2. Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez
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3. Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez
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A História
do Historiador
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A História do Historiador / Tereza Aline Pereira de Queiroz,
Zilda Márcia Gricoli Iokoi. – São Paulo: Humanitas / FFLCH/USP,
1999.
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1. História 2. Historiografia 3. Historiadores I. Iokoi, Zilda
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5. Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez
5
SUMÁRIO
Introdução ......................................................................... 7
As Antigüidades ............................................................... 13
As Idades Médias ............................................................. 37
As Idades Modernas ......................................................... 53
A Modernidade ................................................................. 69
O Historiador Contemporâneo ........................................... 87
Bibliografia .................................................................... 113
6. INTRODUÇÃO 7
INTRODUÇÃO
“Quando eu evoco um arco, cheio de beleza e simetria,
(...) uma certa realidade que o espírito conheceu
através dos olhos e que foi transmitida à memória,
suscita a visão imaginária.”
Agostinho, De Trinitate, IX, xi, 6.
Passado e memória dão conteúdo, identidade e espessura
a todos os humanos. Por mais isolado que se encontre um gru-
po, uma comunidade ou mesmo um só indivíduo, todos estão
imbuídos de um passado, de uma memória e de uma história. A
história de si mesmos é também a história da vinculação com
determinado tempo e espaço. Embora a individualidade se ela-
bore dentro de uma dinâmica, onde se relacionam o vivido e o
concebido, isso não torna todos os homens historiadores. A his-
tória pessoal de cada um inevitavelmente terá raízes numa his-
tória externa, mais ampla, mais difusa, imbricada com o social,
o econômico, com as estruturas da cultura, nem sempre per-
ceptível no plano da consciência individual. É justamente da
tradução dessas histórias através de narrativa coerente, elabo-
rada a partir de elementos concretos, não ficcionais, com bases
7. 8 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
num múltiplo e complexo inter-relacionamento entre tempo, es-
paço e a expressão dos grupos humanos, que se ocupará o
historiador. O historiador não será guardião da memória indivi-
dual, ou memorialista, mas aquele que ao indagar capta o sen-
tido da construção de uma memória social no tempo, criando
uma imagem do passado. Neste sentido a memória é documen-
to e não produto final.
Apesar de o indivíduo existir na história, não será ele o ob-
jeto principal do historiador. Mesmo em períodos onde se privile-
giou uma história de heróis, foi impossível caracterizar a
heroicidade isoladamente; o herói sempre precisou de um mo-
mento adequado para demonstrar sua habilidade e, principal-
mente, de uma identificação com um objetivo suprapessoal, com
um grupo e com idéias por este concebidas. As relações interpes-
soais, a construção mental e física do mundo, o exercício do po-
der de uns sobre os outros, os encontros entre diferentes estão na
base daquilo que Virginia Woolf definia como “fantasma imenso e
coletivo, incapaz de ser exorcizado” ou seja, o passado, ao qual o
historiador dará forma para que ele se transforme em história.
Assim como o conteúdo da história não é o indivíduo isola-
do, tampouco o historiador expressará uma subjetividade ilimi-
tada na sua captação do passado. Pelo simples fato de partici-
par de um passado realizado no presente, de pertencer ou se
projetar num determinado grupo social, seu trabalho expressa-
rá uma historicidade intrínseca na escolha de temas, na abor-
dagem, na leitura da documentação, no processo de reflexão
convertido em texto. Paradoxalmente, nesta condenação do his-
toriador ao presente situa-se a eternidade de um passado que
nunca se esgota. Caso contrário, a história da Grécia, por exem-
plo, teria sido escrita por Heródoto e ponto final. No entanto,
cada século reelaborou a história grega dentro de suas perspec-
tivas e possibilidades. Nos limites entre a “consciência possível”
e a “consciência real” próprias e de seu tempo, o historiador
busca no passado a consciência de seu próprio tempo.
8. INTRODUÇÃO 9
Devemos considerar também que nem sempre o termo his-
toriador foi utilizado para identificar aquele que se ocupa do
passado. Tampouco existiu uma profissão ou uma carreira de
historiador em todos os tempos e todas as sociedades. Pessoas
com os mais diferentes perfis e formações desempenharam fun-
ções de destrinchar, refletir, falar ou escrever sobre o passado,
tendo em vista as mais variadas preocupações e múltiplas per-
cepções de tempo.
O historiador, diante da necessidade de organizar seu pen-
samento, seu entendimento, cria medidas e categorias de tem-
po, organiza esse tempo em função de fatos, de ciclos, de épo-
cas, de estruturas. Com isto acrescenta uma noção de tempo
diversa daquela vivida pelas comunidades; na antigüidade, por
exemplo, foi Timeu da Sicília, no século IV a.C., que introduziu
um sistema numérico estabelecendo uma correlação entre as
crônicas das diversas cidades-estados, dado que cada uma es-
tabelecera uma cronologia a partir das listas de dignatários que
a cada ano as governavam. O tempo jamais é único no estudo
da história, pode ter uma predominante qualitativa ou quanti-
tativa, é desigual e particular a cada sociedade, a cada momen-
to e a cada espaço. É físico e metafísico. Pode até mesmo não
existir.
Dependendo de suas crenças, é possível a uma sociedade
conceber o mundo sem passado, num eterno presente em que
passado e futuro se fundem. No Egito, na China, na Índia, em
Aztlán, há deuses que significam o próprio tempo, um tempo
contínuo, sem fraturas, sem imperfeito ou mais-que-perfeito;
predomina então uma idéia do não-tempo divino que interpenetra
o cotidiano.
Na cultura do cristianismo, forjadora de uma forte estru-
tura conceptiva no ocidente, ocorre o inverso, o tempo existe na
esfera do humano, fora da divindade, que é eterna. No século V,
9. 10 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
Santo Agostinho atribuiria ainda ao tempo cristão uma nuance
psicológica; o presente torna-se uma experiência na alma; o
passado é uma imagem memorial da alma; o futuro existe como
expectativa psíquica; o tempo comum é passageiro e sem senti-
do e cessará no momento em que a alma se unir com Deus – o
fora do tempo. A noção personalizada do tempo de Agostinho
coincide, num outro plano de conjectura, com a percepção de
Albert Einstein de que as indicações de tempo eram sempre re-
lativas à posição do observador; assim, dois fatos simultâneos
podem ser vistos tanto simultaneamente como numa seqüência
temporal. Para Einstein espaço e tempo formam um contínuo
quadridimensional, exatamente como os astecas haviam conce-
bido o deus Omotéotl, com os quatro Tetzcatlipocas nos quatro
cantos do espaço, criando o espaço e o tempo simultaneamente.
Em virtude da crença numa determinada idéia do tempo
– cíclico, por exemplo, como uma cobra mordendo seu próprio
rabo, como o ritmo das estações, ou linear, como um rio que
flui, como a areia da ampulheta – o narrador da história busca-
rá seus conteúdos e o próprio espírito da narrativa de maneiras
diversas. Se baseada no eterno retorno, no cíclico, na idéia de
nascimento, desintegração e renascimento, a história assume o
papel de mestra, pois conhecendo o passado descortina-se um
futuro sem surpresas. Na visão linear, judaico-cristã por exce-
lência, com um início, meio e fim assegurados, a ênfase recairá
no processo de aperfeiçoamento do mundo até atingir seu ponto
culminante representado por seu próprio fim; a esta concepção
liga-se uma idéia intrínseca de progresso, de progressão contí-
nua, de propósito divino, excluindo a noção de ruptura. Em 1830,
Hegel propõe a seus alunos a construção de uma história filosó-
fica plena de necessidade, de totalização e de finalidade, que
evocaria “a manifestação do processo absoluto do Espírito em
seus mais elevados aspectos: a marcha gradual através da qual
a humanidade atingiria sua verdade e tomaria consciência de
10. INTRODUÇÃO 11
si. Para ele, os povos históricos, com as características determi-
nadas de suas éticas coletivas, de sua constituição, de sua arte,
de sua religião, de sua ciência, constituiriam as configurações
desta marcha gradual (...) Os princípios dos espíritos dos povos
(Volksgeist), na série necessária de sua sucessão definidas ape-
nas como momentos do único Espírito universal: graças aos
homens, Ele se eleva na história a uma totalidade transparente
a si mesma e traz a conclusão.” Nada mais distante da prática
histórica das últimas décadas do século XX, que leva em conta
diferenças, descontinuidades e descompassos.
Estas diferenças, as descontinuidades, que por vezes só
travestem a própria continuidade, estão na base deste trabalho,
uma análise suscinta das idéias que nortearam as diversas cons-
truções do passado elaboradas pelos historiadores no ocidente.
A partir de uma pré-história da história na antigüidade grega e
romana até a contemporaneidade observaremos quão variável
foi o papel da história e do historiador nas sociedades. No interior
do discurso histórico poderemos perceber as injunções do poder
na escolha dos temas evocados, a ausência quase total ou a
detratação e estigmatização dos elementos que não partilhavam
desse poder – artesãos, camponeses, escravos, índios, mulheres,
crianças, incapacitados, desocupados, doentes –, as ideologias
do poder religioso que muitas vezes emprestaram suas estraté-
gias para o poder temporal. Observaremos quão útil pode ser o
passado na criação de mitos destinados à mobilização de po-
vos para a guerra e a conquista, à criação das nações e nacio-
nalidades, de culturas hegemônicas, de despotismos e imperia-
lismos, mas também de um senso de libertação e justiça através
do conhecimento e da consciência de um estar no mundo eiva-
do pela dinâmica do passado.
Também a análise da vida pessoal, dessa individualidade
relacionada com o todo, e dos móveis particulares que guiam os
historiadores mencionados no corpo do trabalho, nos auxilia a
11. 12 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
vislumbrar a importância maior ou menor desta especialização
do saber nos diferentes tempos e espaços, bem como suas fun-
ções ideológicas, políticas e culturais. Mas, sobretudo, a enun-
ciar uma história dos historiadores.
12. AS ANTIGÜIDADES 13
AS ANTIGÜIDADES
“Vocês gregos são apenas crianças, falantes e vãs, que
nada sabem do passado.”
Sacerdote egípcio falando com Solon.
Antes da história havia as lendas, as cosmogonias. A me-
mória coletiva dos ancestrais era narrada por homens sábios
para toda a coletividade. O passado, quase nunca interpretado
com o distanciamento próprio à racionalidade ocidental, contri-
buía com medidas e parâmetros, certezas e temores, para um
sentido de enraizamento, de identidade dos grupos. A sofistica-
ção intrínseca à construção dos passados míticos é enorme. A
importância dos narradores na sociedade, primordial. Estas
narrativas tinham uma ligação profunda também com o não
verbal, danças, rituais, elementos arquitetônicos, pinturas, pa-
drões téxteis, cerâmicos etc...; inseriam-se numa totalidade sem
distinções entre a “história”, a “geometria”, a “literatura”, a “re-
ligião” ou os afazeres cotidianos da vida. Hoje em dia, na África,
ainda encontramos comunidades onde os velhos detêm a me-
mória de acontecimentos ocorridos no século XV ou mesmo antes;
na Albânia, há poucas décadas, ainda podiam ser vistos poetas
13. 14 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
que, de vilarejo a vilarejo, narravam epopéias evocativas de uma
tradição homérica.
A relação interno-externo, humano-divino, alto-baixo,
cheio-vazio, direito-esquerdo, portanto, a relação entre opostos
norteia as narrativas míticas, que tendem a horizontalizar um
discurso, abrandar os lapsos entre duas ações consecutivas,
estabelecer laços. Assim, Deus criou o céu e a terra; a terra era
informe e vazia, mas antes dela deveria existir o grande vazio
sobre o qual a Bíblia nada fala, mas que encontramos no texto
de uma pirâmide egípcia: “quando o céu não havia nascido,
quando a terra não havia nascido, quando o homem não havia
nascido, quando os deuses não haviam sido concebidos, quan-
do a morte não havia nascido...”. A idéia do vazio para o cheio,
do antes para o depois, da seqüência de atos, da detecção dos
momentos de mudança, da vontade de preservação dos diferen-
ciais, serão algumas das formas da mitologia adotadas pelo dis-
curso histórico escrito.
Esta história escrita, no entanto, não é de imediato aceita
sem resistências, mesmo entre as elites e os intelectuais. No
Phaedrus de Platão (428 a.C. - 348 a.C.), Sócrates lamenta a
expansão do texto escrito e da leitura, que fariam esmorecer a
memória e suas faculdades críticas. A nostalgia da tradição oral
pode ser sentida na época de Tucídides (c. 470 - c.395), quando
gregos cultos se lembram do tempo em que a história era pre-
servada pela memória do povo.
Heródoto (c. 484 a.C. - 425 a.C.) declara no início de suas
Histórias – este título, aliás, é posterior, pois na época as obras
não vinham com denominação – seu desejo de expor suas pes-
quisas (historíé) para impedir que os feitos de gregos e bárbaros
se apagassem da memória, principalmente as razões de terem
entrado em conflito. Estão aí presentes, portanto, as noções de
memória, identidade, seqüência de acontecimentos e confronta-
ção entre opostos como apresentadas pela tradição mítica. Ago-
14. AS ANTIGÜIDADES 15
ra, no entanto, centrados no mundo da ação, com pouca ênfase
ou nenhuma nas correspondências entre universo e humanida-
de, separando as esferas do sagrado e do profano.
Esta tentativa de distinção, na verdade, já fora concebida
antes de Heródoto, nas Genealogias de Hecateu de Mileto (c.
540 a.C. - 480 a.C.). Situada na costa da Ásia Menor, Mileto era
um dos maiores centros comerciais internacionais na época e,
portanto, aberta a contactos muito diversos. O aristocrata
Hecateu cresce durante os primeiros tempos da ocupação persa
(a partir de 546 a.C.), num momento que corresponde também
a uma mudança de atitude nas indagações e explicações sobre
o mundo, sua origem e natureza, a um ensaio de afastamento
em relação às tradições legendárias e mitológicas pela chamada
escola jônica de filósofos. Após suas viagens pelo Egito e Pérsia,
Hecateu chega à conclusão de que as tradições históricas vigen-
tes na Grécia tinham algo de ridículo e deveriam ser discutidas.
Este processo de separação do mito e do fato concreto é seme-
lhante àquele ocorrido no âmbito da passagem do pensamento
mítico à razão e à construção da pessoa, como analisa Jean
Pierre Vernant em Mito e pensamento entre os gregos. Por outro
lado, esta nova história escrita, ao implicar uma desconfiança
frente à memória e à oralidade comum, privilegiará uma elite
alfabetizada, público alvo desta nova memória.
O registro escrito grego, no entanto, é relativamente tardio
quando comparado com o de outras culturas, como a judaica. O
Pentateuco data de c. 900 a.C. Por volta do ano 80, o historiador
judeu Josephus ironizava a crença de que os mais antigos fatos
estariam ligados aos gregos e que estes fossem a única fonte da
verdade; considerava que a história grega era muito recente, “de
ontem ou ante-ontem” e que a idéia de compilar histórias era
ainda mais recente; diz ainda que os próprios gregos estavam
cientes de que os egípcios, caldeus e fenícios, para não falar dos
judeus, teriam preservado a memória das tradições mais anti-
15. 16 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
gas. Josephus argumentava também que os gregos não tinham
um sentido do passado enraizado e que um acontecimento como
a guerra de Tróia (c. 1250 a.C) era considerado legendário e não
histórico.
Apesar de não ser o primeiro e nem o único, é a figura de
Heródoto que assombra o imaginário dos historiadores de todas
as épocas. O republicano Cícero (106 a.C. - 43 a.C.), ao
transformá-lo em “pai da história”, acabou por despertar em
todos um sentido de filiação, de dependência em relação a uma
autoridade. Em vista disso, Heródoto foi tripudiado, acusado de
mentiroso, louvado, protegido, perdoado, imitado, tratado com
condescendência, com eqüidade, mas inevitavelmente acabou
por estar sempre presente numa espécie de raiz de uma árvore
genealógica fantasmagórica dos historiadores.
Muito pouco sabemos sobre Heródoto. As informações de
que dispomos são indiretas e por vezes tidas como fictícias. Nas-
cido em Halicarnasso por volta de 480 a.C., tornou-se cidadão
de Thourioi na Itália do sul. Foi exilado em Samos, viajou pelo
Oriente Médio, sobretudo no Egito, conheceu a região do mar
Negro, a Grécia continental e a Itália do sul. Parece ter vivido
algum tempo em Atenas, mas segundo tradições diversas teria
morrido em Thourioi, ou em Pella na Macedonia ou em Atenas
mesmo. Viveu numa época atormentada, entre o fim das guer-
ras médicas e o início da guerra do Peloponeso.
Hoje em dia conhecemos as Histórias de Heródoto dividi-
das em nove livros – cada um correspondendo a uma musa.
Este formato, no entanto, parece ter sido criado na época
helenística. Num estudo publicado em 1980 sobre a representa-
ção do outro na obra de Heródoto – a questão do outro é funda-
mental na historiografia da segunda metade do século XX, como
você verá mais adiante – o historiador francês François Hartog
considera que a associação das narrativas das Histórias com as
musas demonstraria que a obra deveria então ser vista em
16. AS ANTIGÜIDADES 17
proximidade com a poesia e a ficcão. O mesmo sentimento sur-
ge num comentário de Voltaire, em 1768, em que Heródoto é
louvado pela novidade de seu empreendimento e sobretudo por
suas fábulas. Voltaire une duas tradições contraditórias; de um
lado reforça o mito fundador de Heródoto como modelo dos his-
toriadores e de outro aponta para o caráter ficcional da obra. A
tradição de que a obra de Heródoto é fabulosa, portanto menti-
rosa, reporta-se a Tucídides, que não acreditava na possibilida-
de de se escrever uma história do passado, mesmo próximo.
Mais tarde, Plutarco (c.46-49 - c. 125) reitera as acusações de
falsidade e acusa ainda Heródoto de philobárbaros – admirador
dos bárbaros – e traidor da Grécia.
Os primeiros quatro livros das Histórias falam dos não gre-
gos – lídios, persas, babilônios, massagetas, egípcios, citas, líbios,
etc., enquanto que os demais narram principalmente as guer-
ras médicas. A escrita da história nascia então sob o signo da
guerra, pois o Heródoto historiador durante muito tempo foi
associado a esta parte da obra, em contraponto com o Heródoto
viajante – dicotomia hoje superada pela semântica histórica.
Heródoto trabalhou com um material diverso e enorme.
Com fontes orais ao interrogar pessoas com quem se encontra-
va, com a experiência visual obtida nas viagens ao observar,
classificar e medir costumes, edifícios, santuários, esculturas,
monumentos, rios, mares, caminhos – ver com os próprios olhos
era então considerado mais importante do que o ouvir com os
próprios ouvidos – e também com textos e inscrições. Registra
depoimentos conflitantes, indica o que prefere e deixa ao leitor
sua escolha final. Documenta as crenças populares, a maneira
como o povo egípcio, por exemplo, via seu próprio passado.
Embora desconfie de muitas de suas informações, não hesita
em transcrevê-las. Mostra-se discreto em relação a mistérios
religiosos – “sobre a metempsicose há gregos (os pitagóricos)
que defendem certas idéias; eu os conheço, eu nada falarei so-
bre isso”.
17. 18 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
A história grega é construída com testemunhos orais, crô-
nicas locais e inscrições. A primeira invasão da Grécia pelos
persas ocorrera pouco antes de Heródoto nascer, a segunda
quando ainda era criança. A cronologia geral da obra, no entan-
to, é confusa; passa por vezes abruptamente de uma série de
acontecimentos para outra, indo e voltando no tempo. Por outro
lado, não consegue apreender claramente as transformações
advindas com o tempo na história dos povos.
Quanto ao espaço, grandes deslocamentos marcam as His-
tórias; Heródoto faz da Grécia o centro do mundo em relação às
outras terras. A geografia é fundamental para toda a obra, daí
frases como “o Egito é a dádiva do Nilo” etc. Nesse sentido tam-
bém, ao descrever os usos e costumes de cada país, as formas
de poder dos não gregos, reforça a idéia da diferenciação entre o
grego e o bárbaro, ao mesmo tempo em que diferencia um bár-
baro de outro; um egípcio não é um persa, que não é um cita etc.
No todo, é tolerante em relação às diferenças. Apesar de ter sido
apontado como um instrumento de propaganda do poder de
Atenas, não pode ser considerado como um tradutor oficial des-
te poder; nunca trabalhou para o governo e não poupa críticas
aos próprios atenienses. A vontade dos poderosos aparece como
uma determinante na engrenagem da história, mas o Destino
prevalece sobre tudo e sobre todos. Heródoto acredita nos orá-
culos, nos presságios.
A história nascia também sob o signo da prosa. Por se
tratar de uma obra que iria também ser lida para o público
aparecia como uma grande novidade. Algumas fontes, embora
discutíveis, atestam o êxito e a popularidade da obra lida em
Atenas, Corinto, Tebas e Olímpia. Há até mesmo uma anedota
em que Tucídides ainda criança acaba chorando de emoção ao
ouvir Heródoto. A história, ainda sem muita definição, deveria
oscilar entre estória e história. O modelo épico ainda se encon-
tra na base da narrativa e o historiador ainda não existe como
profissão.
18. AS ANTIGÜIDADES 19
Tradicionalmente considera-se Tucídides (c.470 - c.395
a.C.) como o sucessor de Heródoto. Tucídides detesta o passa-
do. É o historiador do presente e da Grécia. O passado e o mun-
do além de suas fronteiras lhe parecem completamente destitu-
ídos de interesse. Para ele os gregos antigos deveriam viver como
os bárbaros seus contemporâneos, o que torna o conhecimento
do passado grego e do bárbaro inúteis. Paradoxalmente, o sécu-
lo XIX tornar-se-á o século da história positivista, da história
somente do passado que será considerado um grande modelo a
ser seguido, objetivo e científico.
Nascido num meio aristocrático, como Heródoto, prova-
velmente foi aluno de Anaxágoras, dos sofistas Gorgias e
Antiphon. Foi eleito estratego em 424 a.C. Comandou uma ex-
pedição naval de Atenas na Trácia, mas, como não pôde impedir
a tomada de Amphipolis pelo espartano Brasidas, foi acusado
de traição. Para escapar à pena de morte, refugiou-se durante
vinte anos na Trácia, onde sua família explorava minas de ouro.
Voltou a Atenas em 404 a.C., por ocasião da anistia imposta
pelos espartanos, morrendo logo depois, talvez assassinado por
seus inimigos políticos.
A História da guerra do Peloponeso – a luta entre Esparta e
Atenas – cobre o período do início da guerra (431 a.C.) até 411
a.C., com a queda dos 400. Tucídides considera esta guerra a
mais importante de toda a história, mesmo diante das guerras
persas ou da guerra de Tróia. Enxergava nela um embate direto
entre sistemas políticos e desempenhos políticos, entre modos
de vida irrenconciliáveis. A obra não foi acabada; a atual divisão
em oito livros tampouco corresponde à composição original. O
artifício cronológico usado por Tucídides é o da divisão da ação
em invernos e verões, tentando superar a confusão causada pelos
diferentes calendários das cidades gregas. Não utiliza nenhuma
data. O tempo é construído de uma maneira lógica, não cronoló-
gica.
19. 20 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
A documentação básica advém de textos transcritos (paz
de Nicias), das viagens realizadas pelo próprio Tucídides na Itá-
lia, na Sicília e no Peloponeso, de informantes com os quais
mantinha contacto em várias cidades e do testemunho pessoal
do autor. Ao contrário de Heródoto, descarta totalmente a idéia
de destino, de um curso da história. Considera que os fatos
ocorrem em virtude dos interesses e das paixões dos homens. A
moral guia a vida privada, não dos Estados; a vontade de poder
atua como força motriz do mundo. Ecos de Tucídides permeiam
as obras de Machiavel e de Nietszche.
Tucídides considerava que a inteligência seria o único ins-
trumento passível de ser utilizado para o entendimento da his-
tória; queria uma história sem estórias, com um estrito encade-
amento de fatos políticos e militares, onde a verdade fosse ex-
posta, não somente versões múltiplas dos fatos. Seu objetivo –
escrever uma história do presente para o futuro, útil para aque-
les “que queiram entender claramente os acontecimentos que
tiveram lugar no passado e que (a natureza humana sendo o
que é) mais dia menos dia, quase que da mesma forma, serão
repetidos no futuro. “Assim, tendo em vista a imutabilidade da
natureza humana, a história tenderá a se repetir; o que supõe
que a natureza humana pode moldar a história, mas que a his-
tória não pode afetar a natureza humana. Num estilo denso e
sóbrio, tenta revelar as razões e a psicologia das partes envolvi-
das no conflito entre atenienses e espartanos e, diante da docu-
mentação, pretende ser imparcial; no entanto, não consegue
deixar de imprimir suas próprias idéias filosóficas e preferên-
cias políticas no decorrer da narrativa, de adorar algumas per-
sonagens, execrar outras. Utiliza discursos para expor opiniões
contraditórias e antíteses como a do interesse e do direito. Um
dos tradutores de Tucídides, o filósofo Thomas Hobbes (1588-
1679), pensador do poder absoluto, considerava-o “o maior his-
toriógrafo político” jamais visto.
20. AS ANTIGÜIDADES 21
Tucídides está do lado de Atenas e Péricles e a história da
guerra do Peloponeso é uma obra plena de suas paixões. Mesmo
considerando os argumentos contra a expansão ateniense, as
discussões sobre o direito, a justiça ou a nobreza de exercer seu
poder sobre outros, nunca vacila em defender a causa de Ate-
nas, a superioridade de suas instituições e de sua cultura. En-
cara como uma tragédia a deterioração moral do mundo grego
em guerra. É um historiador engajado politicamente com limi-
tes de tolerância mais estreitos em relação a Heródoto. Seu
mundo é fechado, centrado na natureza humana, e desligado
da história da natureza. Tucídides constrói uma história con-
temporânea perene, imune ao processo histórico e ao exterior.
Xenofonte (c. 430 a.C. - c.352 a.C.), aristocrata e rico como
Tucídides, freqüentou os sofistas e foi aluno de Sócrates, mas
segue uma trilha política totalmente diversa. A desintegração
progressiva da democracia no século IV e o aumento dos encar-
gos para os ricos fazem com que as críticas ao regime se tornem
constantes entre os próprios atenienses. A hostilidade à demo-
cracia faz com que Xenofonte entre para um exército de merce-
nários gregos recrutados por Ciro, o Jovem para uma expedição
contra seu irmão Artaxerxes II. Após a derrota de Cunaxa con-
duziu a retirada dos Dez Mil. Como chefe de mercenários lutou
ao lado do rei de Esparta, Agesilas, contra os persas na Ásia
Menor. Banido de Atenas e despojado de seu bens acaba lutan-
do contra Tebas e os próprios atenienses. Após 394 a.C. retira-
se numa propriedade doada pelos espartanos. Por volta de 367
a.C., é anistiado e volta para Atenas.
Sua vontade era a de ser um continuador de Tucídides,
mas o espírito de seus escritos é diverso. Traduzem o clima de
desarvoramento e desintegração política das cidades gregas. Nas
Helenicas estende a narrativa de 411 a 362 a.C., e em Anabase
narra a expedição dos Dez Mil. Prossegue, portanto, com a ela-
boração da história do presente, instantânea. Acredita, no en-
21. 22 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
tanto, que os deuses têm um enorme papel no desenrolar dos
acontecimentos. Em seus livros chamam atenção seus conheci-
mentos militares e a tradução do gostos e das preocupações da
aristocracia da época, sua paixão pela caça, pelos cavalos, ao
mesmo tempo em que fala dos estranhos costumes dos povos
que conhecera; a pretensa objetividade de Tucídides está au-
sente. Da subjetividade de Xenofonte, de uma certa desconexão
intrínseca ao seu texto, de sua naturalidade sem retórica, das
explicações desconcertantes que atribui aos fatos, fluem
desveladamente sua parcialidade mas também uma tradução
menos intelectualizada da representação do mundo dos que
partilhavam do poder. Em geral, a historiografia o descreve des-
favoravelmente em relação a Tucídides. Isto se explica pelo seu
menor brilho, pela sua falta de “objetividade”, de inteligência
histórica, mas talvez também pelo fato de ter tomado o partido
de Esparta contra Atenas, o que choca o imaginário europeu
com sua idealização das virtudes atenienses.
Com a perda da liberdade, as cidades gregas integram-se
ao império de Alexandre, aos reinos de seus sucessores e final-
mente ao império romano. Da época alexandrina restaram nar-
rativas sobre as conquistas e descrições das terras invadidas,
que retomam a etnografia de Heródoto. Nearco (séc. IV a.C.),
companheiro de Alexandre, descreve a Índia como Heródoto fi-
zera com o Egito, plena de espaço, geografia, etnografia, cor lo-
cal, anedotas, diferenças. Restam fragmentos de vários autores
da época. De Filisto de Siracusa – que se ocupa das cidades
gregas do ocidente e da Sicília, ausentes na obra de Xenofonte.
De Ctesias, que elabora a história dos impérios assírio e meda e
dos reis da Pérsia até 395, e também uma Indica com relatos
fabulosos e descrições de plantas, animais e homens imaginári-
os. De Teopompo, talvez o mais importante historiador do sécu-
lo IV; protegido de Alexandre, para louvar seu senhor Felipe da
Macedônia escreveu uma obra caudalosa e barroca de cinqüen-
22. AS ANTIGÜIDADES 23
ta e oito livros, introduzindo assim um elemento pessoal deter-
minante – não mais a guerra, a cidade ou o império, mas o líder.
A louvação a Alexandre transborda nos escritos de historiado-
res como Calístenes de Olinto, e é mais velada nas histórias de
Alexandre de Ptolomeu e Aristóbulo. No geral, continua prevale-
cendo o presente como tema historiográfico e de maneira cada
vez mais clara e aberta impera o elogio do poder.
Políbio (c. 202 a.C. - 120 a.C.), grego de origem, permane-
ceu dezesseis anos em Roma como refém. Amigo de Scipião
Emiliano, conheceu vários políticos e teve acesso a arquivos.
Viajou pela Itália, Espanha, Gália, e acompanhou Scipião em
suas campanhas contra Cartago e Numância. Apesar de grego,
era um admirador incondicional dos romanos – “que homem
seria tão indiferente ou preguiçoso a ponto de não querer saber
como e sob que forma de governo quase todo o mundo habitado
se submeteu ao governo único dos romanos, em menos de cin-
qüenta e três anos ?”. Suas viagens, portanto, são mui distintas
daquelas de Heródoto. Não mais incursões de um homem isolado
em mundos diversos, mas de alguém identificado com as idéias
hegemônicas de Roma, pisando num terreno “universal” – “Há
analogia entre meu plano da história e o maravilhoso espírito da
idade de que me ocupo...a fortuna fez todos os assuntos huma-
nos convergirem para um só e mesmo fim; assim, é minha in-
tenção de historiador colocar diante dos leitores uma visão ge-
ral...” . Várias obras que têm por base suas experiências, como
uma sobre a guerra na Numancia e um tratado de tática foram
perdidas. Restaram os quarenta livros de suas Histórias, com-
preendendo o período de 220 a.C. até 146 a.C., mas com refe-
rências a épocas anteriores. Políbio faz a apologia do poder de
Roma. Sua hegemonia dever-se-ia à moral, à superioridade da
constituição romana e à capacidade desse povo. No entanto, foi
um dos primeiros escritores a deplorar a corrupção moral exis-
tente em Roma, o que se tornaria um tema corrente durante
mais de seis séculos.
23. 24 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
Ciente do papel utilitário que a história poderia desempe-
nhar nesta sociedade expansionista, a concebe como matéria
isolada da eloqüência, da erudição ou da poesia, porque a ver-
dade deveria prevalecer sobre a forma literária. Para Políbio a
história deve ser universal – como o domínio romano –, pragmá-
tica – narrando as ações dos estadistas ou chefes militares, as
decisões tomadas por assembléias e as revoluções políticas, num
período recente –, fundamentada nas experiências política e mi-
litar, lastreada pela geografia e iluminada pela filosofia. Estabe-
lece que as causas determinantes dos acontecimentos não são
fatos imediatos, mas sim o conjunto das instituições, das reli-
giões, a organização militar e o poder econômico; o historiador
deve sempre escolher um começo, uma causa, para explicar o
que diz. Estuda os regimes políticos para situar o regime roma-
no entre os outros e fazer o elogio de sua constituição. Ao estu-
dar o mecanismo das instituições, Políbio pretende estabelecer
leis que seriam úteis para prever o futuro, dado que cada regime
seria uma espécie de organismo vivo sujeito às leis biológicas.
Apesar disso, não deixa de atribuir um papel importante à per-
sonalidade dos grandes homens e ao próprio destino. Segundo
diz, nunca a fortuna havia obtido tal triunfo como o do estabele-
cimento do Império Romano. A força romana era irresistível e
seria um crime qualquer rebelião contra ela. Políbio representa
um exemplo acabado de historiador trabalhando para o poder.
A posteridade viu em Políbio uma noção racionalista da história
– o pensamento precede a ação, o individualismo domina –, e
também o construtor de uma grande síntese.
Entre os escritores de origem grega, mas já imersos na
cultura romana, Plutarco ocupa um lugar singular pela reper-
cussão que terá durante séculos no ocidente. Para termos uma
idéia, entre 1450 e 1700, suas obras tiveram 62 diferentes edi-
ções. Nascido em Cheronéia, na Beócia, por volta do ano 46,
viajou para Roma, onde conheceu políticos e intelectuais, e para
o Egito. Dividiu a maior parte de seu tempo entre suas funções
24. AS ANTIGÜIDADES 25
de arconte em Cheronéia e a de sacerdote de Apollo em Delfos.
Morreu por volta do ano 120. Os remanescentes de seus inúme-
ros escritos estão reagrupados em duas obras, as Vidas parale-
las – biografias de homens ilustres organizadas em pares, um
grego e um romano, com exceção de quatro – e as Obras Morais
– uma miscelânea de escritos sobre assuntos os mais variados,
como o porquê dos velhos lerem melhor de longe do que de per-
to, o porquê da existência de um rosto na face da lua e muitos
outros, que bem retratam o ócio da paz romana. Plutarco é
eclético, acreditando na imortalidade da alma, nas práticas
divinatórias e na justiça da Providência. Grande analista da psi-
cologia humana, moralista, considera como grandes virtudes a
piedade, a moderação e o bom senso. Foi um dos ídolos de
Montaigne: “Plutarco, eis o meu homem”.
A produção biográfica de Plutarco deriva de uma longa
tradição de anedotas e de reminiscências mais ou menos histó-
ricas que remonta aos tempos de Xenofonte e Platão. Apesar de
não se considerar historiador – distingue biografia e história –,
de não ter qualquer gosto pela pesquisa de documentos, de ob-
ter suas informações somente através de livros, durante séculos
Plutarco serviu de fonte e de inspiração para os historiadores.
As vidas paralelas, ao criarem um quadro moral idealizado dos
“grandes homens” como Alexandre e César, Demóstenes e Cícero,
entre outros, centram a história em torno de personalidades e
subsidiam o individualismo e a heroicidade presentes durante
séculos na historiografia política.
Numa sociedade conservadora como a romana, a história
encontrou um terreno favorável, expresso numa vasta produção.
Em relação à história grega haverá mudanças. Embora os his-
toriadores romanos não sejam menos subjetivos, haverá um
deslocamento temporal acentuado para o passado e espacial-
mente a história do mundo será a história de Roma. A subservi-
ência ao poder, ainda tênue na Grécia, torna-se uma constante.
Considerada um genero literário privilegiado, animada por um
25. 26 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
ideal patriótico, a forma da história podia ser mais importante
que seu conteúdo.
A questão da memória parece ter tido sempre importância
para os romanos. Já no século IV a.C., o grande pontífice escre-
via num album, uma tábua embranquecida, os acontecimentos
diários. As famílias tradicionais guardavam recordações de seus
antepassados; a tradição oral era forte, as imagens preserva-
vam rostos e as inscrições funerárias exaltavam os feitos dos
mortos. Canções épicas narravam as vidas de heróis como
Rômulo, Coriolano, os Horácios e Curiácios e muitos outros. No
século III, as guerras púnicas fundamentam um tipo de história
épica como o Bellum punicum de Nevio, que misturava mitologia
grega e história romana. No século II, os Anais de Ennio, em
versos, remontam às origens troianas e se estendem até a guer-
ra da Istria (178-177), louvando o heroísmo e a superioridade
moral de Roma.
Durante a segunda guerra púnica surgem anais em pro-
sa, como um instrumento de propaganda anti-cartaginesa. Re-
montando às fundações de Roma, os primeiros analistas como
Fabio Píctor e Cincio Alimento escreviam em grego. Esta pro-
dução patriótica toma impulso com Catão (234 a.C. - 149 a.C.),
que vê na história uma atividade apropriada à velhice e à apo-
sentadoria. Nas Origens remonta à fundação de Roma e desen-
volve sua história até o presente; apresenta a conquista romana
como um feito do povo romano e não só das famílias aristocráti-
cas.
A tradição dos analistas sobrevive durante séculos. Cícero
(106 a.C. - 43 a.C.) os vê apenas como cronistas, não escritores.
Embora não tivesse escrito nenhuma obra histórica, Cícero, ao
longo de sua obra, irá refletir sobre o papel da história na políti-
ca e sobre as formas que deveria assumir. Para ele o conheci-
mento da história nacional, da história dos povos conquistado-
res e daquela dos homens ilustres era um instrumento funda-
26. AS ANTIGÜIDADES 27
mental para os estadistas e oradores. Cícero atribui à história
um caráter utilitário. É uma fonte de exemplos morais e pode
dar uma estrutura de discernimento para o estadista, além de
situar todos numa tradição. Para isto então torna-se necessário
o respeito a uma ordem cronológica. Insiste em dizer que a his-
tória não é epopéia e nem poesia, embora seja um gênero retórico,
pois possui uma verdade objetiva e que são necessários méto-
dos para chegar a esta verdade.
Cícero concebe uma história ideal baseada na veracidade
e na imparcialidade, com uma base cronológica, assentada na
geografia, destacando o relato dos fatos com suas causas e con-
seqüências e as imbricações entre as ações humanas e os aza-
res da fortuna; julga importante tecer o retrato moral e cívico
dos grandes homens. Investe contra a busca de um passado
remoto, preferindo as narrativas do contemporâneo.
O contemporâneo, a paixão e o comprometimento político
basearão a obra do historiador Salústio (c. 86 a.C - 35 a.C.).
Excluído do Senado em 50 a.C., por adultério com a filha de
Sila, retorna no ano seguinte pela intermediação de César, de
quem é partidário incondicional. Enriquecido pela prática da
corrupção no posto de governador da África Nova (Numídia) em
46 a.C., fica no entanto sem qualquer futuro político após a
morte de César em 44 a.C. Decide então tornar-se historiador.
Com a Conjuração de Catilina, a Guerra de Jugurtha e as Histó-
rias, das quais só restam fragmentos, pretende demonstrar a
ruína progressiva do regime aristocrático instaurado após a der-
rota dos Gracos.
Para Salústio o trabalho como historiador foi um prolon-
gamento de sua vida política. Em suas obras destila seus ódios
e convicções. Na base da história romana estaria uma luta se-
cular entre o patriciado e a plebe. Findo o cesarismo só restava
a decadência dos tempos em que vivia. Em suas obras critica a
vida ativa – tão elogiada por Cícero – e enaltece a nobreza e a
27. 28 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
dignidade do espírito, o que denuncia seu platonismo. Em Catilina
faz a apologia do passado, dos tempos gloriosos dos inícios da
república, idade de ouro estóica, em que a virtude, a justiça, a
frugalidade reinavam tanto na paz como na guerra; a este tem-
po ideal contrapõe a Roma contemporânea, poço de todos os
vícios, escravizada pela oligarquia detentora de magistraturas e
riquezas, assentada na demagogia. É um texto todo permeado
por uma violência concentrada e retratos bem lavrados das per-
sonagens.
A Guerra de Jugurtha também trata da história contempo-
rânea. Para além da pintura do caráter de Jugurtha, das descri-
ções exóticas, deixa entrever a inquietação de Roma após a re-
volução dos Gracos.
Nas duas obras há dramaticidade, vivacidade, painéis des-
critivos da geografia, do passado, da etnografia, uma escolha
deliberada de alguns episódios em detrimento de outros para
criar o efeito desejado, uma ênfase no peso da personalidade na
condução dos acontecimentos, a relação das pessoas com suas
origens e seu meio social para explicar suas condutas. Salústio
é inevitavelmente comparado a Tucídides no que tange à forma,
à brevidade do discurso, à língua densa e difícil. Seus discursos
caracterizam as personagens importantes, descrevem sistemas
políticos, preparam os acontecimentos. À medida que narra, in-
terpreta. Sua grande precisão nos temas – o maior episódio de
que se ocupa cobre apenas dez anos – reproduz-se também na
análise minuciosa, na explicação daquilo que conhece como tes-
temunha. Para Salústio cabia ao historiador não somente nar-
rar, mas ver as causas sob os efeitos das ações. Seu trabalho
reitera uma concepção de história profundamente associada à
experiência, ao vivido.
O patriotismo do reino de Augusto fará com que também a
história se transforme. Há, portanto, uma diferença de fundo
entre Salústio e Tito-Lívio (c. 64 a.C. - 10 A.D.), autor de uma
28. AS ANTIGÜIDADES 29
história de Roma (Ab urbe condita libri) em cento e quarenta e
dois livros, de suas origens até o ano 9 a.C. Movido por um
patriotismo exacerbado e não por uma convicção política deter-
minada como Salústio, o burguês, republicano e sedentário Tito-
Lívio procura as causas da grandeza de Roma na moral roma-
na; constrói o retrato de um romano ideal, heróico, trabalhador,
justo, uma figura una que corresponde à unidade do império e
contribui para sua propaganda; o homem romano é o bem mais
precioso da nação.
Fundamentada numa pesquisa livresca, em fontes secun-
dárias, sem um espírito crítico agudo – muitas vezes Lívio cita
fontes contraditórias e somente aponta o que lhe parece mais
plausível, outras vezes se contradiz fragorosamente –, convenci-
do de estar cheio de razão, com gravidade, em tons dramáticos
ou épicos, a obra expressa um sentido de grandeza provavel-
mente vivo na mente dos romanos. A história seria uma mani-
festação do espírito ético romano. Os cento e quarenta e dois
livros nos chegaram divididos em décadas, estabelecidas prova-
velmente a posteriori.
Tito-Lívio rompe com a história em moda na sua época, a
história contemporânea de Salústio. Tampouco quer fazer uma
história universal, mas sim nacional, negando-se a tratar de
temas alheios à história romana. A base de sua história é a vida,
política e coletiva, e suas paixões, passíveis de serem controla-
das pelos princípios tácitos aceitos por todos para a conduta
individual e coletiva. Os grandes homens seriam os instrumen-
tos da história, os guias do povo, encarnando os interesses su-
premos da pátria, dando os grandes exemplos, dominando cada
período; são geralmente caracterizados através de discursos. Mas
é tão pessimista quanto Salústio no que concerne ao presente; a
grandeza estava no passado. Por outro lado, representa um ou-
tro tipo de personagem. Não é o homem experiente, político,
diplomata ou militar que no fim da vida resolve fazer história.
29. 30 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
Sem participar da vida pública é um dos primeiros historiado-
res do gênero intelectual de gabinete. Não pertencia a qualquer
seita filosófica, respeitava a religião e via nela um meio para
manter a ordem e a disciplina entre o povo; acreditava na im-
portância da Fortuna no desenrolar da história e, particular-
mente, num crescimento de Roma como manifestação de uma
vontade divina. Achava natural que, após tantas provações, os
romanos fossem senhores do universo. Afinal, haviam pratica-
do todas as virtudes: a piedade em relação aos deuses, a fé, a
concórdia, a moderação, a prudência, a clemência. Tito-Lívio
proclama o conservadorismo e a moral ecoando o programa de
regeneração do mundo romano de Augusto.
Veleio Patérculo (c. 19 a.C. - 31 A.D.) é de novo um homem
de ação que se engaja na construção do passado romano. Lega-
do de Tibério na Germânia, fez uma brilhante carreira militar
antes de se tornar o historiador do imperador. Suas Historiae
tentam descrever toda a história do mundo greco-romano desde
a guerra de Tróia e inserir a história de Roma na história uni-
versal.
Na base de seus escritos, porém, está a louvação dos pri-
meiros césares – César, Augusto e Tibério – e uma panfletagem
rasgada do próprio Tibério. Este aparece como um herdeiro pre-
destinado de Augusto; é bem nascido, é belo, é culto, é virtuoso,
é bravo, é prudente etc. É o grande continuador da missão
regeneradora de Augusto. Veleio acredita que a causa da gran-
deza dos césares reside numa conjunção do sobrenatural com a
virtude; os grandes homens, no entanto, não concentram todo o
poder sobre o devir histórico, pois existem também mecanismos
invisíveis, determinantes, absolutos e coletivos que levam os
povos à decadência.
A produção laudatória terá vários seguidores. Após a
monumentalidade de Lívio, a historiografia tendeu por outro lado
a se diluir em gêneros menores, biografias, memórias, anais,
30. AS ANTIGÜIDADES 31
ensaios. Em meio a este panorama destaca-se a obra de Tácito
(c. 55 - 120).
Originário do meio eqüestre e possivelmente provincial,
entrou na carreira administrativa durante o governo de Vespa-
siano; foi cônsul (97), procônsul da Ásia (110 - 113). Sua gran-
de eloqüência já era notória antes de se dedicar à história.
Diálogo dos oradores, Vida de Agrícola e a Germânia precedem
suas obras propriamente históricas, as Histórias e os Anais.
Os Anais tratam do passado não vivido pelo autor, o reino dos
júlios-cláudios: Tibério, – Calígula e Cláudio – Nero; as Históri-
as da contemporaneidade, das guerras civis de 69 e do reinado
dos flavianos.
Tácito objetiva fazer uma obra moral; diante da miséria,
da crueldade e do deboche da época, quer salvar as virtudes do
esquecimento, execrar os vícios. É um grande leitor de almas
complexas, de povos estrangeiros – como os germanos. Sua filo-
sofia da história é totalmente pessimista; em sua obra transparece
uma obsessão pela tirania, pela discórdia, um desejo de liberda-
de de expressão e de restauração do poder da palavra. Seu estilo
conciso, rápido, quase sem verbos, transmite violência, inquie-
tação, amargura, brutalidade, de uma forma compacta, dando
um tom totalmente diverso em relação à historiografia praticada
até então.
Para Tácito a história não é um campo para louvações pes-
soais, não se presta a floreios oratórios como em Tito-Lívio, não
é uma lição política como em Tucídides e Políbio. A história deve
proceder a uma análise moral, avaliar as mudanças, as defor-
mações da alma humana quando pressionada por circunstân-
cias externas. O historiador deve comparar, analisar, levar em
conta detalhes mínimos que podem indicar a essência de uma
pessoa ou de uma época. A explicação dos fatos deve ser mais
completa e extensa do que a narração dos fatos. Uma das carac-
terísticas mais interessantes nos retratos humanos criados por
31. 32 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
Tácito é que nunca se repetem – Cláudio é fraco e inerte, mani-
pulado por suas mulheres e seus libertos, atravessa as mais
aterrorizantes tragédias sem agir e sem compreender o que se
passa; Nero é um louco romanesco, extravagante, desequilibra-
do, com sede do impossível e do extraordinário; Messalina tem
sede de escândalo e luxúria; Agripina pende para o crime, é
mais viril, mais decidida, ambiciosa. Estas personagens tam-
bém se modificam sob as circunstâncias. Da mesma forma são
analisados os sentimentos coletivos: o medo e a fraqueza do
Senado ao aclamar Tibério, a tristeza dos soldados diante de
seus companheiros mortos, a apatia do povo após o principado
de Augusto, os rompantes de violência popular no teatro, os
motins militares, o saque de Cremona, o incêndio do Capitólio
etc.
Tácito utilizou fontes orais e escritas para construir sua
história; ouvia os rumores do Senado e os das ruas e consultava
arquivos oficiais e crônicas divergentes; brada contra o servilis-
mo de cronistas como Veleio Patérculo. Acredita na intervenção
dos deuses no processo histórico, mas ataca a superstição, e
procura decifrar o quanto há de vontade e liberdade naquele
processo. Embora não fosse alheio aos mecanismos coletivos,
econômicos e sociais da história – analisa as relações entre os
desmandos dos imperadores e o déficit nas finanças públicas, a
crise do ano 33 – é certo que constrói uma história dramática,
centrada em tragédias, pessoais e coletivas. Sua obsessão pela
violência e as regiões mais sombrias da psique faz dele um com-
panheiro de historiadores cristãos tão diversos como Agostinho
e Gregório de Tours.
A partir do século XVI, principalmente, quando as refle-
xões sobre a tirania são freqüentes, a obra de Tácito será muito
valorizada na Europa; Guicciardini (1483 - 1540) dizia que Táci-
to ensinava muito bem as pessoas a viverem sob o jugo das
tiranias, ao mesmo tempo em que ensinava aos tiranos como
32. AS ANTIGÜIDADES 33
fundar suas tiranias. Muito já se escreveu sobre o tacitismo de
Machiavel.
Na época de transição entre a historiografia antiga e a
medieval destacam-se Suetonio (75 - c.140) e Amiano Marcelino
(330 - c. 391), considerado o último historiador da antigüidade
por ser pagão. Suetonio, originário da ordem eqüestre, dedicou-
se à carreira administrativa, onde chega a trabalhar como se-
cretário de Adriano; suas funções fazem com que tenha acesso a
arquivos e documentos secretos. De grande erudição, amigo de
Plínio, mantém a crença na religião tradicional, na adivinhação,
e desconfia profundamente dos cultos orientais, como o cristia-
nismo. Sua paixão era a pesquisa, os livros, a escrita. A maior
parte de sua obra, incluindo uma enciclopédia de história natu-
ral, foi perdida. Restaram as Vidas dos doze Césares (c. 120),
Sobre os homens ilustres (c. 113), De gramáticos e retóricos e
uma Vida de Terêncio. Além de pesquisar em livros e arquivos,
utilizava fontes orais para escrever seus trabalhos, o que lhes
dá um tom anedótico e escandaloso muito acentuado.
Os Doze Césares tratam do mesmo período estudado por
Tácito; mas o nome deste e muito menos seu espírito não estão
presentes. Obedecendo a uma ordem cronológica, Suetonio ela-
bora as biografias dos doze primeiros césares romanos; prefere
se estender mais sobre a reconstituição das vidas dos mais an-
tigos, ao contrário do hábito de carregar a pesquisa nos tempos
mais próximos. Mesmo assim não quer ser considerado histo-
riador. Seus contemporâneos o vêem como um gramático. Sua
proximidade com a história pode ser detectada principalmente
pela massa de documentação presente nas biografias, embora
haja pouca crítica, nenhum julgamento de valor muitos silênci-
os e nenhuma visão de conjunto. A opção pela biografia suben-
tende sua convicção no poder pessoal sobre a história, mas tam-
bém uma concepção dinástica de poder. Apesar disso, os Doze
Césares fizeram uma longa carreira no ocidente.
33. 34 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
Amiano Marcelino, o último historiador antigo, era oficial
militar. Nasceu em Antioquia em 330, começou sua carreira na
guarda do Palatino, integrando um corpo do séquito imperial
que realizava missões nas províncias. De 353 a 360 trabalhou
com Ursicino, participando da luta contra o rei Sapor da Pérsia.
Em 363 fica sob o comando do imperador Juliano. Para compi-
lar o material de sua História foi para Roma, estabelecendo-se
depois em Antioquia. A obra abrange desde o período do adven-
to de Nerva (96) até a morte de Valente (378) em trinta e um
livros, os trezes primeiros perdidos.
Amiano diz querer ser historiador imparcial, ater-se à ve-
racidade, basear-se em documentos, negar o fantástico, procu-
rar um meio termo entre vícios e virtudes para retratar os
governantes, convencer. Não tem uma posição anti-cristã abso-
luta; diz ser a virtude mais importante do que paganismo ou
cristianismo. Suas pesquisas e a transposição de suas experi-
ências resultaram numa obra altamente patriótica, de fundo
belicista, contrária aos germanos, laudatória das façanhas de
um Juliano sábio e herói, plena dos fatos que considera dignos
de memória, na linha de Políbio. Vivendo em pleno período da
desintegração do Império, Amiano faz a apologia da Roma eter-
na, santa, venerável, mãe dos deuses, base da liberdade e da
sabedoria, ao mesmo tempo em que canta as virtudes do
universalismo imperial romano. Flagrante de anacronismos em
sua exaltação do agora inexistente, de uma ideologia exangue, a
escrita de Amiano, no entanto, fecha um ciclo da história roma-
na ufanista, centrada na saga deste povo eleito pelos deuses e a
Fortuna para dominar o mundo. Iniciava-se agora a saga dos
outros eleitos. Por Deus e sua Divina Providência.
A crítica contemporânea, notadamente Alberto Momigliano,
tem se preocupado em indagar qual seria o público da história
na antigüidade. Evocaremos aqui alguns resultados de sua pes-
quisa. Ao contrário da poesia, das obras teatrais, da oratória, a
história não era um genêro elaborado para ser ouvido. Por outro
34. AS ANTIGÜIDADES 35
lado, os historiadores não formavam um grupo profissional e
nem mesmo um grupo distinto dentro da sociedade. Vários his-
toriadores gregos viveram no exílio, vários romanos ocupavam
cargos políticos, militares ou administrativos. A história, por-
tanto, seria uma atividade marginal ou complementar à vida
das pessoas.
Momigliano acredita que no princípio, no século V a.C.,
deveria haver leituras públicas das obras, mas que com o tempo
devem ter caído em desuso. Sabemos que Tucídides escrevia
para ser lido. Entre os séculos III a.C. e IV A.D., porém, há uma
documentação esparsa sobre leituras de obras históricas.
Amiano, por volta de 392, teria lido alguns trechos de seu livro
em público. Temos alguma documentação sobre as persona-
gens que leram obras históricas – Brutus lendo Políbio, Cláudio
lendo Tito-Lívio etc. Sabemos também da existência de resumos
de obras para o grande público. Dispomos de alguns indícios
sobre a disponibilidade de algumas obras no mercado, sua exis-
tência nas bibliotecas públicas do império, mas muito fragmen-
tários. Na medida em que Roma, a história e o poder andavam
juntos, há fontes sobre as relações entre historiadores e
governantes; mas estas deveriam ser desiguais, Tácito como aris-
tocrata deveria ter mais penetração na alta sociedade do que
Suetonio, simples cavaleiro. Augusto não tolerava historiadores
fora de uma linha oficial, o que leva a pensar que a história pode
ser uma disciplina perigosa. Tibério queimou as obras do histo-
riador Cremutius Cordus, que acabou se suicidando. A isto se
acrescenta que na antigüidade não havia uma distinção clara e
universalmente aceita entre história e ficção.
Na base de todas as indagações estaria uma grande incóg-
nita. Segundo Momigliano, a de compreender o porquê da exis-
tência da história em sociedades onde ela não fazia parte da
educação formal e onde a religião, a filosofia e os costumes de-
terminavam a conduta dos homens.
35. AS IDADES MÉDIAS 37
AS IDADES MÉDIAS
“O mundo é o conjunto de todas as coisas, que se
compõem do céu e da terra. (...) No sentido místico, o
mundo é propriamente o signo do homem. Pois da mes-
ma maneira que aquele é constituído de quatro elemen-
tos, este igualmente se compõe de uma mistura de qua-
tro humores, cuja combinação forma um só ser exis-
tente.”
Isidoro de Sevilha, De natura rerum.
A institucionalização do cristianismo como religião de es-
tado em 313, a desintegração política e econômica do império
romano e a ruptura de seu quadro geográfico estão na base do
surgimento de uma nova história e de um novo historiador.
Embora a história não esteja enquadrada no trivium – gra-
mática, retórica, dialética – ou no quadrivium – aritmética, as-
tronomia, música, geometria –, que compõem a estrutura bási-
ca da educação e nem o historiador tenha se profissionalizado,
a História, com um grande H, será um elemento primordial na
composição da identidade do homem cristão.
A noção de história universal liga-se aos judeus cristiani-
zados. No momento em que seguidores de Cristo, como S. Pau-
36. 38 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
lo, transformam sua crença, até então nacional, em uma reli-
gião universal, absorvendo a ideologia política do império, dão
margem ao surgimento desta história universal. Assim o Novo
Testamento, continuação do Testamento nacional, historiará as
batalhas e as conquistas dos apóstolos em terras estrangeiras;
não mais conquistas militares, mas que utilizam ainda uma arma
dos pagãos, a oratória e a discussão intelectual. Na medida em
que cristãos estão imbuídos da verdadeira verdade, esta palavra
passa a ter um peso muito grande na maneira de refletir sobre o
mundo. No entanto, não devemos confundir verdade com obje-
tividade. A verdade do passado terá fins utilitários, variados,
como o de legitimar o poder, numa seqüência infinita, de Deus
até o mais obscuro dos príncipes. A verdade da história poderá
ser utilizada no momento de decisões, da tomada de atitudes
políticas. As teorias do poder divino do papa e do imperador
documentam-se nos exemplos da história, no poder exercido
por Melchisedec ou no procedimento da passagem do poder de
Cristo para S. Pedro. A subjetividade presente na historiografia
antiga assumirá contornos diversos, em conformidade com ou-
tros padrões.
Uma imagem comum nas catedrais góticas francesas é a
da seqüência de reis judeus e reis franceses. Numa linha reta.
Assim muitos concebem a história cristã. Ordenada, olhando
para a frente, sem reviravoltas cíclicas. Uma história linear com
começo – a Criação –, meio – a Encarnação – e fim – o Juízo
Final. Outros se voltarão para uma experiência do tempo orde-
nada por cadências regulares – a cada mil anos, por exemplo,
seria necessária uma purificação para que tudo renasça. Num
mundo organizado por Deus, os fatos se legitimam automatica-
mente e se amoldam sempre a uma explicação de ordem sobre-
natural. A própria expansão do império romano seria um desíg-
nio de Deus para facilitar posteriormente o trabalho apostólico.
Nos primeiros séculos do cristianismo ocidental, a Igreja se apre-
sentará como fiadora da ação de Deus na história; o historiador,
37. AS IDADES MÉDIAS 39
nesse sentido, será uma testemunha da presença de Deus no
mundo.
A noção de tempo tornando-se primordial, o conhecimen-
to do tempo, sua ciência, tomarão um aspecto religioso. Apoiada
na astronomia e na matemática, a cronografia, que estabelecia
datas e computos, era considerada uma ciência cristã. Por ou-
tro lado, acentua-se a diferenciação entre história “antiga” e con-
temporânea. História passa a ser um termo empregado diante
de uma visão geral e recuada dos fatos; para o contemporâneo,
a presença de uma cronologia minuciosa passa a ser de praxe.
Podemos constatar também uma enorme variedade de gê-
neros históricos desde os primeiros séculos da Idade Média. Uma
inovação é a dos textos hagiográficos – história dos santos, nar-
rativas sobre milagres, sobre o translado e a descoberta de relí-
quias ou listas episcopais. Estas listas fundam uma pseudo-
linhagem episcopal e legitimam o bispo como pai dos fiéis. As
histórias de santos também podiam ocultar um propósito legiti-
mista, que favorecia uma comunidade ao estabelecer uma anci-
enidade, uma história para determinados locais. Além disso dis-
pomos de inúmeros Anais e Crônicas; homens ligados à Igreja
ou a administração dos reis eram responsáveis pela catalogação
de fatos geralmente políticos, militares e extraordinários – pas-
sagem de cometas, milagres etc. – considerados importantes du-
rante o ano nos anais. As crônicas implicam uma maior ampli-
tude cronológica e também uma análise dos acontecimentos no
âmbito de desígnios políticos e religiosos. Ecos da historiografia
antiga, alusões a Tácito, a Salústio, a Tito-Lívio por exemplo,
permeiam esta nova história, que, no entanto, trata o passado
numa perspectiva bem diversa. Conscientes das transformações
operadas pelo cristianismo no mundo, tentam explicá-las à luz
da religião.
Uma reflexão sobre todos os cronistas, analistas, escrito-
res que se referem ao passado e historiadores dos quinze pri-
38. 40 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
meiros séculos do cristianismo seria muito extensa. Nos limita-
remos a alguns exemplos nos quais a intenção de escrever uma
história é mais definida. Assim, Agostinho (354 - 430), por exem-
plo, importantíssimo na definição da ideologia e das funções da
história medieval – na Cidade de Deus defende a teoria de que a
queda de Roma era apenas uma pequena amostra dos infinitos
e universais poderes divinos – não será considerado como histo-
riador.
A tentativa de interpretar a história humana numa pers-
pectiva cristã já se manifesta no panfleto de Lactâncio (c. 260 -
c. 325) sobre a Morte dos perseguidores. Convertido ao cristia-
nismo em 300, foi preceptor do filho do imperador Constantino;
suas ligações com o poder – Constantino oficializa o cristianis-
mo no império – e a paixão de neófito se confundem em seu
trabalho, onde anuncia a vitória do Ponte Mílvio com violência.
S. Jerônimo (c. 341 - 420) atribuirá à história um papel
decisivo na vida pessoal de cada um e no próprio cristianismo.
Aristocrata convertido por volta de 366, buscou na pregação, no
aconselhamento, no eremitismo, no celibato, as formas de vida
cristã. Com uma sólida formação clássica, tendo sido secretário
do papa Damásio e fundador de inúmeros conventos, deixou
uma produção enorme em livros, panfletos, cartas, onde o tem-
po presente é sempre avaliado em função da missão cristã; as-
sim, numa carta a uma de suas amigas romanas que desejava
se casar, argumenta que, diante do horror das invasões de “bes-
tas ferozes” – os germanos – ao império romano, era inconcebí-
vel pensar na felicidade pessoal e que a única atitude digna e
cristã seria a do celibato.
Jerônimo traduz do grego para o latim a Cronica de Eusébio
de Cesaréia (265 - 340), considerado o pai da história eclesiásti-
ca, e a atualiza até sua época. Nesta obra, Eusébio tratava do
passado longínquo, da vingança divina contra os perseguidores
da Igreja, da luta contra perseguidores e heréticos, das disputas
39. AS IDADES MÉDIAS 41
doutrinais e da sintonia entre a pax romana e o cristianismo,
utilizando uma enorme documentação e poucos discursos; a
citação, a “autoridade”, fundamental nas obras medievais, e não
a retórica, se impunha. No Dos homens ilustres, Jerônimo traça
um quadro completo do desenvolvimento da Igreja, enumeran-
do todas as grandes personagens desta história. As Vidas dos
anacoretas Paulo de Tebas, Hilarion, Malchus, dão o tom para
as biografia santas medievais. Seu maior empreendimento foi a
tradução para o latim e revisão crítica da Bíblia (Vulgata), consi-
derada por pagãos e mesmo veladamente pelos cristão como
uma obra de padrão literário execrável. Seus prefácios e co-
mentários sobre os livros das Escrituras objetivam melhor
elucidar fatos, datas e seus encadeamentos.
Sulpício Severo (c. 360 - c. 420) originário da Aquitânia,
em sua História Sagrada pretende descrever a história do mun-
do desde a criação até o ano 400 para instruir os ignorantes e
convencer os cultos.
Paulo Orósio (c. 390 -?), um padre espanhol que, em 414,
foge das invasões germânicas e refugia-se em Hippo, também
pensará na história como um amplo painel. Discípulo de Agos-
tinho, escreveu vários trabalhos ligados à defesa da ortodoxia e,
a pedido daquele, um suplemento histórico à Cidade de Deus. A
História contra os pagãos (415 - 417) objetiva provar que o cris-
tianismo não fora responsável pela queda de Roma, e que, ao
analisar a história humana evidencia-se um desígnio providen-
cial; seu livro é um exaustivo catálogo dos males da humanida-
de, detectados desde os mais antigos impérios do mundo. Du-
rante séculos este trabalho, bem como o de Eusébio, servirão de
subsídio para a escrita de crônicas universais como a de Otto de
Freising, no século XII.
Com a divisão do antigo império em reinos germânicos, os
historiadores tendem a traduzir uma visão de mundo mais loca-
lizada, focada num cotidiano mais limitado, numa nova lingua-
40. 42 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
gem, embora se digam herdeiros de Tácito ou da historiografia
antiga. É o caso da História dos Francos de Gregório de Tours e
da História dos lombardos de Paulo Diácono.
Gregório de Tours (c. 539 - 594), bispo de Tours, descende
de uma família romana senatorial integrada ao reino franco. No
prefácio da História dos francos, Gregório deplora a inexistência
de um homem capaz de escrever sobre os acontecimentos atuais
e decide assumir esta tarefa; de fato, vai além. Inspirado por
Eusébio, Jerônimo e Orósio e mais seu conhecimento da Bíblia,
começa a narrativa nos dias da Criação.
No livro I cobre 5596 anos da história da humanidade, de
Adão até a morte de S. Martinho de Tours, em 397. Os outros
nove livros da história dos francos relatam os acontecimentos
desde a morte de S. Martinho até 591, pouco antes de sua mor-
te. A partir do livro II, quando começa a mencionar os reis fran-
cos, suas fontes forçosamente serão outras; as agora perdidas
Historia de Renatus Profuturus Frigeridus e a Historia de
Sulpicius Alexander, cartas de Sidonio Apolinário e de S. Avito,
vidas de santos e de mártires, escritos de seus contemporâneos
Venancio Fortunato, Sulpicio Severo e Ferreolo e muitos outros.
Cita Virgílio e Salústio. Insere a transcrição de uma série de
documentos originais, como a carta enviada a bispos por oca-
sião da fundação do convento de Santa Radegunda em Poitiers;
sete respostas a esta carta; o texto do tratado de Andelot assina-
do entre os reis Guntram e Childeberto II em 587; a carta do
papa Gregório aos flagelados da peste de 590 em Roma, e ou-
tros. A presença desta documentação demonstra o espírito que
anima a escrita da história de Gregório; uma história baseada
no documento, na autoridade e na discussão desta autoridade.
Mas também as fontes orais e o testemunho ocular, a perspicá-
cia de observação, a participação pessoal em vários aconteci-
mentos, servirão de subsídio à narrativa. Além de descrever,
Gregório tenta desvendar pontos obscuros, como o da primeira
41. AS IDADES MÉDIAS 43
vez que um líder franco se transforma em rei, através de uma
investigação minuciosa. Apesar de se preocupar em ler nos acon-
tecimentos os signos da intervenção divina no mundo, está atento
ao real, ao visual.
Um dos aspectos mais cativantes desta história dos fran-
cos é a linguagem. Gregório escreve como deveria falar. Muito
criticado por não mais seguir os padrões antigos, é justamente
neste latim falado, menos conciso que o clássico, no seu estilo
simples, que podemos desvendar inúmeros traços da mentali-
dade, da visão de mundo de sua época. Gregório, ao contrário
de muitos historiadores antigos, nunca saiu da Gália. Seu hori-
zonte é fechado. Logo, pode descrever com minúcia cenas que
jamais seriam consideradas dignas de nota pela historiografia
antiga. Sem enunciar qualquer julgamento, pinta com precisão
os horrores, as intrigas, a luxúria e a volúpia sanguinária dos
merovíngios. As fúrias encarnadas em Fredegonda, as misérias
de Brunhilda, renascerão na historiografia romântica do século
XIX, com as Narrativas dos tempos merovíngios de Augustin
Thierry, e no romance gótico.
No século VII, numa distante região da atual Inglaterra
dominada pelos anglo-saxões, a história será uma das expres-
sões da cultura religiosa de Beda (673 - 735), dito o Venerável.
Aos sete anos de idade, órfão, foi ele encaminhado a um conven-
to; com treze anos fixou-se na abadia beneditina de Yarrow e daí
não mais saiu até sua morte. Educado tanto pela leitura das
obras cristãs como clássicas aí existentes, escreveu comentá-
rios bíblicos, tratados de gramática, uma versão expurgada do
De rerum natura de Isidoro de Sevilha, dois trabalhos de histó-
ria, A História do povo e da igreja dos anglos (731) – da conquista
de Júlio César em 73 até o presente – e a Vidas dos abades, e
uma cronologia universal calculada pela era cristã e fundamen-
tada em estudos astronômicos.
42. 44 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
No prefácio de sua história eclesiástica, Beda informa seus
leitores sobre as fontes que utilizara e o tratamento a elas con-
cedido. Procura sempre reunir a maior documentação possível
sobre todos temas, utilizando tanto testemunhos escritos como
orais e mesmo arqueológicos. Para isto estabelece uma intensa
correspondência no sentido de obter cópias ou originais de ma-
nuscritos. Descarta o que não lhe parece adequado e não se
contenta em somente arrolar o material utilizado, mas em fun-
di-lo num todo coerente. “Como as leis da história exigem, tra-
balhei honestamente para transmitir o que pude aprender das
fontes, para a instrução da posteridade”. Escrevendo como cris-
tão, o maravilhoso e os milagres estão presentes no texto; come-
tas, tempestades, curas, são apontadas como intervenções dire-
tas de Deus no mundo. Assim, não somente a história dos povos
que colonizam a ilha e da igreja é narrada, mas também as
lendas, as crenças populares, que possam ser interessantes ou
edificantes para seus leitores. Apesar das dificuldades que deve
ter tido em reunir sua documentação, a crítica moderna consta-
ta uma grande precisão nos fatos arrolados em sua história. Por
outro lado, Beda representa bem tanto a dinâmica da cultura
anglo-saxônica como a cultura eclesiástica quase profissional
que dominará a Europa por séculos.
Um outro tipo de historiador, de formação religiosa, mas
trabalhando para o poder temporal, é Eginhardo (c. 770 - 840),
uma das estrelas da chamada renascença carolíngia. Nascido
numa família aristocrática, foi educado na abadia de Fulda, e,
posteriormente admitido na escola palatina de Carlos Magno,
em Aachen. Ingressa na política no reinado de Luiz, o Piedoso;
foi secretário e amigo pessoal de Carlos Magno até a morte deste
em 814, e posteriormente conselheiro de seu filho Lotário. O
conflito entre Luiz, o Piedoso e seus filhos o leva a prudentemen-
te se afastar da política, em 828. É neste momento de sua vida
que decide escrever uma biografia de Carlos Magno. Em 830,
43. AS IDADES MÉDIAS 45
retira-se na abadia de Selingenstadt. Além da vida de Carlos
Magno, deixou cartas e obras hagiográficas.
A Vita Caroli é um panegírico do imperador, seguindo fiel-
mente os moldes da Vida dos doze Césares de Suetonio e, parti-
cularmente, a biografia de Augusto. Este será um procedimento
comum durante vários séculos; os autores copiam a seqüência
de temas e mesmos os comentários dos autores latinos. Colo-
cam suas personagens numa espécie de camisa de força. Ape-
sar disso, as diferenças de sensibilidade acabam por aflorar. Há
também um outro aspecto a ser considerado nesta imitação. Na
medida em que a cultura cristã assume formas e conteúdos
próprios e mais definidos no ocidente, parece haver um certo
abandono da literatura latina profana, considerada imprópria;
no entanto, as obras históricas não teriam sido afetadas por
estas restrições; talvez porque a história edificasse.
No prefácio da Vita Caroli, Eginhardo define suas metas:
escrever sobre a vida pública de Carlos Magno e descrever sua
vida cotidiana. Aproveitava o fato de ter sido uma testemunha
ocular dos dois aspectos da existência do imperador a partir de
791, quando este estava com quarenta e nove anos de idade.
Apesar desta proximidade, e de dispor de documentação para o
período anterior, ao escrever de memória, Eginhardo cometerá
uma série de imprecisões.z Algumas vezes deliberadamente, para
camuflar a verdade e proteger seu senhor. No todo, porém, tra-
ta-se de uma obra surpreendente pelo seu estilo, concisão, e
também por ter como motivo um tema não religioso.
Uma outra biografia de Carlos Magno seria escrita mais
tarde pelo chamado monge de S. Gall (c. 840 - c. 912), sobre o
qual quase nada se sabe. Trata-se de uma obra com um caráter
mais mítico, legendário, recheada de anedotas saborosas, even-
tualmente derivada das lendas populares sobre o imperador.
Além da biografia cortesã, a época é pródiga em histórias
eclesiásticas locais, de sedes episcopais, mosteiros, comunida-
44. 46 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
des, escritas por religiosos mais ou menos obscuros. Assim a
História da Igreja de Reims de Flodoardo (894 - 966), a História
do mosteiro de S. Bertin do abade Fulcuino (m. 990). A Cronica
do religioso de Angoulême, Adémar de Chabannes, é mais am-
pla, cobrindo a história do povo franco; a partir de 980 torna-se
uma crônica da aristocracia da Aquitânia. Inúmeras são as
cronografias universais como a de Reginono de Prum (906), a do
monge Hermann, o curto, de Reichenau – retomando a divisão
agostiniana de seis épocas do mundo –, a do bispo Othon de
Freising, entre outras. A produção de vida de santos também é
considerável; servem a propósitos piedosos, políticos, e econô-
micos ao propagandear os milagres de santos locais e atrair pe-
regrinos: vida de Sta. Eulália (881), vida de S. Legério (950 -
1000), vidas de Santa Foi (1000 - 1050) – santa que atrai milha-
res de peregrinos, no caminho de S. Tiago –, vida de S. Alexis
(1040). Há ainda a História dos normandos de Dudo, deão da
colegial de S. Quentin, as Histórias de Richer, monge de S. Rémi
de Reims, cobrindo o período de 888 a 995, e os textos das His-
tórias do monge Raul Glaber, talvez findos por volta de 1048.
O ano mil, segundo Georges Duby, parece ter passado quase
despercebido em vários anais e crônicas contemporâneos. Nada
ou quase nada é dito sobre a data nos anais de Benevento, nos
de Verdun e outros. O cronista Raul Glaber, no entanto, em sua
obra dedicada a Odilon, abade de Cluny, talvez explique esta
ausência ao formular um outro cálculo do tempo, um outro
milenio, relativo à morte de Cristo. Assim 1033, e não 1000,
seria o outro milênio, dentro de uma cadência temporal religio-
samente marcada.
A história continua a ter grande importância para a cons-
ciência cristã. Os méritos das obras históricas são definidos
no livro Das Maravilhas do abade de Cluny, Pedro, o Venerá-
vel (c. 1092 - 1156): “boas ou más, todas as ações produzidas
no mundo, pela vontade ou pela permissão de Deus, devem ser-
vir à glória e à edificação da Igreja. Mas se nós as ignoramos,
45. AS IDADES MÉDIAS 47
como podem contribuir para a louvação de Deus e a edificação
da Igreja?”
A partir dos séculos XI-XII, no entanto, a escrita da histó-
ria passa a ser utilizada com maior freqüência pelos poderes
laicos, que nela também vêem uma ocasião para cantar suas
glórias e legitimar seus direitos. Uma série de crônicas familia-
res, de biografias individuais de grandes personagens laicos e
de histórias nacionais podem ser encontradas. Assim Henrique
II da Inglaterra (1133 - 1189) contrata clérigos para escrever a
história de seus predecessores. Wace, cânone de Bayeux no sé-
culo XII, traduz a Historia Regum Britanniae, de Geoffrey de
Monmouth (c. 1100 - 1154), que ajuda a popularizar as lendas
do rei Arthur na França, e elabora o Roman de Rou (c. 1175),
narrando a história dos duques da Normandia, com bases em
fontes latinas. Um anônimo encarrega-se da biografia de Gui-
lherme, o Marechal (c. 1145 - 1219), regente da Inglaterra du-
rante a minoridade de Henrique III; o escritor é contratado pelo
filho de Guilherme, o conde de Pembrocke, por volta de 1226.
Surge assim um novo tipo de produtor da história. Não
mais preso a uma estrutura monástica ou episcopal, mas geral-
mente de formação religiosa, e que passa a trabalhar a soldo
para a aristocracia para escrever suas genealogias, algumas vezes
míticas. É o caso de Lambert d’Ardres, analisado por Georges
Duby, que entre 1201 e 1206 termina sua História dos condes
de Guines “à gloria dos altos senhores de Guines e de Ardres”.
Lambert era um clérigo que servia no castelo de Ardres, parente
distante desse senhor; apesar de clérigo, era casado e tinha fi-
lhos, também sacerdotes. Dizia-se “mestre”, tinha conhecimen-
tos de retórica, da poesia antiga e das produções literárias cor-
teses contemporâneas, além, certamente, de dispor de toda uma
base religiosa de conhecimentos.
Os deslocamentos para o oriente motivados pelas cruza-
das dão margem ao surgimento de um outro tipo de história,
46. 48 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
mais heróica, próxima da epopéia. O beneditino Guibert de
Nogent (1053 - 1124) escreve sobre a primeira cruzada em seu
Gesta Dei per francos, a partir de Gesta anonimos, sem ter sido
testemunho direto. A Historia eclesiastica do monge Orderico
Vitale (c. 1075 - 1143), que em princípio deveria contar a histó-
ria da abadia de Saint-Evroul en Ouche, acaba abarcando um
espaço geográfico bem mais amplo. Partindo dos documentos
de que dispunha a abadia, além de construir sua história, narra
a história de toda a vizinhança e da aristocracia normanda. As-
sim, acaba seguindo estas personagens pela Inglaterra, a Itália
do Sul e o oriente das cruzadas. Escreve por meio de círculos
geográficos e cronológicos sucessivos, a partir do ponto fixo que
é a abadia, utilizando todos os tipos de fontes disponíveis, escri-
tas, orais, populares e canções.
Um peregrino de Évreux, Ambrósio, companheiro de
Ricardo Coração de Leão, nos fins do século, narra a Terceira
Cruzada (1188 - 1192). Sua História da guerra santa, em ver-
sos, é trabalho de um profissional, que tem por fonte seu pró-
prio testemunho ocular dos acontecimentos.
Paradoxalmente, são as cruzadas que definitivamente con-
solidam a história laica na Idade Média, nas crônicas de Geoffroy
de Villehardoiun (c. 1150 - c. 1213) e Robert de Clari. Ambos
participaram da quarta cruzada, mas o resultado das duas obras
é bastante diverso. Clari dá o testemunho do combatente co-
mum, subordinado a chefes que o mantêm ignorante da razão
de seus movimentos, alheiado da grande política. Ao contrário,
Villehardouin, marechal da Champagne e um dos chefes da
quarta cruzada, vê a cruzada de cima, do lado dos poderosos.
Seu relato da Conquista de Constantinopla tende a ser muito
claro, muito lógico, muito preciso, para ser considerado total-
mente verossímil; na base de sua narrativa está a vontade de
justificar o porquê da mudança de rumo da quarta cruzada para
Constantinopla, que transformou os cristãos desta cidade em
47. AS IDADES MÉDIAS 49
infiéis. Sem mentir abertamente, escamoteia a verdade sobretu-
do através de seus silêncios.
Além da história oriental, surge uma outra vertente, na-
cional. A afirmação das monarquias nacionais fará com que a
história submeta-se gradativamente ao serviço da política. O
abade de S. Denis, Mathieu de Vendôme, no século XIII organi-
za a reunião de um vasto material de notícias necrológicas dos
reis de França, há séculos redigidas pelos monges; traduzida
em francês a partir de 1274, esta compilação foi o ponto de
partida das Grandes crônicas de França, cuja redação prosse-
gue até Luiz XI.
Na História de S. Luiz (1309) de Joinville (c. 1224 - 1317),
senescal da Champagne, há uma fusão da hagiografia com a
história das cruzadas. Escrita sob encomenda para a rainha
Joana de Navarra, após a canonização de Luiz IX, a obra preten-
de edificar seus leitores através das “santas palavras” e dos “bons
ensinamentos” do grande rei. Admirador e amigo de Luiz IX,
Joinville não poupa anedotas que enalteçam sua figura, mistu-
rando o concreto e o maravilhoso. Narra sem preocupação com
um encadeamento lógico de fatos ou idéias.
No século XIV, a guerra dos Cem Anos fornecerá o mate-
rial para a história nacional e política. Escrita em francês, o
espírito cavalheresco e as proezas militares ocupam o primeiro
plano. Dos cronistas da guerra, o mais considerado é Jean Frois-
sart (c. 1337 - c. 1400), que, apesar de ser um clérigo de origem
burguesa, admira a aristocracia e seu modo de vida.
Froissart desde jovem trabalhará para a nobreza; vai para
a corte da Inglaterra, onde cai nas boas graças da rainha, sua
compatriota Felipa de Hainaut, com um pequeno ensaio histo-
riográfico sobre os fatos ocorridos desde 1356. Freqüenta a alta
sociedade inglesa, partindo depois para a Escócia e a Itália, onde
teria conhecido Petrarca em 1367. Com a morte da rainha, fica
sob a proteção do duque Venceslau de Luxembourgo, e conti-
48. 50 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
nua seu trabalho de historiador. Com base em informações pes-
soais escreve sobre a atualidade, mas tenta buscar um início
para seu texto nos anos entre 1325 e 1356, utilizando como
fonte a crônica de João, o belo. Em 1388, vai para o sul para
obter informações para sua história e conhecer a corte do conde
de Foix, o famoso Gaston Phébus. De volta a Paris continua sua
crônica, volta para Inglaterra, e daí em diante nada mais se sabe
de sua vida. Dos quatro livros de suas Crônicas, o primeiro era
bastante favorável à Inglaterra, e por isso foi corrigido mais tar-
de, quando Froissart se aproxima do círculo de Guy de Chati-
llon. A partir daí, seu texto pende para a França e os Valois. No
terceiro livro, escrito já na velhice, mostra uma certa indepen-
dência de julgamento.
Froissart já encarna um historiador diferente de
Villehardouin ou Joinville. Não escreve para manter viva a me-
mória dos grandes acontecimentos de sua vida. Escreve profis-
sionalmente como defensor dos aristocratas. Não participa dos
acontecimentos que relata, e seu objetivo é o de agradar a no-
breza que compra seus livros, e seus protetores que aí vêem
seus nomes em destaque. Sua história tem um tom romanesco,
era também poeta. Os temas de suas crônicas poderiam servir
também para epopéias cavalherescas: as proezas, as festas, os
torneios, as grandes aventuras, a audácia dos mercenários ou
dos nobres, como Aymerigot Marcel ou Du Guesclin, e os peri-
gos da guerra dos Cem Anos vividos nas grandes batalhas como
as de Crécy ou Poitiers.
A guerra dos Cem Anos dará emprego a muitos outros
historiadores. A luta interna na França, entre armagnacs e
borguinhões, fará com que cada lado contrate seus próprios cro-
nistas, encarregados de expor as visões adequadas a seus se-
nhores. Huizinga dirá que os cronistas borguinhões “encenam
um sonho”.
49. AS IDADES MÉDIAS 51
Dentro da cronologia tradicional, Felipe de Commynes
(1447 - 1511) representaria o limite entre o medieval e o moder-
no. Suas Memórias, escritas entre 1489 e 1498, expressam um
maior cuidado no estabelecimento de laços entre os aconteci-
mentos e um julgamento mais ácido sobre os homens; não são
mais uma invocação das virtudes tradicionais e nem elogio ou
panegírico.
Em seu prólogo ao arcebispo de Viena, Commynes define
o objetivo de seu livro: “escrever o que eu soube e conheci dos
fatos do rei Luiz XI”. Diz ter observado em seu herói coisas boas
e más, e portanto não quer mentir.
Commynes nasceu na Flandres. Seu pai era governador
de Cassel e bailio de Gand. Destinado à vida militar, integrou
desde cedo a corte de Felipe, o Bom, ficando depois a serviço do
conde de Charolais, Carlos, o Temerário. Neste momento foi tes-
temunho das primeiras lutas entre Luiz XI e a casa da Borgonha.
Pouco depois muda de lado e, a partir de 1472, se torna confi-
dente do rei, de quem recebe a senhoria de Argenton em troca
de terras que possuía na Borgonha. Até a morte de Luiz XI par-
ticipa de todos os acontecimentos a seu lado. Cai em desgraça
por um tempo com a morte do rei, mas acaba se reconciliando
com Carlos VIII; com ele parte para a Itália, onde é enviado como
embaixador a Veneza.
As Memórias exploram os grandes desígnios da política. O
aspecto exterior dos acontecimentos não interessam a
Commynes; observa, analisa, pesa, julga, compara a partir do
interior dos acontecimentos. Enquanto moralista e cristão, per-
mite-se tecer considerações gerais sobre a natureza humana e o
príncipe ideal.
Como vemos, a escrita da história na maioria dos casos
continua a ser um trabalho paralelo a outros. Monges cumprem
funções religiosas e fazem história, homens de estado traba-
lham para o governo e fazem história, outros são poetas e retóricos
50. 52 QUEIROZ, Tereza Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M.Grícoli.
QUEIROZ, Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli
e fazem história. Há um outro aspecto que também devemos
considerar. Diante da diversidade, da profundidade e amplitude
dos debates filosóficos e místicos ortodoxos e heréticos, das ex-
pressões plásticas do românico e do gótico, das novas formaliza-
ções da vida, a partir do século XII, é difícil atribuir aos analis-
tas-cronistas-historiadores um lugar preeminente. As inquieta-
ções de Abelardo, o fervor de Bernardo, o sorriso do anjo de
Reims, o rigor sistemático de Aquino, acabam por ofuscar os
mais dignos labores históricos.
Bernard Guenée invoca razões contingentes para esta si-
tuação. Os cronistas seriam intelectualmente medíocres, a his-
tória não era ensinada nas escolas, servia apenas de auxiliar na
exegese dos textos sagrados, os autores são modestos – só que-
rem relatar, pois se acham indignos de esclarecer a vontade
divina...
No entanto, mesmo admitindo esta mediocridade, o senti-
do da história está presente. No século XII, frases como “a ver-
dade é filha do tempo” e “somos anões em pé nos ombros de
gigantes” (autores antigos e cristãos) são ditas naturalmente,
admitindo que os contemporâneos viam mais longe do que os
antigos. Além disso, não é negligenciável o papel que a história e
a hagiografia medievais desempenham na criação de uma mito-
logia política e religiosa no ocidente. E, sobretudo, é inimaginável
o valor que as obras medievais, as mais canhestras, podem ter
para o historiador do século XX. Na verdade, quanto mais es-
pontâneos, ingênuos, confusos, e maus escritores, melhores fon-
tes se tornam!!!
51. AS IDADES MODERNAS 53
AS IDADES MODERNAS
“Quando Tales estima ser o conhecimento do ho-
mem muito difícil ao homem, ensina-lhe que o conheci-
mento de qualquer outra coisa é impossível.”
Montaigne, Ensaios, II, xii.
A providência divina não se aposentará nos séculos ditos
modernos. A questão da fatalidade estará presente sob outros
nomes – fortuna, acaso, sorte – e, no século XVII, literalmente
como providência divina na obra de Bossuet (1627 - 1704).
Ordenado sacerdote em 1652, foi levado à pregação por S.
Vicente de Paula. Seus depois publicados Sermões e Orações
fúnebres, sua condição de preceptor do delfim, entre 1670 e
1680, sua luta contra os protestantes, a função de chefe da
igreja galicana, atribuem uma coerência à sua obra histórica.
Bossuet decide se dedicar à história no momento em que está se
ocupando da formação do delfim; acredita que mais do que nin-
guém os reis devem encarnar os valores morais do cristianismo.
O Discurso sobre a história universal (1681) é uma defesa da
história providencialista contra seus detratores, como Richard
Simon que publicara uma História crítica do Velho Testamento –