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Título: O triunfo de Angélica
Autor: Anne e Serge Golon
Título original:
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989
Publicação original:
Gênero: Romance Histórico
Digitalização e correção: Nina
Estado da Obra: Corrigida
Nos quase trezentos anos que se seguiram ao descobrimento da América, os franceses tentaram de
todas as formas estabelecer um império colonial em terras do Novo ^ Mundo. Desde o início do séc.
XVI, quando a ação isolada de corsários e comerciantes os levou a explorar o litoral americano, até o
final do séc. XVIII, quando tiveram de se retirar, cedendo ao avanço do imperialismo inglês, os
franceses chegaram mesmo a estender seus domínios por um considerável território — no Brasil, nas
Antilhas, na América do Norte.
O auge da presença francesa na America registrou-se durante o reinado de Luís XIV, quando o Canadá
passou a ser uma colónia oficial, administrada diretamente pela Coroa francesa. O comércio e o
povoamento foram incentivados, fundaram-se novas cidades, firmaram-se alianças com os nativos.
Mas a terra nunca produziu as imensas riquezas ambicionadas, e a sólida presença inglesa na região
acabaria por frustrar seus sonhos coloniais. Depois da Revolução, praticamente findava o poderio francês
no Novo Mundo.
Angélica e seu amor, o Conde Joffrey de Peyrac, viveram o auge do domínio francês em terras
americanas.
"Depois de tudo o que passei", conclui Angélica, "o céu bem que me deve a felicidade!"
Num derradeiro gesto de esperança, Angélica correu o olhar pelo vasto horizonte ao longo da fortaleza
destruída de Wapassu. Além, muito além das montanhas geladas do Canadá, do outro lado do oceano, o
Conde Joffrey de Peyrac a esperava.
Numa espécie de vazio causado pela saudade e pela angústia, sua mente rodopiou numa embriaguez
vertiginosa. Ilusões! Vivera apenas ilusões! Sonhara com um Novo Mundo. Trabalhara para construí-lo.
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Amara todos aqueles lugares: Katarunk, Wapassu, Gouldsboro, Salem, Quebec. Todos, um a um,
deixados para trás.
O futuro que a aguardava era ainda um mistério, mas levaria consigo todas aquelas histórias com que
preencher horas inteiras de numerosas vigílias e travessias. Reencontraria os amigos, e poderiam brindar
e beber alegremente. Sua vida e sua obra não se apagariam. A lembrança de tantos momentos carregados
de significados permaneceria como uma soberba promessa de felicidade.
Agora seu desejo era navegar para a Europa num belo navio, numa viagem sem atropelos nem
tempestades. Lá encontraria um esposo cheio de expectativas, para em seus braços se lançar,
prometendo-se mutuamente uma vez mais: dali por diante, nunca mais iriam separar-se!
O triunfo de Angélica
Anne e Serge Golon
Mais uma vez separada do marido, o Conde Joffrey de Peyrac, que partira para a França com o
governador da colónia, o Sr. de Frontenac, Angélica não tinha a quem recorrer. Numa cabana perdida na
imensidão gelada do interior do Canadá, diante das ruínas do que fora a fortaleza de Wapassu, destruída
pelos canadenses comandados pelo Conde de Loménie-Chambord, ela não sabia o que seria de sua vida
e das três crianças que a acompanhavam: seus dois filhos gémeos, os bebés Rodrigo Rogério e
Gloriandra, além de Carlos Henrique, o enjeitado filho de Jenny Manigault, que tomara a seus cuidados.
Os perigos pareciam brotar de toda parte: até sua filha Honorina fora obrigada a buscar refúgio entre os
iroqueses, perseguida pela sanha vingativa da diabólica Duquesa Ambrosina de Maudribourg. A Diaba
da Acádia e seu aliado secreto, o Padre Sebastião d'Orgeval, seus piores inimigos, como que ressurgiam
das trevas. Quem viria em seu socorro: o Arcanjo da profecia? Como, se seu filho Cantor — identificado
com o tal Arcanjo — acompanhava o irmão, Florimond, nas homenagens e divertimentos da corte do
Rei-Sol, Luís XIV, em Versalhes, do outro lado do oceano?
A VIAGEM DO ARCANJO
CAPÍTULO I
Cantor de Peyrac despede-se da amante e enfrenta os piratas
O arcanjo estava no encalço da Diaba, desde a antecâmara do rei.
Um pano de tapeçaria que se desloca, uma porta aberta para uma passagem estreita, dois ou três
degraus a galgar. A crónica fala daqueles que conduziam do salão da Sra. de Maintenon à sala de bilhar,
aonde o rei se dirigia todas as noites para jogar uma partida.
Um pajem o precedia, para segurar o batente de tapeçaria, damas mergulhavam em seus brocados e
uma delas se levantava.
Dois olhares, um de ouro, o outro de esmeralda, que se cruzam. E na sombra dos labirintos de um
palácio, Versalhes, se engolfa o ar salino de um litoral perdido da América, o odor de podridão do peixe
que seca ao sol, uma mulher que urra ajoelhada diante de um corpo trespassado por um arpão: "Zalil!
Zalil! Não morra!..."
"E Ela, tenho certeza", pensara Cantor de Peyrac. No mesmo instante, enfiara um luís de ouro na palma
de um lacaio próximo a ele.
— O nome dessa mulher que acaba de cruzar comigo!... O lacaio não sabia, mas, estimulado pela
fortuna que acabava cair-lhe do céu, não precisou mais de um minuto para voltar e msinuar-se na
assembleia que formava um círculo em torno ao bilhar do rei, e sussurrar ao ouvido do belo pajem, tão
generoso:
— Sra. de Gorrestat.
— Seu esposo? Qual é? Seus títulos? — retorquiu-lhe o pajem, doando-lhe. um segundo óbolo.
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Dessa vez o lacaio abandonou por uma hora seu posto de porta-tocheiro, calculando que, se aquela
deserção arriscava atrair-lhe admoestações, custar-lhe-ia menos do que o que tinha a ganhar a serviço
daquele jovem senhor.
Antes do final da partida do rei, estava de volta e confiava a Cantor, junto ao seu ouvido, tudo o que
conseguira recolher.
Aquela senhora era a esposa do senhor governador do Nirvanais, recém-chegado a Versalhes por
convocação do rei. Corria o boato de que esperava uma nomeação importante. Sua esposa, pessoa de
qualidade, discreta e agradável, agradara à Sra. de Main-tenon, que a recebia entre suas damas, o que
para elas constituía a melhor maneira de ficar junto ao Sol.
Soube que o casal já se preparava para embarcar no Havre para o Canadá, do qual o Sr. de Gorrestat
fora nomeado governador.
Já no dia seguinte, soube que se tratava exatamente da "viúva" do velho Parys, que se casara com o Sr.
de Gorrestat.
Tudo se encaixava.
Se queria munir-se prontamente do dinheiro para uma viagem além-mar, Cantor precisaria encontrar
um expediente. Ele compreendeu. Não havia mais nem um dia, nem mesmo uma hora, a perder.
Correu à casa da Sra. de Chaulnes, sua amante. Encontrou-a inquieta por não ver o seu jovem amante
havia quarenta e oito horas. Sem querer dar-lhe as razões de sua brusca decisão, Cantor avisou-a que
tinha de embarcar urgentemente para a Nova França e que, com esse intuito, teria necessidade de uma
soma de vinte mil libras.
A Sra. de Chaulnes pensou que o mundo se fendesse em dois.
Deu um grito terrível, cujo eco não podia voltar-lhe aos ouvidos sem que se sentisse petrificada de
vergonha, de aflição e de dilacerante concupiscência. Um grito de animal frustrado.
—Não!... Não você!... Jamaisl Não me deixei...
Ele a olhou com um estupor indignado.
—Não sabe então, minha cara, que nada dura eternamente?
Eis por que nos é preciso colher o fruto e saboreá-lo quando ele nos é dado... Você o sabia quando me
recebeu em seu leito. Não existe nada perene no mundo!... Tenho de partir!...
Ela o imaginava sozinho, galopando por caminhos, atacado por bandidos, afogado...
—Mas o mar!... — gemeu.
Ele riu. O mar?... Isso não era nada. Algumas semanas ruins balançando ao sabor das ondas, sonhando,
cantarolando, ligado à sorte da nave que o conduz, uma questão de paciência!
Sua juventude resplandecente inspirou-lhe o arrependimento de não ter sabido levar as coisas da vida
alegremente, quando tinha a idade dele.
—Você vai encontrá-lo?... O animalzinho dos bosques?... Cantor franziu o sobrolho. Uma sombra
passou-lhe pelo rosto.
—Não é certo que eu o encontre — respondeu, preocupado.
—Ele o chamou?
—Não sei...
—Não descontente o rei...
—Meu irmão tratará disso...
Trocavam algumas palavras, enquanto a Sra. de Chaulnes abria cofres, depois caixinhas, e derramava
na escarcela estendida de Cantor luíses de ouro, que nem se dava ao trabalho de contar.
—Não o deixarei partir...
—O dever não se discute, minha cara.
—Mas afinal! O que se passa? Sua família lá na América está em perigo?...
—Pior que isso!
Ela deixou cair a cabeça em seu ombro, cobrindo-o de lágrimas.
—Meu belo sire, pelo menos, diga-me... quem vai abater?
—O Mal!...
Ele se levantou. E ela se afastou. Via-o apenas através de um nevoeiro.
Ia esperá-lo, rememorando seus gestos, seus raros sorrisos, suas palavras tão sábias. "Minha cara, não
sabe então que nada é eterno?..."
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—Obrigado — gritou ele. — E reze! Reze por mim! Corria para a porta.
—Não! Você não pode partir assim... sem me dizer adeus!...
Num impulso confuso, Cantor voltou e tomou-a nos braços. Enquanto "ele a beijava, ela soube que ele
era um homem, um homem que teria tanto sonhado encontrar na aurora de sua vida! Com o qual teria
sonhado tanto viver, "dia após dia!
—Espere, meu querido... Subitamente veio-me uma ideia... Dois diamantes de brincos pingentes,
pérolas de um colar, que poderá negociar.
Entregou-os a ele, encheu-lhe as palmas das mãos, fechou-lhe os dedos sobre as jóias como se ali
estivesse seu pobre coração, que ela lhe confiava. Ele beijou as mãos generosas que seguravam as suas.
—Obrigado. Obrigado. Falei com meu irmão para que a reem
bolse o mais cedo possível.
Ela gemia, já sem lágrimas.
—Não. Fique com tudo... Será um pouco de mim que permanecerá com você.
Ele se lançou aos seus joelhos como da primeira vez, abraçando-a.
—Doce amiga, seja bendita!...
A vida toda ela conservaria a lembrança daqueles braços jovens enlaçando-lhe os quadris, daquela
fronte juvenil contra seu ventre.
Morreria com esse viático.
O único que guardaria, como o único tesouro de toda uma vida.
Desvairada de dor, fez disso um juramento.
Seu único viático de amor!
A perseguição levou Cantor de Peyrac até o Havre-de-Grâce, um porto da Normandia.
O navio que levava o governador provisório da Nova França, sua esposa e sua comitiva, fizera-se ao
mar dois dias antes. Só restava esperar que a tempestade que acabava de se formar sobre a Mancha os
deportasse até o golfo da Gasconha e os atrasasse, dando a Cantor tempo para conseguir uma passagem
para si mesmo. Encontrou dificuldades. Frota e flotilhas de pesca sazonais, navios de comércio,
encarregados do correio e de passageiros para a Nova França, já haviam embarcado todos em coro. As
primeiras partidas efetuar-se-iam aproximadamente nas mesmas datas. Acabou por encontrar uma
embarcação, retida por reparos indispensáveis de última hora. Era um patacho, mas, ao saber que a
intenção do capitão era percorrer pelo caminho mais direto o Saint-Laurent, Cantor ofereceu uma boa
quantia para subir a bordo. Sua experiência das travessias e dos navios ensinara-lhe que uma casca de
noz rangente, provida de uma tripulação restrita, mas formada por sujeitos que se encontram o mais das
vezes no mar, pode levar vantagem quanto à velocidade sobre os grandes monumentos de três pontes e
vinte e cinco canhões.
Soube também, pela cara dos marujos, que sua aparência e seus luíses de ouro exibidos não deixariam
de suscitar intenções muito precisas em seus espíritos, como roubá-lo e assassiná-lo.
Na segunda noite da viagem, duas silhuetas se insinuaram na despensa onde dormia, arremessaram-se
sobre a forma ali estendida e, enquanto se ocupavam em lanhá-la a golpes de facão, dois socos violentos,
aplicados na parte traseira de seus crânios, fizeram-nas adormecer de vez.
Depois Cantor de Peyrac foi despertar o capitão e pediu-lhe que o acompanhasse a fim de verificar os
danos que haviam pretendido causar-lhe, e cuja única vítima fora o manequim de panos e trapos estirado
em seu lugar.
— Capitão — disse-lhe —, quero crer que você é um homem honrado e que não tem participação
neste complô, mas surpreende-me que não se empenhe mais, conhecendo seus homens, em manter a boa
reputação de seu navio. — E continuou: — Estou em suas mãos, mas você está também nas minhas.
Proponho um negócio. Se eu chegar vivo às praias do. Canadá, dar-lhe-ei a metade do que contém esta
bolsa cheia de ouro. Se me matar para ficar com tudo, não apenas será obrigado a dividir com seus
piratas, mas não poderá desfrutar os poucos luíses que lhe sobrarão, pois, daí em diante, seus dias
estarão contados. Indiquei a minha família em que navio embarcaria. Em qualquer canto do mundo
aonde você fosse doravante, os homens de meu pai o encontrariam e lhe cortariam o pescoço, no
mínimo. Ocultar-lhe-ei seu nome a fim de que não alimente o projeto de me manter cativo para pedif
resgate.
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Enquanto isso, um dos marinheiros que, mais hábil, conseguira se libertar dos laços um pouco
apressados com que Cantor o paralisara,..veio em socorro do capitão, armado com sua faca. Cantor
voltou-se e descarregou sobre ele a pistola à queima-roupa.
—Você matou um de meus homens — disse o capitão, após contemplar o cadáver por algum tempo,
como se não estivesse muito certo de que estivesse ali estirado a seus pés.
—Quem não sabe matar não pode viver — replicou seu jovem interlocutor. — Eis uma verdade que
meu irmão mais velho me repete todas as manhãs, e ambos fomos instruídos a esse respeito por nosso
pai e seu exemplo. Por isso, capitão, que essa intervenção lhe prove a seriedade de minhas palavras.
Reflita bem. A metade do ouro que trago comigo em troca de minha vida, ou todos os meus bens e
minha vida, e você não gozará muito tempo de minha fortuna adquirida. Sem contar que seus bandidos
de marinheiros tentarão tirá-la de você. Portanto, proteja-me contra esses piratas com todo o poder e
domínio que detém sobre este navio, onde a lei dos homens o fez o único mestre a bordo, depois de
Deus. E começarei por lhe sugerir que, quanto àquele, culpado de ter-se ausentado da vigia a fim de
praticar seu crime, seja colocado na golilha, de acordo com a pena prevista, pena leve, além daquela,
mais recomendada, de ficar três dias no porão.
As previsões do jovem navegador mostraram-se corretas.
O patacho, com o vigor do vira-lata face aos cães de raça, evitava os aguaceiros, pés-de-vento, piratas
e calmarias podres, e corria a boa velocidade pelas rotas ordinárias.
Foi uma travessia fácil, daquelas que entretém o tédio do marinheiro.
O jovem loiro, sentado contra a amurada, soprando uma flauta de pastor grego e mergulhando durante
horas na contemplação das imagens, continuava a tentar os bandidos, que quiseram obter suas riquezas
por vias menos diretas. Enviaram-lhe um homem de Dieppe chamado Léon, o Muçulmano, porque
ficara dez anos cativo em Argel entre os bárbaros e habituara-se a usar turbantes e aproveitar-se de
rapazes.
O sorriso meigo com que abordou Cantor congelou-se quando ao ajoelhar-se perto dele, sentiu a ponta
de uma adaga espetar-lhe as costelas.
—Que quer de mim? — perguntou o jovem loiro.
O homem de turbante procurou fazer-se entender. Cantor segurava-o com uma mão e com a outra
continuava a cortar-lhe a respiração com a ponta do punhal.
—Conhece o regulamento de bordo "Faltas-Castigos"? Quais são os termos para aquela que se prepara
para pedir-me que cometa com você?
Cantor recitou com uma voz monocórdia de aluno:
—Falta: sodomia; pena: estrangulamento e lançamento ao mar ou desembarque numa ilha deserta, às
vezes, sem água...
—Nosso capitão fecha os olhos para esses jogos...
—Posso pedir-lhe que os abra. Paguei-o para isso.
O pobre Muçulmano repelido saiu, indo confirmar a seus confrades que não havia nada a fazer. Nem
sequer conseguira ver a bolsa com os luíses de ouro. Em compensação, pela japona entreaberta do
loirinho, vira um verdadeiro arsenal. Duas pistolas, um cutelo e uma machadinha como as dos índios. E
mais a espada pendente do boldrié. E devia ter uma adaga em cada bota.
Desse modo, a seguir, tudo permaneceu calmo. Estavam na outra vertente da viagem. Mais próximos
do grande continente da América que da Europa familiar.
CAPITULO II
As aparências de um sonho triste — Cantor esgueira-se ao Convento das Ursulinas
Na Terra Nova, confirmou-se que o navio que levava o governador, sua esposa e escolta, continuava
em Quebec, como fora previsto. Nãò havia notícias de pessoas que tivessem descido na escala e que
tivessem embarcado para a baía Francesa.
Tranqiiilizou-se em relação à família.
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Em Tadoussac, deixou o patacho, após acertar suas dívidas com o capitão. Uma alegre sensação de ter
voltado ao país nasceu dentro dele ao aspirar o perfume das fogueiras, das peles, e o do rio, mais
insosso, era repousante, após tantos dias na salmoura. No entanto, por muito tempo a água era ainda
salgada, muito antes de Quebec. Entretanto, apesar de apreciar as sensações amigáveis da natureza, não
procurou dar-se a conhecer. Uma neblina antecipando o outono, bastante fresca, permitia-lhe manter
uma aba da capa sobre o rosto, e nas embarcações que tomou emprestadas para subir o Saint-Laurent, a
maior parte do tempo dormiu com o chapéu enterrado até o nariz.
Diante da ilha de Orléans, sabia já que faria o possível para manter-se incógnito, enquanto não tivesse
sondado o ambiente, ouvido os comentários, sabido como Quebec acolhia o governador interino e sua
esposa, que ia exibir todas as suas graças de Benfeitora para conquistar a capital. Seus sentidos alertados
dar-lhe-iam uma visão diferente da cidade.
Ereta em meio à bruma, a cidade, tão bela com seus sinos e campanários, apareceu tocada por um
morno encanto como uma cidade submersa. Contudo, não estava deserta nem adormecida.
A agitação dentro e em torno dela pareceu-lhe fantasmagórica.
Os sinos dobraram.
Prestando atenção às palavras dos transeuntes, enquanto subia a encosta da Montanha, soube que era a
Sra. Le Bachoys que ia ser enterrada.
Um calafrio percorreu-lhe a espinha até a raiz dos cabelos.
Os crimes começavam.
Quando chegou à praça da catedral, percebeu, escondido num canto, o cortejo que passava. Vestidas
de preto, as pessoas caminhavam lentamente, salmodiando. A garoa ocultava as copas das árvores e o
cimo do campanário e do domo. As cerejeiras silvestres à beira do riacho tinham a cor do sangue. Já era
outono.
Tomou a direita, atravessando a praça, sempre com o rosto escondido entre a gola da capa e o barrete,
um chapéu camponês que comprara na viagem por causa de suas abas largas, à moda antiga, que
protegeriam melhor tanto do sol e da chuva como dos olhares indiscretos.
Começou a subir a Rue de la Petite-Chapelle. A Taverna do Sol Levante estava fechada. A tabuleta
molhada parecia chorar.
Sua intenção era bater à porta da Srta. d'Hourredanne, mas as persianas estavam fechadas. A casa
parecia vazia. Um latido abafado sugeriu-lhe que só estavam ali a' criada cativa inglesa e a cadela
cananéia.
Ia por lá, pois sabia, tinham-no avisado, que seu glutão viera rondar por ali, inverno após inverno. "Ele
vai adivinhar que estou chegando."
Mas, ao mesmo tempo, o lugar perdia sua realidade. A casa de Ville-d'Avray ali estava,, o olmo e o
pequeno acampamento dos huronianos nos wig&ams de casca de árvores, com os dois atlas de bronze na
relva. Mas não passava de um cenário.
Parecia inimaginável que, naquele caminho lamacento, vazio e nostálgico, sua mãe, tão bela, tivesse
andado com sua corte de crianças, de selvagens e de grão-senhores, sempre tão ridiculamente afoitos em
recolher o menor de seus sorrisos e de suas palavras.
Tudo estava apagado. Aquilo tinha apenas as aparências de um sonho triste, cheio de mistérios e
ameaças.
Vendo um filete de fumaça diluir-se preguiçosamente no alto
da casa do marquês, saltou a rampa, passou pelo pátio e pendurou-se a uma das janelas da grande sala,
onde viu luzir o reflexo de um pequeno fogo ha lareira.
Distinguiu a criada de Ville-d'Avray —a que não quisera ficar quando soube que não teria seu amo só
para ela —, ocupada em esfregar as peças de prata como se, no dia seguinte, naquela casa abandonada,
fossem receber convidados importantes para um lanche ou ceia.
Bateu.
Ela o reconheceu imediatamente, mas continuou carrancuda.
— Oh! Você aqui a esta hora, meu rapaz? Veio com toda a família?
— Que nada! Mas trago-lhe notícias de seu amo, que vi muitas vezes em Versalhes, em casa do rei.
Por captar a hipocrisia das pessoas importantes e não se deixar iludir por seus trejeitos, Cantor
confiava nas pessoas simples. Criados, cocheiros, criadas se calam, mas nem por isso pensam menos.
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Essa mulher, de que não lembrava nome ou sobrenome, foi naquele instante mais próxima para ele do
que todas aquelas que pudera encontrar desde sua partida.
Que alívio poder falar com franqueza e quase sem empregar muitas palavras! Uma mímica, um fungar,
um dar de ombros... bastavam para dizer tudo e com precisão.
Ainda não terminara a terrina de sopa que ela servira ao jovem viajante esfomeado, e já sabia sua
opinião sobre a mulher do novo governador, a Sra. de Gorrestat. Embora todas aquelas damas se
congratulassem com sua vinda, se felicitassem por sua piedade, sua generosidade infinita, sua
urbanidade para com todos, a ela, Joana Serein, nascida no Canadá, seu nariz — que ela indicava —
avisava que, por trás daquela mulher, havia algo de feio, de mau. Sua vida habituara-a a reconhecer as
feiticeiras, as verdadeiras, que têm às vezes uma carinha bonita. Seu mosquete estava carregado, apesar
de não ser bem com um mosquete que se acabava com aquelas histórias.
— Pense o que quiser, queridinho, mas que o Diabo existe, existe... Eu nunca me engano. Nós o
encontramos entre nós como em toda parte... Lembra-se daqueles senhores que fizeram sortilégios numa
pedra preta, que o exorcista teve de ir procurar com todo o aparato.
— Foi ela que ele viu na pedra preta — disse Cantor.
E começou a fazer-lhe a longa narrativa dos dramas e malefícios que tinham se desenrolado certo
verão nas costas da Acá-dia, e dos quais aquela mesma mulher, que reconhecera e seguira desde
Versalhes, fora a instigadora.
Longa narrativa, de múltiplos episódios, que ela ouviu sentada diante dele e, como ele, inclinada para a
frente, com os braços sobre a mesa a fim de falar mais de perto, a meia-voz, que os conduziu do fim do
dia até a noite, desfiando suas horas nos diferentes sinos e campanários do exterior, e que Joana Serein
pontuava com breves observações.
— Não me surpreende... É isso mesmo o que está acontecendo... A cidade está louca e como que
perdida... Eis por que a Hen riqueta da Sra. de Baumont morreu.
Descobriu que houvera vários atentados inexplicáveis. Os aborrecimentos choviam sobre as pessoas
honestas como granizo.
Delfina tinha fugido e, mais grave ainda, Janine Gonfarel, a proprietária do Ao Navio de França,
desaparecera.
Inclinou-se ainda mais para a frente.
— Seria preciso saber o que atormenta Madre Madalena. O senhor governador foi visitá-la e, pelo que
dizem, ao vê-lo, a freira desfaleceu de horror...
Nesse momento, na catedral, soaram duas ou três badaladas, a hora noturna do maior repouso e,
subitamente, o jovem explorador de bosques e a mulher do Canadá se interromperam e se entreolharam,
com os sentidos alertados por mudanças sutis na textura do silêncio noturno.
Cantor lançou um olhar vivaz para as janelas, verificando, com alívio, que ao cair da tarde ela colocara
os batentes internos. Ninguém podia, do lado de fora, vê-lo sentado àquela mesa, onde uma grande vela
se consumia numa pirâmide inchada.
Ambos pensaram ao mesmo tempo. "Eles" se aproximam! "Eles" rondam a casa!
Com um sinal do queixo, ela o intimou a levantar-se. Sem fazer barulho, desceram às adegas. Como
outrora, ali se encontravam ovelhas sonolentas e palha, na qual ele se escondeu. A criada alojava-se a
meio caminho da escada de pedra. Admirou a presteza com que ela Vestiu a vasquinha e a touca de-
dormir, enquanto ao rés-do-chão o ruído surdo de punhos batendo sacudia a porta, acompanhado de
chamados e de injunções: "Abram!..."
Fingindo-se de mulher arrancada do sono, ela subira e, de seu esconderijo, ele ouviu um diálogo
veemente que por vezes tomava ares de discussão.
Surpreendeu-se de que a numerosa tropa que sentia em volta da casa não tivesse ainda irrompido porta
adentro e feito um revista completa.
Era, cercado de soldados do prebostado e delegados do novo governador, aquele manhoso do preposto
dos Assuntos Religiosos, encarregado de observar, no momento da chegada dos navios, eventuais
clandestinos da religião reformada, protestantes tentando desembarcar na Nova França. Procuravam um
jovem louro que ao chegar não se apresentara no cartório para declarar sua fé católica.
A fiel guardiã da casa de Ville-d'Avray recusara-se a retirar a trava da porta e abrir.
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— Isso não são modos. O que lhes deu a uma hora dessas?
Contentara-se em abrir a parte de cima da porta lateral e postar-se ali, como a uma janela, de modo que
não se podia penetrar na casa sem forçar a passagem, empurrando-a e galgando a parte de baixo da
porta, que era bem alta.
O preposto dos Assuntos Religiosos retirara-se com seus homens, afirmando porém que poderia voltar.
Ela baixou de novo a voz.
— Ela deu ordens, ou ele deu ordens terminantes para procurar seu carcaju e matá-lo. Homens e
selvagens, por boa recompensa, estão dando uma batida, faz mais de uma semana, nos arredores da
cidade, nos lugares onde supõem estar sua toca.
Cantor sentiu-se empalidecer.
Era certamente "ela"! Se subsistira alguma dúvida sobre a identidade da Diaba, reconhecia aquela
ferocidade minuciosa para com todos aqueles que a haviam ofendido, sobre os quais tinha de vingar-se,
mesmo se fosse um pobre animal dos bosques!...
Tê-lo-ia reconhecido a ele, Cantor de Peyrac, na antecâmara do rei, ele, que a repudiara outrora, o filho
daquela que não conseguira vencer?
— Meu glutão será mais forte que eles todos — afirmou com fervor, pensando em Wolverines.
— Isso nem se discute! Claro! — encorajou-o. — Um carcaju, todos nós sabemos, é muito mais
maligno que um homem!
Quanto a sair da casa sem ser visto nem preso, não havia problemas.
E já que, antes de mais nada, queria encontrar Madre Madalena, pois bem! O caminho estava livre!
Desde o tempo em que costumavam cavar o chão em Quebec e quando isso trazia um monte de
problemas e processos monstro, teria sido uma pena não se utilizar daquela rede de toupeiras tão
cómoda, quando a tempestade impedia pôr o nariz fora de casa ou quando se temia o olho do vizinho.
Bastaria lembrar a adega do Sr. Ville-d'Avray, que dava na de Banistere, o qual tinha um processo com
as ursulinas, cujas cavações, feitas sob um terreno pertencente a ele, tinham por engano levado a seus
entrepostos.
Foi assim que, à noite, depois de ter passado pelas adegas e ter emergido em meio às reservas de
vinhos e de queijos do Convento das Ursulinas, Cantor de Peyrac conseguiu se introduzir até o ateliê de
douração da religiosa visionária.
CAPÍTULO III
Madre Madalena, em desgraça, recebe uma visita inesperada
"Eles" não acreditavam nela. "Eles" não acreditavam mais nela.
Isso desde a visita da mulher do novo governador ao Convento das Ursulinas.
Importunada, repreendida, punida, Madre Madalena, a freirinha visionária, fora relegada ao ateliê de
douração, onde devia, como penitência, trabalhar sem descanso, sem ter o direito de falar durante o dia
com suas companheiras, tendo de levantar-se à noite para cuidar da "cola de aparas de luvas" ou do urucu
e da goma-guta para fazer o vermelhão, tremendo sobre um fogareiro, cuja chama precisava permanecer
estável e baixa.
Cogitou-se em privá-la da santa comunhão cotidiana, mas ela chorara tanto, que a superiora teve pena
dela.
— Que Deus a ajude, que Ele lhe inspire o arrependimento. Reconheça que você quis se tornar
interessante... que quis intervir na política que não lhe diz respeito... Certamente, lamentamos pelo Sr. de
Frontenac, mas você não teve habilidade.
— Minha madre, eu apenas disse a Santa Verdade. E ela, aquela que eu vi elevando-se das águas... a
Diaba!
— Basta!... Não recomece com sua mania. Esse caso já foi resolvido há muito tempo e suas visões nos
causaram aborrecimentos suficientes... sem que hoje tenhamos de transformar o novo governador em
inimigo.
Portanto, ficou ali, sozinha e sem defesa com seu pesado e aterrador segredo. Seu coração se congelava.
"Senhor, vai me abandonar?"
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A cidade se transformava, como que virada do avesso, e mostrava uma máscara oposta. Só se falava da
piedade, da modéstia, da caridade da Sra. de Gorrestat.
Ela prestava atenção às tagarelices, que chegavam do outro lado dos muros do claustro. Sozinha nesse
concerto de elogios, a Sra. Le Bachoys tivera uma frase chocante, em que se viu uma declaração de
guerra, devida talvez ao ciúme, ou à fidelidade que muitos mantinham ao Sr. de Fromenac.
Tendo alguém observado, diante da Sra. Le Bachoys, como a primeira dama da Nova França tinha
maneiras suaves, ela replicara: "A serpente também tem maneiras suaves".
Madre Madalena ficou esperançosa.
A Sra. Le Bachoys era considerada uma "pecadora", mas isso era sinal de ousadia, de coragem, e eis
por que ela saberia resistir. Se pelo menos a pobre religiosa pudesse falar com ela em segredo! Madre
Madalena conseguiu fazer enviar-lhe um recado, a respeito de uma encomenda de tabernáculo que os
burgueses da cidade baixa desejavam oferecer a uma paróquia da costa de Beaupré. Mas a menina que
levara o recado voltou anunciando que a boa senhora fora acometida por uma congestão... e que temiam
por seus dias. Enquanto lidava com seus instrumentos durante o dia, Madre Madalena rezava por sua
cura. Ouviu o dobre dos sinos. Dizia-se que a Sra. Le Bachoys sacrificara-se muito pelo amor, e que
aquilo um dia havia de lhe acontecer. Ela estava morta.
O desespero e o terror invadiram o coração da freirinha.
Temia menos por sua vida, embora soubesse que um dia a "outra" voltaria para acabar confèla, do que
pelo que ia abater-se sobre o país, nem bem arrancado ao paganismo, e ao qual consagrara sua vocação.
Era-lhe indiferente morrer.
Como não compreendera há tempos que nada havia acontecido ainda? Era isso o que deveria ter dito
aos juízes, aos confessores, quando a interrogavam e a confrontavam com a Sra. de Peyrac. Nada
aconteceu ainda! Não sejam tão impacientes nem de ser tranquilizados, nem de concluir algo. Eles
decidiram que o caso da visão estava terminado. Ora, era agora que ia se desenrolar o drama da Acádia,
assaltada pelo demónio súcubo saído das águas. E ninguém mais esperava por ele.
Caiu de joelhos no ateliê deserto. "Deus! Piedade!" .
Naquele halo luminoso e amendoado como a auréola de Cristo, via definir-se a eterna imagem, a
obsessão daqueles anos todos de debates e de confrontações que sofrera, a mulher nua, de uma beleza
surpreendente, com seus olhos atravessados por sentimentos imundos, e tremia dos pés à cabeça.
"Deus, não fará nada para nos salvar?" Atrás dela, houve um leve ruído.
Voltando-se, percebeu o Arcanjo.
CAPITULO IV
A mensagem redentora do Arcanjo
Deus tivera piedade dela.
O Arcanjo da visão ali estava, o mesmo que lhe aparecera, armado com uma espada, fazendo recuar os
espíritos malignos, enquanto um monstro de dentes aguçados, que ele parecia comandar, se lançava
sobre a Diaba e a fazia em pedaços.
E, tal como observara desde a primeira vez que vira a Sra. de Peyrac, a outra mulher que se opunha à
aparição diabólica, o arcanjo vencedor se parecia com ela.
Uma onda de alegria inundou-a, como um rio que regenera uma terra árida.
Por que duvidara? Não sabia que o Bem triunfaria?
Ele se aproximou, com um dedo sobre os lábios.
— Minha irmã, eu me chamo Cantor de Peyrac. A senhora conhece minha mãef
Agora ela compreendia. Bom Deus! O senhor sabe servir-se dos homens para Sua justiça e para
socorrer os inocentes!
Sua emoção era tanta, que teve de retirar os óculos.para enxugá-los, pois estavam turvos pelas
lágrimas.
Depois a angústia apunhalou-a novamente. Se a Sra. de Peyrac se encontrava em Quebec, estava em
perigo.
Ele sacudiu a cabeça.
— Não, não tema nada. Ela está em seus domínios e meus pais ignoram que voltei à América. Mas
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acorri à senhora, minha irmã, quando soube que a Sra. de Gorrestat se dirigia ao Canadá.
— Então... Você sabe quem ela é?
— Sei.
Os lábios de Madre Madalena tremiam. Juntou as mãos e disse, precipitadamente:
— Impeça-a de fazer malefícios, senhor. É horrível. Ninguém crê em mim.
— Ninguém. E aqueles que sabem calam-se ou tremem. Silêncio! Estou'só. É preciso silenciar. Não
dizer mais nada. Vim para lhe recomendar isso e para que saiba que estou a caminho.
— Mas... como você entrou?
— Silêncio — repetiu ele, docemente. — E preciso agir com naturalidade. Não incite mais sua
vingança... Humilhe-se... Desculpe-se... Humilhe-se... Onde ela está?
— No momento, dizem que está em Montreal.
— O que não a impede de deixar atrás de si um rastro de morte... Minha irmã, evite encontrar-se em
presença de quem quer que lhe peça para vê-la... Desobedeça à Santa Regra, se preciso for... Senão ela
conseguirá matá-la também.
— Não temo a morte.
— É proibido dar a vitória ao Destruidor — sussurrou ele —, quando se sabe... Seja mais forte que
suas astúcias... Vou ao encontro dela.
Seus olhos luziam com um brilho tão meigo e ofuscante que ela se perdia em seu esplandor. Ao
perceber que ele desaparecera, sentiu ao mesmo tempo a fraqueza e a embriaguez que vêm a nós na
convalescença, após uma longa e perniciosa enfermidade. Continuava a tremer, mas doravante seria
forte.
CAPITULO V
Cantor em busca de seu glutão, Wolverines
Cantor abriu a porta do jardim das ursulinas. Atravessou o cercado, galgou o muro.
Não o procuravam por ali, e a neblina da alvorada era espessa. Desceu até o rio Saint-Charles.
Desconfiava que os caçadores que perseguiam seu glutão estavam por ali. Por instantes, através dos
pântanos, ouviam-se passos pesados e silhuetas indistintas passavam por perto, chamando umas às
outras. Ele respondia como se pertencesse ao grupo, pois não o podiam distinguir com o nevoeiro.
— Encontraram o carcaju?
— Ainda não! Bicho desgraçado!...
O sol começava a aparecer e dissipar as brumas, que se diluíram numa chuva fugitiva. Alguém gritou
ao longe:
— Encontraram-no!
Cantor apressou-se, com o coração batendo e as mãos sobre as armas.
De longe, o corpo abatidój com à longa curva de pêlos dourados que lhe ensolarava o pelame, pareceu-
lhe menor, mais franzino do que aquele de que se lembrava.
"Teria se ressentido com a vida dos bosques?... Pouco habituado à natureza selvagem, não soube
defender-se?... Wolverines..."
Mas quando se aproximou bem e viu o animal meio virado, compreendeu.
"É uma fêmea. Não é Wolverines."
Ajoelhado perto do animal inerte, examinou-o.
Apesar da máscara negra de bandido, em torno de seus olhos, que tinha o poder de assustar os índios, a
pequena carcaju, com as pálpebras cerradas, tinha um aspecto tão meigo... Seu grande corpo peludo,
com a longa cauda soberba, que os assistentes cobiçavam, contrastava com a cabeça pequena, de focinho
curto. Os lábios, contraídos numa triste careta, permitiam vislumbrar as temíveis presas dos dois lados
da mandíbula, que não tiveram sequer tempo de se descobrir para exibir sua ameaça de defesa, pois fora
apanhada na armadilha. As curtas patas dianteiras, com as garras fechadas, erguiam-se rígidas e
impotentes como braços de boneca.
Acariciou o pêlo sedoso entre as orelhas pequenas e redondas.
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E adivinhou: "Sua fêmea!... Era a fêmea dele";
Cantor levantou-se, olhando à sua volta os homens silenciosos e, mais longe, os bosques de cimos
franjados de chuva perolada, onde os caçadores iam recomeçar a perseguição a Wolverines.
"Eles mataram a fêmea dele... Mais um crime na série de crimes que vai se espalhar na esteira da
Diaba... Mas eu estou aqui, Wolverines."
Ele estava lá longe. Ou então bem perto. Vira tudo. A captura e o encarne. Jamais se esqueceria.
Mesmo reconhecendo-o, deixaria que Cantor se aproximasse dele, daí em diante, um daqueles
humanos que haviam matado sua companheira, depois de tê-los vigiado e perseguido a ambos, durante
longos dias e noites cruéis?
Nunca se esqueceria. Nem o crime, nem aqueles que o cometeram, e havia de persegui-los até derrotá-
los, até liquidá-los, até que pudesse esganá-los, estraçalhá-los, até conseguir pendurar no alto de um
olmo suas cabeças dilaceradas, separadas do corpo por suas garras e presas vingadoras.
Cantor voltou os olhos para os homens que o observavam. Não o reconheciam.
Sem ruído e à sua maneira peremptória, foi de um a outro dos batedores, entregando a cada um uma
gratificação, com o pedido de suspender a caçada e limitar-se àquela caça que ali estava.
— É que... a senhora governadora também nos pagou muito bem para que acabássemos com o carcaju
que ronda Quebec há dois invernos e que vem causando muitos estragos — observou-lhe um dos
homens.
— Ela nos fez prometer que lhe mostraríamos os despojos quando voltasse de Montreal.
— Despojos? Já os têm — disse ele. — Isso deverá satisfazê-la.
Já desaparecera.
Afastava-se sem ruído, deixando o grupo discutir com veemência sobre quem se apropriaria dos
despojos do glutão fêmea.
Pelo resto da manhã avançou pelo sobosque e pelas brenhas quase impenetráveis de uma floresta que
as lavras relegaram ao cume das encostas, mas que encontrava meio de se espraiar e progredir bastante
na cidade, até ali, onde os terrenos não tinham ainda sido entregues aos arroteadores.
Parecia-lhe que o glutão não estava longe, seguindo-o, precedendo-o, observando-o, e ele falava
incessantemente, naquela mesma linguagem de palavras francesas, inglesas ou índias e de onomatopéias
que outrora empregava.
Finalmente, quando se encontrava na orla do valezinho devastado, vislumbrou uma massa escura^
agachada sob arbustos, e um olhar humano à espreita.
Havia tanta tristeza mas também tanta alegria incrédula naquelas pupilas que luziam sob as
groselheiras silvestres, tanto sofrimento mas também tanta felicidade...
—Perdoe-me — disse ele mais uma vez. — Wolverines, não cheguei a tempo. Mas vamos vingá-la,
vamos vingar sua fêmea...
E continuou a falar-lhe até que sentiu que os laços estavam reatados.
Começou então a correr, galopando e saltando sobre os obstáculos do sobosque, em direção à margem
do grande rio, o caminho de água, gritando a plenos pulmões:
—Siga-me, Wolverines, siga-me, agora... venha! Venha comigo, Wolverines!... Venha comigo a
Montreal.
CAPÍTULO VI
Na pista de Honorina — O barqueiro Pedro Lemoine
Antes de aparecer diante daquela que vinha perseguindo de tão longe, a Sra. de Maudribourg, hoje
mulher do novo governador, Cantor rodou através, das ruas de Ville-Marie, de Montreal. A cidade ao pé
do monte Royal estava ainda marcada pela grande feira de peles do outono, cuja tradição se perpetuava
com a vinda das tribos vizinhas.
Cantor jamais estivera em Montreal, e se sentia estranho.
Seu espírito permanecia ocupado por dois pólos: Ambrosina, que devia surpreender, apanhar na
armadilha, e Honorina, que devia proteger, pôr a salvo, se ainda houvesse tempo.
Andando para a frente e para trás com hesitação, sem decidir sobre a qual das duas faria sua primeira
visita, compreendeu sua imprudência. Se continuasse a se expor daquela maneira, far-se-ia notar. Já
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estavam se voltando à sua passagem. Ali as notícias corriam depressa. E tinha de se lembrar que a tal
Sra. de Gorrestat tentara mandar matá-lo, antes de sua partida de Versalhes, e prendê-lo em Quebec.
Sem tergiversar mais, decidiu-se pelo Convento de Nossa Senhora. Não se enganava. Sua hesitação em
buscar notícias de Honorina era causada pelo medo. Medo de saber que chegara tarde demais. Um
pressentimento não parava de atormentá-lo. Conhecia muito bem o ser infernal que jurara destruir dessa
vez para sempre. Se "ela" chegara à ilha de Montreal havia três «emanas, não devia ter esperado para
atacar a filha de Angélica, pois era esse seu objetivo ao empreender aquela viagem aparentemente
oficial. Isso também sabia Cantor, por instinto. Por isso, quando uma religiosa, de ar altivo sob um lenço
preto bordado de branco, o recebeu num parlatório cheirando a cera e maçãs recém-colhidas, não se
surpreendeu ao ouvi-la dizer que Honorina de Peyrac não estava mais ali. Mas, captando o nome da Sra.
de Gor-restat misturado às explicações muito confusas que lhe dava sua interlocutora, seu coração
baqueou. Obrigou-se, contudo, a exigir, num tom leve e casmurro, maiores detalhes, e por fim com-
preendeu que a menina desaparecera, tendo escapado por diversas vezes, pois "era muito desobediente".
A Sra. de Gorrestat, que se apresentara como uma grande amiga da Sra. de Peyrac, interessava-se pela
menina. Ao saber de seu desaparecimento, tinha movido céus e terra para encontrá-la. "Céus e terra! O
inferno, isso sim!", pensou. Em resumo, era tocante ver com que dedicação aquela grande dama, que
tinham doravante a felicidade de acolher junto àquele que ocupava o mais alto posto da colónia — o que
era — explicou num longo parêntese — outro sinal da bênção divina, pois até então a colónia só tivera
em sua direção governadores privados da doce e generosa influência de uma companheira, e agora se
podia augurar que as obras de caridade seriam beneficiadas, com esse domínio mais aberto à
compreensão e à atividade feminina —, era pois comovente e encorajador ter podido constatar com que
fervor ela pusera todo o país em ação para encontrar a pequena interna fugitiva e a ajuda que trouxera
espontaneamente às pobres religiosas de Nossa Senhora em sua preocupação.
Cantor examinou sem condescendência aquela que lhe falava, e ela lhe desagradou.
Pediu para ver Madre Margarida Bourgeoys. Lembrava-se subitamente de tê-la encontrado, sem dar a
isso muita atenção, em Tadoussac e em Quebec, e que aquela mulher caridosa e alerta parecia ser
verdadeiramente uma amiga de sua mãe.
Mas, apertando os lábios, Madre Delamare disse que Madre Bourgeoys, sua diretora, cujas funções
estava naquele momento assumindo, fora convocada com urgência por monsenhor, o bispo, em Quebec,
e que se cogitava inclusive que deveria fazer uma viagem à França, a fim de explicar-se com o
arcebispado de Paris, e também a Roma, em virtude dos estatutos de sua ordem de religiosas docentes
mas não clausuradas, o que era motivo de muitas controvérsias nos meios eclesiásticos.
O rapaz deixou o lugar num estado de espírito agitado, em que se misturavam cólera para com as
damas do lugar, inquietação por Horiorina, terror em relação a Ambrosina. O pesadelo recomeçava.
Chegando à cerca que delimitava o pomar, voltou-se para a casa baixa e branca, no fim da alameda,
que tinha por fundo a extensão cinzenta do rio confundida com o céu do mesmo azul-acinzentado que as
águas. Traçada ao longe, a linha da infinita floresta americana mal se distinguia sob a aproximação de
um nevoeiro, arauto dos primeiros frios.
Sentadas na relva, sob macieiras de ouro polido e cerejeiras nuançadas de encarnado, as meninas
comiam pão com melaço e o olhavam com curiosidade.
Por trás da imagem mais inocente, uma sombra sinistra rondava. Um sopro deletério envenenava o ar
que se respirava. Havia como que um hálito ruim que embotava as cores e o brilho da vida feliz, para
impregná-las de pecado.
Como Madre Bourgeoys pudera deixar em seu lugar uma pessoa como aquela que o recebera, que
falava extasiada daquele monstro de vícios, Ambrosina? Mais urna que se deixara enganar e que
subitamente se achava guardiã do Mal, entre as santas mulheres.
Enquanto subia uma alameda de carvalhos que levava à estrada carroçável e que o ocultava da casa,
ouviu alguém correr atrás dele e percebeu uma jovem religiosa que se esforçava por alcançá-lo,
provocando muito barulho com as pesadas saias.
— Senhor, pelo que compreendi, é o irmão de nossa pequena Honorina. Oh! caro senhor, encontre-a!
O que irá dizer Madre Bourgeoys quando voltar? Ela deixou ordem para que a menina pudesse partir
com a caravana, conforme pedido do mensageiro enviado por sua mãe. Como nossa irmã Delamare se-
deixou enredar a esse ponto?...
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A força de interrogá-la, o rapaz compreendeu como as coisas haviam ocorrido. Ambrosina, usando das
prerrogativas de sua posição, armada com seu suave e inflexível poder sobre os seres de boa vontade,
como sobre as almas negras igualmente, detivera tudo e acionara a máquina ao contrário, a seu bel-
prazer.
Suspendera a partida de Honorina, mandara trazê-la de volta. Depois a menina desaparecera, mas
aparentemente não caíra nas mãos de Ambrosina, pois esta mandara continuar as buscas. A menos que
fosse apenas um artifício para dissimular seu crime. Ela era capaz de tudo. Um dia encontrariam um
pequeno cadáver mutilado. O coração de Cantor doía-lhe, confrangido pela angústia.
— Não ouso emitir em voz alta minha opinião — sussurrou a freirinha, olhando para os lados —, mas
alegrei-me de que a menina tenha escapado, pois essa pessoa, a mulher do novo governador, me pareceu
assustadora...
— E você tem razão, irmã — desferiu-lhe ele —, pois sei de fonte segura, de uma fonte eclesiástica,
que se trata de um demónio, um demónio súcubo.
Ela deu um grito de horror, tapou a face com as mãos e fugiu soluçando para a casa.
Cantor estava furioso. Essas freiras eram todas retardadas? Uma abandonava suas responsabilidades
por uma viagem que podia durar pelo menos dois anos, a outra, assim que sua superiora virara as costas,
contrariava suas ordens, uma terceira se escondia, com medo de incorrer em censuras por tentar proteger
as crianças... Depois voltou atrás. Pobres mulheres! Podia-se reconhecer ali o vento de desordem que se
levantava à passagem da Diaba.
Mas, enquanto isso, o que acontecera a Honorina?
Chegou à margem do rio e começou a acompanhar seu curso, sem saber ainda o que fazer. Para
abordar a inimiga, a hábil criatura de língua viperina, precisava refazer as energias. Pensava em
Honorina e, por trás dás palavras pronunciadas no parlatório: "ela era muito desobediente", "ela
desapareceu", "causou uma grande confusão, fugiu", revia a silhueta da garotinha de cabelos ruivos, alta
"como três maçãs", com a carinha redonda, desprovida de beleza mas tão cómica, encimando-lhe o lindo
pescoço, naquela atitude de desafio e dê dignidade tão característicos...
Que força indomável naquela criaturinha! Era por isso que havia uma tendência, a se mostrar duro e
injusto para com ela. E ele em primeiro lugar, pensou com remorsos. É verdade que ela era insuportável.
Mas continuava a sentir raiva de todas as mulheres, e quando pensou na injustiça que jamais deixara de
pesar sobre Honorina, sua cólera estendeu-se àqueles que a tiveram sob sua guarda e que não lhe tiveram
amor, portanto, a si mesmo. Todo mundo queria livrar-se "da menina. Ele também, quando estava em
Wapas-su, queria que ela fosse punida. Aquela menininha, exigente e suscetível, que monopolizava sua
mãe e mesmo seu pai sem qualquer direito, o agastava. De onde vinha aquela menina?... Era melhor não
pensar nisso, pois sentia vontade... de desembaraçar-se dela.
E agora, era bem feito! Não sabiam nem onde ela estava. Todo mundo quisera isso. Mas era uma coisa
horrível, mais pesada que chumbo para se carregar. Pois ela era tão pequena e tão engraçada... Era
orgulhosa, teimosa mas indefesa. "O que é uma criança?", diz o iroquês. "Não se pode dar importância a
seus atos, pois ela não tem juízo. O que lhe deve o adulto?... Defendê-la enquanto ela se fortalece e cria
juízo!...
Mas Honorina fora arrancada e lançada ao vento!... Lembrava-se de quando ela lhe levava raminhos de
flores, quando lhe engraxava as botas para lhe agradar... Ela sempre o amara. Ele era seu preferido. Por
que a repudiara? Não compreendia mais. Era apenas uma criança! Não deveria ter deixado aquele
estúpido ciúme corroer seu próprio coração. E agora Honorina estava perdida, por culpa deles todos, por
sua culpa...
As lágrimas brotavam-lhe dos olhos... Esforçava-se por retê-las.
"Seguirei sua pista!... Irei até o fim do mundo. Farei aquela megera confessar. Eu a encontrarei,
Honorina... Vou trazê-la de volta."
A pequena Honorina em. preces. Fora assim mesmo que ela se anunciara da última vez. Ele havia ido
às ursulinas de Quebec para despedir-se dela, antes de embarcar com Florimond. Mas ela mandara dizer
pela madre superiora que estava rezando na capela, que tinha tido uma visão... e simplesmente se
recusara a vê-lo. Que cabeça-dura!..."
Enxugou os olhos.
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"Vou encontrá-la, cabeça-dura!.
Sozinho, acompanhava a beira do rio. Estava agora longe da cidade e ultrapassara as últimas casas,
dispersas em meio aos jardins e campos.
Ouvia apenas o roçar das plantas altas contra as botas e o sussurro dos insetos de fim de verão, cujo
número começava a reduzir-se pelas noites frias, agrupados em nuvens vorazes.
Maquinalmente dirigia-se para o oeste, tomara a direção oposta à de seu acampamento, um canto sob
os chorões que escolhera na extremidade oposta da ilha, num lugar pouco povoado, onde só havia, no
alto da colina, um velho moinho abandonado, por que o proprietário do lote nunca trouxera um
contingente de pessoas para povoar essas terras. Os sulpicianos que as haviam cedido estavam em
negociações para retomá-las, mas o caso se arrastava, e o lugar, enquanto isso, continuava a ser domínio
da caça aquática. .
Cantor de Peyrac desembarcara ali pela manhã. Não se aproximara da ilha de Montreal sem precaução,
e após uma série de manobras destinadas a confundir sua pista, e a encontrar em cada etapa seu
companheiro Wolverines, seguia-o ao longo do rio. Dotado de um instinto que o avisava a distância de
suas intenções, o animal esperava-o sob um arbusto no lugar onde o jovem viajante deixava a barca ou o
navio em que conseguira passagem por um dia para subir o Saint-Laurent, ou então Cantor, sentado
junto à fogueira na noite do litoral, via-o surgir ao cabo de algumas horas, dando grandes saltos cómicos.
A canoa servira-lhe para fazer o animal atravessar. E agora, o glutão estava na ilha. Era preciso agir
depressa, antes que os cães ou os índios ou habitantes, lavradores, pescadores, caçadores ou casais de
namorados o descobrissem e anunciassem sua presença.
Cantor de Peyrac tinha dè arquitetar um plano. Mas precisava acalmar dentro de si aquele furacão de
inquietação que o submergira.
Esforçou-se por se acalmar e encontrou consolo na lembrança de todas as brincadeiras que fizera com
Honorina, aquele diabrete de cabelos ruivos. Pois, no fundo, os dois entendiam-se muito bem. Muitas'
vezes empoleirava-a nos ombros para fazê-la dançar e saltar "como os índios" em suas danças
guerreiras, gritando “iu! iu! iu!", e uma noite enluarada levara-a, às escondidas, para escutar o coro dos
jovens lobos, chegando bem perto para vê-los.
Uma voz de rapaz cantando sobre a água chegou até ele.
"A seis de maio do ano passado,
Fui lá para cima...
Para fazer por lá uma longa viagem...
Ir aos países altos
Em meio a todos os selvagens..."
Cantor levantou a cabeça e viu que o nevoeiro que vinha de longe recobria o rio. Ele passaria e iria
pendurar-se na beirada do monte Royal para o norte. Ou então se dissiparia como por encanto. O outono
era uma estação clara e alegre, de cores quentes mas breves.
Por trás do nevoeiro, a voz melodios a continuava:
"Quando a primavera chega
Os ventos de abril sopram em suas velas
Para voltar a meu país
Na extremidade de Saint-Sulpice
Irei saudar minha amiga
Que é a mais bonita..."
Uma barca despontou, saindo do nevoeiro, conduzida apenas por um rapaz de dezoito a vinte anos,
robusto, no qual Cantor reconheceu Pedro Lemoine, terceiro filho de um negociante de Ville-Marie. O
mais velho, Carlos de Longueil, servia como tenente no Regimento de Saint-Laurent em Versalhes e
fazia parte de sua companhia.
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Depois de se olharem, cumprimentaram-se. Pedro Lemoine passara também uma rápida temporada na
corte. Apesar da pouca idade, era um marinheiro emérito, que já conduzira navios na travessia do
oceano.
—Julgava que você estivesse na França. Traz notícias de nosso irmão Carlos? Tivemos notícias dele
recentemente por Tiago, meu irmão do meio, que voltou na escolta do Sr. de Gorrestat, o novo
governador.
Ao ver Cantor franzir o sobrolho, acrescentou:
—Isso não quer dizer que estejamos de acordo com ele. Ele é meio louco, o Tiago. Fez parte do
conchavo contra o Sr. de Frontenac. Mas tudo isso vai se acalmar com o inverno que se aproxima... E
você, teria chegado também com o governador?...
— Vim para procurar minha irmãzinha, Honorina de Peyrac.
Pedro Lemoine, amarrando o barco numa estaca à margem do rio, saltou para a terra. Estava se dirigindo
a Lachine e decidira fazer uma parada, enquanto o nevoeiro se dissipasse.
—Sua irmãzinha, você diz? — perguntou, com um ar pensativo. — Imagine que há menos de três
semanas ela estava aí, bem no lugar onde você está. Estava aí, sozinha, tão pequena e carregando um
grande alforje. Eu a vi. Disse-me que queria ir até o solar do Lobo, à casa dos tios. Levei-a em minha
barca e deixei-a não muito longe do solar.
—Meu tio De Sancé! — exclamou Cantor, iluminado, pois via ali uma pista para encontrar Honorina.
Dera pouca atenção à descoberta de uma parentela no Canadá. Já bastavam todas aquelas que
Florimond desencavava em Paris.
Subiu por sua vez na barca do jovem canadense. Obteria mais informações lá embaixo. "Ora, vejam,
aquela danadinha!", dizia consigo, todo animado, "como soube se arranjar direitinho..."
Um vento fresco dissipara as brumas. Cruzaram uma barca carregada de crianças. Os jovens de
Montreal passavam a vida sobre a água, manobrando velas.
Mosqueadas de branco, as corredeiras se anunciaram a montante.
Pedro Lemoine deixou Cantor na extremidade inferior da costa. Disse-lhe que se preparava para partir
para o alto Saint-Laurent e que, se quisesse encontrá-lo, estaria em Lachine, onde ia recolher bagagens e
mercadorias.
CAPITULO VII
Mariângela do lobo
Um elfo de cabelos loiros descia a campina, ainda verde, correndo e dançando, vindo em sua direção.
Tinha um olhar que lhe pareceu familiar. Achou-a imediatamente muito graciosa e, quando ela parou a
alguns passos para examiná-lo com ar pensativo, lembrou-se de que uma das filhas daquele tio,
reencontrado após um silêncio de quase trinta anos, teria, diziam, os traços semelhantes aos de sua mãe,
Angélica de Peyrac, nascida Sancé de Monteloup. O que, na ocasião, lhe parecera impossível. Em seu
foro íntimo, devia retratar-se.
Não seria mais o único a evocar um rosto que fazia o rei suspirar quando ele aparecia, o que ao mesmo
tempo lisonjeava e causava alguma inquietação ao jovem pajem, portador, a contragosto, de sombrias
lembranças para Sua Majestade.
Esta era uma evidência que acarrateria outra. Os dois jovens pareciam-se de tal forma um com o outro
que acabaram por rir.
— Prima, abracemo-nos! Como se chama?
— Mariângela. E você, suponho que seja Cantor, não?
Olhava à sua volta e começava a se surpreender por não ver ninguém mais, como se a jovem com jeito
de fada fosse a única habitante de um domínio adormecido sob efeito de um súbito encantamento.
Ela o avisou que seus pais estavam ausentes. Tinham sido chamados a Quebec e tiveram que partir
para a capital, a fim de acolher o governador que substituía o Sr. de Frontenac. O que não impedira que
o tal governador chegasse a Montreal quase imediatamente após a partida do Sr. e Sra. do Lobo.
— Mas o que significa essa-maluquice de viagem e de correr por causa do governador? — gritou
Cantor, novamente transtornado. — As pessoas estão enlouquecendo?
— Gom efeito.
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— Por quê?
— Porque o governador e sobretudo sua esposa estão pondo o país inteiro de pernas para o ar.
Finalmente alguém que não se deixava iludir. Ela o mirava com os olhos claros e tranquilos, um pouco
trocistas.
— Por que você se desola tanto por não ver meus pais?
— Eles poderiam dar-me notícias de minha irmãzinha Honorina. Soube que ela tentqu encontrá-los.
— Se é por sua irmã que está preocupado, posso dar-lhe notícias dela.
Por pouco não a sacudiu, tão impaciente estava. — Você a viu?
— Não. Mas sei o que lhe aconteceu. Um índio trouxe-me notícias dela.
— Fale, eu lhe imploro.
— Primeiro ela foi escondida entre os iroqueses da missão de Khanawake, dos lados da Madeleine, em
frente a Lachine, e depois os índios a levaram para mais longe.
— Por quê?
— Para que escape àquela mulher que quer matá-la.
O pobre Cantor sentiu o peito dilatar-se sob o efeito de um alívio incomensurável.
— Oh, minha amiga, você me agrada — disse ele, passando afetuosamente o braço pelos ombros da
adolescente. — Venha contar-me tudo isso num lugar tranquilo, longe dos olhos curiosos que vêem de
longe.
Esperou que ela o fizesse entrar no solar, mas ela o levou para o lado das dependências de serviço,
introduzindo-o numa vasta construção, meio granja, meio entreposto. Ganchos dependurados do teto
prendiam lotes de peles. Num canto, uma boa parte da colheita de feno fora-
empilhada, e foi ali que se
sentaram.
Notou alguns objetos de toucador, um pente e uma escova colocados sobre uma arca, uma almofada,
uma manta e um braseiro como os usados nos navios.
Depois da partida dos pais, contava Mariângela, não demorou muito para acontecer. "Eles" tinham
voltado. E o problema é que ela não compreendera que daquela vez não fora por eles que tinham
voltado.
—Vi-os de longe. Sua carruagem estava parada embaixo, no grande prado, no Caminho do Rei. Não
sabia o que vinham fazer ali nem o que esperavam. Só o soube mais tarde. Mas era a garotinha que
estavam esperando, e foi lá que a pegaram.
—Senhor! — exclamou Cantor, lívido.
Ela colocou vivamente a mão no braço do primo.
—Ela escapou-lhes, eu lhe estou dizendo! Mas tenha paciência, deixe-me prosseguir minha história.
Eles voltaram no dia seguinte, esses franceses, como periquitos com seus saltos vermelhos, rendas e
plumas. Dessa vez subiram até o solar. A esposa do governador andava à frente. Eu disse a meus irmãos:
"Vamos sumir daqui! Vamos sair por trás e nos esconder no bosque". — Ela continuou: — Encontraram
a casa vazia. Mas, depois de sua passagem, eu não quis voltar para dentro da casa. Mandei meus irmãos
instalarem-se na cidade, os maiores com os senhores de Saint-Sulpice, onde fazem seus estudos, e o
mais jovem, em casa de minha irmã, casada com o oficial com guarnição no burgo de Saint-Armand.
Enquanto isso, alojei-me neste armazém. Alguns dias mais tarde, vi o índio que rondava pelas
imediações, procurando alguém para entregar sua mensagem. Chamei-o, e ele me contou tudo. Honorina
fugira com a ajuda de uma de suas irmãs batizadas da tribo dos agniers, e eles a esconderam, entres eles,
em Khanawake. Mas, quando viram que aquela mulher vinha procurá-la com tanta constância e quê seus
padres jesuítas, julgando agir cor-retamente, lhe davam ajuda, ficaram muito assustados. Então, con-
fiaram-na a uma caravana de cidadãos das Cinco Nações que, apesar de batizados, desejavam
reaproximar-se de sua nação iroquesa.
—Está salva!... — gritou Cantor, erguendo-se se atirando o chapéu para o alto. Agarrando as mãos de
Mariângela, fê-se girar numa ciranda entusiasta. — Minha irmã está salva! Priminha, você tirou de meu
coração um peso enorme! Essa caça podre, essas feras da corte não poderão mais persegui-la no fundo de
nossas florestas!...
—Não o tentaram. Dizia-se à boca pequena que a Sra. De Gorrestat não conseguia disfarçar seu
desprazer diante da inanidade das investigações.
— Que caminho tomaram os homens de Khanawake para ir ao país das Cinco Nações?
— Ignoro. O índio batizado me disse que o intinerário devia ficar em segredo para que a menina
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corresse o menor risco possível.
— Certo! Eu encontrarei... mas mais tarde. Antes, tenho de acabar com o demónio. E, creia-me, minha
amiga, não será coisa fácil livrar a terra da sua presença ímpia.
Como ele esboçasse um movimento para se despedir, a moça reteve-o.
— Anoitece. Você teria de ir pela estrada, pois essa parte do rio não é navegável à noite. Que faria se
voltasse à cidade e o reconhecessem? Fique até amanhã pelo menos. Será um dia novo, e suas forças
também. Vou buscar-lhe algo para comer.
Enquanto ela se eclipsava, Cantor deixou-se cair para trás no feno. Estendeu os membros doloridos.
Agora que estava tranquilo sobre a sorte de Honorina, sentia-se esgotado. Não tinha mais forças para
pensar em nada, permanecendo apenas pasmo com esse encontro com sua prima Mariângela. Era
verdade que se parecia com Angélica, e supunha de bom grado que esta devia ter a mesma vivacidade
airosa, em sua juventude em Monteloup. Tinha-a ainda quando, incitada por um trabalho a realizar ou
uma diretiva a ser dada, todas coisas urgentes, geralmente, dava-lhe vontade de correr, atravessar prados
ou casas, subir alegremente uma escada ou uma senda nos bosques, sem se preocupar com a idade ou
com a dignidade de sua posição.
O surpreendente era que Mariângela tinha também alguma coisa da alma de Angélica, e junto dela
sentia-se à vontade, como se ele a tivesse conhecido sempre, ela houvesse partilhado suas brincadeiras
no Plessis ou em Versalhes, em sua primeira infância.
Ela voltou com grandes fatias de pão, frios, um pichei de sidra. Enquanto ele comia, ela se estendeu
perto dele no feno-e lhe disse que seu pai lhe propunha partir para França para conhecer a vida de uma
jovem nobre francesa. Apoiado ao cotovelo, sentiu que ela o examinava com os olhos brilhantes de
satisfação.
Perturbou-se um pouco. Não devia esquecer que essas moças canadenses eram muito audaciosas.
Privilegiadas por seu sexo, num país em que faltavam mulheres, inocentes e naturais, como todas as
crianças que nascem fora das restrições ou das desigualdades de uma velha sociedade hierarquizada, não
se embaraçavam com os ares reservados, que lhes pareciam sem sentido. Os caminhos alambicados do
Amor descritos pela Carte du Tendre e as sutilezas das preciosas parisienses eram-lhes desconhecidos.
Os curas de suas paróquias e as religiosas que as ensinavam tinham muita razão em fazê-las passar sem
demora da férula da escola àquela do casamento. Desde os catorze anos, eram afáveis mulheres de
colonos, prontas a assumir a solidão do inverno, os nascimentos anuais, os trabalhos dos campos e do
estábulo, nos longínquos censos.
Mariângela do Lobo, aos dezesseis anos, quase dezessete, não sendo casada e não reconhecendo em si
qualquer vocação religiosa, achava-se numa situação que não tardaria a tornar-se difícil. Devia ser ao
mesmo tempo mais infantil e mais amadurecida que suas companheiras, nascidas e criadas como ela na
Nova França, mas que, do berço ao casamento, cresciam estreitamente motivadas por esse destino de
mulheres de pioneiros, de fundadores de famílias, que as esperava.
Ali, os anos de formação mundana não eram levados em conta.
— Primo, já não é tempo de nos tratarmos como parentes íntimos?
Levantou-se novamente para ir buscar uma grande coberta, que lançou sobre os dois, estendidos um ao
lado do outro, pois o frio do crepúsculo começava a se fazer sentir.
— Em que está pensaiído? — perguntou.
— O combate é para amanhã — respondeu, juntando as palmas das mãos sobre o peito e tomando a
atitude de um mor, bundo, com os olhos fechados.
Ficou-lhe grato por não lhe fazer outras perguntas e por, longe de procurar distraí-lo, ter-se posto a
dormir, depois de enterrar o narizinho confiante em seu ombro.
CAPITULO VIII
A ressurreição de Ambrosina — Cantor face a face com a diaba
A Sra. de Gorrestat, aliás, Ambrosina de Maudribourg, olhou ao seu redor com mau humor.
Estava diante da penteadeira, que, por instantes, lhe devolvia o reflexo de um rosto ao qual não estava
ainda totalmente habituada.
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Pouco adiantava maquilar-se com habilidade, endireitar os cachos junto às têmporas e bochechas,
havia certas protuberâncias, certas cicatrizes que não conseguia apagar inteiramente.
Ali estava ela, no centro daquela casa de grandes pedras achatadas, posta à sua disposição pelos
anfitriões de Montreal. Mesmo tendo de reconhcer que era muito bem mobiliada, sentia-se pouco à
vontade, desde que soubera que Angélica fora ali recebida antes dela.
A desaparição da filha de Angélica parecera-lhe um mau presságio.
Começou a experimentar o insólito dos lugares onde se encontrava.
Devia ter-se lembrado de que as terras longínquas exalam forças estranhas. Experimentara o mesmo
em Gouldsboro. Mas ali era pior, pois havia também o tédio, que vinha solapar sua febre de ação.
Era tudo tão entediante ali! Ao passo em que Gouldsboro...
Em primeiro lugar, havia Angélica. Uma mulher tão bela de se olhar, vivendo, conquistando, fazendo
sofrer. E saboreara cada minuto de aproximação, cada golpe desferido. Nada mais delicioso do que ver
obscurecer-se, devido a inquietação, a cor verde de seu olhar, quando lhe insinuava que Joffrey de
Peyrac, por quem estava tão loucamente apaixonada, tentava tornar-se amante da Sra. de Maudribourg.
Mas era Ambrosina que se entristecia ao lembrar-se disso.
Ele! Ele! Por que aquele homem galante, de sangue meridional, não cedera a seus avanços?...
Levara anos para compreender. "Ele me desprezava. Desmascarava todas as minhas mentiras. Desde o
primeiro instante, desconfiou de mim. Enquanto acreditava que ele caía em minhas armadilhas, cada
uma de suas perguntas insidiosas tinha por ob-jetivo me desmascarar..."
Ainda agora, rangia os dentes ao pensar nisso. Hoje, quando retornara ao local escolhido para sua
vingança, sentia a amargura invadi-la ao rememorar o longo purgatório vivido pela Diaba vencida.
Ah! quantos anos de fingimento!
E sem poder sequer oferecer a si mesmo o sutil e secreto prazer de torturar alguma tola esposa de
província roubando-lhe o marido, ou aquele, mais voluptuoso ainda, de ver cederem, diante de seus
encantos, as defesas masculinas de homens considerados incorruptíveis: eclesiásticos ou altos
funcionários devotos.
Tinha de ser prudente, inatacável.
Durante todos esses anos, nenhuma falha se insinuara em seu plano. Podia felicitar-se por não, ter dado
qualquer motivo de suspeita.
Uma amarga e inconcebível experiência, vivida em terras da América, a tornara prudente.
Primeiramente, fora uma silhueta discreta deslizando pelas ruas. Julgavam que ela se cobria com um
véu por viver à sombra de um amante rico, um homem idoso que voltara das colónias e que a tomara
como amante, um tal de Nicolau Parys.
Fora preciso esperar, dar as cicatrizes do rosto tempo de se apagarem.
No final das contas,- ©velho Parys era um bom comparsa e cúmplice.
Tanto um como o outro-se ativeram aos termos do contrato firmado entre eles numa noite sinistra, na
costa leste de Tidmagouche.
Ele a queria. Sempre quisera e continuava querendo aquela mulher ferida, desfigurada, mas cujo corpo
permaneeia-intacto. Queria se espojar sobre ela, como um porco no chiqueiro.
Quanto a ela, queria ser salva e escapar de seus inimigos, que a entregariam à justiça do rei, se tivesse
sobrevivido, como assassina, feiticeira e envenenadora.
Precisava desaparecer. Desaparecer para sempre.
O velho Parys satisfaria sua necessidade carnal com ela. Sempre preferira os velhos, nos quais o fogo
ardente de uma virilidade declinante exige, para se acender, muitos artifícios, nos quais, desde a
juventude, Ambrosina sempre fora perita.
O pacto foi concluído.
Nenhum escrúpulo, nem dela, nem dele, em assassinar Henriqueta Maillotin, que a ajudara a evadir-se,
em desfigurá-la e entregá-la aos animais selvagens da noite, que acabariam .por tornar irreconhecível
aquela jovem mulher que iria substituí-la no túmulo.
O navio se distanciara.
A França fervilhante permitia ao casal apagar os últimos vestígios.
No fundo das províncias, encontram-se> sem dificuldade, por bons escudos legalmente válidos,
notários" ou homens de negócios, e mesmo curas complacentes para passar papéis de casamento, ao
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simples enunciado de um nome de batismo, acompanhado de data e lugar de nascimento, igualmente
imaginários.
E, para se divertir, Ambrosina designara-se como nativa da província do Poitou. Mas essa fantasia
criou-lhe problemas depois. Pois essa identidade falsa lembrava-lhe incessantemente que, se conseguira
enganar a rival, nessa questão de origem, no final Angélica fora, de qualquer modo, a mais forte.
Por isso, longe de diverti-la, aquela evocação do Poitou provocava-lhe raiva. O que era excelente, dizia
consigo, para dar prosseguimento a sua vingança.
Pois, à força de ser tão ajuizada, apagada e discreta, não teria acabado por esquecer que só tinha um
objetivo em vista: vingar-se deles e, principalmente, dela? E por esquecer, o que era mais grave que
tinha uma missão a cumprir, imposta ademais por um amo que não suportava o fracasso?
Não fora tentada, por instantes, a esquecer? E então calafrios de terror a sacudiam, despertando seu
ódio por "eles", que a haviam colocado em xeque.
Ah! quantos anos fingindo, espreitando no espelho a cura, e depois a ressurreição de seu rosto. Certos
vestígios jamais se apagariam. Não era isso o que mais a tocava. Não era mais totalmente a mesma, e
por vezes se felicitava por isso. Não era mais tão bela, tão jovem, e isso era culpa de Angélica, dizia-se,
pois parecera-lhe que a outra nutrira com sua derrota a própria beleza, a própria juventude. "Quanto mais
eu descia mais ela se tornava deslumbrante. Sim... até em Tidmagouche, quando estava doente, e eu a
mantinha à minha mercê..."
Acalentando suas ofensas, os anos haviam passado para Ambrosina, a reclusa, a apagada.
Os véus foram se tornando menos espessos. Os espelhos lhe anunciavam que podia reaparecer à luz do
dia, e chegou o momento de o velho Parys falecer, por efeito de alguma poção. E pouco depois, para ela,
sua viúva, de fugir para outra cidade e mostrar-se com o rosto descoberto e sob outro nome.
A seguir, tudo se passara conforme seus planos, longamente urdidos, segundo seus desejos.
Foi apenas depois de desposar, em Nevers, o Sr. de Gorrestat, intendente de província, que começou à
recrutar seus "fiéis": senhores arruinados ou criados sem escrúpulos, almas negras de sua espécie, que
atrelava a sua fortuna e que, bem pagos, bem recompensados de mil maneiras, se encarregavam, sob sua
ordens, de intrigar, comprar alianças ou cumplicidades e, se fosse preciso, reduzir ao silêncio os
"estorvos".
O primeiro desses servidores não era, sem sabê-lo, aquele homem de pouca inteligência e muita
vaidade, mas munido de apoio seguros e relações importantes, que transformara em marido, o Sr. de
Gorrestat?
Muito rapidamente e atenta a todas as oportunidades, encorajara-o a se ocupar dos negócios coloniais,
depois a pleitear um cargo na Nova França. Múltiplas intervenções obtiveram para ele sua nomeação
como governador interino, durante a viagem do governador efetivo, o Sr. de Frontenac, obrigado a ir a
Paris explicar-se com seu soberano. No pé em que estavam as coisas, já se podia considerar certa a
desgraça de Frontenac, e seu substituto, vice-rei por vários anos.
Para Ambrosina, sua esposa, que se fazia chamar Armanda, nascida Richemont, e que todos
admiravam por acompanhá-lo tão corajosamente àqueles longínquos e rudes países, houvera duas
semanas em Paris onde se introduzira em algumas repartições. Havia algum tempo, pedira, por
correspondência entregue por homens da lei, que se mandasse esclarecer o caso do La Licorne. Não
deixava de ser engraçado reclamar, sob pretexto de parentesco, notícias da Sra. de Maudribourg e de sua
expedição.
Depois, dirigira-se a Versalhes, para uma reverência ao rei, que não a notou de modo algum.
Uma reverência supérflua, entretanto. Junto ao batente de uma porta, o olhar verde de um adolescente
fixara-se no seu, com um súbito clarão.
Prontamente a carruagem dos Gorrestat tomava o caminho do Havre, e Ambrosina rejubilava-se por
afastar-se da capital e fazer-se ao mar.
Não receava as travessias. E pouco lhe importava começar pela província do Canadá, como exigia seu
novo título de mulher de governador. A primeira vez viera como uma benfeitora, livre para ir aonde
quisesse. Mas, dessa vez, tinha de passar por Que-bec, e armara-se antecipadamente de paciência,
preparando seu sorriso mais gentil.
Mas... o que todos eles estavam pensando?...
Seu objetivo não era ser incensada por aqueles xucros coloniais.
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Nunca tivera a intenção de ficar mofando em Quebec, uma cidade dos antípodas gelados, que tinha a
pretensão de passar por capital. Uma "pequena Versalhes", dizia aquele ridículo Ville-d'Avray. E
Frontenac, o bufão, acreditava nisso.
Mas sua nova função a obrigava a descer até lá, a ser ali recepcionada e aclamada, se fosse preciso. Por
outro lado, isso não era de todo inútil, pois pretendia acertar ali alguns contenciosos com aqueles que,
conforme soubera, haviam apoiado seus piores inimigos, Joffrey e Angélica de Peyrac, e pedido a
desgraça do Padre Sebastião d'Orgeval. O anúncio de sua morte a espicaçara.
"Mais tarde, Gouldsboro", dissera a si mesma. "Paciência, pelo tempo que for preciso..."
Tivera razão.
Desde os primeiros dias de navegação no Saint-Laurent, o presente lhe apresentava imagens do
passado. E já estavam mortos os que deviam morrer. Ah! como se alegrara vendo balançar, pendurado às
vergas de sua nau capitânia, o Tenente de Barssem-puy, que a odiava por ter mandado executar Maria, a
Meiga, sua amiga!
"São ingleses!", conseguira convencer seu esposo, o novo governador. "Traidores inimigos, que
conseguiram penetrar no estuário do Saint-Laurent... Execute-o para mostrar que não é, como o
governador Frontenac, indulgente com esses inimigos da França e com os huguenotes franceses
renegados, seus aliados."
Pena que, por causa do nevoeiro, não se tivesse podido capturar toda a tripulação do pequeno iate, que
navegava arvorando o pavilhão de franquia do Conde de Peyrac!
E em Quebec, sentindo-se reconhecida e suspeita em certos olhares, fizera prontamente justiça.
Infelizmente, aquela tola da Delfina e a gorda proprietária do Ao Navio de França, cuja antipatiapudera
perceber, tinham-lhe escapado por entre os dedos... Por quê? Como?... Inquietava-se, sentindo vacilar a
infalibilidade de suas astúcias.
Considerara uma volta afinal da sorte e da proteção oculta, da qual começava a duvidar, saber que a
filha do Conde e da Condessa de Peyrac — a menina para a qual Angélica apanhava ame-tistas nas
praias de Gouldsboro — era interna na instituição das religiosas da Congregação de Nossa Senhora, em
Montreal.
O acaso entregava-lhe a filha de seus inimigos. Lambia os beiços, antecipadamente. O Diabo, desta
vez, estava do seu lado. A ilha de Montreal, a montante do rio, ficava longe, mas os prazeres que antevia
nessa captura e nos sofrimentos que infrigiria a pequena vítima compensavam os aborreciamentos
daquelas viagens fluviais em meio às homenagens, que sentia serem falsas e perigosas, daqueles
colonos-aldeões grosseiros, que queriam ser chamados de "habitantes" e que se consideravam como
senhores pelo simples fato de terem recebido direitos de caça e pesca.
Mas quanto mais os detestava mais se rejubilava, pois teria muitas oportunidades mais tarde de fazê-
los pagar por sua arrogância. E começava a aceitar, a rigor, uma estação nos gelos da pequena corte de
Quebec, já que lhe anunciavam que não podia ser de outra maneira. "Mais tarde, Gouldsboro... Você
pode esperar. Gouldsboro, tornarei a encontrá-la! A vingança é um prato que se come frio," E repetindo
interiormente o ditado, explodia num riso estridente. "Muito frio!..."
Podia esperar aquele prato de resistência depois de oferecer a si mesma em Montreal o de raptar a
pequena Honorina, torturá-la até a morte e enviar, uma a uma, as provas do crime a sua tão odiada, tão
desejada, tão maldita inimiga, Angélica, de beleza estonteante, possuidora de um incompreensível poder
de sedução, Angélica, a mãe daquela criança.
"Partamos rapidamente para Montreal", dissera ao esposo; "é preciso que conheçamos todos os nossos
administrados antes do inverno, e que apaguemos em cada um deles a lembrança do governador anterior,
o Sr. de Frontenac."
Sim, tudo andara muito bem até então. Até o momento em que se encontrara diante daquela menina
enfurecida, que se pusera a urrar, tratando-a de envenenadora: "É a Dama Lombarda! É a Dama
Lombarda, a envenenadora..."
Quanta paciência e abnegação aparente tivera de demonstrar para apagar a má impressão da cena!
Aquelas pessoas do Canadá tinham uma proteção ridícula a adorar suas crianças e a dar-lhes razão em
tudo.
Conseguira afastar Madre Bourgeoys, fazendo que fosse convocada pelo bispo em Quebec, e também
os tios de Honorina, pois era com desprazer que tomava conhecimento de haver naquelas paragens um
irmão de Angélica. Tudo isso era exatamen-te desagradável. Deve-se'desconfiar da coalização oculta dos
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membros de uma mesma família; cria-se entre eles, mesmo entre aqueles que pouco se conhecem e não
se dão bem, uma cumplicidade natural, de uma espécie mal conhecida, mas de ondas poderosas.
Conseguira pois afastar da criança seus protetores importantes; foi procurá-la no convento e, ao saber
que fugira, conseguira capturá-la de novo. E depois, novamente, um inexplicável revés. Sua presa
desaparecia. Desvanecia-se, melhor dizendo. Todas as investigações, uma fortuna distribuída, tudo em
vão.
Ambrosina agora via claramente. Não fora por culpa de um enfraquecimento pessoal de suas
faculdades, alteradas por uma inércia demasiado longa, durante anos de desterro numa província da
França, não fora pela perda da proteção satânica, que jamais lhe faltara, não fora sequer pelo fato de os
franceses e os índios do Canadá se revelarem menos maleáveis, menos fáceis de enganar que os
humanos do Velho Mundo, que Ambrosina, a Diaba, se via posta em xeque. Mas porque, uma vez mais,
atacara a "eles". Era-lhe pois preciso concluir que a menina era tão perigosa quanto a mãe.
Pior ainda!...
O que havia afinal naquela família que lhe era tão adverso?...
Espalhou à sua frente, sobre a penteadeira, o conteúdo dos dois cofrinhos encontrados no alforje da
criança.
E, diante daqueles objetos heteróclitos de valor desigual, uma turquesa, por exemplo, e plumas,
conchinhas, um dente de ca-chalote gravado, adivinhava que alguns deviam ter pertencido a Angélica,
antes que os desse à filha.
Ali havia largada uma mecha flocosa dos longos cabelos ruivos que ela mesma arrancara da cabeça da
menina, ao maltratá-la com raiva. Pegou aquela mecha entre o polegar e o indicador, fazendo-a deslizar
na outra mão.
Onde estava ela agora, aquela pequena miserável? Como alcançá-la? Causar-lhe infelicidade?
"Podem-se fazer muitas coisas com cabelos..."
Em Paris, teria uma pletora de endereços úteis, nomes de adivinhos e adivinhas, que se podiam visitar
em seus covis. Mas ali...
"Devia ter providenciado os serviços de um mágico."
Teria podido fazê-lo, sem atrair a atenção da polícia e acarretar, consequentemente, suspeitas e
investigações?
Passando por Paris, quisera consultar a mais famosa das feiticeiras, a Mauvotsiíi, chamada La Voisin.
Ao se aproximar de sua casa, vira saindo de lá um grupo de "missionários", daqueles padres
pertencentes à or-de-nx fundada pelo Sr. Vicente de Paulo para pregar à gente humilde, e aquilo lhe
parecera inquietante e insólito, motivo pelo qual se afastara precipitadamente. Dois dias depois, Paris
inteira tomava conhecimento da prisão da adivinha em causa. Ambrosina tremia só de lembrá-lo. E, por
trás daquela prisão, sempre o horroroso policial Francisco Desgrez.
Por causa daquela personagem, sua partida para o Havre assumira o aspecto de uma fuga. Como da
primeira vez, quando lhe escapara no momento exato em que fora prender sua amiga íntima, a Marquesa
de Brinvilliers.
Dessa vez, o policial atingia o cerne da fortaleza dos envene-nadores.
Como as notícias correm, o Sr. e a Sra. de Gorrestat ainda não tinham embarcado quando souberam
que La Voisin era acusada de tentativa de envenenamento do rei. Atenaís de Montespan fugia da corte.
"Se ela for interrogada, dará o meu nome. Foi outrora, com minha cara Brinvilliers, uma de suas mais
assíduas clientes... Mas que importa que me nomeie? Estou morta", morta!"
Deu uma gargalhada que finalizava numa cachota macabra e sem eco.
— A Duquesa de Maudribourg está morta! — disse, em voz alta.
Mas não pôde deixar de olhar em torno, medrosamente.
Não era uma coisa injusta?
Sempre fugir. Sempre esconder-se, sempre dissimular.
Entretanto, Ambrosina sentira-se aliviada por poder fazer-se ao mar, refugiar-se no Novo Mundo —
onde poderia se manter incógnita com mais facilidade, como da primeira vez —, escapando, num
refluxo imprevisível das circunstâncias, àquele Desgrez e a seu mestre, o tenente de polícia do reino, Sr.
de La Reynie, ambos cães de fila do rei..
Seria preferível não deixar em sua passagem nenhuma pista que pudesse ser farejada.
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Contava com o Sr. de Varange, perito na arte de feitiçaria e que a esperava em Quebec, para a função
de mágico.
Ora, eis que lhe anunciavam sua morte... e há muito tempo. Desaparecido, efetivamente. Seu
desaparecimento coincidira com a visita que o Sr. e a Sra. de Peyrac tinham feito a Quebec.
Por que Varange desaparecera no momento em que "eles" chegavam? Como se quisesse ceder-lhes o
lugar...
Uma suspeita assustadora começou á apoderar-se dela.
'Eles' também estão por trás dessa morte... desse desaparecimento", disse consigo.
"Foi ela que o matou!", exclamou.
Estava tão segura de seu pressentimento que não mais conseguia discernir se estava se deixando levar
por divagações obsessivas ou se estava sendo avisada magicamente da realidade.
Angélica matara o Sr. de Varange. Só podia ter sido ela. Onde? Quando? Por quê? Como adivinhara
que o velho debochado era seu cúmplice? Impossível sabê-lo. Mas fora Angélica quem matara o Conde
de Varange.
"Vou gritar em toda a parte que foi ela quem o matou, e... vão me considerar louca. Serei olhada com
suspeita... Mesmo esse Garreau d'Entremont, que só espera uma denúncia nesse sentido... Ele também
sabe que foi ela que matou Varange."
Mas pediria provas...
Essa nova polícia, que o rei pusera em ação, exigia provas. Antigamente, bastava recorrer à delação, à
acusação, à pecha de feitiçaria.
Hoje, queriam provas...
E a flor da nobreza da França seria enviada à Bastilha ou ao exílio, e, mesmo, à guilhotina, por culpa
dos cadáveres de crianças recém-nascidas, imoladas nas missas negras, muito bem pagas, rezadas sobre
um ventre de prostituta. Que visão ridícula e despropositada! Que importância tinham esses bebés sem
nomes, verdadeiras larvas humanas, em comparação às grandes personagens que pagavam um preço tão
alto por sua imolação?
"Larvas humanas, ignóbeis larvas brancas retorcendo-se e bocejando", repetiu, torcendo a boca numa
careta de asco, "sem nome e nem mesmo batizadas... Ah! sim. Parece que La Voisin ou outra comadre
as batizava antes de enfiar-lhes a agulha no coração... Idiota."Ela vai pagar caro por haver arrancado a
Satã sua presa..."
Provas! Não podia acusar Angélica sem apresentar provas!
Deteve abruptamente a louca progressão de seu pensamento. Não devia mais fazer projetos. Sentia
medo. O Medo! Era a primeira vez. Por não tê-lo experimentado nunca, adivinhava que era o medo que
lhe apertava a garganta.
Cometera um erro por esquecer.
Esquecer o que acontecera na Acádia. O Fracasso! A Derrota total! Mas sobrevivera, com a única
finalidade de concluir sua missão. Senão, não tinha razão alguma para sobreviver. Se não o conseguisse
desta vez, não lhe concederiam sobrevivência. O medo e o ódio dilataram-lhe o coração, despertando
nele espasmos voluptuosos. Suas mãos se abriam e fechavam no desejo de apertar um pescoço de
criança, um pescocinho branco e firme, muito ereto, muito belo, o de Honorina, que trazia em si a dor
possível de Angélica.
"Ah! como odeio as duas!..."
A frustração e o desejo das visões entrevistas atormentavam-na desvairadamente.
"Que volúpia!", repetia baixinho com unrlongo suspiro, nascido do mais profundo de suas entranhas.
Suas entranhas despertavam. Graças a Deus!, teria dito, se um pacto interior feito com as forças
infernais não lhe proibisse empregar esse vocábulo, a não ser em voz alta e para enganar. Como é difícil
afinal habitar uma carne tão fraca! E eis que, fora de qualquer estratégia, desejava um amplexo amoroso
para acalmar ardores quase dolorosos, inspirados pelas evocações lúbricas de seus projetos frustrados, de
sua vingança inacabada.
Queria muito gozar, mas não sofrer, e seu corpo pareceu-lhe fraco, subjugado, suplantado por forças
que ela mesma desencadeara.
"Tornei-me realmente, eu também, uma criatura humana?...", indagava-se com terror.
A voz de um serviçal informando-lhe que um homem jovem desejava falar-lhe chegou ate ela.
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— Mande-o entrar!
Sentiu uma presença no limiar do aposento, a alguns passos, e voltou-se.
Estremeceu-se violentamente. Mistura de medo e de satisfação. Aquele que acabava de entrar era uma
resposta a suas dúvidas e indecisões. Preferia o corpo-a-corpo com o adversário.
No corpo-a-corpo era a mais forte. E quando se tratava de um belo jovem como esse, a vitória estava
assegurada de antemão. Ela podia fazer as mulheres chorar, destroçá-las, destruir-lhes a existência, mas
não domá-las, exceto algumas. Enquanto esses machos imbecis, escravos de seus sentidos e de sua
vaidade, era muito fácil levá-los a ceder, de joelhos tremendo.
Entretanto, havia também o medo.
Desde que se sentira reconhecida por ele em Versalhes, na an-tecâmera do rei, uma surda certeza a
obsedava, a de que ele não permaneceria lá. Eis por que quisera mandar matá-lo imediatamente. O
atentado fracassara, então?
O receio não cessara de atormentá-la. Ridículo! Pois, chegando ao Havre com o esposo, embarcara
para a Nova França.
Apesar disso, não parava de imaginar aquele Cantor de Pey-rac, que tinha os mesmos olhos da mãe,
procurando saber mais coisas a respeito dela. Embarcando talvez em sua perseguição. Estava tão
convencida disso que, ao sair de Quebec para Montreal, previra sua vinda. Descrevera-o a seus homens,
que deixou à sua espera no lugar, e dera-lhes ordens precisas a seu respeito e do glutão. O animal fora
morto, mas ele, como lhes escapulira novamente?
Ele tirou graciosamente õ" chapéu de feltro e saudou profundamente.
— Senhora, está me reconhecendo?
— Certamente — disse ela, levantando a cabeça com desafio '—, e não me cabe nenhum mérito, pois,
desde Versalhes, você me persegue. Posso saber por quê?
— Reconheci-a, senhora, quando todos a julgavam morta há vanos anos. Não é normal ter querido
assegurar-me de que meus olhos não me haviam enganado?
— Uma curiosidade tão desmedida, que o impele a vir aos antípodas para satisfazê-la? Está
gracejando, senhor!... Ou mentindo...
— Senhora, ao meu ardor e à minha paixão, que importam os mares a atravessar... Nada representam
quando,se„trata de me assegurar desse milagre. Você está viva! E, com efeito, tratava-se, para mim, ao
me lançar em seu encalço, de satisfazer desejos muito diversos de uma simples curiosidade. Oh! senhora
— prosseguiu, sem deixar-lhe tempo de perceber nele e nela a falsidade daquelas declarações —,
quantas lágrimas derramei, quantos remorsos me atormentaram, quantas saudades me dilaceraram! Você
foi tão maltratada na praia de Tidmagouche, e tão injustamente! A loucura dos homens não tem limites
quando o ciúme se apodera deles. Eis, portanto, o que eu tinha a lhe dizer, e por que atravessei os mares,
já que um acaso abençoado me permitia, implorando seu perdão, apaziguar minha consciência.
Acredita nele? Havia nos olhos puxados de Ambrosina clarões frios e fixos, assassinos. Ela repetiu:
— Viram-no correndo em Quebec...
— Eu estava à sua procura.
— Não acredito em você, belo pajem.
Como era belo esse Cantor de Peyrac! Seu nome e sua beleza faziam ao mesmo tempo rilhar os dentes
e subir água à boca.
Em Versalhes, quando por ali passara, ouvira mexericos a propósito de uma das damas de honra da
rainha, que estava louca por ele. A tal ponto que, em vez de censurá-la e desfazer-se dela, a rainha, que a
apreciava muito, concedera-lhe um feriado de amor ilimitado, deixando-a "arrulhar" seu jovenzinho até
não poder mais.
Pequeno deus, pequeno senhor, investido já de poder e de arrogância, ali estava naquelas plebeias
províncias, tendo deixado tudo por ela afirmava ele.
— Está me ferindo, senhora, duvidando de minha lembrança e de meu fervor. De que modo poderia
provar-lhe esses sentimentos senão cometendo a loucura de persegui-la? O que eu procurava nessa
corrida insensata? Veja! Julgando tê-la reconhecido, abandonei imediatamente meus cargos na corte.
Arrisco-me à desgraça junto ao rei... Mas não pensei em nada!... Quem faria tal gesto senão impelido
pelo ardente e sincero sentimento que ouso confessar-lhe? Não reconhecê-lo é lançar-me ao desespero e
desconhecer também a força dos ardores que me inspira. Ah! Sra. de Maudribourg. Pronuncio este nome
sem mesmo acreditar.
23
— Psiu! — fez ela, vivamente. — Com efeito, não o pronuncie.
Olhou em torno com terror. Seu ser se desdobrava. Ela era ainda, mas com dificuldade, a Sra. de
Gorrestat, mulher do novo governador, tendo já conquistado os edis da colónia, e estabelecido a
reputação de dama caritativa e casta, mas, desde que ele surgira, era sobretudo aquela mulher
aventureira do Novo Mundo — como esse papel lhe agradara! — que alguns anos antes passara, nas
praias da Acácia, por uma odisseia secreta, cujas peripécias nutriram incessantemente suas lembranças
com fantasmagorias.
— Tidmagouche!... — disse, com amargura. Os cantos da boca descaíram-lhe, e adivinhou que o
trejeito a enfeava. Mas não pudera refreá-lo. — Tidmagouche, não me lembro de você ter me tratado
com justiça.
— Eu era apenas uma criança.
— Era isso o que me agradava — disse ela, numa voz estrangulada, com um sorriso matreiro e cruel.
"Dane-me, Senhor, por meu pecado", pensou ele, "mas, pelo menos... que minha carne sirva para
issc^L. aturdi-la, perdê-la, mistificá-la!"
Foi invadida por um tremor. Explodiria em insultos, cuspindo fogo e chamas, como na praia de
Tidmagouche, ou, ao contrario, esse estremecimento era o sinal precursor de.sua rendição? Ele notara
suas fraquezas,"sêus receios. Tiraria partido disso, ao mesmo tempo para levá-la de volta ao passado e
fazê-la temer o presente. Não queria ser reconhecida. Ainda não eliminara totalmente testemunhas
perigosas de seu passado. Havia vários pontos em que não tinha segurança, em que precisava ser
assegurada. Sua beleza, entre outros, suas possibilidades de sedução...
— Então é você realmente — sussurrou, fingindo-se deslumbrado. — Reagiu a seu nome. Ainda me
restava uma dúvida...
— Por quê?... — lançou, com ansiedade. — Mudei tanto assim?
— Sim, mudou, mas mesmo assim a reconheci. Que mistério explica que seja mais bela do que em
minha lembrança, mais próxima de meu sonho, Sra. de...
— Não me nomeie — intimou-o novamente.
— Ambrosina, então! Ambrosina! Esse nome cheio-de encanto preencheu minhas noites, cantando
incessantemente dentro de mim...
Avançou imperceptivelmente para ela.
Os olhos verdes defrontavam-se com o olhar de âmbar, depois apoderaram-se dele, e essas duas luzes
se aniquilavam numa espécie de trégua, um arrefecimento passageiro da luta.
Ela sentiu junto de si aquela carne rija de um homem muito jovem, e dediciu acreditar nele, pois disso,
dessa sólida e segura sensualidade primitiva, tinha daí em diante uma fome e uma sede devoradoras. Sua
necessidade dele devastava tudo, sacudia-lhe o corpd, mas chocava-se-com a onda contrária de sua
desconfiança demoníaca. Havia em seu ser um debate incoerente. Reconduzida a uma vida longínqua,
esquecida, apagada, em que ele fora quase o mesmo diante dela, numa praia, um pouco mais jovem
apenas, mais criança, perdeu o controle de suas palavras.
— Todavia você estava com aqueles que se lançaram sobre mim para me massacrar!
— Deus me livre disso; tive, ao contrário, piedade de você, da violência que era cometida contra você
naquele momento. Creia-me.
As pupilas de Ambrosina brilharam com um clarão venenoso.
— Não acredito em você — repetiu. — Lembro-me de sua maldade quando, em Gouldsboro, eu
tentava agradá-lo.
— Eu era apenas uma criança, minha cara, assustado com o amor e o domínio da carne, que me eram
desconhecidos.
— Bem que eu quis iniciá-lo.
— Tive medo.
— Tinha medo da cólera de sua mãe, que tinha ciúmes de mim. Por causa de minha beleza, que
rivalizava com a dela. E que me odiava porque eu conseguira seduzir seu pai e atraía o olhar dos outros
homens.
Cantor sentiu que empalidecia.
O horror e o asco comprimiam-lhe a garganta.
24
Felizmente para ele, ela se voltara para o espelho e se examinava, inconsciente de trair com essa
atitude uma inquietação quanto à perenidade de sua beleza e de seus poderes. Depois sorriu, serenada.
— Em seguida, ele me renegou e mentiu para satisfazê-la. E você também, pobre tolinho... Não ousou
contrariá-la... Não será um pouco tarde agora para vir implorar meu perdão?...
Nunca mais, jurou a si mesmo, enojado, ouviria mulher alguma murmurar-lhe palavras de encontro e
promessas voluptuosas. E, enquanto ela falava, ele a via virar e revirar nervosamente em torno do dedo
um longo fio de ouro vermelho, um fio de cobre, flexível, cintilante, que atraía o tempo todo seu olhar, a
despeito de si mesmo, até que compreendeu que eram alguns cabelos de Honorina, alguns dos longos
cabelos da ruivinha, que a harpia provavelmente arrancara do crânio dela, maltratando-a em sua fúria.
"Eu a matarei", disse consigo, com uma soturna intensidade dolorosa, a única capaz de ajudá-lo a
dominar sua cólera. "Eu a matarei, Diaba!... Que Deus me assista e sustente minha espada!..."
— "Elas" me desafiaram — resmungou Ambrosina. — Elas!... Apenas elas!... Elas me escaparam!... É
inadmissível! Isso exige punição!... Ah! como as odeio, às duas! Quanto a ele, não lhe queria mal... por
ter me repudiado. Não.'Era um homem. O homem tem todos os direitos. O homem tem o direito de ser o
mais forte. Pois é o mais fraco. Faço o que quero com eles, um dia ou outro. Mas as mulheres, não, as
mulheres não têm o direito de triunfar sobre mim! As mulheres me pertencem. Mulheres, quero-as
apenas como vítimas ou cúmplices! Quanto aos homens, não há o que temer deles. Mas elas, elas
zombaram de mim... Ah! como odeio às duas...
Um pouco afastado, atrás dela, adivinhava que estava falando de Angélica e de Honorina: Uma
candente indignação turvou-Ihe a vista. Sua mãe! E uma criança, sua meia-irmã!... Seja como for, uma
criança colocada sob Sua proteção, pois se tornara seu meio-irmão mais velho.
Como aquela horrível criatura ousava falar delas naquele tom diante dele?... Como se ele já fosse uma
aquisição indiscutível dela!...
"Tome cuidado!", intimou a si mesmo, esvaziando o cérebro de todos os pensamentos. "Que ela não
suspeite nada do que o agita..."
E surpreendeu o olhar que ela lhe lançava pelo espelho. Procurando adivinhar-lhe os pensamentos,
pronta a lançãr-se sobre ele, uma fúria, ao menor sinal, brilho de cólera ou de repugnância, que poderia
fazê-la suspeitar que ele não lhe era totalmente devotado. A seus pés... Acorrentado pelo desejo carnal
que o cegaria, tornando-o indiferente a tudo o que não fosse ela, surdo às aterradoras palavras que ela
pronunciava como que por descuido, a fim de provocar sua ira. A menor suspeita do que ele sentia
verdadeiramente decidiria sobre seu destino.
Mas ela não conseguiu ler nos olhos claros, fixos nela, nada além de uma impávida luz, essa fixidez
ausente, obsedada, quase imbecil, que uma cobiça ardente, estrangulada, empresta por vezes ao olhar
dos homens.
Tê-la-ia enganado? Gostaria de crer nisso. O suor molhava as costas do pobre Cantor, tomado pelo
medo de que pudesse alertá-la pelo quebrantamento de um só de seus "pensamentos.
Toda a astúcia e sangue-frio de seu pai se reuniam nele. Compreendia agora aquela força de
dissimulação do Conde de Pey-rac, que tantas vezes o irritara ou decepcionara, ferindo sua sensibilidade
infantil, embora também se abrigasse à sombra daquela força e se felicitasse com sua proteção.
Compreendia que a arma se forja pela virulência do inimigo, pela extensão do perigo, que a traição só
pode ser evitada com uma traição ainda maior.
Deu mais um passo em sua direção.
"Que minha carne sirva ao menos para isso", pensou, "que minha carne, que a subjuga, sirva para
isso... Para a salvação de todos!..."
Ela via tão próxima sua boca polpuda, firme, que capitulou, enquanto ele murmurava:
— Onde?... e... quando?...
Esse ultimato já dera certo anteriormente.
Fora Florimond quem lhe indicara algumas estratégias e fórmulas que, pretendia, eram irresistíveis.
Ela estremeceu da cabeça aos pés. O desnorteamento ávido que apareceu em seu rosto provocou-lhe
náuseas.
Ela respondeu, ofegante:
— Esta noite, na ponta da ilha, a jusante do rio. Ali existe um moinho abandonado... cercado de olmos
e de faias-pretas. E o nevoeiro se soma à noite para dissimular aqueles que não querem ser vistos.
Espera-lo-ei lá, junto ao bosquezinho...
25
O triunfo de Angélica na Nova França
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O triunfo de Angélica na Nova França

  • 1. Título: O triunfo de Angélica Autor: Anne e Serge Golon Título original: Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989 Publicação original: Gênero: Romance Histórico Digitalização e correção: Nina Estado da Obra: Corrigida Nos quase trezentos anos que se seguiram ao descobrimento da América, os franceses tentaram de todas as formas estabelecer um império colonial em terras do Novo ^ Mundo. Desde o início do séc. XVI, quando a ação isolada de corsários e comerciantes os levou a explorar o litoral americano, até o final do séc. XVIII, quando tiveram de se retirar, cedendo ao avanço do imperialismo inglês, os franceses chegaram mesmo a estender seus domínios por um considerável território — no Brasil, nas Antilhas, na América do Norte. O auge da presença francesa na America registrou-se durante o reinado de Luís XIV, quando o Canadá passou a ser uma colónia oficial, administrada diretamente pela Coroa francesa. O comércio e o povoamento foram incentivados, fundaram-se novas cidades, firmaram-se alianças com os nativos. Mas a terra nunca produziu as imensas riquezas ambicionadas, e a sólida presença inglesa na região acabaria por frustrar seus sonhos coloniais. Depois da Revolução, praticamente findava o poderio francês no Novo Mundo. Angélica e seu amor, o Conde Joffrey de Peyrac, viveram o auge do domínio francês em terras americanas. "Depois de tudo o que passei", conclui Angélica, "o céu bem que me deve a felicidade!" Num derradeiro gesto de esperança, Angélica correu o olhar pelo vasto horizonte ao longo da fortaleza destruída de Wapassu. Além, muito além das montanhas geladas do Canadá, do outro lado do oceano, o Conde Joffrey de Peyrac a esperava. Numa espécie de vazio causado pela saudade e pela angústia, sua mente rodopiou numa embriaguez vertiginosa. Ilusões! Vivera apenas ilusões! Sonhara com um Novo Mundo. Trabalhara para construí-lo. 1
  • 2. Amara todos aqueles lugares: Katarunk, Wapassu, Gouldsboro, Salem, Quebec. Todos, um a um, deixados para trás. O futuro que a aguardava era ainda um mistério, mas levaria consigo todas aquelas histórias com que preencher horas inteiras de numerosas vigílias e travessias. Reencontraria os amigos, e poderiam brindar e beber alegremente. Sua vida e sua obra não se apagariam. A lembrança de tantos momentos carregados de significados permaneceria como uma soberba promessa de felicidade. Agora seu desejo era navegar para a Europa num belo navio, numa viagem sem atropelos nem tempestades. Lá encontraria um esposo cheio de expectativas, para em seus braços se lançar, prometendo-se mutuamente uma vez mais: dali por diante, nunca mais iriam separar-se! O triunfo de Angélica Anne e Serge Golon Mais uma vez separada do marido, o Conde Joffrey de Peyrac, que partira para a França com o governador da colónia, o Sr. de Frontenac, Angélica não tinha a quem recorrer. Numa cabana perdida na imensidão gelada do interior do Canadá, diante das ruínas do que fora a fortaleza de Wapassu, destruída pelos canadenses comandados pelo Conde de Loménie-Chambord, ela não sabia o que seria de sua vida e das três crianças que a acompanhavam: seus dois filhos gémeos, os bebés Rodrigo Rogério e Gloriandra, além de Carlos Henrique, o enjeitado filho de Jenny Manigault, que tomara a seus cuidados. Os perigos pareciam brotar de toda parte: até sua filha Honorina fora obrigada a buscar refúgio entre os iroqueses, perseguida pela sanha vingativa da diabólica Duquesa Ambrosina de Maudribourg. A Diaba da Acádia e seu aliado secreto, o Padre Sebastião d'Orgeval, seus piores inimigos, como que ressurgiam das trevas. Quem viria em seu socorro: o Arcanjo da profecia? Como, se seu filho Cantor — identificado com o tal Arcanjo — acompanhava o irmão, Florimond, nas homenagens e divertimentos da corte do Rei-Sol, Luís XIV, em Versalhes, do outro lado do oceano? A VIAGEM DO ARCANJO CAPÍTULO I Cantor de Peyrac despede-se da amante e enfrenta os piratas O arcanjo estava no encalço da Diaba, desde a antecâmara do rei. Um pano de tapeçaria que se desloca, uma porta aberta para uma passagem estreita, dois ou três degraus a galgar. A crónica fala daqueles que conduziam do salão da Sra. de Maintenon à sala de bilhar, aonde o rei se dirigia todas as noites para jogar uma partida. Um pajem o precedia, para segurar o batente de tapeçaria, damas mergulhavam em seus brocados e uma delas se levantava. Dois olhares, um de ouro, o outro de esmeralda, que se cruzam. E na sombra dos labirintos de um palácio, Versalhes, se engolfa o ar salino de um litoral perdido da América, o odor de podridão do peixe que seca ao sol, uma mulher que urra ajoelhada diante de um corpo trespassado por um arpão: "Zalil! Zalil! Não morra!..." "E Ela, tenho certeza", pensara Cantor de Peyrac. No mesmo instante, enfiara um luís de ouro na palma de um lacaio próximo a ele. — O nome dessa mulher que acaba de cruzar comigo!... O lacaio não sabia, mas, estimulado pela fortuna que acabava cair-lhe do céu, não precisou mais de um minuto para voltar e msinuar-se na assembleia que formava um círculo em torno ao bilhar do rei, e sussurrar ao ouvido do belo pajem, tão generoso: — Sra. de Gorrestat. — Seu esposo? Qual é? Seus títulos? — retorquiu-lhe o pajem, doando-lhe. um segundo óbolo. 2
  • 3. Dessa vez o lacaio abandonou por uma hora seu posto de porta-tocheiro, calculando que, se aquela deserção arriscava atrair-lhe admoestações, custar-lhe-ia menos do que o que tinha a ganhar a serviço daquele jovem senhor. Antes do final da partida do rei, estava de volta e confiava a Cantor, junto ao seu ouvido, tudo o que conseguira recolher. Aquela senhora era a esposa do senhor governador do Nirvanais, recém-chegado a Versalhes por convocação do rei. Corria o boato de que esperava uma nomeação importante. Sua esposa, pessoa de qualidade, discreta e agradável, agradara à Sra. de Main-tenon, que a recebia entre suas damas, o que para elas constituía a melhor maneira de ficar junto ao Sol. Soube que o casal já se preparava para embarcar no Havre para o Canadá, do qual o Sr. de Gorrestat fora nomeado governador. Já no dia seguinte, soube que se tratava exatamente da "viúva" do velho Parys, que se casara com o Sr. de Gorrestat. Tudo se encaixava. Se queria munir-se prontamente do dinheiro para uma viagem além-mar, Cantor precisaria encontrar um expediente. Ele compreendeu. Não havia mais nem um dia, nem mesmo uma hora, a perder. Correu à casa da Sra. de Chaulnes, sua amante. Encontrou-a inquieta por não ver o seu jovem amante havia quarenta e oito horas. Sem querer dar-lhe as razões de sua brusca decisão, Cantor avisou-a que tinha de embarcar urgentemente para a Nova França e que, com esse intuito, teria necessidade de uma soma de vinte mil libras. A Sra. de Chaulnes pensou que o mundo se fendesse em dois. Deu um grito terrível, cujo eco não podia voltar-lhe aos ouvidos sem que se sentisse petrificada de vergonha, de aflição e de dilacerante concupiscência. Um grito de animal frustrado. —Não!... Não você!... Jamaisl Não me deixei... Ele a olhou com um estupor indignado. —Não sabe então, minha cara, que nada dura eternamente? Eis por que nos é preciso colher o fruto e saboreá-lo quando ele nos é dado... Você o sabia quando me recebeu em seu leito. Não existe nada perene no mundo!... Tenho de partir!... Ela o imaginava sozinho, galopando por caminhos, atacado por bandidos, afogado... —Mas o mar!... — gemeu. Ele riu. O mar?... Isso não era nada. Algumas semanas ruins balançando ao sabor das ondas, sonhando, cantarolando, ligado à sorte da nave que o conduz, uma questão de paciência! Sua juventude resplandecente inspirou-lhe o arrependimento de não ter sabido levar as coisas da vida alegremente, quando tinha a idade dele. —Você vai encontrá-lo?... O animalzinho dos bosques?... Cantor franziu o sobrolho. Uma sombra passou-lhe pelo rosto. —Não é certo que eu o encontre — respondeu, preocupado. —Ele o chamou? —Não sei... —Não descontente o rei... —Meu irmão tratará disso... Trocavam algumas palavras, enquanto a Sra. de Chaulnes abria cofres, depois caixinhas, e derramava na escarcela estendida de Cantor luíses de ouro, que nem se dava ao trabalho de contar. —Não o deixarei partir... —O dever não se discute, minha cara. —Mas afinal! O que se passa? Sua família lá na América está em perigo?... —Pior que isso! Ela deixou cair a cabeça em seu ombro, cobrindo-o de lágrimas. —Meu belo sire, pelo menos, diga-me... quem vai abater? —O Mal!... Ele se levantou. E ela se afastou. Via-o apenas através de um nevoeiro. Ia esperá-lo, rememorando seus gestos, seus raros sorrisos, suas palavras tão sábias. "Minha cara, não sabe então que nada é eterno?..." 3
  • 4. —Obrigado — gritou ele. — E reze! Reze por mim! Corria para a porta. —Não! Você não pode partir assim... sem me dizer adeus!... Num impulso confuso, Cantor voltou e tomou-a nos braços. Enquanto "ele a beijava, ela soube que ele era um homem, um homem que teria tanto sonhado encontrar na aurora de sua vida! Com o qual teria sonhado tanto viver, "dia após dia! —Espere, meu querido... Subitamente veio-me uma ideia... Dois diamantes de brincos pingentes, pérolas de um colar, que poderá negociar. Entregou-os a ele, encheu-lhe as palmas das mãos, fechou-lhe os dedos sobre as jóias como se ali estivesse seu pobre coração, que ela lhe confiava. Ele beijou as mãos generosas que seguravam as suas. —Obrigado. Obrigado. Falei com meu irmão para que a reem bolse o mais cedo possível. Ela gemia, já sem lágrimas. —Não. Fique com tudo... Será um pouco de mim que permanecerá com você. Ele se lançou aos seus joelhos como da primeira vez, abraçando-a. —Doce amiga, seja bendita!... A vida toda ela conservaria a lembrança daqueles braços jovens enlaçando-lhe os quadris, daquela fronte juvenil contra seu ventre. Morreria com esse viático. O único que guardaria, como o único tesouro de toda uma vida. Desvairada de dor, fez disso um juramento. Seu único viático de amor! A perseguição levou Cantor de Peyrac até o Havre-de-Grâce, um porto da Normandia. O navio que levava o governador provisório da Nova França, sua esposa e sua comitiva, fizera-se ao mar dois dias antes. Só restava esperar que a tempestade que acabava de se formar sobre a Mancha os deportasse até o golfo da Gasconha e os atrasasse, dando a Cantor tempo para conseguir uma passagem para si mesmo. Encontrou dificuldades. Frota e flotilhas de pesca sazonais, navios de comércio, encarregados do correio e de passageiros para a Nova França, já haviam embarcado todos em coro. As primeiras partidas efetuar-se-iam aproximadamente nas mesmas datas. Acabou por encontrar uma embarcação, retida por reparos indispensáveis de última hora. Era um patacho, mas, ao saber que a intenção do capitão era percorrer pelo caminho mais direto o Saint-Laurent, Cantor ofereceu uma boa quantia para subir a bordo. Sua experiência das travessias e dos navios ensinara-lhe que uma casca de noz rangente, provida de uma tripulação restrita, mas formada por sujeitos que se encontram o mais das vezes no mar, pode levar vantagem quanto à velocidade sobre os grandes monumentos de três pontes e vinte e cinco canhões. Soube também, pela cara dos marujos, que sua aparência e seus luíses de ouro exibidos não deixariam de suscitar intenções muito precisas em seus espíritos, como roubá-lo e assassiná-lo. Na segunda noite da viagem, duas silhuetas se insinuaram na despensa onde dormia, arremessaram-se sobre a forma ali estendida e, enquanto se ocupavam em lanhá-la a golpes de facão, dois socos violentos, aplicados na parte traseira de seus crânios, fizeram-nas adormecer de vez. Depois Cantor de Peyrac foi despertar o capitão e pediu-lhe que o acompanhasse a fim de verificar os danos que haviam pretendido causar-lhe, e cuja única vítima fora o manequim de panos e trapos estirado em seu lugar. — Capitão — disse-lhe —, quero crer que você é um homem honrado e que não tem participação neste complô, mas surpreende-me que não se empenhe mais, conhecendo seus homens, em manter a boa reputação de seu navio. — E continuou: — Estou em suas mãos, mas você está também nas minhas. Proponho um negócio. Se eu chegar vivo às praias do. Canadá, dar-lhe-ei a metade do que contém esta bolsa cheia de ouro. Se me matar para ficar com tudo, não apenas será obrigado a dividir com seus piratas, mas não poderá desfrutar os poucos luíses que lhe sobrarão, pois, daí em diante, seus dias estarão contados. Indiquei a minha família em que navio embarcaria. Em qualquer canto do mundo aonde você fosse doravante, os homens de meu pai o encontrariam e lhe cortariam o pescoço, no mínimo. Ocultar-lhe-ei seu nome a fim de que não alimente o projeto de me manter cativo para pedif resgate. 4
  • 5. Enquanto isso, um dos marinheiros que, mais hábil, conseguira se libertar dos laços um pouco apressados com que Cantor o paralisara,..veio em socorro do capitão, armado com sua faca. Cantor voltou-se e descarregou sobre ele a pistola à queima-roupa. —Você matou um de meus homens — disse o capitão, após contemplar o cadáver por algum tempo, como se não estivesse muito certo de que estivesse ali estirado a seus pés. —Quem não sabe matar não pode viver — replicou seu jovem interlocutor. — Eis uma verdade que meu irmão mais velho me repete todas as manhãs, e ambos fomos instruídos a esse respeito por nosso pai e seu exemplo. Por isso, capitão, que essa intervenção lhe prove a seriedade de minhas palavras. Reflita bem. A metade do ouro que trago comigo em troca de minha vida, ou todos os meus bens e minha vida, e você não gozará muito tempo de minha fortuna adquirida. Sem contar que seus bandidos de marinheiros tentarão tirá-la de você. Portanto, proteja-me contra esses piratas com todo o poder e domínio que detém sobre este navio, onde a lei dos homens o fez o único mestre a bordo, depois de Deus. E começarei por lhe sugerir que, quanto àquele, culpado de ter-se ausentado da vigia a fim de praticar seu crime, seja colocado na golilha, de acordo com a pena prevista, pena leve, além daquela, mais recomendada, de ficar três dias no porão. As previsões do jovem navegador mostraram-se corretas. O patacho, com o vigor do vira-lata face aos cães de raça, evitava os aguaceiros, pés-de-vento, piratas e calmarias podres, e corria a boa velocidade pelas rotas ordinárias. Foi uma travessia fácil, daquelas que entretém o tédio do marinheiro. O jovem loiro, sentado contra a amurada, soprando uma flauta de pastor grego e mergulhando durante horas na contemplação das imagens, continuava a tentar os bandidos, que quiseram obter suas riquezas por vias menos diretas. Enviaram-lhe um homem de Dieppe chamado Léon, o Muçulmano, porque ficara dez anos cativo em Argel entre os bárbaros e habituara-se a usar turbantes e aproveitar-se de rapazes. O sorriso meigo com que abordou Cantor congelou-se quando ao ajoelhar-se perto dele, sentiu a ponta de uma adaga espetar-lhe as costelas. —Que quer de mim? — perguntou o jovem loiro. O homem de turbante procurou fazer-se entender. Cantor segurava-o com uma mão e com a outra continuava a cortar-lhe a respiração com a ponta do punhal. —Conhece o regulamento de bordo "Faltas-Castigos"? Quais são os termos para aquela que se prepara para pedir-me que cometa com você? Cantor recitou com uma voz monocórdia de aluno: —Falta: sodomia; pena: estrangulamento e lançamento ao mar ou desembarque numa ilha deserta, às vezes, sem água... —Nosso capitão fecha os olhos para esses jogos... —Posso pedir-lhe que os abra. Paguei-o para isso. O pobre Muçulmano repelido saiu, indo confirmar a seus confrades que não havia nada a fazer. Nem sequer conseguira ver a bolsa com os luíses de ouro. Em compensação, pela japona entreaberta do loirinho, vira um verdadeiro arsenal. Duas pistolas, um cutelo e uma machadinha como as dos índios. E mais a espada pendente do boldrié. E devia ter uma adaga em cada bota. Desse modo, a seguir, tudo permaneceu calmo. Estavam na outra vertente da viagem. Mais próximos do grande continente da América que da Europa familiar. CAPITULO II As aparências de um sonho triste — Cantor esgueira-se ao Convento das Ursulinas Na Terra Nova, confirmou-se que o navio que levava o governador, sua esposa e escolta, continuava em Quebec, como fora previsto. Nãò havia notícias de pessoas que tivessem descido na escala e que tivessem embarcado para a baía Francesa. Tranqiiilizou-se em relação à família. 5
  • 6. Em Tadoussac, deixou o patacho, após acertar suas dívidas com o capitão. Uma alegre sensação de ter voltado ao país nasceu dentro dele ao aspirar o perfume das fogueiras, das peles, e o do rio, mais insosso, era repousante, após tantos dias na salmoura. No entanto, por muito tempo a água era ainda salgada, muito antes de Quebec. Entretanto, apesar de apreciar as sensações amigáveis da natureza, não procurou dar-se a conhecer. Uma neblina antecipando o outono, bastante fresca, permitia-lhe manter uma aba da capa sobre o rosto, e nas embarcações que tomou emprestadas para subir o Saint-Laurent, a maior parte do tempo dormiu com o chapéu enterrado até o nariz. Diante da ilha de Orléans, sabia já que faria o possível para manter-se incógnito, enquanto não tivesse sondado o ambiente, ouvido os comentários, sabido como Quebec acolhia o governador interino e sua esposa, que ia exibir todas as suas graças de Benfeitora para conquistar a capital. Seus sentidos alertados dar-lhe-iam uma visão diferente da cidade. Ereta em meio à bruma, a cidade, tão bela com seus sinos e campanários, apareceu tocada por um morno encanto como uma cidade submersa. Contudo, não estava deserta nem adormecida. A agitação dentro e em torno dela pareceu-lhe fantasmagórica. Os sinos dobraram. Prestando atenção às palavras dos transeuntes, enquanto subia a encosta da Montanha, soube que era a Sra. Le Bachoys que ia ser enterrada. Um calafrio percorreu-lhe a espinha até a raiz dos cabelos. Os crimes começavam. Quando chegou à praça da catedral, percebeu, escondido num canto, o cortejo que passava. Vestidas de preto, as pessoas caminhavam lentamente, salmodiando. A garoa ocultava as copas das árvores e o cimo do campanário e do domo. As cerejeiras silvestres à beira do riacho tinham a cor do sangue. Já era outono. Tomou a direita, atravessando a praça, sempre com o rosto escondido entre a gola da capa e o barrete, um chapéu camponês que comprara na viagem por causa de suas abas largas, à moda antiga, que protegeriam melhor tanto do sol e da chuva como dos olhares indiscretos. Começou a subir a Rue de la Petite-Chapelle. A Taverna do Sol Levante estava fechada. A tabuleta molhada parecia chorar. Sua intenção era bater à porta da Srta. d'Hourredanne, mas as persianas estavam fechadas. A casa parecia vazia. Um latido abafado sugeriu-lhe que só estavam ali a' criada cativa inglesa e a cadela cananéia. Ia por lá, pois sabia, tinham-no avisado, que seu glutão viera rondar por ali, inverno após inverno. "Ele vai adivinhar que estou chegando." Mas, ao mesmo tempo, o lugar perdia sua realidade. A casa de Ville-d'Avray ali estava,, o olmo e o pequeno acampamento dos huronianos nos wig&ams de casca de árvores, com os dois atlas de bronze na relva. Mas não passava de um cenário. Parecia inimaginável que, naquele caminho lamacento, vazio e nostálgico, sua mãe, tão bela, tivesse andado com sua corte de crianças, de selvagens e de grão-senhores, sempre tão ridiculamente afoitos em recolher o menor de seus sorrisos e de suas palavras. Tudo estava apagado. Aquilo tinha apenas as aparências de um sonho triste, cheio de mistérios e ameaças. Vendo um filete de fumaça diluir-se preguiçosamente no alto da casa do marquês, saltou a rampa, passou pelo pátio e pendurou-se a uma das janelas da grande sala, onde viu luzir o reflexo de um pequeno fogo ha lareira. Distinguiu a criada de Ville-d'Avray —a que não quisera ficar quando soube que não teria seu amo só para ela —, ocupada em esfregar as peças de prata como se, no dia seguinte, naquela casa abandonada, fossem receber convidados importantes para um lanche ou ceia. Bateu. Ela o reconheceu imediatamente, mas continuou carrancuda. — Oh! Você aqui a esta hora, meu rapaz? Veio com toda a família? — Que nada! Mas trago-lhe notícias de seu amo, que vi muitas vezes em Versalhes, em casa do rei. Por captar a hipocrisia das pessoas importantes e não se deixar iludir por seus trejeitos, Cantor confiava nas pessoas simples. Criados, cocheiros, criadas se calam, mas nem por isso pensam menos. 6
  • 7. Essa mulher, de que não lembrava nome ou sobrenome, foi naquele instante mais próxima para ele do que todas aquelas que pudera encontrar desde sua partida. Que alívio poder falar com franqueza e quase sem empregar muitas palavras! Uma mímica, um fungar, um dar de ombros... bastavam para dizer tudo e com precisão. Ainda não terminara a terrina de sopa que ela servira ao jovem viajante esfomeado, e já sabia sua opinião sobre a mulher do novo governador, a Sra. de Gorrestat. Embora todas aquelas damas se congratulassem com sua vinda, se felicitassem por sua piedade, sua generosidade infinita, sua urbanidade para com todos, a ela, Joana Serein, nascida no Canadá, seu nariz — que ela indicava — avisava que, por trás daquela mulher, havia algo de feio, de mau. Sua vida habituara-a a reconhecer as feiticeiras, as verdadeiras, que têm às vezes uma carinha bonita. Seu mosquete estava carregado, apesar de não ser bem com um mosquete que se acabava com aquelas histórias. — Pense o que quiser, queridinho, mas que o Diabo existe, existe... Eu nunca me engano. Nós o encontramos entre nós como em toda parte... Lembra-se daqueles senhores que fizeram sortilégios numa pedra preta, que o exorcista teve de ir procurar com todo o aparato. — Foi ela que ele viu na pedra preta — disse Cantor. E começou a fazer-lhe a longa narrativa dos dramas e malefícios que tinham se desenrolado certo verão nas costas da Acá-dia, e dos quais aquela mesma mulher, que reconhecera e seguira desde Versalhes, fora a instigadora. Longa narrativa, de múltiplos episódios, que ela ouviu sentada diante dele e, como ele, inclinada para a frente, com os braços sobre a mesa a fim de falar mais de perto, a meia-voz, que os conduziu do fim do dia até a noite, desfiando suas horas nos diferentes sinos e campanários do exterior, e que Joana Serein pontuava com breves observações. — Não me surpreende... É isso mesmo o que está acontecendo... A cidade está louca e como que perdida... Eis por que a Hen riqueta da Sra. de Baumont morreu. Descobriu que houvera vários atentados inexplicáveis. Os aborrecimentos choviam sobre as pessoas honestas como granizo. Delfina tinha fugido e, mais grave ainda, Janine Gonfarel, a proprietária do Ao Navio de França, desaparecera. Inclinou-se ainda mais para a frente. — Seria preciso saber o que atormenta Madre Madalena. O senhor governador foi visitá-la e, pelo que dizem, ao vê-lo, a freira desfaleceu de horror... Nesse momento, na catedral, soaram duas ou três badaladas, a hora noturna do maior repouso e, subitamente, o jovem explorador de bosques e a mulher do Canadá se interromperam e se entreolharam, com os sentidos alertados por mudanças sutis na textura do silêncio noturno. Cantor lançou um olhar vivaz para as janelas, verificando, com alívio, que ao cair da tarde ela colocara os batentes internos. Ninguém podia, do lado de fora, vê-lo sentado àquela mesa, onde uma grande vela se consumia numa pirâmide inchada. Ambos pensaram ao mesmo tempo. "Eles" se aproximam! "Eles" rondam a casa! Com um sinal do queixo, ela o intimou a levantar-se. Sem fazer barulho, desceram às adegas. Como outrora, ali se encontravam ovelhas sonolentas e palha, na qual ele se escondeu. A criada alojava-se a meio caminho da escada de pedra. Admirou a presteza com que ela Vestiu a vasquinha e a touca de- dormir, enquanto ao rés-do-chão o ruído surdo de punhos batendo sacudia a porta, acompanhado de chamados e de injunções: "Abram!..." Fingindo-se de mulher arrancada do sono, ela subira e, de seu esconderijo, ele ouviu um diálogo veemente que por vezes tomava ares de discussão. Surpreendeu-se de que a numerosa tropa que sentia em volta da casa não tivesse ainda irrompido porta adentro e feito um revista completa. Era, cercado de soldados do prebostado e delegados do novo governador, aquele manhoso do preposto dos Assuntos Religiosos, encarregado de observar, no momento da chegada dos navios, eventuais clandestinos da religião reformada, protestantes tentando desembarcar na Nova França. Procuravam um jovem louro que ao chegar não se apresentara no cartório para declarar sua fé católica. A fiel guardiã da casa de Ville-d'Avray recusara-se a retirar a trava da porta e abrir. 7
  • 8. — Isso não são modos. O que lhes deu a uma hora dessas? Contentara-se em abrir a parte de cima da porta lateral e postar-se ali, como a uma janela, de modo que não se podia penetrar na casa sem forçar a passagem, empurrando-a e galgando a parte de baixo da porta, que era bem alta. O preposto dos Assuntos Religiosos retirara-se com seus homens, afirmando porém que poderia voltar. Ela baixou de novo a voz. — Ela deu ordens, ou ele deu ordens terminantes para procurar seu carcaju e matá-lo. Homens e selvagens, por boa recompensa, estão dando uma batida, faz mais de uma semana, nos arredores da cidade, nos lugares onde supõem estar sua toca. Cantor sentiu-se empalidecer. Era certamente "ela"! Se subsistira alguma dúvida sobre a identidade da Diaba, reconhecia aquela ferocidade minuciosa para com todos aqueles que a haviam ofendido, sobre os quais tinha de vingar-se, mesmo se fosse um pobre animal dos bosques!... Tê-lo-ia reconhecido a ele, Cantor de Peyrac, na antecâmara do rei, ele, que a repudiara outrora, o filho daquela que não conseguira vencer? — Meu glutão será mais forte que eles todos — afirmou com fervor, pensando em Wolverines. — Isso nem se discute! Claro! — encorajou-o. — Um carcaju, todos nós sabemos, é muito mais maligno que um homem! Quanto a sair da casa sem ser visto nem preso, não havia problemas. E já que, antes de mais nada, queria encontrar Madre Madalena, pois bem! O caminho estava livre! Desde o tempo em que costumavam cavar o chão em Quebec e quando isso trazia um monte de problemas e processos monstro, teria sido uma pena não se utilizar daquela rede de toupeiras tão cómoda, quando a tempestade impedia pôr o nariz fora de casa ou quando se temia o olho do vizinho. Bastaria lembrar a adega do Sr. Ville-d'Avray, que dava na de Banistere, o qual tinha um processo com as ursulinas, cujas cavações, feitas sob um terreno pertencente a ele, tinham por engano levado a seus entrepostos. Foi assim que, à noite, depois de ter passado pelas adegas e ter emergido em meio às reservas de vinhos e de queijos do Convento das Ursulinas, Cantor de Peyrac conseguiu se introduzir até o ateliê de douração da religiosa visionária. CAPÍTULO III Madre Madalena, em desgraça, recebe uma visita inesperada "Eles" não acreditavam nela. "Eles" não acreditavam mais nela. Isso desde a visita da mulher do novo governador ao Convento das Ursulinas. Importunada, repreendida, punida, Madre Madalena, a freirinha visionária, fora relegada ao ateliê de douração, onde devia, como penitência, trabalhar sem descanso, sem ter o direito de falar durante o dia com suas companheiras, tendo de levantar-se à noite para cuidar da "cola de aparas de luvas" ou do urucu e da goma-guta para fazer o vermelhão, tremendo sobre um fogareiro, cuja chama precisava permanecer estável e baixa. Cogitou-se em privá-la da santa comunhão cotidiana, mas ela chorara tanto, que a superiora teve pena dela. — Que Deus a ajude, que Ele lhe inspire o arrependimento. Reconheça que você quis se tornar interessante... que quis intervir na política que não lhe diz respeito... Certamente, lamentamos pelo Sr. de Frontenac, mas você não teve habilidade. — Minha madre, eu apenas disse a Santa Verdade. E ela, aquela que eu vi elevando-se das águas... a Diaba! — Basta!... Não recomece com sua mania. Esse caso já foi resolvido há muito tempo e suas visões nos causaram aborrecimentos suficientes... sem que hoje tenhamos de transformar o novo governador em inimigo. Portanto, ficou ali, sozinha e sem defesa com seu pesado e aterrador segredo. Seu coração se congelava. "Senhor, vai me abandonar?" 8
  • 9. A cidade se transformava, como que virada do avesso, e mostrava uma máscara oposta. Só se falava da piedade, da modéstia, da caridade da Sra. de Gorrestat. Ela prestava atenção às tagarelices, que chegavam do outro lado dos muros do claustro. Sozinha nesse concerto de elogios, a Sra. Le Bachoys tivera uma frase chocante, em que se viu uma declaração de guerra, devida talvez ao ciúme, ou à fidelidade que muitos mantinham ao Sr. de Fromenac. Tendo alguém observado, diante da Sra. Le Bachoys, como a primeira dama da Nova França tinha maneiras suaves, ela replicara: "A serpente também tem maneiras suaves". Madre Madalena ficou esperançosa. A Sra. Le Bachoys era considerada uma "pecadora", mas isso era sinal de ousadia, de coragem, e eis por que ela saberia resistir. Se pelo menos a pobre religiosa pudesse falar com ela em segredo! Madre Madalena conseguiu fazer enviar-lhe um recado, a respeito de uma encomenda de tabernáculo que os burgueses da cidade baixa desejavam oferecer a uma paróquia da costa de Beaupré. Mas a menina que levara o recado voltou anunciando que a boa senhora fora acometida por uma congestão... e que temiam por seus dias. Enquanto lidava com seus instrumentos durante o dia, Madre Madalena rezava por sua cura. Ouviu o dobre dos sinos. Dizia-se que a Sra. Le Bachoys sacrificara-se muito pelo amor, e que aquilo um dia havia de lhe acontecer. Ela estava morta. O desespero e o terror invadiram o coração da freirinha. Temia menos por sua vida, embora soubesse que um dia a "outra" voltaria para acabar confèla, do que pelo que ia abater-se sobre o país, nem bem arrancado ao paganismo, e ao qual consagrara sua vocação. Era-lhe indiferente morrer. Como não compreendera há tempos que nada havia acontecido ainda? Era isso o que deveria ter dito aos juízes, aos confessores, quando a interrogavam e a confrontavam com a Sra. de Peyrac. Nada aconteceu ainda! Não sejam tão impacientes nem de ser tranquilizados, nem de concluir algo. Eles decidiram que o caso da visão estava terminado. Ora, era agora que ia se desenrolar o drama da Acádia, assaltada pelo demónio súcubo saído das águas. E ninguém mais esperava por ele. Caiu de joelhos no ateliê deserto. "Deus! Piedade!" . Naquele halo luminoso e amendoado como a auréola de Cristo, via definir-se a eterna imagem, a obsessão daqueles anos todos de debates e de confrontações que sofrera, a mulher nua, de uma beleza surpreendente, com seus olhos atravessados por sentimentos imundos, e tremia dos pés à cabeça. "Deus, não fará nada para nos salvar?" Atrás dela, houve um leve ruído. Voltando-se, percebeu o Arcanjo. CAPITULO IV A mensagem redentora do Arcanjo Deus tivera piedade dela. O Arcanjo da visão ali estava, o mesmo que lhe aparecera, armado com uma espada, fazendo recuar os espíritos malignos, enquanto um monstro de dentes aguçados, que ele parecia comandar, se lançava sobre a Diaba e a fazia em pedaços. E, tal como observara desde a primeira vez que vira a Sra. de Peyrac, a outra mulher que se opunha à aparição diabólica, o arcanjo vencedor se parecia com ela. Uma onda de alegria inundou-a, como um rio que regenera uma terra árida. Por que duvidara? Não sabia que o Bem triunfaria? Ele se aproximou, com um dedo sobre os lábios. — Minha irmã, eu me chamo Cantor de Peyrac. A senhora conhece minha mãef Agora ela compreendia. Bom Deus! O senhor sabe servir-se dos homens para Sua justiça e para socorrer os inocentes! Sua emoção era tanta, que teve de retirar os óculos.para enxugá-los, pois estavam turvos pelas lágrimas. Depois a angústia apunhalou-a novamente. Se a Sra. de Peyrac se encontrava em Quebec, estava em perigo. Ele sacudiu a cabeça. — Não, não tema nada. Ela está em seus domínios e meus pais ignoram que voltei à América. Mas 9
  • 10. acorri à senhora, minha irmã, quando soube que a Sra. de Gorrestat se dirigia ao Canadá. — Então... Você sabe quem ela é? — Sei. Os lábios de Madre Madalena tremiam. Juntou as mãos e disse, precipitadamente: — Impeça-a de fazer malefícios, senhor. É horrível. Ninguém crê em mim. — Ninguém. E aqueles que sabem calam-se ou tremem. Silêncio! Estou'só. É preciso silenciar. Não dizer mais nada. Vim para lhe recomendar isso e para que saiba que estou a caminho. — Mas... como você entrou? — Silêncio — repetiu ele, docemente. — E preciso agir com naturalidade. Não incite mais sua vingança... Humilhe-se... Desculpe-se... Humilhe-se... Onde ela está? — No momento, dizem que está em Montreal. — O que não a impede de deixar atrás de si um rastro de morte... Minha irmã, evite encontrar-se em presença de quem quer que lhe peça para vê-la... Desobedeça à Santa Regra, se preciso for... Senão ela conseguirá matá-la também. — Não temo a morte. — É proibido dar a vitória ao Destruidor — sussurrou ele —, quando se sabe... Seja mais forte que suas astúcias... Vou ao encontro dela. Seus olhos luziam com um brilho tão meigo e ofuscante que ela se perdia em seu esplandor. Ao perceber que ele desaparecera, sentiu ao mesmo tempo a fraqueza e a embriaguez que vêm a nós na convalescença, após uma longa e perniciosa enfermidade. Continuava a tremer, mas doravante seria forte. CAPITULO V Cantor em busca de seu glutão, Wolverines Cantor abriu a porta do jardim das ursulinas. Atravessou o cercado, galgou o muro. Não o procuravam por ali, e a neblina da alvorada era espessa. Desceu até o rio Saint-Charles. Desconfiava que os caçadores que perseguiam seu glutão estavam por ali. Por instantes, através dos pântanos, ouviam-se passos pesados e silhuetas indistintas passavam por perto, chamando umas às outras. Ele respondia como se pertencesse ao grupo, pois não o podiam distinguir com o nevoeiro. — Encontraram o carcaju? — Ainda não! Bicho desgraçado!... O sol começava a aparecer e dissipar as brumas, que se diluíram numa chuva fugitiva. Alguém gritou ao longe: — Encontraram-no! Cantor apressou-se, com o coração batendo e as mãos sobre as armas. De longe, o corpo abatidój com à longa curva de pêlos dourados que lhe ensolarava o pelame, pareceu- lhe menor, mais franzino do que aquele de que se lembrava. "Teria se ressentido com a vida dos bosques?... Pouco habituado à natureza selvagem, não soube defender-se?... Wolverines..." Mas quando se aproximou bem e viu o animal meio virado, compreendeu. "É uma fêmea. Não é Wolverines." Ajoelhado perto do animal inerte, examinou-o. Apesar da máscara negra de bandido, em torno de seus olhos, que tinha o poder de assustar os índios, a pequena carcaju, com as pálpebras cerradas, tinha um aspecto tão meigo... Seu grande corpo peludo, com a longa cauda soberba, que os assistentes cobiçavam, contrastava com a cabeça pequena, de focinho curto. Os lábios, contraídos numa triste careta, permitiam vislumbrar as temíveis presas dos dois lados da mandíbula, que não tiveram sequer tempo de se descobrir para exibir sua ameaça de defesa, pois fora apanhada na armadilha. As curtas patas dianteiras, com as garras fechadas, erguiam-se rígidas e impotentes como braços de boneca. Acariciou o pêlo sedoso entre as orelhas pequenas e redondas. 10
  • 11. E adivinhou: "Sua fêmea!... Era a fêmea dele"; Cantor levantou-se, olhando à sua volta os homens silenciosos e, mais longe, os bosques de cimos franjados de chuva perolada, onde os caçadores iam recomeçar a perseguição a Wolverines. "Eles mataram a fêmea dele... Mais um crime na série de crimes que vai se espalhar na esteira da Diaba... Mas eu estou aqui, Wolverines." Ele estava lá longe. Ou então bem perto. Vira tudo. A captura e o encarne. Jamais se esqueceria. Mesmo reconhecendo-o, deixaria que Cantor se aproximasse dele, daí em diante, um daqueles humanos que haviam matado sua companheira, depois de tê-los vigiado e perseguido a ambos, durante longos dias e noites cruéis? Nunca se esqueceria. Nem o crime, nem aqueles que o cometeram, e havia de persegui-los até derrotá- los, até liquidá-los, até que pudesse esganá-los, estraçalhá-los, até conseguir pendurar no alto de um olmo suas cabeças dilaceradas, separadas do corpo por suas garras e presas vingadoras. Cantor voltou os olhos para os homens que o observavam. Não o reconheciam. Sem ruído e à sua maneira peremptória, foi de um a outro dos batedores, entregando a cada um uma gratificação, com o pedido de suspender a caçada e limitar-se àquela caça que ali estava. — É que... a senhora governadora também nos pagou muito bem para que acabássemos com o carcaju que ronda Quebec há dois invernos e que vem causando muitos estragos — observou-lhe um dos homens. — Ela nos fez prometer que lhe mostraríamos os despojos quando voltasse de Montreal. — Despojos? Já os têm — disse ele. — Isso deverá satisfazê-la. Já desaparecera. Afastava-se sem ruído, deixando o grupo discutir com veemência sobre quem se apropriaria dos despojos do glutão fêmea. Pelo resto da manhã avançou pelo sobosque e pelas brenhas quase impenetráveis de uma floresta que as lavras relegaram ao cume das encostas, mas que encontrava meio de se espraiar e progredir bastante na cidade, até ali, onde os terrenos não tinham ainda sido entregues aos arroteadores. Parecia-lhe que o glutão não estava longe, seguindo-o, precedendo-o, observando-o, e ele falava incessantemente, naquela mesma linguagem de palavras francesas, inglesas ou índias e de onomatopéias que outrora empregava. Finalmente, quando se encontrava na orla do valezinho devastado, vislumbrou uma massa escura^ agachada sob arbustos, e um olhar humano à espreita. Havia tanta tristeza mas também tanta alegria incrédula naquelas pupilas que luziam sob as groselheiras silvestres, tanto sofrimento mas também tanta felicidade... —Perdoe-me — disse ele mais uma vez. — Wolverines, não cheguei a tempo. Mas vamos vingá-la, vamos vingar sua fêmea... E continuou a falar-lhe até que sentiu que os laços estavam reatados. Começou então a correr, galopando e saltando sobre os obstáculos do sobosque, em direção à margem do grande rio, o caminho de água, gritando a plenos pulmões: —Siga-me, Wolverines, siga-me, agora... venha! Venha comigo, Wolverines!... Venha comigo a Montreal. CAPÍTULO VI Na pista de Honorina — O barqueiro Pedro Lemoine Antes de aparecer diante daquela que vinha perseguindo de tão longe, a Sra. de Maudribourg, hoje mulher do novo governador, Cantor rodou através, das ruas de Ville-Marie, de Montreal. A cidade ao pé do monte Royal estava ainda marcada pela grande feira de peles do outono, cuja tradição se perpetuava com a vinda das tribos vizinhas. Cantor jamais estivera em Montreal, e se sentia estranho. Seu espírito permanecia ocupado por dois pólos: Ambrosina, que devia surpreender, apanhar na armadilha, e Honorina, que devia proteger, pôr a salvo, se ainda houvesse tempo. Andando para a frente e para trás com hesitação, sem decidir sobre a qual das duas faria sua primeira visita, compreendeu sua imprudência. Se continuasse a se expor daquela maneira, far-se-ia notar. Já 11
  • 12. estavam se voltando à sua passagem. Ali as notícias corriam depressa. E tinha de se lembrar que a tal Sra. de Gorrestat tentara mandar matá-lo, antes de sua partida de Versalhes, e prendê-lo em Quebec. Sem tergiversar mais, decidiu-se pelo Convento de Nossa Senhora. Não se enganava. Sua hesitação em buscar notícias de Honorina era causada pelo medo. Medo de saber que chegara tarde demais. Um pressentimento não parava de atormentá-lo. Conhecia muito bem o ser infernal que jurara destruir dessa vez para sempre. Se "ela" chegara à ilha de Montreal havia três «emanas, não devia ter esperado para atacar a filha de Angélica, pois era esse seu objetivo ao empreender aquela viagem aparentemente oficial. Isso também sabia Cantor, por instinto. Por isso, quando uma religiosa, de ar altivo sob um lenço preto bordado de branco, o recebeu num parlatório cheirando a cera e maçãs recém-colhidas, não se surpreendeu ao ouvi-la dizer que Honorina de Peyrac não estava mais ali. Mas, captando o nome da Sra. de Gor-restat misturado às explicações muito confusas que lhe dava sua interlocutora, seu coração baqueou. Obrigou-se, contudo, a exigir, num tom leve e casmurro, maiores detalhes, e por fim com- preendeu que a menina desaparecera, tendo escapado por diversas vezes, pois "era muito desobediente". A Sra. de Gorrestat, que se apresentara como uma grande amiga da Sra. de Peyrac, interessava-se pela menina. Ao saber de seu desaparecimento, tinha movido céus e terra para encontrá-la. "Céus e terra! O inferno, isso sim!", pensou. Em resumo, era tocante ver com que dedicação aquela grande dama, que tinham doravante a felicidade de acolher junto àquele que ocupava o mais alto posto da colónia — o que era — explicou num longo parêntese — outro sinal da bênção divina, pois até então a colónia só tivera em sua direção governadores privados da doce e generosa influência de uma companheira, e agora se podia augurar que as obras de caridade seriam beneficiadas, com esse domínio mais aberto à compreensão e à atividade feminina —, era pois comovente e encorajador ter podido constatar com que fervor ela pusera todo o país em ação para encontrar a pequena interna fugitiva e a ajuda que trouxera espontaneamente às pobres religiosas de Nossa Senhora em sua preocupação. Cantor examinou sem condescendência aquela que lhe falava, e ela lhe desagradou. Pediu para ver Madre Margarida Bourgeoys. Lembrava-se subitamente de tê-la encontrado, sem dar a isso muita atenção, em Tadoussac e em Quebec, e que aquela mulher caridosa e alerta parecia ser verdadeiramente uma amiga de sua mãe. Mas, apertando os lábios, Madre Delamare disse que Madre Bourgeoys, sua diretora, cujas funções estava naquele momento assumindo, fora convocada com urgência por monsenhor, o bispo, em Quebec, e que se cogitava inclusive que deveria fazer uma viagem à França, a fim de explicar-se com o arcebispado de Paris, e também a Roma, em virtude dos estatutos de sua ordem de religiosas docentes mas não clausuradas, o que era motivo de muitas controvérsias nos meios eclesiásticos. O rapaz deixou o lugar num estado de espírito agitado, em que se misturavam cólera para com as damas do lugar, inquietação por Horiorina, terror em relação a Ambrosina. O pesadelo recomeçava. Chegando à cerca que delimitava o pomar, voltou-se para a casa baixa e branca, no fim da alameda, que tinha por fundo a extensão cinzenta do rio confundida com o céu do mesmo azul-acinzentado que as águas. Traçada ao longe, a linha da infinita floresta americana mal se distinguia sob a aproximação de um nevoeiro, arauto dos primeiros frios. Sentadas na relva, sob macieiras de ouro polido e cerejeiras nuançadas de encarnado, as meninas comiam pão com melaço e o olhavam com curiosidade. Por trás da imagem mais inocente, uma sombra sinistra rondava. Um sopro deletério envenenava o ar que se respirava. Havia como que um hálito ruim que embotava as cores e o brilho da vida feliz, para impregná-las de pecado. Como Madre Bourgeoys pudera deixar em seu lugar uma pessoa como aquela que o recebera, que falava extasiada daquele monstro de vícios, Ambrosina? Mais urna que se deixara enganar e que subitamente se achava guardiã do Mal, entre as santas mulheres. Enquanto subia uma alameda de carvalhos que levava à estrada carroçável e que o ocultava da casa, ouviu alguém correr atrás dele e percebeu uma jovem religiosa que se esforçava por alcançá-lo, provocando muito barulho com as pesadas saias. — Senhor, pelo que compreendi, é o irmão de nossa pequena Honorina. Oh! caro senhor, encontre-a! O que irá dizer Madre Bourgeoys quando voltar? Ela deixou ordem para que a menina pudesse partir com a caravana, conforme pedido do mensageiro enviado por sua mãe. Como nossa irmã Delamare se- deixou enredar a esse ponto?... 12
  • 13. A força de interrogá-la, o rapaz compreendeu como as coisas haviam ocorrido. Ambrosina, usando das prerrogativas de sua posição, armada com seu suave e inflexível poder sobre os seres de boa vontade, como sobre as almas negras igualmente, detivera tudo e acionara a máquina ao contrário, a seu bel- prazer. Suspendera a partida de Honorina, mandara trazê-la de volta. Depois a menina desaparecera, mas aparentemente não caíra nas mãos de Ambrosina, pois esta mandara continuar as buscas. A menos que fosse apenas um artifício para dissimular seu crime. Ela era capaz de tudo. Um dia encontrariam um pequeno cadáver mutilado. O coração de Cantor doía-lhe, confrangido pela angústia. — Não ouso emitir em voz alta minha opinião — sussurrou a freirinha, olhando para os lados —, mas alegrei-me de que a menina tenha escapado, pois essa pessoa, a mulher do novo governador, me pareceu assustadora... — E você tem razão, irmã — desferiu-lhe ele —, pois sei de fonte segura, de uma fonte eclesiástica, que se trata de um demónio, um demónio súcubo. Ela deu um grito de horror, tapou a face com as mãos e fugiu soluçando para a casa. Cantor estava furioso. Essas freiras eram todas retardadas? Uma abandonava suas responsabilidades por uma viagem que podia durar pelo menos dois anos, a outra, assim que sua superiora virara as costas, contrariava suas ordens, uma terceira se escondia, com medo de incorrer em censuras por tentar proteger as crianças... Depois voltou atrás. Pobres mulheres! Podia-se reconhecer ali o vento de desordem que se levantava à passagem da Diaba. Mas, enquanto isso, o que acontecera a Honorina? Chegou à margem do rio e começou a acompanhar seu curso, sem saber ainda o que fazer. Para abordar a inimiga, a hábil criatura de língua viperina, precisava refazer as energias. Pensava em Honorina e, por trás dás palavras pronunciadas no parlatório: "ela era muito desobediente", "ela desapareceu", "causou uma grande confusão, fugiu", revia a silhueta da garotinha de cabelos ruivos, alta "como três maçãs", com a carinha redonda, desprovida de beleza mas tão cómica, encimando-lhe o lindo pescoço, naquela atitude de desafio e dê dignidade tão característicos... Que força indomável naquela criaturinha! Era por isso que havia uma tendência, a se mostrar duro e injusto para com ela. E ele em primeiro lugar, pensou com remorsos. É verdade que ela era insuportável. Mas continuava a sentir raiva de todas as mulheres, e quando pensou na injustiça que jamais deixara de pesar sobre Honorina, sua cólera estendeu-se àqueles que a tiveram sob sua guarda e que não lhe tiveram amor, portanto, a si mesmo. Todo mundo queria livrar-se "da menina. Ele também, quando estava em Wapas-su, queria que ela fosse punida. Aquela menininha, exigente e suscetível, que monopolizava sua mãe e mesmo seu pai sem qualquer direito, o agastava. De onde vinha aquela menina?... Era melhor não pensar nisso, pois sentia vontade... de desembaraçar-se dela. E agora, era bem feito! Não sabiam nem onde ela estava. Todo mundo quisera isso. Mas era uma coisa horrível, mais pesada que chumbo para se carregar. Pois ela era tão pequena e tão engraçada... Era orgulhosa, teimosa mas indefesa. "O que é uma criança?", diz o iroquês. "Não se pode dar importância a seus atos, pois ela não tem juízo. O que lhe deve o adulto?... Defendê-la enquanto ela se fortalece e cria juízo!... Mas Honorina fora arrancada e lançada ao vento!... Lembrava-se de quando ela lhe levava raminhos de flores, quando lhe engraxava as botas para lhe agradar... Ela sempre o amara. Ele era seu preferido. Por que a repudiara? Não compreendia mais. Era apenas uma criança! Não deveria ter deixado aquele estúpido ciúme corroer seu próprio coração. E agora Honorina estava perdida, por culpa deles todos, por sua culpa... As lágrimas brotavam-lhe dos olhos... Esforçava-se por retê-las. "Seguirei sua pista!... Irei até o fim do mundo. Farei aquela megera confessar. Eu a encontrarei, Honorina... Vou trazê-la de volta." A pequena Honorina em. preces. Fora assim mesmo que ela se anunciara da última vez. Ele havia ido às ursulinas de Quebec para despedir-se dela, antes de embarcar com Florimond. Mas ela mandara dizer pela madre superiora que estava rezando na capela, que tinha tido uma visão... e simplesmente se recusara a vê-lo. Que cabeça-dura!..." Enxugou os olhos. 13
  • 14. "Vou encontrá-la, cabeça-dura!. Sozinho, acompanhava a beira do rio. Estava agora longe da cidade e ultrapassara as últimas casas, dispersas em meio aos jardins e campos. Ouvia apenas o roçar das plantas altas contra as botas e o sussurro dos insetos de fim de verão, cujo número começava a reduzir-se pelas noites frias, agrupados em nuvens vorazes. Maquinalmente dirigia-se para o oeste, tomara a direção oposta à de seu acampamento, um canto sob os chorões que escolhera na extremidade oposta da ilha, num lugar pouco povoado, onde só havia, no alto da colina, um velho moinho abandonado, por que o proprietário do lote nunca trouxera um contingente de pessoas para povoar essas terras. Os sulpicianos que as haviam cedido estavam em negociações para retomá-las, mas o caso se arrastava, e o lugar, enquanto isso, continuava a ser domínio da caça aquática. . Cantor de Peyrac desembarcara ali pela manhã. Não se aproximara da ilha de Montreal sem precaução, e após uma série de manobras destinadas a confundir sua pista, e a encontrar em cada etapa seu companheiro Wolverines, seguia-o ao longo do rio. Dotado de um instinto que o avisava a distância de suas intenções, o animal esperava-o sob um arbusto no lugar onde o jovem viajante deixava a barca ou o navio em que conseguira passagem por um dia para subir o Saint-Laurent, ou então Cantor, sentado junto à fogueira na noite do litoral, via-o surgir ao cabo de algumas horas, dando grandes saltos cómicos. A canoa servira-lhe para fazer o animal atravessar. E agora, o glutão estava na ilha. Era preciso agir depressa, antes que os cães ou os índios ou habitantes, lavradores, pescadores, caçadores ou casais de namorados o descobrissem e anunciassem sua presença. Cantor de Peyrac tinha dè arquitetar um plano. Mas precisava acalmar dentro de si aquele furacão de inquietação que o submergira. Esforçou-se por se acalmar e encontrou consolo na lembrança de todas as brincadeiras que fizera com Honorina, aquele diabrete de cabelos ruivos. Pois, no fundo, os dois entendiam-se muito bem. Muitas' vezes empoleirava-a nos ombros para fazê-la dançar e saltar "como os índios" em suas danças guerreiras, gritando “iu! iu! iu!", e uma noite enluarada levara-a, às escondidas, para escutar o coro dos jovens lobos, chegando bem perto para vê-los. Uma voz de rapaz cantando sobre a água chegou até ele. "A seis de maio do ano passado, Fui lá para cima... Para fazer por lá uma longa viagem... Ir aos países altos Em meio a todos os selvagens..." Cantor levantou a cabeça e viu que o nevoeiro que vinha de longe recobria o rio. Ele passaria e iria pendurar-se na beirada do monte Royal para o norte. Ou então se dissiparia como por encanto. O outono era uma estação clara e alegre, de cores quentes mas breves. Por trás do nevoeiro, a voz melodios a continuava: "Quando a primavera chega Os ventos de abril sopram em suas velas Para voltar a meu país Na extremidade de Saint-Sulpice Irei saudar minha amiga Que é a mais bonita..." Uma barca despontou, saindo do nevoeiro, conduzida apenas por um rapaz de dezoito a vinte anos, robusto, no qual Cantor reconheceu Pedro Lemoine, terceiro filho de um negociante de Ville-Marie. O mais velho, Carlos de Longueil, servia como tenente no Regimento de Saint-Laurent em Versalhes e fazia parte de sua companhia. 14
  • 15. Depois de se olharem, cumprimentaram-se. Pedro Lemoine passara também uma rápida temporada na corte. Apesar da pouca idade, era um marinheiro emérito, que já conduzira navios na travessia do oceano. —Julgava que você estivesse na França. Traz notícias de nosso irmão Carlos? Tivemos notícias dele recentemente por Tiago, meu irmão do meio, que voltou na escolta do Sr. de Gorrestat, o novo governador. Ao ver Cantor franzir o sobrolho, acrescentou: —Isso não quer dizer que estejamos de acordo com ele. Ele é meio louco, o Tiago. Fez parte do conchavo contra o Sr. de Frontenac. Mas tudo isso vai se acalmar com o inverno que se aproxima... E você, teria chegado também com o governador?... — Vim para procurar minha irmãzinha, Honorina de Peyrac. Pedro Lemoine, amarrando o barco numa estaca à margem do rio, saltou para a terra. Estava se dirigindo a Lachine e decidira fazer uma parada, enquanto o nevoeiro se dissipasse. —Sua irmãzinha, você diz? — perguntou, com um ar pensativo. — Imagine que há menos de três semanas ela estava aí, bem no lugar onde você está. Estava aí, sozinha, tão pequena e carregando um grande alforje. Eu a vi. Disse-me que queria ir até o solar do Lobo, à casa dos tios. Levei-a em minha barca e deixei-a não muito longe do solar. —Meu tio De Sancé! — exclamou Cantor, iluminado, pois via ali uma pista para encontrar Honorina. Dera pouca atenção à descoberta de uma parentela no Canadá. Já bastavam todas aquelas que Florimond desencavava em Paris. Subiu por sua vez na barca do jovem canadense. Obteria mais informações lá embaixo. "Ora, vejam, aquela danadinha!", dizia consigo, todo animado, "como soube se arranjar direitinho..." Um vento fresco dissipara as brumas. Cruzaram uma barca carregada de crianças. Os jovens de Montreal passavam a vida sobre a água, manobrando velas. Mosqueadas de branco, as corredeiras se anunciaram a montante. Pedro Lemoine deixou Cantor na extremidade inferior da costa. Disse-lhe que se preparava para partir para o alto Saint-Laurent e que, se quisesse encontrá-lo, estaria em Lachine, onde ia recolher bagagens e mercadorias. CAPITULO VII Mariângela do lobo Um elfo de cabelos loiros descia a campina, ainda verde, correndo e dançando, vindo em sua direção. Tinha um olhar que lhe pareceu familiar. Achou-a imediatamente muito graciosa e, quando ela parou a alguns passos para examiná-lo com ar pensativo, lembrou-se de que uma das filhas daquele tio, reencontrado após um silêncio de quase trinta anos, teria, diziam, os traços semelhantes aos de sua mãe, Angélica de Peyrac, nascida Sancé de Monteloup. O que, na ocasião, lhe parecera impossível. Em seu foro íntimo, devia retratar-se. Não seria mais o único a evocar um rosto que fazia o rei suspirar quando ele aparecia, o que ao mesmo tempo lisonjeava e causava alguma inquietação ao jovem pajem, portador, a contragosto, de sombrias lembranças para Sua Majestade. Esta era uma evidência que acarrateria outra. Os dois jovens pareciam-se de tal forma um com o outro que acabaram por rir. — Prima, abracemo-nos! Como se chama? — Mariângela. E você, suponho que seja Cantor, não? Olhava à sua volta e começava a se surpreender por não ver ninguém mais, como se a jovem com jeito de fada fosse a única habitante de um domínio adormecido sob efeito de um súbito encantamento. Ela o avisou que seus pais estavam ausentes. Tinham sido chamados a Quebec e tiveram que partir para a capital, a fim de acolher o governador que substituía o Sr. de Frontenac. O que não impedira que o tal governador chegasse a Montreal quase imediatamente após a partida do Sr. e Sra. do Lobo. — Mas o que significa essa-maluquice de viagem e de correr por causa do governador? — gritou Cantor, novamente transtornado. — As pessoas estão enlouquecendo? — Gom efeito. 15
  • 16. — Por quê? — Porque o governador e sobretudo sua esposa estão pondo o país inteiro de pernas para o ar. Finalmente alguém que não se deixava iludir. Ela o mirava com os olhos claros e tranquilos, um pouco trocistas. — Por que você se desola tanto por não ver meus pais? — Eles poderiam dar-me notícias de minha irmãzinha Honorina. Soube que ela tentqu encontrá-los. — Se é por sua irmã que está preocupado, posso dar-lhe notícias dela. Por pouco não a sacudiu, tão impaciente estava. — Você a viu? — Não. Mas sei o que lhe aconteceu. Um índio trouxe-me notícias dela. — Fale, eu lhe imploro. — Primeiro ela foi escondida entre os iroqueses da missão de Khanawake, dos lados da Madeleine, em frente a Lachine, e depois os índios a levaram para mais longe. — Por quê? — Para que escape àquela mulher que quer matá-la. O pobre Cantor sentiu o peito dilatar-se sob o efeito de um alívio incomensurável. — Oh, minha amiga, você me agrada — disse ele, passando afetuosamente o braço pelos ombros da adolescente. — Venha contar-me tudo isso num lugar tranquilo, longe dos olhos curiosos que vêem de longe. Esperou que ela o fizesse entrar no solar, mas ela o levou para o lado das dependências de serviço, introduzindo-o numa vasta construção, meio granja, meio entreposto. Ganchos dependurados do teto prendiam lotes de peles. Num canto, uma boa parte da colheita de feno fora- empilhada, e foi ali que se sentaram. Notou alguns objetos de toucador, um pente e uma escova colocados sobre uma arca, uma almofada, uma manta e um braseiro como os usados nos navios. Depois da partida dos pais, contava Mariângela, não demorou muito para acontecer. "Eles" tinham voltado. E o problema é que ela não compreendera que daquela vez não fora por eles que tinham voltado. —Vi-os de longe. Sua carruagem estava parada embaixo, no grande prado, no Caminho do Rei. Não sabia o que vinham fazer ali nem o que esperavam. Só o soube mais tarde. Mas era a garotinha que estavam esperando, e foi lá que a pegaram. —Senhor! — exclamou Cantor, lívido. Ela colocou vivamente a mão no braço do primo. —Ela escapou-lhes, eu lhe estou dizendo! Mas tenha paciência, deixe-me prosseguir minha história. Eles voltaram no dia seguinte, esses franceses, como periquitos com seus saltos vermelhos, rendas e plumas. Dessa vez subiram até o solar. A esposa do governador andava à frente. Eu disse a meus irmãos: "Vamos sumir daqui! Vamos sair por trás e nos esconder no bosque". — Ela continuou: — Encontraram a casa vazia. Mas, depois de sua passagem, eu não quis voltar para dentro da casa. Mandei meus irmãos instalarem-se na cidade, os maiores com os senhores de Saint-Sulpice, onde fazem seus estudos, e o mais jovem, em casa de minha irmã, casada com o oficial com guarnição no burgo de Saint-Armand. Enquanto isso, alojei-me neste armazém. Alguns dias mais tarde, vi o índio que rondava pelas imediações, procurando alguém para entregar sua mensagem. Chamei-o, e ele me contou tudo. Honorina fugira com a ajuda de uma de suas irmãs batizadas da tribo dos agniers, e eles a esconderam, entres eles, em Khanawake. Mas, quando viram que aquela mulher vinha procurá-la com tanta constância e quê seus padres jesuítas, julgando agir cor-retamente, lhe davam ajuda, ficaram muito assustados. Então, con- fiaram-na a uma caravana de cidadãos das Cinco Nações que, apesar de batizados, desejavam reaproximar-se de sua nação iroquesa. —Está salva!... — gritou Cantor, erguendo-se se atirando o chapéu para o alto. Agarrando as mãos de Mariângela, fê-se girar numa ciranda entusiasta. — Minha irmã está salva! Priminha, você tirou de meu coração um peso enorme! Essa caça podre, essas feras da corte não poderão mais persegui-la no fundo de nossas florestas!... —Não o tentaram. Dizia-se à boca pequena que a Sra. De Gorrestat não conseguia disfarçar seu desprazer diante da inanidade das investigações. — Que caminho tomaram os homens de Khanawake para ir ao país das Cinco Nações? — Ignoro. O índio batizado me disse que o intinerário devia ficar em segredo para que a menina 16
  • 17. corresse o menor risco possível. — Certo! Eu encontrarei... mas mais tarde. Antes, tenho de acabar com o demónio. E, creia-me, minha amiga, não será coisa fácil livrar a terra da sua presença ímpia. Como ele esboçasse um movimento para se despedir, a moça reteve-o. — Anoitece. Você teria de ir pela estrada, pois essa parte do rio não é navegável à noite. Que faria se voltasse à cidade e o reconhecessem? Fique até amanhã pelo menos. Será um dia novo, e suas forças também. Vou buscar-lhe algo para comer. Enquanto ela se eclipsava, Cantor deixou-se cair para trás no feno. Estendeu os membros doloridos. Agora que estava tranquilo sobre a sorte de Honorina, sentia-se esgotado. Não tinha mais forças para pensar em nada, permanecendo apenas pasmo com esse encontro com sua prima Mariângela. Era verdade que se parecia com Angélica, e supunha de bom grado que esta devia ter a mesma vivacidade airosa, em sua juventude em Monteloup. Tinha-a ainda quando, incitada por um trabalho a realizar ou uma diretiva a ser dada, todas coisas urgentes, geralmente, dava-lhe vontade de correr, atravessar prados ou casas, subir alegremente uma escada ou uma senda nos bosques, sem se preocupar com a idade ou com a dignidade de sua posição. O surpreendente era que Mariângela tinha também alguma coisa da alma de Angélica, e junto dela sentia-se à vontade, como se ele a tivesse conhecido sempre, ela houvesse partilhado suas brincadeiras no Plessis ou em Versalhes, em sua primeira infância. Ela voltou com grandes fatias de pão, frios, um pichei de sidra. Enquanto ele comia, ela se estendeu perto dele no feno-e lhe disse que seu pai lhe propunha partir para França para conhecer a vida de uma jovem nobre francesa. Apoiado ao cotovelo, sentiu que ela o examinava com os olhos brilhantes de satisfação. Perturbou-se um pouco. Não devia esquecer que essas moças canadenses eram muito audaciosas. Privilegiadas por seu sexo, num país em que faltavam mulheres, inocentes e naturais, como todas as crianças que nascem fora das restrições ou das desigualdades de uma velha sociedade hierarquizada, não se embaraçavam com os ares reservados, que lhes pareciam sem sentido. Os caminhos alambicados do Amor descritos pela Carte du Tendre e as sutilezas das preciosas parisienses eram-lhes desconhecidos. Os curas de suas paróquias e as religiosas que as ensinavam tinham muita razão em fazê-las passar sem demora da férula da escola àquela do casamento. Desde os catorze anos, eram afáveis mulheres de colonos, prontas a assumir a solidão do inverno, os nascimentos anuais, os trabalhos dos campos e do estábulo, nos longínquos censos. Mariângela do Lobo, aos dezesseis anos, quase dezessete, não sendo casada e não reconhecendo em si qualquer vocação religiosa, achava-se numa situação que não tardaria a tornar-se difícil. Devia ser ao mesmo tempo mais infantil e mais amadurecida que suas companheiras, nascidas e criadas como ela na Nova França, mas que, do berço ao casamento, cresciam estreitamente motivadas por esse destino de mulheres de pioneiros, de fundadores de famílias, que as esperava. Ali, os anos de formação mundana não eram levados em conta. — Primo, já não é tempo de nos tratarmos como parentes íntimos? Levantou-se novamente para ir buscar uma grande coberta, que lançou sobre os dois, estendidos um ao lado do outro, pois o frio do crepúsculo começava a se fazer sentir. — Em que está pensaiído? — perguntou. — O combate é para amanhã — respondeu, juntando as palmas das mãos sobre o peito e tomando a atitude de um mor, bundo, com os olhos fechados. Ficou-lhe grato por não lhe fazer outras perguntas e por, longe de procurar distraí-lo, ter-se posto a dormir, depois de enterrar o narizinho confiante em seu ombro. CAPITULO VIII A ressurreição de Ambrosina — Cantor face a face com a diaba A Sra. de Gorrestat, aliás, Ambrosina de Maudribourg, olhou ao seu redor com mau humor. Estava diante da penteadeira, que, por instantes, lhe devolvia o reflexo de um rosto ao qual não estava ainda totalmente habituada. 17
  • 18. Pouco adiantava maquilar-se com habilidade, endireitar os cachos junto às têmporas e bochechas, havia certas protuberâncias, certas cicatrizes que não conseguia apagar inteiramente. Ali estava ela, no centro daquela casa de grandes pedras achatadas, posta à sua disposição pelos anfitriões de Montreal. Mesmo tendo de reconhcer que era muito bem mobiliada, sentia-se pouco à vontade, desde que soubera que Angélica fora ali recebida antes dela. A desaparição da filha de Angélica parecera-lhe um mau presságio. Começou a experimentar o insólito dos lugares onde se encontrava. Devia ter-se lembrado de que as terras longínquas exalam forças estranhas. Experimentara o mesmo em Gouldsboro. Mas ali era pior, pois havia também o tédio, que vinha solapar sua febre de ação. Era tudo tão entediante ali! Ao passo em que Gouldsboro... Em primeiro lugar, havia Angélica. Uma mulher tão bela de se olhar, vivendo, conquistando, fazendo sofrer. E saboreara cada minuto de aproximação, cada golpe desferido. Nada mais delicioso do que ver obscurecer-se, devido a inquietação, a cor verde de seu olhar, quando lhe insinuava que Joffrey de Peyrac, por quem estava tão loucamente apaixonada, tentava tornar-se amante da Sra. de Maudribourg. Mas era Ambrosina que se entristecia ao lembrar-se disso. Ele! Ele! Por que aquele homem galante, de sangue meridional, não cedera a seus avanços?... Levara anos para compreender. "Ele me desprezava. Desmascarava todas as minhas mentiras. Desde o primeiro instante, desconfiou de mim. Enquanto acreditava que ele caía em minhas armadilhas, cada uma de suas perguntas insidiosas tinha por ob-jetivo me desmascarar..." Ainda agora, rangia os dentes ao pensar nisso. Hoje, quando retornara ao local escolhido para sua vingança, sentia a amargura invadi-la ao rememorar o longo purgatório vivido pela Diaba vencida. Ah! quantos anos de fingimento! E sem poder sequer oferecer a si mesmo o sutil e secreto prazer de torturar alguma tola esposa de província roubando-lhe o marido, ou aquele, mais voluptuoso ainda, de ver cederem, diante de seus encantos, as defesas masculinas de homens considerados incorruptíveis: eclesiásticos ou altos funcionários devotos. Tinha de ser prudente, inatacável. Durante todos esses anos, nenhuma falha se insinuara em seu plano. Podia felicitar-se por não, ter dado qualquer motivo de suspeita. Uma amarga e inconcebível experiência, vivida em terras da América, a tornara prudente. Primeiramente, fora uma silhueta discreta deslizando pelas ruas. Julgavam que ela se cobria com um véu por viver à sombra de um amante rico, um homem idoso que voltara das colónias e que a tomara como amante, um tal de Nicolau Parys. Fora preciso esperar, dar as cicatrizes do rosto tempo de se apagarem. No final das contas,- ©velho Parys era um bom comparsa e cúmplice. Tanto um como o outro-se ativeram aos termos do contrato firmado entre eles numa noite sinistra, na costa leste de Tidmagouche. Ele a queria. Sempre quisera e continuava querendo aquela mulher ferida, desfigurada, mas cujo corpo permaneeia-intacto. Queria se espojar sobre ela, como um porco no chiqueiro. Quanto a ela, queria ser salva e escapar de seus inimigos, que a entregariam à justiça do rei, se tivesse sobrevivido, como assassina, feiticeira e envenenadora. Precisava desaparecer. Desaparecer para sempre. O velho Parys satisfaria sua necessidade carnal com ela. Sempre preferira os velhos, nos quais o fogo ardente de uma virilidade declinante exige, para se acender, muitos artifícios, nos quais, desde a juventude, Ambrosina sempre fora perita. O pacto foi concluído. Nenhum escrúpulo, nem dela, nem dele, em assassinar Henriqueta Maillotin, que a ajudara a evadir-se, em desfigurá-la e entregá-la aos animais selvagens da noite, que acabariam .por tornar irreconhecível aquela jovem mulher que iria substituí-la no túmulo. O navio se distanciara. A França fervilhante permitia ao casal apagar os últimos vestígios. No fundo das províncias, encontram-se> sem dificuldade, por bons escudos legalmente válidos, notários" ou homens de negócios, e mesmo curas complacentes para passar papéis de casamento, ao 18
  • 19. simples enunciado de um nome de batismo, acompanhado de data e lugar de nascimento, igualmente imaginários. E, para se divertir, Ambrosina designara-se como nativa da província do Poitou. Mas essa fantasia criou-lhe problemas depois. Pois essa identidade falsa lembrava-lhe incessantemente que, se conseguira enganar a rival, nessa questão de origem, no final Angélica fora, de qualquer modo, a mais forte. Por isso, longe de diverti-la, aquela evocação do Poitou provocava-lhe raiva. O que era excelente, dizia consigo, para dar prosseguimento a sua vingança. Pois, à força de ser tão ajuizada, apagada e discreta, não teria acabado por esquecer que só tinha um objetivo em vista: vingar-se deles e, principalmente, dela? E por esquecer, o que era mais grave que tinha uma missão a cumprir, imposta ademais por um amo que não suportava o fracasso? Não fora tentada, por instantes, a esquecer? E então calafrios de terror a sacudiam, despertando seu ódio por "eles", que a haviam colocado em xeque. Ah! quantos anos fingindo, espreitando no espelho a cura, e depois a ressurreição de seu rosto. Certos vestígios jamais se apagariam. Não era isso o que mais a tocava. Não era mais totalmente a mesma, e por vezes se felicitava por isso. Não era mais tão bela, tão jovem, e isso era culpa de Angélica, dizia-se, pois parecera-lhe que a outra nutrira com sua derrota a própria beleza, a própria juventude. "Quanto mais eu descia mais ela se tornava deslumbrante. Sim... até em Tidmagouche, quando estava doente, e eu a mantinha à minha mercê..." Acalentando suas ofensas, os anos haviam passado para Ambrosina, a reclusa, a apagada. Os véus foram se tornando menos espessos. Os espelhos lhe anunciavam que podia reaparecer à luz do dia, e chegou o momento de o velho Parys falecer, por efeito de alguma poção. E pouco depois, para ela, sua viúva, de fugir para outra cidade e mostrar-se com o rosto descoberto e sob outro nome. A seguir, tudo se passara conforme seus planos, longamente urdidos, segundo seus desejos. Foi apenas depois de desposar, em Nevers, o Sr. de Gorrestat, intendente de província, que começou à recrutar seus "fiéis": senhores arruinados ou criados sem escrúpulos, almas negras de sua espécie, que atrelava a sua fortuna e que, bem pagos, bem recompensados de mil maneiras, se encarregavam, sob sua ordens, de intrigar, comprar alianças ou cumplicidades e, se fosse preciso, reduzir ao silêncio os "estorvos". O primeiro desses servidores não era, sem sabê-lo, aquele homem de pouca inteligência e muita vaidade, mas munido de apoio seguros e relações importantes, que transformara em marido, o Sr. de Gorrestat? Muito rapidamente e atenta a todas as oportunidades, encorajara-o a se ocupar dos negócios coloniais, depois a pleitear um cargo na Nova França. Múltiplas intervenções obtiveram para ele sua nomeação como governador interino, durante a viagem do governador efetivo, o Sr. de Frontenac, obrigado a ir a Paris explicar-se com seu soberano. No pé em que estavam as coisas, já se podia considerar certa a desgraça de Frontenac, e seu substituto, vice-rei por vários anos. Para Ambrosina, sua esposa, que se fazia chamar Armanda, nascida Richemont, e que todos admiravam por acompanhá-lo tão corajosamente àqueles longínquos e rudes países, houvera duas semanas em Paris onde se introduzira em algumas repartições. Havia algum tempo, pedira, por correspondência entregue por homens da lei, que se mandasse esclarecer o caso do La Licorne. Não deixava de ser engraçado reclamar, sob pretexto de parentesco, notícias da Sra. de Maudribourg e de sua expedição. Depois, dirigira-se a Versalhes, para uma reverência ao rei, que não a notou de modo algum. Uma reverência supérflua, entretanto. Junto ao batente de uma porta, o olhar verde de um adolescente fixara-se no seu, com um súbito clarão. Prontamente a carruagem dos Gorrestat tomava o caminho do Havre, e Ambrosina rejubilava-se por afastar-se da capital e fazer-se ao mar. Não receava as travessias. E pouco lhe importava começar pela província do Canadá, como exigia seu novo título de mulher de governador. A primeira vez viera como uma benfeitora, livre para ir aonde quisesse. Mas, dessa vez, tinha de passar por Que-bec, e armara-se antecipadamente de paciência, preparando seu sorriso mais gentil. Mas... o que todos eles estavam pensando?... Seu objetivo não era ser incensada por aqueles xucros coloniais. 19
  • 20. Nunca tivera a intenção de ficar mofando em Quebec, uma cidade dos antípodas gelados, que tinha a pretensão de passar por capital. Uma "pequena Versalhes", dizia aquele ridículo Ville-d'Avray. E Frontenac, o bufão, acreditava nisso. Mas sua nova função a obrigava a descer até lá, a ser ali recepcionada e aclamada, se fosse preciso. Por outro lado, isso não era de todo inútil, pois pretendia acertar ali alguns contenciosos com aqueles que, conforme soubera, haviam apoiado seus piores inimigos, Joffrey e Angélica de Peyrac, e pedido a desgraça do Padre Sebastião d'Orgeval. O anúncio de sua morte a espicaçara. "Mais tarde, Gouldsboro", dissera a si mesma. "Paciência, pelo tempo que for preciso..." Tivera razão. Desde os primeiros dias de navegação no Saint-Laurent, o presente lhe apresentava imagens do passado. E já estavam mortos os que deviam morrer. Ah! como se alegrara vendo balançar, pendurado às vergas de sua nau capitânia, o Tenente de Barssem-puy, que a odiava por ter mandado executar Maria, a Meiga, sua amiga! "São ingleses!", conseguira convencer seu esposo, o novo governador. "Traidores inimigos, que conseguiram penetrar no estuário do Saint-Laurent... Execute-o para mostrar que não é, como o governador Frontenac, indulgente com esses inimigos da França e com os huguenotes franceses renegados, seus aliados." Pena que, por causa do nevoeiro, não se tivesse podido capturar toda a tripulação do pequeno iate, que navegava arvorando o pavilhão de franquia do Conde de Peyrac! E em Quebec, sentindo-se reconhecida e suspeita em certos olhares, fizera prontamente justiça. Infelizmente, aquela tola da Delfina e a gorda proprietária do Ao Navio de França, cuja antipatiapudera perceber, tinham-lhe escapado por entre os dedos... Por quê? Como?... Inquietava-se, sentindo vacilar a infalibilidade de suas astúcias. Considerara uma volta afinal da sorte e da proteção oculta, da qual começava a duvidar, saber que a filha do Conde e da Condessa de Peyrac — a menina para a qual Angélica apanhava ame-tistas nas praias de Gouldsboro — era interna na instituição das religiosas da Congregação de Nossa Senhora, em Montreal. O acaso entregava-lhe a filha de seus inimigos. Lambia os beiços, antecipadamente. O Diabo, desta vez, estava do seu lado. A ilha de Montreal, a montante do rio, ficava longe, mas os prazeres que antevia nessa captura e nos sofrimentos que infrigiria a pequena vítima compensavam os aborreciamentos daquelas viagens fluviais em meio às homenagens, que sentia serem falsas e perigosas, daqueles colonos-aldeões grosseiros, que queriam ser chamados de "habitantes" e que se consideravam como senhores pelo simples fato de terem recebido direitos de caça e pesca. Mas quanto mais os detestava mais se rejubilava, pois teria muitas oportunidades mais tarde de fazê- los pagar por sua arrogância. E começava a aceitar, a rigor, uma estação nos gelos da pequena corte de Quebec, já que lhe anunciavam que não podia ser de outra maneira. "Mais tarde, Gouldsboro... Você pode esperar. Gouldsboro, tornarei a encontrá-la! A vingança é um prato que se come frio," E repetindo interiormente o ditado, explodia num riso estridente. "Muito frio!..." Podia esperar aquele prato de resistência depois de oferecer a si mesma em Montreal o de raptar a pequena Honorina, torturá-la até a morte e enviar, uma a uma, as provas do crime a sua tão odiada, tão desejada, tão maldita inimiga, Angélica, de beleza estonteante, possuidora de um incompreensível poder de sedução, Angélica, a mãe daquela criança. "Partamos rapidamente para Montreal", dissera ao esposo; "é preciso que conheçamos todos os nossos administrados antes do inverno, e que apaguemos em cada um deles a lembrança do governador anterior, o Sr. de Frontenac." Sim, tudo andara muito bem até então. Até o momento em que se encontrara diante daquela menina enfurecida, que se pusera a urrar, tratando-a de envenenadora: "É a Dama Lombarda! É a Dama Lombarda, a envenenadora..." Quanta paciência e abnegação aparente tivera de demonstrar para apagar a má impressão da cena! Aquelas pessoas do Canadá tinham uma proteção ridícula a adorar suas crianças e a dar-lhes razão em tudo. Conseguira afastar Madre Bourgeoys, fazendo que fosse convocada pelo bispo em Quebec, e também os tios de Honorina, pois era com desprazer que tomava conhecimento de haver naquelas paragens um irmão de Angélica. Tudo isso era exatamen-te desagradável. Deve-se'desconfiar da coalização oculta dos 20
  • 21. membros de uma mesma família; cria-se entre eles, mesmo entre aqueles que pouco se conhecem e não se dão bem, uma cumplicidade natural, de uma espécie mal conhecida, mas de ondas poderosas. Conseguira pois afastar da criança seus protetores importantes; foi procurá-la no convento e, ao saber que fugira, conseguira capturá-la de novo. E depois, novamente, um inexplicável revés. Sua presa desaparecia. Desvanecia-se, melhor dizendo. Todas as investigações, uma fortuna distribuída, tudo em vão. Ambrosina agora via claramente. Não fora por culpa de um enfraquecimento pessoal de suas faculdades, alteradas por uma inércia demasiado longa, durante anos de desterro numa província da França, não fora pela perda da proteção satânica, que jamais lhe faltara, não fora sequer pelo fato de os franceses e os índios do Canadá se revelarem menos maleáveis, menos fáceis de enganar que os humanos do Velho Mundo, que Ambrosina, a Diaba, se via posta em xeque. Mas porque, uma vez mais, atacara a "eles". Era-lhe pois preciso concluir que a menina era tão perigosa quanto a mãe. Pior ainda!... O que havia afinal naquela família que lhe era tão adverso?... Espalhou à sua frente, sobre a penteadeira, o conteúdo dos dois cofrinhos encontrados no alforje da criança. E, diante daqueles objetos heteróclitos de valor desigual, uma turquesa, por exemplo, e plumas, conchinhas, um dente de ca-chalote gravado, adivinhava que alguns deviam ter pertencido a Angélica, antes que os desse à filha. Ali havia largada uma mecha flocosa dos longos cabelos ruivos que ela mesma arrancara da cabeça da menina, ao maltratá-la com raiva. Pegou aquela mecha entre o polegar e o indicador, fazendo-a deslizar na outra mão. Onde estava ela agora, aquela pequena miserável? Como alcançá-la? Causar-lhe infelicidade? "Podem-se fazer muitas coisas com cabelos..." Em Paris, teria uma pletora de endereços úteis, nomes de adivinhos e adivinhas, que se podiam visitar em seus covis. Mas ali... "Devia ter providenciado os serviços de um mágico." Teria podido fazê-lo, sem atrair a atenção da polícia e acarretar, consequentemente, suspeitas e investigações? Passando por Paris, quisera consultar a mais famosa das feiticeiras, a Mauvotsiíi, chamada La Voisin. Ao se aproximar de sua casa, vira saindo de lá um grupo de "missionários", daqueles padres pertencentes à or-de-nx fundada pelo Sr. Vicente de Paulo para pregar à gente humilde, e aquilo lhe parecera inquietante e insólito, motivo pelo qual se afastara precipitadamente. Dois dias depois, Paris inteira tomava conhecimento da prisão da adivinha em causa. Ambrosina tremia só de lembrá-lo. E, por trás daquela prisão, sempre o horroroso policial Francisco Desgrez. Por causa daquela personagem, sua partida para o Havre assumira o aspecto de uma fuga. Como da primeira vez, quando lhe escapara no momento exato em que fora prender sua amiga íntima, a Marquesa de Brinvilliers. Dessa vez, o policial atingia o cerne da fortaleza dos envene-nadores. Como as notícias correm, o Sr. e a Sra. de Gorrestat ainda não tinham embarcado quando souberam que La Voisin era acusada de tentativa de envenenamento do rei. Atenaís de Montespan fugia da corte. "Se ela for interrogada, dará o meu nome. Foi outrora, com minha cara Brinvilliers, uma de suas mais assíduas clientes... Mas que importa que me nomeie? Estou morta", morta!" Deu uma gargalhada que finalizava numa cachota macabra e sem eco. — A Duquesa de Maudribourg está morta! — disse, em voz alta. Mas não pôde deixar de olhar em torno, medrosamente. Não era uma coisa injusta? Sempre fugir. Sempre esconder-se, sempre dissimular. Entretanto, Ambrosina sentira-se aliviada por poder fazer-se ao mar, refugiar-se no Novo Mundo — onde poderia se manter incógnita com mais facilidade, como da primeira vez —, escapando, num refluxo imprevisível das circunstâncias, àquele Desgrez e a seu mestre, o tenente de polícia do reino, Sr. de La Reynie, ambos cães de fila do rei.. Seria preferível não deixar em sua passagem nenhuma pista que pudesse ser farejada. 21
  • 22. Contava com o Sr. de Varange, perito na arte de feitiçaria e que a esperava em Quebec, para a função de mágico. Ora, eis que lhe anunciavam sua morte... e há muito tempo. Desaparecido, efetivamente. Seu desaparecimento coincidira com a visita que o Sr. e a Sra. de Peyrac tinham feito a Quebec. Por que Varange desaparecera no momento em que "eles" chegavam? Como se quisesse ceder-lhes o lugar... Uma suspeita assustadora começou á apoderar-se dela. 'Eles' também estão por trás dessa morte... desse desaparecimento", disse consigo. "Foi ela que o matou!", exclamou. Estava tão segura de seu pressentimento que não mais conseguia discernir se estava se deixando levar por divagações obsessivas ou se estava sendo avisada magicamente da realidade. Angélica matara o Sr. de Varange. Só podia ter sido ela. Onde? Quando? Por quê? Como adivinhara que o velho debochado era seu cúmplice? Impossível sabê-lo. Mas fora Angélica quem matara o Conde de Varange. "Vou gritar em toda a parte que foi ela quem o matou, e... vão me considerar louca. Serei olhada com suspeita... Mesmo esse Garreau d'Entremont, que só espera uma denúncia nesse sentido... Ele também sabe que foi ela que matou Varange." Mas pediria provas... Essa nova polícia, que o rei pusera em ação, exigia provas. Antigamente, bastava recorrer à delação, à acusação, à pecha de feitiçaria. Hoje, queriam provas... E a flor da nobreza da França seria enviada à Bastilha ou ao exílio, e, mesmo, à guilhotina, por culpa dos cadáveres de crianças recém-nascidas, imoladas nas missas negras, muito bem pagas, rezadas sobre um ventre de prostituta. Que visão ridícula e despropositada! Que importância tinham esses bebés sem nomes, verdadeiras larvas humanas, em comparação às grandes personagens que pagavam um preço tão alto por sua imolação? "Larvas humanas, ignóbeis larvas brancas retorcendo-se e bocejando", repetiu, torcendo a boca numa careta de asco, "sem nome e nem mesmo batizadas... Ah! sim. Parece que La Voisin ou outra comadre as batizava antes de enfiar-lhes a agulha no coração... Idiota."Ela vai pagar caro por haver arrancado a Satã sua presa..." Provas! Não podia acusar Angélica sem apresentar provas! Deteve abruptamente a louca progressão de seu pensamento. Não devia mais fazer projetos. Sentia medo. O Medo! Era a primeira vez. Por não tê-lo experimentado nunca, adivinhava que era o medo que lhe apertava a garganta. Cometera um erro por esquecer. Esquecer o que acontecera na Acádia. O Fracasso! A Derrota total! Mas sobrevivera, com a única finalidade de concluir sua missão. Senão, não tinha razão alguma para sobreviver. Se não o conseguisse desta vez, não lhe concederiam sobrevivência. O medo e o ódio dilataram-lhe o coração, despertando nele espasmos voluptuosos. Suas mãos se abriam e fechavam no desejo de apertar um pescoço de criança, um pescocinho branco e firme, muito ereto, muito belo, o de Honorina, que trazia em si a dor possível de Angélica. "Ah! como odeio as duas!..." A frustração e o desejo das visões entrevistas atormentavam-na desvairadamente. "Que volúpia!", repetia baixinho com unrlongo suspiro, nascido do mais profundo de suas entranhas. Suas entranhas despertavam. Graças a Deus!, teria dito, se um pacto interior feito com as forças infernais não lhe proibisse empregar esse vocábulo, a não ser em voz alta e para enganar. Como é difícil afinal habitar uma carne tão fraca! E eis que, fora de qualquer estratégia, desejava um amplexo amoroso para acalmar ardores quase dolorosos, inspirados pelas evocações lúbricas de seus projetos frustrados, de sua vingança inacabada. Queria muito gozar, mas não sofrer, e seu corpo pareceu-lhe fraco, subjugado, suplantado por forças que ela mesma desencadeara. "Tornei-me realmente, eu também, uma criatura humana?...", indagava-se com terror. A voz de um serviçal informando-lhe que um homem jovem desejava falar-lhe chegou ate ela. 22
  • 23. — Mande-o entrar! Sentiu uma presença no limiar do aposento, a alguns passos, e voltou-se. Estremeceu-se violentamente. Mistura de medo e de satisfação. Aquele que acabava de entrar era uma resposta a suas dúvidas e indecisões. Preferia o corpo-a-corpo com o adversário. No corpo-a-corpo era a mais forte. E quando se tratava de um belo jovem como esse, a vitória estava assegurada de antemão. Ela podia fazer as mulheres chorar, destroçá-las, destruir-lhes a existência, mas não domá-las, exceto algumas. Enquanto esses machos imbecis, escravos de seus sentidos e de sua vaidade, era muito fácil levá-los a ceder, de joelhos tremendo. Entretanto, havia também o medo. Desde que se sentira reconhecida por ele em Versalhes, na an-tecâmera do rei, uma surda certeza a obsedava, a de que ele não permaneceria lá. Eis por que quisera mandar matá-lo imediatamente. O atentado fracassara, então? O receio não cessara de atormentá-la. Ridículo! Pois, chegando ao Havre com o esposo, embarcara para a Nova França. Apesar disso, não parava de imaginar aquele Cantor de Pey-rac, que tinha os mesmos olhos da mãe, procurando saber mais coisas a respeito dela. Embarcando talvez em sua perseguição. Estava tão convencida disso que, ao sair de Quebec para Montreal, previra sua vinda. Descrevera-o a seus homens, que deixou à sua espera no lugar, e dera-lhes ordens precisas a seu respeito e do glutão. O animal fora morto, mas ele, como lhes escapulira novamente? Ele tirou graciosamente õ" chapéu de feltro e saudou profundamente. — Senhora, está me reconhecendo? — Certamente — disse ela, levantando a cabeça com desafio '—, e não me cabe nenhum mérito, pois, desde Versalhes, você me persegue. Posso saber por quê? — Reconheci-a, senhora, quando todos a julgavam morta há vanos anos. Não é normal ter querido assegurar-me de que meus olhos não me haviam enganado? — Uma curiosidade tão desmedida, que o impele a vir aos antípodas para satisfazê-la? Está gracejando, senhor!... Ou mentindo... — Senhora, ao meu ardor e à minha paixão, que importam os mares a atravessar... Nada representam quando,se„trata de me assegurar desse milagre. Você está viva! E, com efeito, tratava-se, para mim, ao me lançar em seu encalço, de satisfazer desejos muito diversos de uma simples curiosidade. Oh! senhora — prosseguiu, sem deixar-lhe tempo de perceber nele e nela a falsidade daquelas declarações —, quantas lágrimas derramei, quantos remorsos me atormentaram, quantas saudades me dilaceraram! Você foi tão maltratada na praia de Tidmagouche, e tão injustamente! A loucura dos homens não tem limites quando o ciúme se apodera deles. Eis, portanto, o que eu tinha a lhe dizer, e por que atravessei os mares, já que um acaso abençoado me permitia, implorando seu perdão, apaziguar minha consciência. Acredita nele? Havia nos olhos puxados de Ambrosina clarões frios e fixos, assassinos. Ela repetiu: — Viram-no correndo em Quebec... — Eu estava à sua procura. — Não acredito em você, belo pajem. Como era belo esse Cantor de Peyrac! Seu nome e sua beleza faziam ao mesmo tempo rilhar os dentes e subir água à boca. Em Versalhes, quando por ali passara, ouvira mexericos a propósito de uma das damas de honra da rainha, que estava louca por ele. A tal ponto que, em vez de censurá-la e desfazer-se dela, a rainha, que a apreciava muito, concedera-lhe um feriado de amor ilimitado, deixando-a "arrulhar" seu jovenzinho até não poder mais. Pequeno deus, pequeno senhor, investido já de poder e de arrogância, ali estava naquelas plebeias províncias, tendo deixado tudo por ela afirmava ele. — Está me ferindo, senhora, duvidando de minha lembrança e de meu fervor. De que modo poderia provar-lhe esses sentimentos senão cometendo a loucura de persegui-la? O que eu procurava nessa corrida insensata? Veja! Julgando tê-la reconhecido, abandonei imediatamente meus cargos na corte. Arrisco-me à desgraça junto ao rei... Mas não pensei em nada!... Quem faria tal gesto senão impelido pelo ardente e sincero sentimento que ouso confessar-lhe? Não reconhecê-lo é lançar-me ao desespero e desconhecer também a força dos ardores que me inspira. Ah! Sra. de Maudribourg. Pronuncio este nome sem mesmo acreditar. 23
  • 24. — Psiu! — fez ela, vivamente. — Com efeito, não o pronuncie. Olhou em torno com terror. Seu ser se desdobrava. Ela era ainda, mas com dificuldade, a Sra. de Gorrestat, mulher do novo governador, tendo já conquistado os edis da colónia, e estabelecido a reputação de dama caritativa e casta, mas, desde que ele surgira, era sobretudo aquela mulher aventureira do Novo Mundo — como esse papel lhe agradara! — que alguns anos antes passara, nas praias da Acácia, por uma odisseia secreta, cujas peripécias nutriram incessantemente suas lembranças com fantasmagorias. — Tidmagouche!... — disse, com amargura. Os cantos da boca descaíram-lhe, e adivinhou que o trejeito a enfeava. Mas não pudera refreá-lo. — Tidmagouche, não me lembro de você ter me tratado com justiça. — Eu era apenas uma criança. — Era isso o que me agradava — disse ela, numa voz estrangulada, com um sorriso matreiro e cruel. "Dane-me, Senhor, por meu pecado", pensou ele, "mas, pelo menos... que minha carne sirva para issc^L. aturdi-la, perdê-la, mistificá-la!" Foi invadida por um tremor. Explodiria em insultos, cuspindo fogo e chamas, como na praia de Tidmagouche, ou, ao contrario, esse estremecimento era o sinal precursor de.sua rendição? Ele notara suas fraquezas,"sêus receios. Tiraria partido disso, ao mesmo tempo para levá-la de volta ao passado e fazê-la temer o presente. Não queria ser reconhecida. Ainda não eliminara totalmente testemunhas perigosas de seu passado. Havia vários pontos em que não tinha segurança, em que precisava ser assegurada. Sua beleza, entre outros, suas possibilidades de sedução... — Então é você realmente — sussurrou, fingindo-se deslumbrado. — Reagiu a seu nome. Ainda me restava uma dúvida... — Por quê?... — lançou, com ansiedade. — Mudei tanto assim? — Sim, mudou, mas mesmo assim a reconheci. Que mistério explica que seja mais bela do que em minha lembrança, mais próxima de meu sonho, Sra. de... — Não me nomeie — intimou-o novamente. — Ambrosina, então! Ambrosina! Esse nome cheio-de encanto preencheu minhas noites, cantando incessantemente dentro de mim... Avançou imperceptivelmente para ela. Os olhos verdes defrontavam-se com o olhar de âmbar, depois apoderaram-se dele, e essas duas luzes se aniquilavam numa espécie de trégua, um arrefecimento passageiro da luta. Ela sentiu junto de si aquela carne rija de um homem muito jovem, e dediciu acreditar nele, pois disso, dessa sólida e segura sensualidade primitiva, tinha daí em diante uma fome e uma sede devoradoras. Sua necessidade dele devastava tudo, sacudia-lhe o corpd, mas chocava-se-com a onda contrária de sua desconfiança demoníaca. Havia em seu ser um debate incoerente. Reconduzida a uma vida longínqua, esquecida, apagada, em que ele fora quase o mesmo diante dela, numa praia, um pouco mais jovem apenas, mais criança, perdeu o controle de suas palavras. — Todavia você estava com aqueles que se lançaram sobre mim para me massacrar! — Deus me livre disso; tive, ao contrário, piedade de você, da violência que era cometida contra você naquele momento. Creia-me. As pupilas de Ambrosina brilharam com um clarão venenoso. — Não acredito em você — repetiu. — Lembro-me de sua maldade quando, em Gouldsboro, eu tentava agradá-lo. — Eu era apenas uma criança, minha cara, assustado com o amor e o domínio da carne, que me eram desconhecidos. — Bem que eu quis iniciá-lo. — Tive medo. — Tinha medo da cólera de sua mãe, que tinha ciúmes de mim. Por causa de minha beleza, que rivalizava com a dela. E que me odiava porque eu conseguira seduzir seu pai e atraía o olhar dos outros homens. Cantor sentiu que empalidecia. O horror e o asco comprimiam-lhe a garganta. 24
  • 25. Felizmente para ele, ela se voltara para o espelho e se examinava, inconsciente de trair com essa atitude uma inquietação quanto à perenidade de sua beleza e de seus poderes. Depois sorriu, serenada. — Em seguida, ele me renegou e mentiu para satisfazê-la. E você também, pobre tolinho... Não ousou contrariá-la... Não será um pouco tarde agora para vir implorar meu perdão?... Nunca mais, jurou a si mesmo, enojado, ouviria mulher alguma murmurar-lhe palavras de encontro e promessas voluptuosas. E, enquanto ela falava, ele a via virar e revirar nervosamente em torno do dedo um longo fio de ouro vermelho, um fio de cobre, flexível, cintilante, que atraía o tempo todo seu olhar, a despeito de si mesmo, até que compreendeu que eram alguns cabelos de Honorina, alguns dos longos cabelos da ruivinha, que a harpia provavelmente arrancara do crânio dela, maltratando-a em sua fúria. "Eu a matarei", disse consigo, com uma soturna intensidade dolorosa, a única capaz de ajudá-lo a dominar sua cólera. "Eu a matarei, Diaba!... Que Deus me assista e sustente minha espada!..." — "Elas" me desafiaram — resmungou Ambrosina. — Elas!... Apenas elas!... Elas me escaparam!... É inadmissível! Isso exige punição!... Ah! como as odeio, às duas! Quanto a ele, não lhe queria mal... por ter me repudiado. Não.'Era um homem. O homem tem todos os direitos. O homem tem o direito de ser o mais forte. Pois é o mais fraco. Faço o que quero com eles, um dia ou outro. Mas as mulheres, não, as mulheres não têm o direito de triunfar sobre mim! As mulheres me pertencem. Mulheres, quero-as apenas como vítimas ou cúmplices! Quanto aos homens, não há o que temer deles. Mas elas, elas zombaram de mim... Ah! como odeio às duas... Um pouco afastado, atrás dela, adivinhava que estava falando de Angélica e de Honorina: Uma candente indignação turvou-Ihe a vista. Sua mãe! E uma criança, sua meia-irmã!... Seja como for, uma criança colocada sob Sua proteção, pois se tornara seu meio-irmão mais velho. Como aquela horrível criatura ousava falar delas naquele tom diante dele?... Como se ele já fosse uma aquisição indiscutível dela!... "Tome cuidado!", intimou a si mesmo, esvaziando o cérebro de todos os pensamentos. "Que ela não suspeite nada do que o agita..." E surpreendeu o olhar que ela lhe lançava pelo espelho. Procurando adivinhar-lhe os pensamentos, pronta a lançãr-se sobre ele, uma fúria, ao menor sinal, brilho de cólera ou de repugnância, que poderia fazê-la suspeitar que ele não lhe era totalmente devotado. A seus pés... Acorrentado pelo desejo carnal que o cegaria, tornando-o indiferente a tudo o que não fosse ela, surdo às aterradoras palavras que ela pronunciava como que por descuido, a fim de provocar sua ira. A menor suspeita do que ele sentia verdadeiramente decidiria sobre seu destino. Mas ela não conseguiu ler nos olhos claros, fixos nela, nada além de uma impávida luz, essa fixidez ausente, obsedada, quase imbecil, que uma cobiça ardente, estrangulada, empresta por vezes ao olhar dos homens. Tê-la-ia enganado? Gostaria de crer nisso. O suor molhava as costas do pobre Cantor, tomado pelo medo de que pudesse alertá-la pelo quebrantamento de um só de seus "pensamentos. Toda a astúcia e sangue-frio de seu pai se reuniam nele. Compreendia agora aquela força de dissimulação do Conde de Pey-rac, que tantas vezes o irritara ou decepcionara, ferindo sua sensibilidade infantil, embora também se abrigasse à sombra daquela força e se felicitasse com sua proteção. Compreendia que a arma se forja pela virulência do inimigo, pela extensão do perigo, que a traição só pode ser evitada com uma traição ainda maior. Deu mais um passo em sua direção. "Que minha carne sirva ao menos para isso", pensou, "que minha carne, que a subjuga, sirva para isso... Para a salvação de todos!..." Ela via tão próxima sua boca polpuda, firme, que capitulou, enquanto ele murmurava: — Onde?... e... quando?... Esse ultimato já dera certo anteriormente. Fora Florimond quem lhe indicara algumas estratégias e fórmulas que, pretendia, eram irresistíveis. Ela estremeceu da cabeça aos pés. O desnorteamento ávido que apareceu em seu rosto provocou-lhe náuseas. Ela respondeu, ofegante: — Esta noite, na ponta da ilha, a jusante do rio. Ali existe um moinho abandonado... cercado de olmos e de faias-pretas. E o nevoeiro se soma à noite para dissimular aqueles que não querem ser vistos. Espera-lo-ei lá, junto ao bosquezinho... 25