1. O Velho da Horta, de Gil Vicente
Fonte:
VICENTE,Gil. O VelhodaHorta, 16. ed.,SaoPaulo: Brasiliense,1985.
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2. O VELHO DA HORTA
Gil Vicente
Esta seguinte farsaé o seuargumentoque umhomem honradoe muitorico,já velho,tinha
uma horta: e
andandouma manhãpor elaespairecendo,sendooseu hortelãofora,veioumamoçade
muitobomparecer
buscar hortaliça,e o velhoemtantamaneirase enamoroudelaque,porviade uma
alcoviteira,gastoutodaa
sua fazenda.A alcoviteirafoi açoitada,e amoça casou honradamente.Entralogoovelho
rezandopelahorta.
Foi representadaaomui sereníssimorei D.Manuel,oprimeirodesse nome.EradoSenhorde
M.D.XII.
VELHO: Paternostercriador,Qui esincoelis,poderoso,Santificetur,Senhor,nomentuum
vencedor,noscéue terra piedoso.Adveniatatuagraça, regnumtuumsemmaisguerra;
voluntastuase faça sicutincoeloetin terra.Panemnostrum, que comemos,cotidianum
teué; escusá-lonãopodemos;indaque onãomereceremostudanobis.Senhor,debita
nossoserrores,sicutetnos,por teuamor, dimittiusqualquererror,aosnossodevedores.
Et ne nos,Deus,te pedimos,inducas,pornenhummodo,intentationemcaímosporque
fracos nossentimosformadosde triste lodo.Sedliberanossafraqueza,nos amalonesta
vida;Amen,portua grandeza,e nos livre tuaaltezada tristezasemmedida.
Entra a MOÇA na hortae dizo VELHO:
Senhora,benza-vosDeus,
MOÇA : Deus vosmantenha,senhor.
VELHO : Onde se crioutal flor?Eu diriaque noscéus.
MOÇA : Mas no chão.
VELHO : Poisdamas se acharão que não são vossosapato!MOÇA Ai!Como issoé tão vão,e
como as lisonjassãode barato!
VELHO : Que buscaisvóscá, donzela,senhora,meucoração?
MOÇA : Vinhaao vossohortelão,porcheirosparaa panela.
VELHO : E a issovinde vós,meuparaíso.Minha senhora,e nãoa aí?
3. MOÇA : Vistesvós!Segundoisso,nenhumvelhonãotemsisonatural.
VELHO : Ó meusolhinhosgarridos,minarosa,meuarminho!
MOÇA : Onde é vossoratinho?Nãotemos cheiros colhidos?
VELHO : Tão depressavinde vós,minhacondensa,meuamor,meucoração!
MOÇA : Jesus!Jesus!Que coisaé essa?E que práticatão avessada razão!
VELHO : Falai,falai doutramaneira!Mandai-me dara hortaliça.Grão fogode amor me atiça,ó
minhaalmaverdadeira!
MOÇA : E essatosse?Amoresde sobreposse serãoosdavossaidade;o tempovostiroua
posse.
VELHO : Mas amo que se moço fosse coma metade.
MOÇA : E qual será a desastradaque atende vossoamor?
VELHO : Ohminhaalma e minhador, quemvostivesse furtada!
MOÇA : Que prazer!Quemvosissoouvirdizercuidaráque estaisvivo,ouque estai paraviver!
VELHO : Vivonão noqueroser,mas cativo!
MOÇA : Vossaalma não é lembradaque vosdespede estavida?
VELHO : Vós soisminhadespedida,minhamorte antecipada.
MOÇA : Que galante!Que rosa!Que diamante!Que preciosaperlafina!
VELHO : Oh fortunatriunfante!Quemmeteuumvelhoamante commenina!Omaiorriscoda
vidae maisperigosoé amar,que morrer é acabar e amor não temsaída, e poispenado,
aindaque amado,vive qualqueramador;que faráo desamado,e sendodesesperadode
favor?
MOÇA : Ora, dá-lhe láfavores!Velhice,comote enganas!
VELHO : Essas palavrasufanasacendemmaisosamores.
MOÇA : Bom homem,estaisàsescuras!Nãovos vedescomoestais?
VELHO : Vós me cegaiscom tristuras,masvejoas desaventurasque me dais.
MOÇA : Não vedesque soisjámortoe andaiscontra a natura? VELHO Oh florda mor
formosura!Quemvostrouxe a este meuhorto?Ai de mim!Porque,logo
que vosvi,cegou minhaalma,e a vidaestátão fora de si que,partindo-vosdaqui,é
4. partida.
MOÇA : Já perto soisde morrer.Donde nasce estasandice que,quantomaisna velhice,amais
os
velhosviver?Emaisquerida,quandoestaismaisde partida,é avidaque deixais?
VELHO : Tanto soismaishomicida,que,quandoamomaisa vida,ma tirais.Porque meutempo
d’agora vai vinte anosdospassados;poisosmoços namoradosa mocidade osescora.
Mas umvelho,emidade de conselho,de meninanamorado... Oh minhaalmae meu
espelho!
MOÇA : Oh miolode coelhomal assado!
VELHO : Quanto formais avisadoquemde amorvive penando,terámenossisoamando,
porque é
maisnamorado.Em conclusão:que amor não querrazão, nemcontrato,nemcautela,
nempreito,nemcondição,maspenarde coração semquerela.
MOÇA : Onde há dessesnamorados?A terraestá livre deles!Olhomause meteuneles!
Namoradosde cruzados,issosi!...
VELHO : Senhora,eis-me euaqui,que nãosei senãoamar.Ohmeurosto de alfeni!Que em
hora
má euvos vi.
MOÇA : Que velhotãosemsossego!
VELHO : Que garridice me viste?
MOÇA : Mas dizei,que me sentiste,remelado,meiocego?
VELHO : Mas de todo,por mui namorado modo,me tendes, minhasenhora,jácegode todo
em
todo.
MOÇA : Bem está,quandotal lodose namora.
VELHO : Quanto maisestaisavessa,maiscertovosquerobem.
MOÇA : O vossohortelãonãovem?Quero-me ir,que estoucompressa.
VELHO : Que fermosa!Todaa minhahorta é vossa.
MOÇA : Não querotanta franqueza.
5. VELHO : Não pra me serdespiedosa,porque,quantomaisgraciosa,soiscrueza.Cortai tudo,é
permitido,senhora,se soisservida.Sejaahortadestruída,poisseudonoé destruído.
MOÇA : Mana minha!Julgaisque soua daninha? Porque nãopossoesperar,colhereialguma
coisinha,somente porirasinhae não tardar.
VELHO : Colhei,rosa,dessasrosas!Minhasflores,colheiflores!Quiseraque essesamores
foram
perlaspreciosase de rubiso caminhoporonde is,e a horta de ouro tal,com lavoresmui
sutis,poisque Deusfazer-vosquisangelical.Ditosoé ojardimque estáemvossopoder.
Podeis,senhora,fazerdele oque fazeisde mim.
MOÇA : Que folgura!Que pomare que verdura!Que fonte tãoesmerada!VELHO N’água
olhai vossafigura:vereisminhasepulturaserchegada.
Canta a MOÇA
“Cual esla niñaque coge las floressinotiene amores?
Cogiala niñala rosa florida:
El hortelanicoprendasle pediasinotienesamores.”
Assimcantando,colheuaMOÇA da horta o que vinhabuscar e,acabado,diz:
Eisaqui o que colhi;vede oque vos hei de dar.
VELHO : Que me haveisvósde pagar, poisque me levaisami?Oh coitado!Que amor me tem
entregadoe emvossopoderme fino,comopássaro emmão dadode ummenino!
MOÇA : Senhor,com vossamercê.
VELHO : Por eunão ficar sema vossa,queriade vósuma rosa.
MOÇA : Uma rosa? Para que?
VELHO : Porque são colhidasde vossamão,deixar-me-eisalgumavida,nãoisente de paixão
mas
será consolaçãonapartida.
MOÇA : Isso é por me deter,Oratomai,e acabar!
Tomouo VELHO a mão:
Jesus!E quereisbrincar?Que galante e que prazer!
VELHO : Já me deixais?Eunãovosesqueçomaise nemficosó comigo.Ohmartírios infernais!
6. Não sei porque me matais,nemoque digo.
VemumPARVO,criadodo VELHO,e diz:
Dono, diziaminhadonaque fazeisvóscáté à noite?
VELHO : Vai-te!Queresque t’açoite?Oh!Douao demoa intrujonasemsaber!
PARVO : Dizque fosseisvóscomere nãodemoreisaqui.VELHO Nãoquerocomer,nem
beber.
PARVO : Poisque havercá de fazer?
VELHO : Vai-te daí!
PARVO : Dono,veiolámeutio,estavaminhadona,entãoela,metendolume àpanelaofogo
logo
subiu.
VELHO : Oh Senhora!Comosei que estais agora semsaberminhasaudade.Oh! Senhora
matadora,meucoração vosadora de vontade!
PARVO : Raivoutanto!Resmungou!Ohpesarora da vida!Está a panelacozida,minhadona
não
jantou.Nãoquereis?
VELHO : Não hei de comerdestavez,nemquerocomerbocado.
PARVO : E se vós,dono,morreis?Entãodepoisnão falareissenãofinado.Entãonaterra nego
jazer,então,finardono,estendido.
VELHO : Antesnão foraeu nascido,ouacabasse de viver!
PARVO : Assim,porDeus!Então tanta pulgaemvós,tanta bichocanos olhos,ali,cosfinado,
sós,
e comer-vos-ãoavósospiolhos.Comer-vos-ãoascigarrase os sapos!Morrei!Morrei!
VELHO : Deusme fazjá mercê de me soltaras amaras. Vai saltando!Aqui te ficoesperando;
traze
a viola,e veremos.
PARVO : Ah!Corpo de São Fernando!Estãoos outrosjantando,e cantaremos?!...
VELHO : Fora eudo teuteor,por não se sentirestapraga de fogo,que não se apaga, nem
abranda
7. tanta dor...Hei de morrer.
PARVO : Minha donaquercomer; Vinde,infeliz,que elabrada!Olhai!Eufui lhe dizerdessa
rosa
e dotanger,e estáraivada!
VELHO : Vai tu, filhoJoane,e dize que logovou,que nãohá tempoque cá estou.
PARVO : Ireisvóspara o Sanhoane!Pelocéusagrado,que meudonoestádanado!Viuele o
demo
no ramo.Se ele fosse namorado,logoeuvoubuscaroutroamo.
Vema MULHER doVELHO e diz:
Hui! Que sinadesastrada!Fernandeanes,que é isto?
VELHO : Oh pesardo anticristo.Ohvelhadestemperada!Vistesora?
MULHER: E estadama onde mora?Hui! Infelizdosmeusdias!Vinde jantaremmáhora: por
que
vosmeteragora em musiquias?
VELHO : Pelocorpo de São Roque,vai para o demoa gulosa!MULHER Quemvos pôsaí essa
rosa? Má forca que vosenforque!
VELHO : Não maçar! Fareisbemde vos tornar porque estoutãosemsentido;nãocureisde me
falar,que não se pode evitarserperdido!
MULHER : Agora com ervasnovasvos tornastesgaranhão!...
VELHO : Não sei que é,nemque não, que hei de vira fazertrovas.
MULHER: Que peçonha!Havei,infeliz,vergonhaaocabode sessentaanos,que sondesvós
carantonha.
VELHO : Amoresde quemme sonhatantos danos!
MULHER: Já vós estaisemidade de mudardesoscostumes.
VELHO : Poisque me pedisciúmes,euvo-losfarei de verdade.
MULHER: Olhai a peça!
VELHO : Que o demoemnada me empeça,senãomorrerde namorado.
MULHER : Está a cair da tripeçae temrosa na cabeça e embeiçado!...
VELHO : Deixar-me sernamorado,porque o soumuitoemextremo!
8. MULHER : Mas vostome indao demo,se vosjá não temtomado!
VELHO : Dona torta, acertar por estaporta,Velhamal-aventurada!Saia,infeliz,destahorta!
MULHER : Hui,meuDeus,que serei morta,ouespancada!
VELHO: Estas velhassãopecados,SantaMaria vai com a praga! Quantomaishomemas afaga,
tanto maissão endiabradas!
(Canta)
“Volvidonoshanvolvido,
volvidonoshan:
por umavecinamala
meuamor tolheu-lhe afala
volvidonoshan.”
Entra Branca Gil,ALCOVITEIRA,e diz:
Mantenha DeusvossaMercê.
VELHO : Olá!Venhaisemboahora! Ah!Santa Maria! Senhora.ComologoDeusprovê!
ALCOVITEIRA: Certo,ohfadas!Mas venhopormisturadas,e muitodepressaainda.
VELHO : Misturadas preparadas,que hãode fazerbemguisadasvossavinda!Justamente
nestes
dias,emtempocontra a razão, veioamor,semintenção,e fezde mimoutroMacias tão
penado,que de muitonamoradocreioque culpareisporque tomeital cuidado;e dovelho
destampadozombareis.
ALCOVITEIRA :Mas, antes,senhoragorana velhice andaoamor; o de idade de amadorpor
acaso se
namora; e na corte nenhummancebode sorte nãoama como soía. Tudovai em
zombaria!Nuncamorremdestamorte nenhumdia.E folgoora de vervossa mercê
namorado,que o homembemcriadoaté à morte o há de ser,por direito.Nãopormodo
contrafeito,masfirme,semiratrás, que a todohomemperfeitomandouDeusnoseu
preceito:amarás.
VELHO : Issoé o que sempre brado,Branca Gil,e não me vai,que eunão dariaum real por
homemdesnamorado.Porém, amiga,se nestaminhafadigavósnãosoismedianeira,não
9. sei que maneirasiga,nemque faça,nemque diga,nemque queira.
ALCOVITEIRA: Andoagoratão ditosa(louvoresaVirgemMaria!),que logromaisdoque queria
pela
minhavidae vossa.De antemão,façouma esconjuraçãoc’um dente de negramorta
antesque entre pelaportaqualquerdurocoração que a exorta.
VELHO : Dizede-me:quemé ela?
ALCOVITEIRA: Vive juntocomaSé.Já! Já! Já! Bemsei quemé!É bonitacomoestrela,uma
rosinhade
abril,umafrescurade maio,tão manhosa,tãosutil!...
VELHO : Acudi-me BrancaGil,que desmaio.
Esmorece o VELHOe a ALCOVITEIRA começaa ladainha:
Ó preciosoSantoAreliano,mártirbem-aventurado,
Tu que foste marteiradoneste mundocentoe umano;
Ó São Garcia Moniz, tu que hoje emdia
Fazesmilagresdobrados,dá-lhe esforçoe alegria,
Poisque ésda companhiadospenados!
Ó ApóstoloSãoJoãoFogaça, tu que sabesa verdade,
Pelatua piedade,que tantomal nãose faça!
Ó SenhorTristãoda Cunha,confessor,
Ó mártir Simãode Sousa,pelovossosantoamor.
Livrai o velhopecadorde tal cousa!
Ó SantoMartim Afonsode Melo,tão namorado.
Dá remédioaeste coitado,e eute direi umresponsocomdevoção!
Eu prometouma oração,todo dia,emquatro meses,
Por que lhe deisforça,então,meu senhorSãoDom Joãode Meneses!
Ó mártir SantoAmadorGonçalo da Silva,vós,que soisomelhorde nós,
Porfiosoemamadortão despachado,chamai omartirizado
Dom Jorge de Eça a conselho!
10. Doiscasados numcuidado,socorrei a este coitadodeste velho!
ArcanjoSão ComendadorMor de Avis,mui inflamado,Que antesque fosseisnado,fostes
santono amor!
E não fique opreciosoDomAnrique,outroMor de Santiago;
Socorrei-lhe muitoapique,antesque demorepique comtal pago.
GloriosoSãoDom Martinho,apóstoloe Evangelista,passai ofatoemrevista,
Porque levamaucaminho,e daí-lhe espírito!
Ó SantoBarão de Alvito,SerafimdodeusCupido,consolaiovelho aflito,
Porque,indaque contrito,vai perdido!
Todossantos marteirados,socorrei aomarteirado,que morre de namorado,
Poismorreisde namorados.
Para o livrar,as virgensquerochamar,
Que lhe queiramsocorrer,ajudare consolar,
Que está jápara acabar de morrer.
Ó Santa Dona Maria Anriquestãopreciosa,
Queirais-lhe serpiedosa,porvossasantaalegria!
E vossa vista,que todoo mundoconquista,
Esforce seucoração, porque à sua dor resista,
Por vossagraça e benquistacondição.
Ó Santa Dona Joanade Mendonça,tão fermosa,
Preciosae mui lustrosamui queridae mui ufana!
Daí-lhe vidacom outrasanta escolhidaque tenhoinvoluntasmea;
Sejade vós socorridacomode Deusfoi ouvidaa Cananea.
Ó Santa Dona JoanaManuel,poisque podeis,e sabeis,e mereceis
Serangélicae humana,socorrei!
E vós, senhora,pormercê,óSanta Dona Maria de Calataúd,
Por que vossaperfeiçãolhe dê alegria.
Santa Dona Catarinade Figueiró,aReal,
11. Por vossagraça especial que osmaisaltosinclina!
E ajudará Santa DonaBeatrizde Sá:
Daí-lhe,senhora,conforto,porque estáseucorpojáquase morto.
Santa Dona BeatrizdaSilva,que soisaquelamaisestrelaque donzela,
Comotodo o mundodiz!
E vós, sentidaSantaDonaMargarida de Sousa,lhe socorrei,
Se lhe puderdesdarvida,porque estájáde partidasemporquê!
Santa Dona Violante de Lima,de grande estima,
Mui subida,muitoacimade estimarnenhumgalante!
Peço-voseu,e a Dona Isabel de Abreu,cosisoque Deusvosdeu,
Que não morra de sandeuemtal idade!...
Ó Santa Dona Maria de Ataíde,frescarosa, nascidaemhora ditosa,
QuandoJúpiterse ria!
E, se ajudarSanta DonaAna, sempar de,Eça, bemaventurada,
Podei-loressuscitar,que suavidavejoestardesesperada.
Santasvirgens,conservadasemmui santoe limpoestado,
Socorrei ao namorado,que vosvejaisnamoradas!VELHO Óh!Coitado!
Ai triste desatinado!
Aindatornoa viver?
Cuidei que jáeralivrado.
ALCOVITEIRA: Que esforçode namoradoe que prazer!Que horafoi aquela!
VELHO : Que remédiome daisvós?
ALCOVITEIRA :Vivereis,prazendoaDeus,e casar-vos-ei comela.
VELHO : É ventoisso!
ALCOVITEIRA : Assimsejaoparaíso. Que issonão é tão extremo!Nãocuredesvósde riso,que
eufarei
tão de improvisocomoo demo.E tambémdoutramaneirase eume quisertrabalhar.
VELHO : Ide-lhe,logo,falare fazei comque me queira,poispereço;e dizei-lhe que lhe peçose
12. lembre que tal fiquei estimadoempoucopreço,e,se tantomal mereço,nãono sei!E, se
tenhoestavontade,nãodeve elas’agastar;antesdeve de folgarver-nosmortonesta
idade.E,se reclamaque sendotãolindadama porser velhome aborrece,dizei-lhe:é um
mal quemdesamaporque minh’almaque aama não envelhece.
ALCOVITEIRA : Sus!Nome de JesusCristo!Olhai-me pelacestinha.
VELHO : Tornai logo,fadaminha,que eupagarei bemisto.
Vai-se aALCOVITEIRA,e ficao VELHOtangendoe cantando a cantiga seguinte:
Puestengorazón,señora,
Razón esque me laaoiga!
Vema ALCOVITEIRA e dizo VELHO
Venhaisemboahora,amiga!
ALCOVITEIRA : Já elaficade bom jeito;mas,para istoandar direito,é razãoque vo-lodiga:eu
já, senhor
meu,não posso,semgastardesbemdovosso,vencerumamoça tal.
VELHO : Eu lhe pagarei emgrosso.
ALCOVITEIRA : Aí estáo feitonosso,e nãoem al.Perca-se todaa fazenda,porsalvardesvossa
vida!
VELHO : Sejaeladissoservida,que escusadaé maiscontenda.
ALCOVITEIRA : Deusvosajude,e vosdê maissaúde,que assimohaveisde fazer,que viola
nemalaúde
nemquantosamorespude nãoquer ver.Falou-me lánumbrial de sedae uns trocados...
VELHO Eis aqui trintacruzados,Que lhe façam mui real!
Enquantoa ALCOVITEIRA vai,VELHOtorna a prosseguiroseucantar e tangere, acabado,torna
elae diz:
Está tão saudosade vósque se perde a coitadinha!Hámisteruma saiazinhae trêsonças
de retroz.
VELHO : Tomai.
ALCOVITEIRA: A bençãode vossopai.(Bom namoradoé o tal!) poisgastais,descansai.
Namoradosde
13. al!Ai!Não valemreal!
Ui! Tal fora,se me fora!Sabeisvósque me esquecia?Umaamiga me vendiaumbroche
de uma senhora.Comum rubi para o colo,de marfi,lavradode mil lavores,porcem
cruzados.Ei-losaí! Isto,má hora,isto si são amores!
Vai-se oVELHOtorna a prosseguirasua músicae,acabada, tornaa ALCOVITEIRA e diz:
Dei,má-hora,umatopada.Trago as sapatasrompidasdestasvindas,destasidas,e enfim
não ganhonada.
VELHO : Eis aqui dezcruzadospara ti.
ALCOVITEIRA :Começocom boa estréia!
VemumALCAIDE com quatroBELEGUINS, e diz:
Dona, levantai-vosdaí!
ALCOVITEIRA : Que quereisvósassim?
ALCAIDE: À cadeia!
VELHO : Senhores,homensde bem, escutemvossassenhorias.
ALCAIDE: Deixai essascortesias!
ALCOVITEIRA :Não hei medode ninguém, visteora!
ALCAIDE: Levantai-vosdaí,senhora,daíao demoesse rezar!Quemvosdez tão rezadora?
ALCOVITEIRA : Deixar-me ora,namá-hora,aqui acabar.
ALCAIDE: Vinde daparte de el-Rei!
ALCOVITEIRA : Muitavida sejaa sua. Não me leveispelarua;deixar-me vós,que eume irei.
BELEGUINS : Sus!Andar!
ALCOVITEIRA : Onde me quereislevar,ouquemme mandaprender?Nuncahavedesde
acabar de me
prendere soltar?Nãohá poder!
ALCAIDE: Nada se pode fazer.
ALCOVITEIRA : Está já a carocha aviada?!...Trêsvezesfui jáaçoitada,e,enfim, hei de viver.
Levam-napresae fica o VELHO dizendo:
Oh! Que má-hora!Ah!Santa Maria! Senhora!Jánão possolivrarbem.Cada passose
14. empiora!Oh!Triste quemse namorade alguém!
VemumaMOCINHA à horta e diz:
Vedesaqui odinheiro?Manda-me cáminhatia,que,assimcomono outrodia,lhe
mandeisacouve e o cheiro.Estápasmado?
VELHO : Mas estoudesatinado.
MOCINHA : Estaisdoente,ouque haveis?
VELHO : Ai!Não sei!Desconsolado,que nasci desventurado!
MOCINHA : Nãochoreis!Mais mal fadadavai aquela!
VELHO : Quem?
MOCINHA : Branca Gil.
VELHO : Como?
MOCINHA : Comcem açoitesnolombo,umacarocha por capela,e atenção!Levatão bom
coração,
como se fosse emfolia.Que pancadasque lhe dão!E o triste do pregão – porque dizia:
“Por mui grande alcoviteirae parasempre degredada”,vai tãodesavergonhada,comoia
a feiticeira.E,quandoestava,umamoçaque passava na rua,para ircasar, e a coitada
que chegavaa foliacomeçavade cantar:
“ua moça tão fermosaque viviaali àSé...”
VELHO : Oh coitado!A minhaé! MOCINHA Agora,má hora e vossa!Vossaé a treva.Mas elao
noivoleva.Vai tãoleda,tão
contente,unscabeloscomoEva;por certo que não se atrevatoda a gente!O Noivo,
moço polido,nãotiravaosolhosdela,e eladele.Ohque estrela!Éele umpar bem
escolhido!
VELHO : Ó roubado,da vaidade enganado,davidae da fazenda!Óvelho,sisoenleado!Quem
te
meteudesastradoemtal contenda?Se osjovensamores,osmaistêmfinsdesastrados,
que farão as cãs lançadasno conto dosamadores?Que sentias,triste velho,emfimdos
dias?Se a ti mesmocontemplaras,souberasque nãovias,e acertaras.
Quero-me irbuscara morte,pois que tantomal busquei.Quatrofilhasque criei euaspus
15. empobre sorte.Voumorrer.Elas hão de padecer,porque nãolhe deixonada;daquantia
riquezae haverfui semrazão despender,mal gastada.
FIM