popular
Debates, audiências e consultas públicas
para definir se no período pós-ditatorial o regime
político adotado seria a Monarquia ou a República,
e consequentemente o Parlamentarismo ou o
Presidencialismo. Como sabemos, venceram a
República e o Presidencialismo.
Diferentemente do plebiscito, que é uma consulta
prévia, o referendo popular, como o nome indica, é
uma consulta pública para referendar, ratificando ou
não, uma norma já aprovada; ou seja, é posterior ao
ato. Foi o instrumento utilizado para o Estatuto do
Desarmamento.
A iniciativa popular está prevista no art. 61, §2º, e
trata da possibilidade que o povo tem de encaminhar
um projeto de lei ordinária ou complementar para ser
apreciado pelo poder Legislativo. No caso de lei de
cunho federal, o projeto de lei pode ser apresentado
à Câmara dos Deputados após ter sido subscrito por,
no mínimo, um por cento do eleitorado nacional e
distribuído por pelo menos cinco Estados, com não
menos de três décimos por cento dos eleitores de
cada um deles.
Também podem ser propostos projetos de lei em
âmbito municipal, conforme o artigo 29, XIII. Neste
caso, os projetos devem ser de interesse específico
do Município, da cidade ou de bairros, e devem
ser subscritos por pelo menos cinco por cento do
eleitorado municipal.
A ação popular está prevista no artigo 5º, LXXIII, e
regulamentada pela Lei nº 4.717/65. A ação popular é
uma ação processual em defesa da coletividade que
pode ser proposta no Poder Judiciário por qualquer
cidadão/ã que esteja em dia com seus direitos
políticos. Serve para anular o ato lesivo ao patrimônio
público ou de entidade de que o Estado participe, à
moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico e cultural.
Os debates, audiências e consultas públicas são os
meios previstos constitucionalmente que mais se
aproximam da visão de democracia participativa que
hoje se procura. Tais instrumentos servem para incluir
a população diretamente na tomada de decisão,
instruindo e ouvindo suas opiniões sobre casos
concretos.
A partir do apresentado, percebe-se que um aspecto
fundamental da democracia é se caracterizar como
um processo, uma constante construção envolvendo
diferentes aspirações, desejos e reivindicações.
Assim, é natural que a democracia participativa busque
diferentes métodos para garantir a participação da
população, em nível individual e também conforme
grupos de interesse nas diversas políticas –que, nesta
ocasião, se traduz pela busca da participação de jovens
no desenvolvimento urbano.
Ação popular
35. 25ASPECTOS JURÍDICOS DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE NO DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO
ESTATUTO DA CIDADE
A Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano e
a Participação Popular
A Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano se
baseia em duas leis principais: a
Constituição Federal e o Estatuto
da Cidade.
A seguir, serão apresentados seus
aspectos fundamentais visando à
compreensão introdutória do tema
e considerando principalmente
a participação popular enquanto
dimensão da governança urbana.
Bases da Política de Desenvolvimento Urbano:
a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade
Como destacado anteriormente,
a Constituição Federal de 1988 é
bastante abrangente, tocando em
diversos pontos que refletiam as
necessidades e ambições públicas
em um período pós-ditatorial.
Nesse sentido, foi proposta, por
iniciativa popular (SAULE, 2007), a
inclusão das cidades em seu texto,
o que resultou em um capítulo
dedicado à Política Urbana, nos
artigos 182 e 183. Assim, esta foi
a primeira Constituição brasileira
a incluir diretrizes de tal cunho “e
talvez seja a única do mundo a
tratar diretamente [desta]” (PINTO,
2010, p. 117).
Essa previsão constitucional
reflete as preocupações com os
problemas urbanos (habitação,
transporte e saneamento) que
ganharam importância a partir
da década de 1940, quando os
núcleos urbanos passaram a ter um
crescimento progressivamente alto
no Brasil, visto que, inicialmente,
“a questão do crescimento urbano
não era vista como problemática,
e sim um salutar reflexo do
desenvolvimento do país9
”
(JORGE, 2009, p. 749). Tão intensa
foi a urbanização do Brasil que, já
nos anos 2000, cerca de 80% da
população vivia em cidades.
No âmbito constitucional, o
artigo 182 define que as políticas
de desenvolvimento urbano
devem ser elaboradas pelos
municípios e têm por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade
e garantir o bem-estar de seus
habitantes. Conforme o previsto
na Constituição, a política de
desenvolvimento urbano pendula
entre dois elementos essenciais:
a propriedade e o plano diretor,
em escalas micro e macro,
respectivamente. Assim, o plano
diretor ficou estabelecido como o
principal instrumento para a política
urbana brasileira, sendo obrigatório
para cidades com mais de 20
mil habitantes. Vale dizer, que os
planos diretores são instrumentos
que visam garantir os interesses
da coletividade por meio,
prioritariamente, da ordenação do
espaço físico-territorial da cidade.
Na outra ponta do desenvolvimento
urbano, na escala micro, encontra-
se o direito fundamental à
propriedade, definido no artigo 5º
caput, e inciso XXII, da Constituição
36. 26
Federal, que tratam das garantias e direitos individuais.
Sobre ele, cabem duas observações. A primeira é que
o direito fundamental à propriedade significa que é
possível aos cidadãos e cidadãs ser proprietários/as;
isto é, a propriedade é protegida como bem particular:
é possível adquirir e administrá-la livremente, e é
essa possibilidade que a Constituição protege como
fundamental. Já a segunda ressalva refere-se à
extensão de tal direito. Historicamente a propriedade
foi associada à exploração individual de determinado
espaço. Em sua origem latina, dizia-se que o
proprietário de um terreno era proprietário dele “até o
céu e até o inferno”, e dele se utilizava como preferisse.
Imperava a vontade do indivíduo.
Com o crescente desenvolvimento das cidades, o
coletivo passou a ganhar mais destaque e, da mesma
forma, a compreensão de que os atos individuais de
decisão sobre a propriedade são, em certos limites
(de construção e uso, por exemplo), corresponsáveis
pelo bem de todos/as10
. A esses limites dados ao
exercício do direito de propriedade tendo em vista o
interesse coletivo, dá-se o nome de função social. É a
função social da propriedade, prevista tanto no artigo
5º, XXIII, quanto no artigo 182, que faz a harmonização
entre o interesse público e privado na política de
desenvolvimento urbano brasileiro. Tanto é assim
que, objetivamente, o artigo 182, §2º, prevê que “a
propriedade urbana cumpre sua função social quando
atende às exigências fundamentais de ordenação da
cidade expressas no plano diretor”.
Para regular o previsto pela Constituição Federal, no
ano de 2001 foi aprovada a Lei nº 10.257, denominada
de “Estatuto da Cidade”,11
que institui em nível federal
a política de desenvolvimento urbano. O Estatuto da
Cidade estipula em seu artigo 2º que a política urbana
tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e da propriedade urbana,
e estabelece objetivos, diretrizes e instrumentos12
a serem aplicados em nível municipal. No entanto,
mais do que uma lei, o Estatuto da Cidade é, nos
termos de Maricato (2010), uma conquista social cujo
desenrolar se estendeu durante décadas. Sua história
é, portanto, exemplo de como setores de diversos
extratos sociais (movimentos populares, entidades
profissionais, sindicais e acadêmicas, pesquisadores,
ONGs, parlamentares e prefeitos progressistas)
podem persistir muitos anos na defesa de uma ideia
e alcançá-la, mesmo num contexto adverso. Ela trata
de reunir, por meio de um enfoque holístico, em um
mesmo texto, diversos aspectos relativos ao governo
democrático da cidade, à justiça urbana e ao equilíbrio
ambiental. Ela traz à tona a questão urbana e a insere
na agenda política nacional num país, até pouco tempo,
marcado pela cultura rural.
Desta maneira, é possível dizer que o Estatuto da
Cidade busca a efetivação do “Direito à Cidade”,
noção política e cultural que vem ganhando espaço
nas discussões nacionais e internacionais sobre os
desafios de um mundo urbano, e em organismos
internacionais como a ONU-HABITAT.
O Direito à Cidade
O Direito à Cidade é um conceito recente, que se
especialmente tornou conhecido pelo discurso do
geógrafo David Harvey, e que internacionalmente vem
sendo construído por meio de diferentes fontes, das
quais se destacam quatro documentos principais:
37. 27ASPECTOS JURÍDICOS DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE NO DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO
i. Tratado “Por Cidades,Vilas e Povoados, Justos,
Democráticos e Sustentáveis”, elaborado durante
a Conferência da Sociedade Civil sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, da Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento – ECO-92, no Rio de Janeiro, em
1992;
ii. Agenda Habitat, elaborada na Conferência Global
sobre os Assentamentos Humanos nas Nações
Unidas – Habitat II, em Istambul, em 1996;
iii. Carta Europeia dos Direitos Humanos nas
Cidades, elaborada pelo Fórum de Autoridades
Locais, em Saint Dennis, em 2000; e,
iv. Carta Mundial do Direito à Cidade, processo
iniciado pelo Fórum Social Mundial em 2004.
Em tais documentos é possível identificar etapas
conceituais que servem de base ao Direito à Cidade
que, vale ressaltar, encontra-se em formação e
transformação. Primeiramente, na ECO-92, o direito à
cidade se manifesta como o direito à cidadania, isto é,
o direito dos/as cidadãos/ãs participarem na condução
de seus destinos. Na Agenda Habitat II, firmada em
1996, o destaque foi o estabelecimento do “direito à
moradia” como direito humano internacional, hoje já
bastante aceito pela comunidade jurídica internacional.
Na terceira etapa, isto é, na Carta Europeia de 2000,
afirmou-se um rol de direitos humanos individuais que
devem ser assegurados aos habitantes de cidades.
Com tais subsídios, e valendo-se de outras
experiências, como a sistematização do direito
urbanístico nacional brasileiro, o Fórum Social Mundial
articulou a elaboração da Carta Mundial de Direito à
Cidade, na qual o Direito à Cidade é definido como “o
usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios
de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça
social”.
Neste sentido, o Direito à Cidade busca se posicionar
como um direito emergente na esfera dos direitos
humanos coletivos (p. ex., o Direito ao Meio Ambiente)
e, assim, estimular a adoção deste conceito pelos
países, visando à construção de cidades mais justas,
humanas, democráticas e sustentáveis. Para tanto,
propõe oito princípios fundamentais:
Em síntese, o que o Direito à Cidade propõe é,
considerando o destaque internacional das cidades
e o positivo impacto da esfera internacional no
desenvolvimento de políticas nacionais e locais,
principalmente nos países em desenvolvimento,
propiciar uma mudança de perspectiva para o
planejamento e gestão urbana contemporânea, com
foco nas pessoas –principalmente as pessoas mais
vulneradas.13
Gestão democrática da cidade; função social da
cidade; função social da propriedade; exercício
pleno da cidadania; igualdade e não discriminação;
proteção especial de grupos e pessoas vulneráveis;
compromisso social do setor privado; e impulso à
economia solidária e a políticas progressivas.
38. 28
Além dessa abordagem conceitual, a questão do direito
à cidade aparece explicitamente entre as diretrizes
gerais14
, que têm a função de nortear a aplicação dos
instrumentos urbanísticos previstos em lei. Destas,
duas merecem destaque: a garantia do direito a
cidades sustentáveis (art. 2º, I) e a gestão democrática
da cidade (art. 2º, II).
Dispõe o artigo 2º, I, que a garantia do direito a
cidades sustentáveis deve ser entendida como o
direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte,
aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer –para
as presentes e futuras gerações. Embora ainda
não haja consenso sobre os parâmetros técnicos
precisos da cidade sustentável (RUANO, 2007;
SOUZA, 2010), a legislação brasileira apresenta este
novo direito com o respaldo de outras garantias já
estabelecidas –moradia, saneamento–, reafirmando-as
e fomentando as discussões sobre como se pensar
a cidade que queremos. Adicionalmente, o direito à
cidade sustentável –isto é, um “passo além do ‘direito
à cidade’”– como o próprio nome indica, busca mais
expressamente a inclusão da dimensão ambiental (e
social, e econômica) na política urbana e produção da
cidade.
Se por um lado a cidade foi durante muito tempo
entendida como uma estrutura à parte do “meio
ambiente natural” –era o “ambiente construído”–,
por outro, a Constituição Federal, em seu artigo 225,
afirma claramente que a população tem direito a um
meio ambiente ecologicamente equilibrado, com o
objetivo assegurar a qualidade de vida de todos e todas
“todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e
à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações”.
Dessa maneira, não há o que se questionar sobre a
necessidade de que tais critérios ambientais sejam
aplicados aos locais onde a maioria da população vive:
as cidades. E é isto que busca incluir o Estatuto da
Cidade.
Além disto, a regulação constitucional, quanto ao
meio ambiente, define que a responsabilidade de
sua proteção cabe tanto ao Poder Público (legislativo,
executivo e judiciário) quanto à coletividade. Ao inserir
a coletividade nesta missão, tem-se o que Nalini (2010)
sugere como “reabilitação da democracia dos antigos”,
isto é, “estimular a democracia da participação”
em uma verdadeira “tarefa de cidadania ambiental”,
que, note-se, em consonância com as disposições
internacionais sobre o desenvolvimento sustentável,
ressalta a responsabilidade intergeracional –também
presente no Estatuto da Cidade.
Por isso, conforme Osorio e Menegassi (2002),
é igualmente importante considerar que “a
sustentabilidade de uma cidade também é definida
pela qualidade de sua governança, [pois] somente
um processo de governança urbana transparente e
responsável poderá assegurar o desenvolvimento
sustentável das cidades com justiça social e
preservação ambiental”.
Neste sentido, ao passo em que a diferentes grupos
sociais cabem diferentes custos ambientais, o
processo de democratização da gestão das cidades
deve reconhecer as particularidades das relações da
cidadania com seus territórios (OSORIO; MENEGASSI,
2002), o que implica na compreensão de sua dinâmica
39. 29ASPECTOS JURÍDICOS DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE NO DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO
territorial: a análise do território a partir da dinâmica
social, que considera a dinâmica das coisas fixas e das
que se movimentam (FIORILLO, 2008). E, conforme
Fiorillo (2008), são justamente as coisas que se
movimentam que dão valor às coisas fixas –é o caso
do dinheiro e das pessoas com as relações sociais que
se estabelecem.
Pode-se dizer, então, que a democracia da participação
é inerente à sustentabilidade e às determinações
constitucionais quanto ao ambiente, e também à
gestão urbana. Tanto é que, além da Constituição
Federal no artigo 29, XII, transformar o direito à
participação em um requisito constitucional para a
instituição e fiscalização da implementação do plano
diretor, tanto no executivo quanto no legislativo, o
artigo 2º, II, do Estatuto da Cidade reafirma esse
direito definindo a “gestão democrática por meio
da participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade
na formulação, execução e acompanhamento de
planos, programas e projetos de desenvolvimento
urbano”.
Assim, este princípio –a Gestão Democrática da
Cidade–, chama a população a fazer parte diretamente
da gestão urbana, tanto individualmente quanto
coletivamente (por meio de associações de bairro,
meio ambiente, moradores sem-teto etc.), participando
de projetos e programas relacionados à cidade.
Mais do que isso, manifesta concretamente a
democracia da participação proposta pela Constituição
Federal, sendo sua compreensão vital para se avançar
na participação popular.
Gestão democrática da cidade
Sabendo que a participação da população na gestão
pública é um elemento essencial da democracia
brasileira que a Constituição Federal delineia, e da
importância que as áreas urbanas têm na atualidade
para o alcance do desenvolvimento pessoal,
comunitário e político, o Estatuto da Cidade, além de
prever a participação popular como diretriz da política
urbana, também dedica todo um capítulo ao tema,
que, embora curto, encontra-se “cheio de significado”
(NALINI, 2010).
Ao romper com a visão administrativa de disciplinar
a cidade a partir de regramentos impostos tão
somente pelo Poder Público (FIORILLO, 2008), a
noção de gestão democrática propõe a ideia de um
novo pacto territorial em que a cidade se transforme
efetivamente em um espaço de convivência e pleno
desenvolvimento para todos/as seus/suas habitantes
(BUCCI, 2003).
Com isso, a participação popular passa de “princípio” a
“instrumento” da política urbana.
40. 30
Neste sentido, o capítulo IV –Da Gestão Democrática
da Cidade– nos seus artigos 43 a 45, explicita como
se dará a participação da população diretamente na
governança urbana, ao estabelecer os instrumentos
para garantir a gestão democrática, a gestão
orçamentária participativa e a participação da população
para gestão de áreas metropolitanas.
Quanto aos instrumentos a serem utilizados para
garantir a gestão democrática da cidade, o art. 43
elenca:
O primeiro instrumento previsto refere-se ao
estabelecimento de órgãos colegiados (“conselhos”)
de política urbana nas diferentes esferas federativas.
Entende-se por órgãos colegiados que os órgãos de
política urbana devem ter componentes escolhidos
pela Administração e membros escolhidos pela
sociedade civil (FRANCISCO, 2003), criando os
“conselhos de desenvolvimento urbano”, que, pela
própria lógica do Estatuto, encontram sua maior
efetividade no contexto municipal. A composição
desses conselhos é de grande importância para sua
efetividade: é necessário que haja um balanceamento
tanto entre representantes do Poder Público e
sociedade civil, quanto entre a própria sociedade civil.
Quanto à representação do Poder Público, explica
Bucci (2003, p.329): “é preciso que o Poder Público
seja adequadamente representado; nem demais –o
que transformaria o conselho em mero espaço de
legitimação e referendo das decisões previamente
tomadas pelo Poder Executivo–, nem de menos –o
que faria dos representantes da Prefeitura no conselho
meros “mensageiros” aos escalões superiores,
sem poder de negociar soluções e criar alternativas
construtivas dentro do conselho”.
No que tange à representação da sociedade civil, esta
pode ser ainda mais complexa, visto que não há uma
única opinião que represente a coletividade; muito
pelo contrário, esta varia grandemente de acordo
com os diferentes grupos de interesse, que podem
ser, por exemplo, representantes de associações de
bairros, de movimentos de moradia, ONGs, entidades
ambientalistas, entidades profissionais de arquitetos/
as e engenheiros/as e até mesmo incorporadores
imobiliários e construtores, isto é, integrantes dos
setores empresariais ligados à produção do espaço
urbano.
(i) órgãos colegiados de política urbana, nos níveis
nacional, estadual e municipal; (ii) debates, audiências
e consultas públicas; (iii) conferências sobre assuntos
de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e
municipal; e (iv) iniciativa popular de projeto de lei e
de planos, programas e projetos de desenvolvimento
urbano.
41. 31ASPECTOS JURÍDICOS DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE NO DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO
Esse delicado balanceamento entre grupos de
interesse é fundamental para que não “haja super-
representação de setor algum –o que sufocaria o
poder dos demais– nem sub-representação –o que
enfraqueceria a representatividade do conselho”
(BUCCI, 2003, p.329). Sob o aspecto jurídico, os
conselhos devem ser estabelecidos por lei que defina
sua composição, duração dos mandatos, forma de
indicação ou eleição dos participantes, suas atribuições
e definição sobre terem poderes consultivos ou
deliberativos.
Os segundos instrumentos estabelecidos para
a gestão democrática da cidade são os debates,
audiências e consultas públicas, a serem realizados no
processo de elaboração, acompanhamento e controle
da política urbana. Estes são instrumentos que vêm
ganhando importância no Direito Brasileiro, ao passo
em que se instaura a mentalidade de políticas públicas
como processos (que possuem ação e reação) (BUCCI,
2003). Como visto anteriormente, são previstos
constitucionalmente e utilizados para coleta de opinião
pública em assuntos específicos, especialmente
aqueles relacionados aos direitos coletivos. Já as
conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos
níveis nacional, estadual e municipal, que também
integram o rol de instrumentos da gestão democrática
da cidade, são importantes ferramentas para atualizar
a população acerca de ações do governo e para
conscientizá-los sobre temas específicos.
Não desconsiderando os diversos instrumentos
propostos nestes incisos, a grande inovação reside
no inciso IV. Inspirado na disposição constitucional
que garante à sociedade poder apresentar projetos
de lei, o Estatuto da Cidade incluiu a possibilidade da
iniciativa popular de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano. Desta maneira, conforme
Francisco (2003), nota-se a intenção de fazer com
que a participação da população não seja meramente
passiva, de concordância ou não com o que estiver
sendo apresentado pela municipalidade, mas sim
proativa, com a apresentação de soluções alternativas
ao proposto pela administração; e também, não
apenas pontual, mas sim um processo mais amplo, de
verdadeiros projetos urbanos.
Em relação ao planejamento municipal em geral, o
artigo 44 introduziu a gestão orçamentária participativa,
que inclui “a realização de debates, audiências e
consultas públicas sobre as propostas do plano
42. 32
plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do
orçamento anual, como condição obrigatória para sua
aprovação pela Câmara Municipal”. Isto significa que,
ao invés da Administração Pública decidir por si as
prioridades –e, consequentemente, os valores a serem
investidos– entre as diversas questões municipais
(saúde, educação, etc.), “estas decisões passam a ser
fruto de um compartilhamento entre a Administração
e a sociedade civil, que, assim, é chamada a se
manifestar e a escolher o que entende [ser] prioritário
e necessário através de reuniões e debates que levem
em consideração não só as regiões do município como
também as políticas que têm de ser conduzidas por
este” (FRANCISCO, 2003, p.269).
Por fim, o Estatuto da Cidade entende o fenômeno
urbano para além do espaço físico formal da cidade-
municipalidade e inclui as regiões metropolitanas,
as quais já são uma considerável parte da realidade
brasileira, definindo que estas igualmente devem
incluir a participação em sua gestão: “os organismos
gestores das regiões metropolitanas e aglomerações
urbanas incluirão obrigatória e significativa participação
da população e de associações representativas dos
vários segmentos da comunidade, de modo a garantir
o controle direto de suas atividades e o pleno exercício
da cidadania” (art. 45). Explica Francisco (2003, p. 273)
que “este dispositivo do Estatuto obriga aos Estados
Federados, a quem incumbe legislar a respeito das
regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, que
os organismos gestores tenham participação direta da
população nas deliberações e no acompanhamento
de suas determinações, ou seja, que também deverá
haver a participação da população na elaboração dos
planos urbanísticos metropolitanos ou regionais, bem
assim no seu acompanhamento”.
Por meio de tais estratégias, é possível perceber que,
nos moldes em que a gestão democrática da cidade
foi proposta, há uma clara evolução para garantir que
a participação do/a munícipe seja permanente nos
processos de desenvolvimento urbano (FRANCISCO
apud CENEVIVA, 2003). Se por um lado estas
definições implicam em uma importante ferramenta
para a gestão urbana sustentável e democrática,
“como um processo resultante de práticas de
cidadania voltadas para eliminar as desigualdades
sociais e os obstáculos para efetivação do direito à
cidade” (SAULE JUNIOR, 2002, p.89), por outro, é
importante ter em mente que a simples abertura de
canais para a participação não garante a qualidade
participativa.
43. 33ASPECTOS JURÍDICOS DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE NO DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO
É preciso que a sociedade civil se conscientize acerca
da participação popular na política e se aproprie de tais
espaços, pressionando os governos a reconhecerem
sua importância e de fato considerarem o que foi
proposto por tais meios.
Estatuto da Juventude
Em 2010, em um ciclo iniciado em 1990 com o
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90),
e afirmado com o Estatuto do Idoso em 2003 (Lei nº
10.741/03), o Brasil progride novamente na agenda
político-jurídica intergeracional ao explicitamente incluir
a juventude em sua Constituição Federal por meio da
Emenda Constitucional nº 65/2010.
Tal emenda prevê que tanto o Governo Federal quanto
o Estadual poderão legislar sobre a proteção à infância
e à juventude (artigo 24, XV), e, em seu artigo 227,
que “é dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los
a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão”.
A emenda definiu ainda que a lei deveria estabelecer o
Estatuto da Juventude, destinado a regular os direitos
dos/as jovens, e o plano nacional de juventude, com
duração de 10 anos, para articular as várias esferas do
poder público para a execução de políticas públicas de
juventude (art. 227, §8º, I e II).
44. 34
Três anos depois, em 05 de agosto de 2013, foi
promulgada a Lei nº 12.852, denominada Estatuto da
Juventude, que busca salientar o papel estratégico
da juventude no desenvolvimento do País. A Lei
procura não apenas que os diversos entes federados
desenvolvam políticas orientadas à juventude,
como também que a própria juventude se integre à
formulação de políticas públicas, salientando-a inclusive
como um grupo de direito, representado por pessoas
com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de
idade (art. 1º, §1º).
Neste sentido, a Seção I do Estatuto da Juventude
definiu como seus princípios, extensíveis também às
políticas públicas de juventude (art. 2º):
É possível notar, portanto, a vertente de inclusão
política da juventude que tem o Estatuto. O princípio II,
que prevê “a valorização e promoção da participação
social e política, de forma direta e por meio de suas
representações”, é um nítido indicador deste objetivo,
que se apresenta também em outras partes do texto:
na necessidade de participação do/a jovem na vida em
sociedade (que é, em última análise, um Estado de
Direito e político), sua participação no desenvolvimento
do país (onde participar da formulação de políticas é
fundamental para o desenvolvimento) e na valorização
do diálogo e convívio intergeracional. Estes princípios
encontram respaldo igualmente nas diretrizes para o
desenvolvimento de políticas públicas de juventude
(art. 3º) pela definição do desenvolvimento da
intersetorialidade das políticas estruturais, programas
e ações, do incentivo à ampla participação juvenil
em sua formulação, implementação e avaliação e na
ampliação de alternativas de inserção social do jovem e
sua participação ativa nos espaços decisórios (art. 3º, I,
II e III). Tais diretrizes incluem também outros aspectos
importantes, ao definirem que as políticas públicas
de juventude devem garantir meios e equipamentos
públicos que promovam a mobilidade territorial (art. 3º,
V) e promover o território como espaço de integração
(art. 3º, VI). Deste modo, o Estatuto da Juventude
introduz as questões urbanas como interesses
dos/as jovens, trazendo uma inovadora vinculação
intertemática, a qual é ampliada no Capítulo II da Lei,
que trata dos denominados “direitos do jovem”.
(i) a promoção da autonomia e emancipação dos jovens
(entendida como a trajetória de inclusão, liberdade e par-
ticipação do jovem na vida em sociedade); (ii) a valori-
zação e promoção da participação social e política, de
forma direta e por meio de suas representações; (iii) a
promoção da criatividade e da participação no desen-
volvimento do País; (iv) o reconhecimento do jovem
como sujeito de direitos universais, geracionais e singu-
lares; (v) a promoção do bem-estar, da experimentação
e do desenvolvimento integral do jovem; (vi) o respeito
à identidade e à diversidade individual e coletiva da ju-
ventude; (vii) a promoção da vida segura, da cultura da
paz, da solidariedade e da não discriminação; e (viii) a
valorização do diálogo e convívio do jovem com as de-
mais gerações.
45. 35ASPECTOS JURÍDICOS DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE NO DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO
O direito à participação social e política e
as estratégias de inclusão da juventude
Na lógica proposta pelo Estatuto da Juventude, os
denominados “direitos do jovem” tratam de uma
amplitude de temas, como: educação, trabalho, saúde,
igualdade, cultura, esporte, comunicação e liberdade
de expressão, segurança pública e acesso à justiça.
Interpretados na totalidade do sistema jurídico –visto
que todos e todas são iguais perante a lei–, não há
propriamente a criação de novos direitos. Porém,
de certa forma, é possível dizer que ao oferecer
uma compilação de temas que foram considerados
prioritários à juventude brasileira neste início de século
XXI, o Estatuto apresenta uma nova e afirmativa
abordagem que aproxima a juventude brasileira destes
importantes aspectos da vida em sociedade.
Neste rol de direitos trazidos pelo Estatuto da
Juventude, foi elencado o “Direito à Cidadania, à
Participação Social e Política e à Representação
Juvenil”, que pode ser entendido como o carro-chefe
para a consolidação de todos os outros direitos.
Este se constitui, nos termos do artigo 4º, como o
direito do jovem “à participação social e política e na
formulação, execução e avaliação das políticas públicas
de juventude”.
No Estatuto da Juventude, a participação da juventude
é entendida em quatro vertentes principais:
1. A inclusão do/a jovem nos espaços públicos e
comunitários a partir da sua concepção como
pessoa ativa, livre, responsável e digna de ocupar
uma posição central nos processos políticos e
sociais;
2. O envolvimento ativo dos/as jovens em ações de
políticas públicas que tenham por objetivo o próprio
benefício, o de suas comunidades, cidades e
regiões e o do País;
3. A participação individual e coletiva do/a jovem em
ações que contemplem a defesa dos direitos da
juventude ou de temas afetos aos/às jovens; e,
4. A efetiva inclusão dos/as jovens nos espaços
públicos de decisão com direito a voz e voto.
Nestas definições é perceptível o interesse público
em reforçar a participação cidadã dos/as jovens, que
passam a ser entendidos/as como atores centrais de
processos políticos e sociais, devendo ser formalmente
ouvidos/as e respeitado/as. Neste sentido, estes
processos se referem não apenas às políticas públicas
de juventude, mas de temas que afetam aos/às jovens,
enquanto indivíduos e membros da coletividade, nas
diversas esferas administrativas governamentais.
São, portanto, medidas que buscam a participação
multidimensional da juventude nos espaços formais de
participação.
Para tanto, o artigo 5º prevê que a interlocução
da juventude com o poder público se realizará por
intermédio de associações, redes, movimentos
e organizações juvenis –isto é, o/a jovem que se
reconhece como parte da coletividade e busca
representar os interesses do coletivo; é necessário o
engajamento.
Como meio de viabilizar esta interlocução, foram
previstos a definição de órgão governamental
específico para a gestão das políticas públicas de
juventude e o incentivo à criação de conselhos de
juventude em todos os entes da Federação.
46. 36
Sobre o tema, o Estatuto da Juventude destaca a
criação de Conselhos de Juventude –a exemplo do
sucesso deste formato em diferentes áreas dos
direitos sociais, como saúde, meio ambiente e
desenvolvimento urbano–, que são definidos nos
artigos 45 a 47. Sucintamente, prevê que os conselhos
de juventude são órgãos permanentes e autônomos,
não jurisdicionais, encarregados de tratar das políticas
públicas de juventude e da garantia do exercício dos
direitos dos/as jovens.
Elenca ainda nove objetivos para os conselhos,
definindo sua atuação: (i) auxiliar na elaboração de
políticas públicas de juventude que promovam o amplo
exercício dos direitos dos jovens estabelecidos nesta
Lei; (ii) utilizar instrumentos de forma a buscar que
o Estado garanta aos jovens o exercício dos seus
direitos; (iii) colaborar com os órgãos da administração
no planejamento e na implementação das políticas
de juventude; (iv) estudar, analisar, elaborar, discutir e
propor a celebração de instrumentos de cooperação,
visando à elaboração de programas, projetos e ações
voltados para a juventude; (v) promover a realização
de estudos relativos à juventude, objetivando
subsidiar o planejamento das políticas públicas de
juventude; (vii) estudar, analisar, elaborar, discutir e
propor políticas públicas que permitam e garantam a
integração e a participação do jovem nos processos
social, econômico, político e cultural no respectivo
ente federado; (viii) propor a criação de formas de
participação da juventude nos órgãos da administração
pública; (ix) promover e participar de seminários,
cursos, congressos e eventos correlatos para o
debate de temas relativos à juventude; desenvolver
outras atividades relacionadas às políticas públicas de
juventude.
Além disso, ficou incumbido a cada ente da federação
definir sobre a organização, funcionamento e
composição dos conselhos de juventude, que deve
observar critério paritário entre representantes do
poder público e da sociedade civil.
Os conselhos de juventude possuem, portanto,
uma estrutura que os dota de uma ampla gama de
atuação, e, seguindo a proposta da gestão democrática
da cidade, apresentam conduta proativa e podem
propor meios de avançar a participação da juventude
nos direitos que são elencados no Estatuto, de
acordo com a realidade e as atividades de cada nível
governamental.
47. 37ASPECTOS JURÍDICOS DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE NO DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO
O direito à cidade, um direito da juventude
Canalizando a atuação social e política dos/as jovens
no âmbito do Estatuto da Juventude, estão os já
mencionados “direitos do jovem”.
Como apontado anteriormente, estes tratam de uma
ampla gama de assuntos, que agora ganham novas
leituras, e, ente eles, está o Direito à Cidade. O Direito
à Cidade se manifesta no Estatuto da Juventude, de
forma mais direta, em duas seções: a Seção IX –Do
Direito ao Território e à Mobilidade (artigos 31 a 33), e
a Seção X –Do Direito à Sustentabilidade e ao Meio
Ambiente (artigos 34 a 36).
Embora o direito à cidade englobe uma diversidade
de direitos que se manifestam no espaço urbano, o
território –onde se “ocupa”– e a sustentabilidade –
que compõe no Estatuto da Cidade o direito à cidade
[sustentável]– são aspectos inegavelmente primordiais
do desenvolvimento urbano.
O Estatuto da Juventude apresenta primeiramente
o “direito ao território e à mobilidade” (art. 31) que
se desdobra na promoção de políticas públicas de
moradia, circulação e equipamentos públicos (isto é,
escolas, creches, hospitais, etc.) tanto no campo como
na cidade, apresentando maior ênfase na questão da
mobilidade, a partir do enfoque na possibilidade do/a
jovem fazer uso dos sistemas públicos de transporte
–ou seja, por vias financeiras, redução de tarifas, com
vistas a redução de desigualdade no acesso a estes
serviços– e não propriamente a reformulação de
tais sistemas, o que vem sendo tão questionado na
atualidade.
É válido notar que, se por um lado as reivindicações
quanto à possibilidade de moradia digna nas cidades
brasileiras são históricas –mas não necessariamente
diretamente identificadas à causa da juventude–, por
outro, a reivindicação por uma melhor mobilidade pela
juventude é um fenômeno mais recente, trazendo
uma interessante simbiose da visão da juventude
contemporânea.
48. 38
No que tange ao “direito à sustentabilidade e ao
meio ambiente”, o Estatuto reproduz o constante
na Constituição Federal, enfatizando que “o jovem
tem direito à sustentabilidade e ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo, essencial à sadia qualidade de vida, e o dever de
defendê-lo e preservá-lo para a presente e as futuras
gerações” (art. 34). Aborda também a necessária
educação ambiental (art. 35) e enfatiza diferentes
parâmetros para elaboração, execução e avaliação
de políticas públicas que incorporem a dimensão
ambiental (art. 36), apontando para um vital avanço da
compreensão do meio ambiente, em um sentido de
aproximar o ser humano da temática.
Neste sentido, o poder público deverá considerar:
o estímulo e o fortalecimento de organizações,
movimentos, redes e outros coletivos de juventude
que atuem no âmbito das questões ambientais e em
prol do desenvolvimento sustentável; o incentivo à
participação da juventude na elaboração das políticas
públicas de meio ambiente; a criação de programas de
educação ambiental destinados a jovens; e o incentivo
à participação de jovens em projetos de geração
de trabalho e renda que visem ao desenvolvimento
sustentável nos âmbitos rural e urbano.
É possível identificar, assim, uma sincronia entre os
principais elementos de direito à cidade propostas pelo
Estatuto da Juventude e o conceito de direito à cidade
sustentável trazido pelo Estatuto da Cidade: o direito
à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental,
à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e
futuras gerações.
Incluindo a juventude no
desenvolvimento urbano. Sinergias entre
o Estatuto da Cidade e o Estatuto da
Juventude
Por todo o apresentado, é evidente que o Estatuto da
Cidade e o Estatuto da Juventude, com respaldo no
previsto constitucionalmente, possuem sinergias.
Estas são inegáveis quando se considera seus
pilares essenciais: gestão democrática da cidade –a
participação social na tomada de decisões– e o direito à
cidade sustentável –direito ao território e à mobilidade,
e o direito à sustentabilidade e meio ambiente.
Se por um lado o Estatuto da Juventude é explícito na
inclusão das questões de cunho urbano, o Estatuto
da Cidade, anterior, não é tão claro sobre a juventude.
Então, onde residiriam, de fato, os direitos da
juventude urbana?
Pelo que o Estatuto da Cidade propõe, a gestão urbana
deve ser responsável por uma contínua inclusão da
população, de forma genérica, sem a apresentação
de grupos especiais de interesse, para debater e
decidir sobre o espaço onde desejam habitar de
forma sustentável. E é exatamente neste ponto
onde reside a juventude: a sustentabilidade nasceu
da compreensão da responsabilidade intergeracional,
em garantir os recursos naturais para as presentes e
futuras gerações.
Dessa maneira, quando se fala em governança,
na atualidade, é inadmissível excluir a sociedade
dos processos de tomada de decisão relacionados
a assuntos fundamentais. No que se refere ao