Semelhante a Bioetica e sexualidade o desafio para a superacao de praticas correcionais da atencao a saude de travestis e transexuais lionco - 2008 (20)
Plano nacional de promocao da cidadania e direitos humanos lgbt 2009
Bioetica e sexualidade o desafio para a superacao de praticas correcionais da atencao a saude de travestis e transexuais lionco - 2008
1. ISSN 1518-1324
SérieAnis
Número 54, fevereiro de 2008
Bioética Ética Feminismo Gênero Direitos Humanos Justiça Desenvolvimento Social
BIOÉTICA E SEXUALIDADE: não-maleficência – a dita bioética principialista
O DESAFIO PARA A SUPERAÇÃO DE PRÁTICAS gradativamente abre espaço para a
CORRECIONAIS NA ATENÇÃO À SAÚDE DE consideração de condições sociais de
TRAVESTIS E TRANSEXUAIS desigualdade que exporiam diferentes grupos à
não efetivação desses princípios. A bioética
crítica acolhe a consideração das desigualdades
TATIANA LIONÇO 1 sociais e da vulnerabilidade de grupos não-
hegemônicos como fundamentais para que
padrões morais não comprometam os princípios
éticos e direitos universais (Diniz e Guilhem,
2002).
ABSTRACT A aproximação da bioética ao campo
dos direitos humanos se fundamenta no
Correction processes and mechanism of medical
reconhecimento de processos sociais de
power characterize the assistance on health for
exclusão e vulnerabilidade de grupos
transvestites and transexuals people. The
específicos. A Declaração Universal sobre
psiquiatric perspective on sexual matters has
Bioética e Direitos Humanos, proposta pela
been determinant on stablishing norms in the
UNESCO em 2005, desempenhou importante
field of health assistance. Considering sexuality
papel na consolidação dessa perspectiva social
by the bioethic perspective is a strategy for
e crítica no campo da Bioética. Diante do
democratize biotecnocientifics advances and for
reconhecimento da relatividade dos padrões
surpassing the atual corrective intervencions on
morais seja por diferenças culturais, étnicas,
the attention for these groups.
sociais, econômicas, dentre outras, a
KEY WORDS: transexuality; transvestism; Declaração Universal dos Direitos Humanos das
transexuality; colective health; bioethics. Nações Unidas, bem como as discussões
subseqüentes ocorridas nas convenções e
conferências, são instrumentos internacionais
que podem ser considerados consensuais e,
RESUMO portanto, referenciais privilegiados para guiar
Mecanismos de poder e de normatização decisões éticas sobre os complexos conflitos
atravessam a assistência à saúde de pessoas morais que permeiam o cotidiano da atenção às
travestis e transexuais. A psiquiatrização da pessoas em diferentes condições.
sexualidade vem sendo o discurso imperativo Embora se possa afirmar que a
na definição de regulamentações específicas no sexualidade tenha sido reconhecida como um
campo da atenção à saúde relativamente ao direito humano, ao ser pautada nas
exercício da sexualidade. A consideração Conferências das Nações Unidas de Cairo
bioética da sexualidade é fundamental para (1994) e Pequim (1995), sua tímida
garantir direitos sociais a grupos que não se consideração esteve restrita à necessidade do
enquadram no padrão binário e heterossexual enfrentamento da violência contra a mulher e
vigente, democratizando os avanços de questões relativas à saúde sexual e
biotecnocientíficos e resgatando travestis e reprodutiva na perspectiva do planejamento
transexuais do quadro de desassistência ou da familiar, excluindo do debate outros atores
submissão a medidas correcionais no campo da sociais que têm seus direitos humanos violados
atenção à saúde. em função da sexualidade, tais como gays,
PALAVRAS-CHAVE: transexualidade; travestismo; lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais
transexualismo; saúde coletiva; bioética. (GLBT) e profissionais do sexo (Correa, 2006).
Vale destacar algumas iniciativas no
âmbito internacional que evidenciam a
___ necessidade, no entanto, de avançar na
discussão sobre direitos sexuais como direitos
humanos. A Conferência Internacional de
Direitos Humanos de GLBT, ocorrida no Canadá
A bioética atualmente representa
em 2006, teve como resultado formal a
importante ferramenta ético-política para o
proposição da Declaração de Montreal,
questionamento de processos normatizadores
sinalizando a necessidade de respeitar as
que perpassam a atenção à saúde. Permite
relações sexuais consentidas entre adultos do
considerar criticamente práticas de assistência
mesmo sexo, reconhecendo a existência de
(ou mesmo a desassistência) sustentadas em
processos discriminatórios e de violência nos
preceitos morais que comprometem a
âmbitos privado e do Estado, e demandando
universalidade do direito à saúde.
liberdade de expressão, articulação e
O campo da bioética é interdisciplinar associação de GLBT em defesa de seus direitos.
e pode ser genericamente compreendido como
Em 2007, especialistas de diversos
o da aplicação da ética a conflitos morais que
países se reuniram na Indonésia para a
atravessam a atenção e a pesquisa em saúde.
discussão e recomendação dos Princípios de
Inicialmente fundamentada em princípios
Yogyakarta (2007), que buscam reafirmar a
universais – justiça, autonomia, beneficência e
universalidade dos direitos humanos e o direito
1
SérieAnis 54, Brasília, LetrasLivres, 1-6, fevereiro, 2008
Versão PDF
2. ISSN 1518-1324
SérieAnis
Número 54, fevereiro de 2008
Bioética Ética Feminismo Gênero Direitos Humanos Justiça Desenvolvimento Social
à não discriminação por orientação sexual e desejo heterossexual um dispositivo de
identidade de gênero. Apesar de não serem reprodução da ordem social que espelha o
ainda temas consolidados nas pautas das dispositivo da reprodução da espécie.
Nações Unidas, a orientação sexual não
heterossexual e as identidades de gênero não Rios (2007) propõe alargar a noção
condizentes com o sexo biológico vêm sendo de homofobia para travestis e transexuais,
reconhecidas como fatores de vulnerabilidade à além de fazer referência a homossexuais,
violação dos direitos sociais e humanos, evidenciando o prejuízo social decorrente não
demandando reflexão sobre os processos apenas da não adequação ao padrão
homofóbicos e de violência e discriminação heterossexual, mas também ao binarismo
contra GLBT. sexista que inferioriza o gênero feminino e que
naturaliza a concepção dicotômica e ao mesmo
Também merece destaque a iniciativa tempo complementar da relação entre os
da UNAIDS (2006) na apresentação do Guia de sexos. Nessa perspectiva, homens
Ações Estratégicas para Prevenir e Combater a homossexuais afeminados, transexuais e
Discriminação por Orientação Sexual e travestis estariam sujeitos ao estigma sexista,
Identidade de Gênero – Direitos Humanos, replicando as desigualdades de gênero
Saúde e HIV –, em que se recomenda o repúdio características da sociedade patriarcal.
a iniciativas de programas e ações que visem
tratar e/ou curar a orientação sexual e a A homofobia, nesse sentido ampliado,
identidade de gênero de qualquer pessoa. teria como efeito a materialização, no plano
concreto das relações sociais, de prejuízos
Rios (2006) evidencia que no originados no preconceito, gerando a violação
contexto latino-americano a situação dos de direitos contra indivíduos e grupos
direitos sociais de travestis e transexuais estigmatizados e discriminados em relação à
carecem de regulamentações fundamentadas norma moral para a conduta sexual (Borrillo,
nos direitos humanos, prevalecendo 2000; Rios, 2007).
abordagens biomédicas, no caso de
transexuais, e da noção de criminalidade e da Para Gonzáles e Licona (2006), o
necessidade de repressão relativa às práticas discurso homofóbico se reproduz também na
sociais de travestis. área da saúde, campo em que o direito à
autonomia deveria ser respeitado e no qual não
Nesse artigo busca-se sensibilizar seria aceitável tomar as normas estabelecidas
para a necessidade de refletir sobre pela maioria como parâmetros éticos. Montoya
mecanismos de poder e de normatização que (2002) também chama a atenção para o
atravessam a assistência à saúde de pessoas estabelecimento social de prescrições morais no
travestis e transexuais. A consideração da campo da sexualidade humana, demandando
sexualidade como dimensão da experiência reflexão sobre os processos de domesticação e
humana sujeita a padrões morais rígidos é normatização operados no campo da saúde por
fundamental para garantir direitos sociais a meio da patologização e reparação das
grupos que não se enquadram no padrão experiências sexuais. Para Montoya (2002) as
binário e heterossexual vigente. É necessário terapias reparativas ou correcionais, que
frisar que a psiquiatrização da sexualidade vem tomam como objeto a sexualidade suposta
sendo o discurso imperativo na definição de como patológica, se sustentam na visão da
regulamentações específicas no campo da psiquiatria como protetora da normalidade
atenção à saúde relativamente ao exercício da social e sexual, que justificariam correções
sexualidade. A patologização e inferiorização seja na conformação dos corpos (no caso de
das práticas e vivências relativas à sexualidade, hermafroditismo), seja na dimensão do desvio
no entanto, tem comprometido o acesso e a de conduta, do que seria considerado imoral.
qualidade da atenção dispensada a pessoas que
não se enquadram na lógica relacional A retirada do termo homossexualismo
heterossexual, ou que expressam sua da Classificação Estatística Internacional de
subjetividade em apresentações sociais da Doenças e Problemas Relacionados à Saúde da
masculinidade e/ou feminilidade em Organização Mundial da Saúde (CID/ OMS), na
discordância com o sexo biológico de década de 80, teve como efeito, no Brasil, o
nascimento. estabelecimento de normas de conduta por
parte de profissionais da saúde. O Conselho
Federal de Psicologia, por meio da Resolução
N° 01/1999 estabelece normas de atuação para
Homofobia, psiquiatrização e práticas os psicólogos diante das homossexualidades,
correcionais vetando quaisquer práticas reparadoras ou
curativas, sob a justificativa de não ser
A homofobia se fundamenta na
crença da superioridade e legitimidade da patológica a condição homossexual. Já o
heterossexualidade sobre as demais formas de Conselho Federal de Serviço Social apresentou
relação sexual e expressão do afeto. Para a Resolução N° 469/2006, também vetando a
Borrillo (2000) o sexismo e a homofobia assistentes sociais atitudes preconceituosas e
discriminatórias por orientação sexual no
emergem como conseqüência do regime binário
da sexualidade, sendo a suposição da exercício profissional. Essas medidas
naturalização da diferença dos gêneros e do reguladoras são conquistas importantes para a
garantia do direito à saúde de homossexuais,
2
SérieAnis 54, Brasília, LetrasLivres, 1-6, fevereiro, 2008
Versão PDF
3. ISSN 1518-1324
SérieAnis
Número 54, fevereiro de 2008
Bioética Ética Feminismo Gênero Direitos Humanos Justiça Desenvolvimento Social
apesar da evidência de que o preconceito pessoa do sexo oposto, e está enquadrado
compromete a qualidade da assistência à como parafilia, termo contemporâneo para a
saúde, tal como evidenciado nas pesquisas com perversão, junto a outras práticas e expressões
amostras da população GLBT nas Paradas do da sexualidade associadas ao desvio de
Orgulho GLBT (Facchini, França e Venturi, conduta, como, por exemplo, a pedofilia e o
2007; Carrara et al, 2006; Carrara e Ramos, exibicionismo.
2005). As normas são, contudo, senão
soluções, ao menos instrumentos de coerção O que chama à atenção é o fato da
para abusos da incidência de valores morais descrição do transexualismo incluir, como
homofóbicos na atenção. critério diagnóstico, o desejo pela intervenção
médica oferecida como solução para o dito
Apesar dessa relativa proteção transtorno, o que permite afirmar que o próprio
normativa concedida a gays, lésbicas e saber médico é determinante na caracterização
bissexuais por meio das resoluções dos do tipo de quadro patológico, ou, dito em
conselhos de psicologia e serviço social, a outros termos, a própria medicina estaria
condição subjetiva de transexuais e travestis é promovendo um certo ordenamento subjetivo.
considerada patológica, constando atualmente A oferta médica praticamente cria o modo como
nos compêndios nosográficos médicos. o sofrimento e a demanda de ajuda destes
indivíduos é enunciada na contemporaneidade e
Para Russo (2004), a medicina que, curiosamente, passa a determinar a
psiquiátrica posterior à década de 80 vem ‘identidade’ do transexual, sendo um critério
contribuindo enormemente para a diagnóstico.
caracterização psicopatológica das
manifestações da sexualidade. Para a autora, o Por outro lado, ambas as definições
lançamento da terceira versão do Manual de de travestismo não contemplam o que estudos
Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais etnográficos vem acumulando como descrição
da Associação Psiquiátrica Americana (DSM do modo de vida das travestis brasileiras, que
III/APA), em 1980, elevou de modo buscam alterações permanentes nos caracteres
significativo os transtornos/desvios sexuais secundários e vivem permanentemente
relacionados à sexualidade e ao gênero, apesar o papel feminino, apesar de não sentirem
da retirada do termo homossexualismo nessa necessidade de corrigir a genitália
edição do manual. cirurgicamente. Ser travesti é investir
permanentemente na construção de um corpo a
Para Arán (2006), a norma ser reconhecido pelo outro como um corpo
heterossexual e reprodutiva no campo da feminino. Diferentemente das transexuais, no
sexualidade fundamentou a psiquiatrização do entanto, as travestis não afirmam uma
prazer dito perverso. A homossexualidade teria identidade feminina estrita, mas ostentam a
ocupado, desde meados do século XIX, o centro androginia (Oliveira, 1994; Benedetti, 2005;
organizador do discurso sobre o desvio sexual, Pelúcio, 2005; Silva, 2007).
sendo a categoria de transexualismo uma
derivação mais recente da compreensão dos Pode-se afirmar que transexuais e
processos psicopatológicos relativos à travestis são sujeitos que se constituem
experiência da sexualidade. Podemos estender identitariamente como indivíduos pertencentes
este raciocínio também para as nosologias de a um gênero que não corresponde linearmente
travestismo (bivalente e fetichista) que ao sexo de nascimento, sendo a diferença
atualmente também constam nos manuais fundamental o fato de as travestis sustentarem
diagnósticos. uma ambigüidade ou duplicidade sexual na
própria constituição identitária.
A CID 10 (OMS) faz referência a
‘transtornos de identidade sexual’, que inclui o Os avanços nas tecnologias
transexualismo como um desejo persistente de biomédicas permitem atualmente a alteração
viver e ser reconhecido como um membro do dos caracteres sexuais secundários mediante
sexo oposto, implicando um desconforto em hormonioterapias. Da mesma forma,
relação ao sexo anatômico e busca de procedimentos de alteração plástica e funcional
tratamentos hormonais e cirúrgicos, visando a na genitália, inicialmente aplicados a casos de
adequaçao do corpo tanto quanto possível ao ambigüidade ou lesão grave no órgão genital,
sexo preferido. Dentro dessa mesma categoria são no momento estendidos a pessoas que não
consta o travestismo bivalente, que implica no apresentam disfunções orgânicas que
uso de vestimentas do sexo oposto durante justificassem essas medidas reparadoras, desde
uma parte da existência, de modo a satisfazer a a inclusão da psicopatologia transexualismo nos
experiência temporária de pertencer ao sexo compêndios nosográficos, e desde a consensual
oposto, mas sem desejo de alteração sexual compreensão do caráter terapêutico ou de
mais permanente ou de uma transformação beneficiencia do procedimento de
cirúrgica. O travestismo também está transgenitalização nesses casos.
contemplado dentre a categoria de parafilias,
na CID 10, sob a denominação travestismo Este é o ponto central da reflexão
fetichista. Nessa segunda vertente o aqui apresentada: apesar de viverem
travestismo é descrito como o hábito de vestir experiências bastante próximas no sentido de
roupas do sexo oposto com o objetivo de obter buscar a transformação corporal permanente e
excitação sexual e de criar a aparência de o desenvolvimento de caracteres sexuais que
3
SérieAnis 54, Brasília, LetrasLivres, 1-6, fevereiro, 2008
Versão PDF
4. ISSN 1518-1324
SérieAnis
Número 54, fevereiro de 2008
Bioética Ética Feminismo Gênero Direitos Humanos Justiça Desenvolvimento Social
endossassem a identidade de gênero, travestis As condições estipuladas pelas
e transexuais encontram no diagnóstico resoluções do Conselho Federal de Medicina
diferencial um grande divisor de águas. O para o acesso à cirurgia de transgenitaliação,
Conselho Federal de Medicina dispõe de uma bem como à hormonioterapia, são vagas:
regulamentação sobre os procedimentos diagnóstico de transexualismo, maioridade legal
médicos de alteração dos caracteres sexuais e acompanhamento de ao menos 2 anos por
para casos de transexualismo, restando as equipe multiprofissional. Bento (2006)
travestis excluídas da atenção e relegadas à esclarece que no processo de avaliação de
auto-medicação, ou mesmo à ação das candidatos transexuais às cirurgias de
bombadeiras – travestis que injetam silicone transgenitalização se operam mecanismos de
industrial para a modelagem dos corpos das poder e de normatização das condutas. O
travestis (Benedetti, 2005; Pelúcio, 2005). dispositivo da transexualidade firmaria rígidas
normas de conduta a esses indivíduos,
A hipótese aqui sustentada é a de destinados a provar serem verdadeiros
que a regulamentação da aplicabilidade da transexuais, correspondendo caricatamente aos
cirurgia de transgenitalização e demais estereótipos de gênero vigentes, bem como
procedimentos sobre gônadas e caracteres adequando-se à norma heterossexual.
sexuais secundários (através da Resolução
1.482/1997 do Conselho Federal de Medicina,
posteriormente revogada pela Resolução
1.652/2002 do mesmo órgão) é restrita a casos Considerações finais
de transexualismo porque se compreende, No caso de transexuais e travestis, o
mediante a reparação cirúrgica, que uma certa poder médico impõe restrições normativas e
‘normalidade’ poderia ser restituída. Já as interdições para o acesso aos procedimentos
travestis não demandam essa correção, que incidem sobre transformações corporais de
reafirmando a insuficiência da lógica binária em
caracteres sexuais, intermediando de forma
dar conta das experiências subjetivas de reguladora o acesso aos bens e avanços
posicionamento diante da diferença sexual para biotecnológicos.
esse grupo social, e, portanto, excluídas do
acesso à atenção e dos recursos biomédicos Como afirma Ventura (2007), o poder
existentes em seus processos de transformação médico não apenas regula o acesso aos
corporais. recursos de saúde disponíveis para a superação
do desconforto em relação ao próprio corpo e
Do ponto de vista médico, a do desejo de transformação dos caracteres
afirmação do sentimento de pertencimento a sexuais. O poder médico impede o acesso a
um determinado gênero – masculino ou esses recursos. Está impedido o acesso a esses
feminino – em desacordo com a atribuição do
recursos biomédicos àqueles indivíduos que não
sexo estabelecida pela estética anatômica no aderem integralmente à proposta terapêutica
momento do nascimento, encontra, como regulamentada. O que está sendo impedido não
medida terapêutica, a re-adequaçao cirúrgica é apenas o acesso a um procedimento cirúrgico
da genitália para corresponder à identidade de
ou de redução de danos pelo uso de hormônios.
gênero, compreendida como estruturante e não Está sendo negado o acesso às condições
passível de alteração por tratamentos necessárias para a livre expressão da
psíquicos. A cirurgia seria, portanto, a correção personalidade e da vivência da cidadania.
ou o tratamento para o transtorno identitário
apresentado na situação patológica ou anormal. A Constituição de 1988, enquanto
conquista legal da sociedade brasileira, deve
Apesar do consenso médico sobre a nortear os processos reflexivos e decisórios
possibilidade de beneficência da cirurgia de sobre questões morais que perpassam a
transgenitalização para transexuais, o processo atenção à saúde das pessoas. A saúde é
correcional e normativo operado pelo campo da assegurada constitucionalmente como direito
medicina merece ser questionado. Ventura
universal e social, o que significa que não
(2007) chama a atenção para os problemas discrimina as pessoas por quaisquer motivos e
éticos relacionados ao uso da biotecnociência é reconhecida como determinada por fatores
como instrumento de poder político, que sociais, para além do viés médico-biológico.
articula de maneira paradoxal a ampliação de
ofertas na assistência ao exercício do controle e As discussões envolvendo gestores,
de restrições à liberdade pessoal. pesquisadores e sociedade civil, durante o
Seminário Nacional Saúde da População GLBT
Para Ventura (2007) o processo na Construção do SUS, realizado em Brasília
regulador que condiciona o acesso de em 2007, evidenciaram a necessidade de
transexuais à assistência fere o princípio da
democratizar a atenção médica, sobretudo
autonomia, sendo insuficiente a vontade livre e referente às terapias hormonais, para
o consentimento esclarecido da pessoa transexuais e travestis. Trata-se de
transexual para ter acesso ao procedimento, o democratizar recursos biomédicos sem
que diferiria da maioria das intervenções discriminação, reconhecendo os agravos
médicas disponíveis. Não basta decidir pelo
decorrentes da prática social corrente entre
procedimento: há de se provar adequar às esses grupos do uso indiscriminado de
condições exigidas para sua viabilização. medicações e da sujeição às aplicações de
4
SérieAnis 54, Brasília, LetrasLivres, 1-6, fevereiro, 2008
Versão PDF
5. ISSN 1518-1324
SérieAnis
Número 54, fevereiro de 2008
Bioética Ética Feminismo Gênero Direitos Humanos Justiça Desenvolvimento Social
silicone liquido industrial para modelagem dos
corpos.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA.
Essas deveriam ser questões Resolução Nº 01/1999. Estabelece normas
remetidas aos comitês de ética, e não questões de atuação para os psicólogos em relação à
de polícia, como afirmam os que associam questão da Orientação Sexual. In
essas expressões subjetivas ao desvio moral de http://www.crpsp.org.br/a_orien/legislacao/fr_
conduta. São questões de saúde pública, que cfp_001-99.htm (acessado em junho de 2007).
implicam a reconsideração crítica dos valores
morais comprometedores do acesso aos CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL.
serviços e à atenção em saúde. Trata-se, no Resolução Nº 489/2006. Estabelece normas
entanto, de uma tarefa que exigiria um longo vedando condutas discriminatórias ou
caminho reflexivo, bem como grande preconceituosas, por orientação e expressão
disponibilidade para lidar com essa população. sexual por pessoas do mesmo sexo, no
Requer reconhecer que transexuais e travestis exercício profissional do assistente social,
vivenciam situações de extrema vulnerabilidade regulamentando princípio inscrito no Código de
social, e que os agravos decorrentes das Ética Profissional.
precárias soluções encontradas para lidar com o http://www.rits.org.br/rets/download/campanh
sofrimento decorrente do estranhamento em as110707.pdf. (acessado em junho de 2007).
relação a seus corpos biológicos ou de CORRÊA, S. Cruzando a Linha Vermelha:
nascimento dizem respeito, fundamentalmente,
questões não resolvidas no debate sobre
à omissão ou restrição da ajuda médica direitos sexuais, Horizontes Antropológicos,
atualmente possível em termos ano 12, nº. 26, Porto Alegre: UFRGS, 2006, p.
biotecnocientíficos. 101-121.
DINIZ, D. e GUILHEM, D. O que é bioética.
Referências Bibliográficas São Paulo: Editora Brasiliense, 2002.
ARÁN, M. A transexualidade e a gramática FACCHINI, R., FRANCA, I. L. E VENTURI, G.
normativa do sistema sexo-gênero. Ágora – Sexualidade, cidadania e homofobia –
Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Pesquisa da 10 Parada do Orgulho GLBT de
Janeiro: vol. 99 n. 01. Junho de 2006. São Paulo – 2006. São Paulo: APOGLBT,
2007.
BENEDETTI, M. R. Toda feita – o corpo e o
gênero das travestis. Rio de Janeiro: GONZÁLEZ, M. De La L. S. y LICONA, N.E.A.
Garamond, 2005. Normalización Del discurso homofóbico:
aspectos bioéticos. Acta Bioethica, vol. 12, n.
BENTO, B. A reinvenção do corpo – 02. pp. 211-217, 2006.
sexualidade e gênero na experiência
transexual, Rio de Janeiro: Garamond, 2006. MONTOYA, G.J.M. Aproximación bioética a las
terapias reparativas. Tratamiento para el
BORRILLO, D. L’ Homophobie. Paris: Presses cambio de la orientación homosexual. Acta
Universitaires de France, 2000. Bioethica, vol. 12, n. 02, pp. 199-210, 2006.
CARRARA, S. e RAMOS, S. Política, direitos, OLIVEIRA, N. M. de. Damas de Paus – o jogo
violência e homossexualidade – Pesquisa aberto dos travestis no espelho da mulher,
da 9 Parada do Orgulho GLBT – Rio 2004. Salvador: Centro Editorial e Didático, 1994.
Rio de Janeiro: CEPESC, 2005.
ORGANIZACAO MUNDIAL DA SAUDE.
CARRARA, S., RAMOS, S., SIMOES, J.A. e Classificação Estatística Internacional de
FACCHINI, R. Política, direitos, violência e Doenças e Problemas Relacionados à
homossexualidade – Pesquisa da 9 Parada Saúde – Décima Revisão – CID 10. acessado in
do Orgulho GLBT – São Paulo 2005. Rio de http://www.datasus.gov.br/cid10/webhelp/cid1
Janeiro: CEPESC, 2006. 0.htm em (12 de janeiro de 2008).
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. PELÚCIO, L. Toda Quebrada na Plástica –
Resolução 1482/97, dispoe sobre o Corporalidade e construção do gênero entre
procedimento de transgenitalizacao e demais travestis paulistas, in Campos – Revista de
intervençoes sobre gônadas e caracteres Antropologia Social, Vol. 6, nº 1 e 2, 2005
sexuais secundários. In http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/ca
http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm mpos/issue/view/424 (acessado em 03 de julho
/1997/1482_1997.htm (acessado em junho de de 2007)
2007).
PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. Princípios
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. sobre a aplicação da legislação
Resolução 1.652/2002, dispoe sobre a internacional de direitos humanos em
cirurgia de transgenitalizaçao e revoga a relação à orientação sexual e identidade
Resoluçao 1.482/1997. Consulta em de gênero. In
http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm http://www.clam.org.br/pdf/principios_de_yogy
/2002/1652_2002.htm (acessado em junho de akarta.pdf. 2007 (acessado em setembro de
2007). 2007).
5
SérieAnis 54, Brasília, LetrasLivres, 1-6, fevereiro, 2008
Versão PDF
6. ISSN 1518-1324
SérieAnis
Número 54, fevereiro de 2008
Bioética Ética Feminismo Gênero Direitos Humanos Justiça Desenvolvimento Social
RIOS, R. R. Direitos sexuais de Gays,
Lésbicas e Transgêneros no contexto
latino-americano, In
http://www.clam.org.br/pdf/rogerport.pdf,
2005 (acessado em janeiro de 2007).
RIOS, R. R. O conceito de homofobia na
perspectiva dos direitos humanos e no contexto
dos estudos sobre preconceito e discriminação,
in RIOS (org.) Em defesa dos direitos
sexuais. Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2007.
RUSSO, J. A. Do desvio ao transtorno: a
medicalização da sexualidade na nosografia
psiquiátrica contemporânea, in Piscitelli, A.;
Gregori, M. F. E Carrara, S. (orgs.).
Sexualidade e Saberes: convenções e
fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
SILVA, H. Travestis – entre o espelho e a
rua, Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
UNAIDS, GCTH, CICT/SIDA. Derechos
Humanos, salud y HIV - Guia de acciones
estratégicas para prevenir y combatir la
discriminación por orientación sexual e
identidad de gênero, 2006, in
http://www.onusida.org.co/Derechos%20huma
nos%20salud%20y%20VIH.pdf (acessado em
dezembro de 2007).
VENTURA, M. Transexualismo e respeito à
autonomia: um estudo bioético dos aspectos Bibliotecária Responsável:
jurídicos e de saúde da “ terapia de mudança Kátia Soares Braga (CRB/DF 1522)
de sexo”. Rio de Janeiro: Dissertação de
Mestrado apresentada à Escola Nacional de Editora Científica:
Debora Diniz
Saúde Pública Sérgio Arouca, 2007.
Editores Executivos:
Cristiano Guedes
Fabiana Paranhos
1
Tatiana Lionço é Doutora em Psicologia pela Conselho Editorial:
Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis
- Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Alessandra Barros
Gênero. Dirce Guilhem
Marilena Corrêa
Roger Raupp Rios
Sérgio Ibiapina Costa
Silvia Yannoulas
Tatiana Lionço
Qualis Filosofia/Teologia/A Local/Capes
Qualis Saúde Coletiva/C Nacional/Capes
A SérieAnis é uma publicação seriada da Anis para
divulgação de resultados de pesquisa sobre ética,
bioética, direitos humanos, direitos reprodutivos,
sexualidade, gênero, feminismo, deficiência,
desigualdade, raça e justiça social. São publicados
trabalhos originais, cujo objetivo é promover a discussão
acadêmica.
Tiragem:
50 exemplares
Endereço:
Editora LetrasLivres
Caixa Postal 8011
CEP 70.673-970
Brasília-DF Brasil
+55 61 3343 1731
serieanis@anis.org.br
6
SérieAnis 54, Brasília, LetrasLivres, 1-6, fevereiro, 2008
Versão PDF