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Suzo Bianco
Jaílton O Coveiro Covarde




                         Um conto de Suzo Bianco




      Jaílton
 O Coveiro Covarde




                                   São Paulo – SP - 4/8/2011
Esta obra não pode ser reproduzida, nem comercializada sem a autorização direta e explícita de
Suzo Bianco Evangelista vide a lei que protege os direitos intelectuais e artísticos do autor. Para
                  contato com o autor desta obra: suzobianco@hotmail.com
   ILUSTRAÇÃO DE CAPA: Edson Evangelista e-mail: evangelistaartista@yahoo.com.br




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Suzo Bianco




                       Jaílton O Coveiro Covarde



                                           1.



O
          velho terno preto que seu pai lhe doara antes de partir para o além não lhe caía
         tão bem, mas servia para a ocasião. Afinal de contas, não era uma reunião de
         negócios numa empresa executiva na Avenida Paulista ou algo do tipo. Quem
dera o fosse... Pois mesmo sabendo ser um incompetente em negociatas confusas e de
honestidade questionável adoraria ter um daqueles empregos bem remunerados. Era o
que imaginava... Sonhos.
  E foram estes sonhos desconexos e insensatos que o acomodaram ao passar dos anos.
Não queria perder toda sua juventude em livros de estudos e faculdades chatas. Embora,
se soubesse, teria feito uma forcinha.
  Mas, afinal de contas, quem ele estava querendo enganar? Não teria chance nenhuma.
Aqueles cargos de executivo eram para o clero capitalista e para pessoas bem
afortunadas. Era o que pensava... As faculdades eram caríssimas para serem cursadas
por um filho de pedreiro nordestino recém chegado ao Sudeste.
  Era negro, pobre e feio... Feio. Quanto a isso não tinha muita certeza. Como dizia seu
pai antes de morrer? ‘Pra cada panela há uma tampa!’ Isso. Era isso mesmo. Ele
acreditava neste ditado... Uma pessoa sem dinheiro e sem amigos importantes contava
apenas com seus sonhos. Não deveria ter vergonha de sonhar. Nunca.
  Os sonhos eram seu combustível, a sua esperança. Não só a dele, mas a de muitos
como ele que não tinham a vida e o destino como um aliado respeitável neste quesito.
  Agora ele ali, caminhando calmamente e falsamente arrumado como um ‘Doutor’,
mas pensava na amarga realidade. Não que tivesse medo do lugar ou pavor pelo que iria
começar fazer, mas a gente nunca imagina um dia trabalhar num cemitério. Um jardim
cinzento e verde repleto de andarilhos esquisitos.
  A vida nos prega cada peça. Fazer o que?
  Jaílton esfregava as mãos e os dedos enquanto seguia seu caminho pela calçada suja
de terra na pequena Santa Cruz, uma cidade humilde e bem cuidada no sul do estado de
São Paulo. Estava preocupado em não sujar a calça limpa e bem passada que usava, e
muito menos seus sapatos recém engraxados, por ele mesmo, frente ao albergue que
morava de uns meses para cá.
  Uma pousada na verdade...
  A Pousada de Santa Maria de Deus.
  Dona Joana, Jô, para os mais chegados, era a dona do estabelecimento. Dona Jô além
de proprietária, era a gerente, zeladora, mestre-cozinha e agiota. Simplesmente uma
empresária de pequeno porte da cidade. Uma senhora de olhos azuis e cabelos brancos
sempre curtos e limpos, baixinha e gorda como uma típica nona.




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Jaílton O Coveiro Covarde



  E para a sorte de Jaílton, ela também era simpática e muito compreensível. Caso não
fosse, ele estaria enrascado. Desde que chegou à pousada de Santa Maria, o rapaz de 32
anos pagara somente dois meses e já estava devendo cinco. Não conseguia juntar
dinheiro para pagar as mensalidades do quarto em que ocupava. Ocupar seria a palavra
mais adequada no seu caso, pois seu canto se resumia numa cama, que já estava lá,
numa escrivaninha, que também já estava e um micro armário com um cheiro de
naftalina quase insuportável que fora a primeira coisa que adotara. Mas os móveis
velhos eram de madeira vermelha e resistente, pelo menos. Baratos, mas nenhum fora
comprado por ele... O que era de propriedade de Jaílton ali não tinha muito valor real.
Um micro aparelho de TV preto e branco, algumas peças de roupa, uma escova de dente
pouco usada, mas bastante tempo não reciclada, uma escova de pentear, um sabonete
velho e já trincado que era mais usado como abrigo pelos pentelhos rebeldes do que
pelo dono, um maço amassado de cigarros vagabundo, uma caixa de fósforos com sete
palitos, um pacote de biscoito de maizena já consumido pela metade e uma sacola de
plástico para carregar suas ‘riquezas’ por onde necessitasse. E necessitaria em breve se
as coisas continuassem indo como estavam.
  Se não fosse a simpática dona Jô...
  Estava desempregado por um bom tempo, vivendo de bicos e biscates mal
remunerados. Era o suficiente apenas para comprar seus cigarros e cachaças. Vícios
malditos... Mas era o que o ajudava a segurar as pontas. Não se matava de beber, era só
pra acalmar os nervos, como ele mesmo dizia aos conhecidos e vizinhos da pousada. O
vício mesmo era o tosco tabaco.
  Dona Jô tinha um bom empreendimento ali. Só não ficava rica porque, de fato, não
queria. Não era materialista, amava Jesus e só. Era o bastante para ela, uma mulher
velha, com seus 53 anos duros, mas saudáveis. Era feliz à sua maneira e se contentava
com pouco, não que isso a fizesse se acomodar numa rede e dormir o dia inteiro, pelo
contrário. Sentia-se viva e desperta para o mundo cuidando da pousada, com muito
sacrifício erguida e fundada. E mais ainda mantida com muito amor e atenção, até hoje.
O lugar não era um hotel cinco estrelas, porém confortável.
  Uma casa térrea e comprida. Localizada numa paralela da rua principal de Santa Cruz.
  A rua era de paralelepípedos e subia para o norte.
  Sua pousada era referência. A entrada, enfeitada por uma modesta e bem cuidada
tabuleta sobre o jardim, convidava o turista a ter noites agradáveis e calmas. Os quartos
– concentrados num comprido corredor de lajotas cor de vinho - eram pequenos, mas
limpos. Havia apenas dois banheiros para os veranistas, bem no final do corredor ao
lado da porta que ligava a cozinha. Era o bastante para se manter. O custo de vida em
Santa Cruz não era exorbitante.
  Uma sala grande, equipada de sofás com armações de palha tratada e pantufas caseiras
era bem arejada por janelas grandes que se mantinham o máximo de tempo possível
abertas. Geralmente era onde os turistas e moradores gostavam de passar a tarde
conversando.
  Jaílton adorava a pousada. Porque se sentia num palácio. Não tinha planos de ir
embora tão cedo, mesmo que a necessidade exigisse isso.
  Estava acostumado com muito menos que aquilo de onde veio. Nativo de uma região
miserável, no sertão da Bahia, conhecia bem a ausência de conforto. Morou numa
casinha de sapé e teto de barro.




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Suzo Bianco



  Passou fome...
  Passou sede...
  Tempos ruins de verdade. Coisa que o mais pobre morador de cidade grande nem se
quer imaginava ser possível. Pois é... E havia gente que o perguntava se não queria
coisa melhor na cidade.
  A resposta era sempre a mesma: Claro!
  Por mais que Jaílton tivesse uma origem humilde e miserável não significava que se
contentava com pouco e fosse um completo ignorante. Vivia chorando as mágoas pelos
cantos, quando se via sozinho, sonhando por uma vida melhor. Um dia conversou com
Dona Jô sobre o assunto... Ela lhe deu bons conselhos.
  Foi quando soube do cemitério.
  - Olha Jaílton. Você é jovem e forte. Pode trabalhar na cidade grande e ganhar
dinheiro como quer. Não acho que tenha motivos para se lamentar tanto assim...
  - Mas nunca vou ficar rico... – Estavam reunidos na cozinha naquela ocasião para se
esconderem do frio noturno.
  - E pra quê você quer ficar rico homem de Deus? Saúde e felicidade já não são o
bastante? Deveria se dar por satisfeito por Jesus lhe dar braços resistentes e uma boa
cabeça...
  - A senhora pode ter razão. – Sentou-se numa cadeirinha numa das mesas postas para
o almoço das cozinheiras. Ela preparava um cafezinho. – Mas estou lhe devendo cinco
meses e não sei como vou te pagar isso...
  - Você vai me pagar uma hora, não vai? – Jô disse isso, mas não acreditava que fosse
possível tão cedo.
  - Vou sim. Claro... Mas quando? Não gosto de dever ninguém dona Jô... Não mesmo.
Meu pai, quando me trouxe da Bahia, me ensinou muita coisa e pôde me sustentar o
suficiente pra eu terminar a escola... E uma das coisas que nunca vi meu pai fazer foi
dever alguém. Era pobre como eu, mas honesto e direito. Não quero envergonhá-lo... –
Suspirou. – Mas estou. Isso me deixa triste às vezes... Tenho que arranjar um emprego.
E logo.
  - Você vai arranjar um bom emprego Jaílton, e logo, Jesus vai te ajudar. – Ela também
sentou à mesa com a garrafa térmica na mão. – Sou velha e mesmo assim ainda não
desisti de minha vida. Trabalho praticamente sozinha aqui e mesmo assim não desisto.
Nunca. É difícil. Mesmo com ajuda das meninas e do senhor José, tenho que reunir
forças todos os dias para não desanimar. Tenho fé que você ainda vai encontrar o que
merece...
  - Deus te ouça dona Jô. Deus te ouça. Já estou quase desistindo. Se não fosse a
senhora entender minha situação, não sei o que faria... Já pensei em ir embora para São
Paulo, mas tenho medo.
  - Jaílton... – Ela pegou a garrafa de café quente e derramou a bebida fervendo na
xícara que separara minutos antes. Depois de encher empurrou para seu amigo e
inquilino. Após sorver um pouco do café de sua própria xícara prosseguiu. – Não tenho
certeza absoluta, mas acho que sei um lugar que precisam de alguém para trabalhar de
zelador...
  - Mesmo? – Nem tocou no café. Mais por distração do que por desfeita. – Onde?




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Jaílton O Coveiro Covarde



  - Antes preciso ter certeza de duas coisas... Se a vaga não é só um boato e se você
realmente está disposto a trabalhar. Por favor, não se ofenda, mas é que não posso
indicar alguém que não vá ficar muito tempo no cargo...
  - Que isso dona Jô! – Finalmente tomou um gole do café quente, queimando a língua.
– Claro que estou interessado em trabalhar. Onde é que seja... Não vou pra lugar
nenhum, se aqui tiver lugar para trabalhar... Claro que não. Vou ficar. Gosto daqui...
  - Desculpe-me, mas foi justamente o que eu não queria que pensasse. – Ela sorriu um
pouco constrangida. – É que geralmente as pessoas não gostam destes lugares... Uma
besteira, mas eu tinha que ter certeza.
  - Como assim...? É uma vaga de zelador num p...
  - Não. Não... – Riu ela. – Nada disso Jaílton. Não é nestes lugares não. Sei que você é
um homem direito e por certo eu não lhe indicaria pra um lugar destes.
  - Então? Onde é?
  - Num cemitério. – Ela parou e deixou que seu amigo absorvesse melhor a ideia. – No
Cemitério Joaquim aqui perto. Sabe onde fica?
  - Cemitério? – Estava pasmo. – Puxa - Tinha medo de cemitério... E agora, o que
faria? – Cemitério?
  - Jaílton? – Jô notou sua surpresa. – Sabe onde fica?
  - Sei sim... Sei sim dona Jô. – Parou quieto por um instante. Pareceu pensar. Deu mais
um lento gole no seu café preto. – É dentro ou fora?
  - Como assim ‘dentro ou fora’? – Dona Joana quase riu.
  - Do cemitério. – Se controlou. Não queria que dona Jô percebesse que tinha receios
de cemitérios. ‘Receio’ sim, porque homem que é homem não tem medo. Tem receio. –
A vaga é pra cuidar dele dentro ou fora?
  Dona Joana não conseguiu segurar desta vez. Gargalhou. O homem estava com medo.
Deus do céu, um marmanjo com medo de cemitério era hilário demais.
  - Você está brincando comigo não é mesmo Jaílton? – Provocou ela, ainda dando
risinhos descontrolados. – Não pode estar falando sério. É claro que é dentro. Como se
pode cuidar de um lugar pelo lado de fora homem de Deus? – E voltou a rir. A cena de
Jaílton andando rente ao muro branco do cemitério do lado de fora, fazendo cara de mal,
era engraçadíssima.
  - Ué! Só achei! – Foi o que conseguiu dizer. As risadas nada contidas da dona da
pousada lhe deixaram constrangido.
  - Não Jaílton. – Tentava parar de rir. – A vaga é pra zelador ‘interno’ do cemitério... –
Parou de vez com as risadas. Encarou o homem e tentou ser o mais séria possível. –
Você tem medo de cemitérios Jaílton?
  Pensou em mentir. Mas não ia lhe adiantar nada, mais cedo ou mais tarde ela saberia.
  - Um pouco sim...
  - Pára com isso meu rapaz. – Riu. – Um homem deste tamanho com medo do que já se
foi? Você tem que ter medo dos que ainda estão. Estes sim podem lhe fazer algum mal
de verdade. No cemitério você só vai encontrar silêncio e muita folha de árvore para
varrer.
  - Tem razão... Mas mesmo assim tenho meus receios...
  - Pára com isso! A vaga está lá, creio eu, e é um ótimo emprego. Principalmente para
você Jaílton. Está desempregado e sem dinheiro. Com o salário de coveiro...
  - Coveiro? Não era zelador?




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Suzo Bianco



  - Coveiro... Zelador... Como preferir. O que quero dizer que o salário não é ruim e vai
dar pra você pagar suas dívidas no começo e manter-se ‘bem’ morando nesta cidade.
Além disso, você terá a opção de morar lá.
  - Como é? Morar no cemitério? Nem morto... Trabalhar num lugar destes até vai, mas
morar lá. Nem morto!
  - Bem que morto você não terá escolha não é meso? – Riu.
   - Tem razão. Tem razão! – Riu junto. – Mas não sei se vou me acostumar com a coisa.
De qualquer forma... Qual seria o horário?
  - Do que?
  - Do serviço. Eu ficaria no cemitério de que horas a que horas?
   - A sim... – Pensou. – Não sei Jaílton. Isso será o empregador que irá lhe dizer...
  - Certo. – Pensou cabisbaixo. Queria escapar daquela situação. Tinha que trabalhar...
Mas num cemitério? Caramba. Não tinha escolha, teria que aceitar. Dona Jô já lhe fizera
o favor de lhe dizer a respeito do emprego, que tipo de homem seria ele se negasse?
Pelo menos iria ver do que se tratava em detalhes.– E quando posso ir até lá ver a vaga?
   - Amanhã te digo. Vou falar com o senhor José, foi ele que me falou da vaga. – Ela só
não disse o jeito que lhe foi passada a informação.
  O Senhor José era um velhinho que ajudava Joana a cuidar da pousada. Concertava
vazamentos, tratava do jardim e outras coisas. Ele comentou rindo sobre a vaga: ‘Quem
iria querer trabalhar naquele cemitério dona Joana?’ E ria muito...
  - Quando eu souber dos detalhes, vou te procurar e avisar quando poderá ir... Está bem
assim?
  - Está sim dona Jô. E obrigado pelo favor... – Tomou o último gole de sua xícara e se
levantou. – Agradeço mesmo. De coração. Como eu já disse... Se não fosse a senhora...
  - Seria outra pessoa! – Comentou também se levantando. – Você é uma boa pessoa
Jaílton. Sempre terá alguém pronto a lhe estender as mãos e te ajudar. Confie em Jesus,
que todos que estão por ele, terão uma boa recompensa no final...
  - Amém dona Jô. A senhora que é realmente uma boa pessoa. Ajudando um perdido
como eu que lhe deve dinheiro... Ainda vou lhe recompensar por tudo que está fazendo
por mim.
  - Se quer mesmo me recompensar Jaílton, faça por si mesmo. Se cuide e já me fará um
grande favor e me deixará muito contente. Gosto de ver meus amigos bem, isso que
importa.
  - Obrigado mais uma vez. – Jaílton se despediu sorridente. Ainda tinha receios... No
fundo estava torcendo para que a vaga no cemitério já estivesse preenchida. Não lhe
agradava a ideia de ser coveiro. – E boa noite.
  - Boa noite Jailton!
  Dona Jô se retirou para seu quarto depois de lavar as xícaras.


                                           2.

  Ele bem que quis desistir, mas no dia seguinte, Joana lhe informou das boas novas. A
vaga realmente existia e estava à espera dele.




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Jaílton O Coveiro Covarde



  Droga!
  E ali estava ele todo emperiquitado e cheio de receios.
  Fazia um calor desgraçado que o fazia suar muito. O terno já fedia a suor e poeira
quando chegou ao Cemitério Joaquim. Quem havia inventado o terno devia tomar uns
tapões... Aquilo era desconfortável – não lhe passou pela cabeça que geralmente aquela
vestimenta era feita por encomenda – e no calor esquentava quando no frio esfriava.
Uma besteira de roupa. Só a tinha vestido porque sabia bem que entrevistas de emprego
deviam ser feitas daquele jeito.
  Droga! Coveiro?
  Diante da porta de ferro gradeada, que estava trancada a cadeados, parou e espiou para
dentro. O lugar até que era bonito. O terreno era inclinado e repleto de árvores robustas
e criptas cinzentas. Algumas - as dos mais pobres - eram simples e pintadas de cal, mas
não estragavam a beleza bucólica do jardim. Havia um caminho cimentado que levava
da entrada à casa do zelador nos fundos, do lado de uma improvisada capela branca e
outras trilhas que seguiam entre os túmulos. Bem encostado ao muro, tanto na parte de
dentro quanto na de fora, saliências largas na horizontal eram usadas para serem
depositadas velas e santos, geralmente de gesso, dos visitantes que ali passavam.
  Algumas das velas ainda estavam acesas, como bem notou Jailton.
  Segurando as grades do portão, e com o rosto apoiado entre elas como se quisesse
atravessá-las, pensou se iria mesmo entrar ou não quando foi surpreendido por um
latido estridente.
  Graças ao susto, escapou de uma dolorosa mordida do vira-lata preto e branco que
latia rente ao portão do lado de dentro.
  Maldito cão!
  Droga! Coveiro? Cachorros?
  O miserável cão era ridiculamente pequeno, mas parecia bravo como uma jaguatirica.
  Quem seria seu dono?
  - Pois não? – Perguntou um homem mal encarado e barbudo vestindo trapos pouco
apresentáveis. Dirigia-se a ele logo atrás do cachorro escandaloso e caminhava
preguiçosamente. Tinha um sotaque caipira carregado e aparentava uns cinquenta anos
de idade mal vividos. – Em que posso ajudá-lo? – O cachorro calou-se.
  -Oi! – Se recompôs Jailton. – Estou aqui para uma entrevista de emprego...
  - Ah, sei... – O homem o olhou de cima a baixo e deu de ombros. – Sobre a vaga de
coveiro?!
  - Isso mesmo... – Sorriu enquanto o recém chegado destrancava o portão com uma
enorme chave pesada meio a um malho repleto de outras. Suas mãos eram sujas e sua
blusa azul, estava quase cinza.
  – Quando o vi, achei que era um ‘adervogado’ ou um agente funerário. – Escancarou
as grades enquanto o cão farejava algo interessante nas calças de Jailton. – Venha, pode
entrar!
  - Ele não morde? – Perguntou olhando assustado pro enxerido canino.
  - Claro que morde! – Riu o homem. – É um cachorro, se não servir nem pra morder eu
o jogaria fora! Mas pode ficar tranquilo que ele só morde gente ruim! Você não é ruim,
é?
  - Não! – Se acalmou. – Claro que não.




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Suzo Bianco



  - Então me acompanhe, por favor, vou te levar até o ‘escritório’! – Riu e coçou a
cabeça quando falou a última palavra. – O senhor está muito ‘chic’ vestido deste jeito,
não precisava, ainda mais nesta lua danada que está fazendo!
  Lua... Era um sol. SOL! Que mania besta deste povo de comparar aquele sol
escaldante com a lua... Nunca viu semelhanças.
  - É que é bom se vestir bem para uma entrevista, sabe como é, né?
  - Não sei não! – Já se encaminhavam para a casinha branca. – Mas se você está
dizendo, deve ser!
  Cara chato. Tomara que não seja seu companheiro de trabalho. O homem entendia
tudo ao pé da letra e não achava graça em nada além do que ele mesmo ‘profanava’.
  - Posso te fazer uma pergunta? – Arriscou Jailton enquanto examinava melhor os
arredores. – Quem é o senhor? O zelador atual?
  - Sou sim senhor! Atual e definitivo!
  Como é que é? Pensou sobressaltado Jailton deixando escapar um ‘uh?’.
  - Por que?
  - Porque achei que a vaga fosse justamente para zelador do cemitério...
  - E é!
  - Agora não estou entendendo mais nada.
  - É que, além de não dar conta sozinho... – Girou os dedos para grifar o que dizia. –
Pretendo visitar minha família em Abaité. Preciso que alguém cuide do lugar pra mim
por alguns dias... Não posso deixar tudo isso aqui para as moscas.
  - Entendo! – No fundo até tinha ficado feliz. Então aquela tortura não seria por muitos
dias. – É um trabalho temporário!
  - Né nada! É fixo! – O homem, que não apresentara o nome até agora, parou e abriu a
porta de madeira pintada desleixadamente de branco da casinha e abriu espaço para que
o visitante entrasse primeiro. – Mas ficará sozinho por dez dias até eu voltar.
  - Dez dias? – Assustou-se Jailton parando e bloqueando a entrada do anfitrião. – Tudo
isso?
  - Tudo isso? Eu acho é pouco pra visitar minha gente. – O homem o empurrou
gentilmente para que ele mesmo pudesse entrar e apontou um sofá velho e já muito
esburacado. O cachorro, que os seguia, passou rápido e pulou para um confortável canto
do móvel. Já sabia a causa dos rasgos no estofado. – Não liga pra ele, é bonzinho!
  - Não ligo não. – Acomodou-se no mesmo sofá, enquanto o barbudo sentava numa
poltrona de couro marrom à sua frente e o cachorro o encarava como se Jailton fosse a
coisa mais incomum que vira em toda sua vida canina. – Então, a vaga é pra zelador...
  - E coveiro se precisar que seja. – O senhor estendeu a mão. – Sou Pablo e cuido
daqui a 36 anos. – Jailton a apertou e disse seu próprio nome. Sentia-se constrangido
como se tivesse na casa de alguém. E estava de certo modo. Não duvidaria que Pablo
dormisse ali mesmo. O lugar se resumia na salinha, no banheiro pequeno e mal tratado e
só. Só mesmo. – O lugar não é lá aquelas coisas... – Comentou, notando o olhar crítico
do candidato a vaga. – Mas dá pro gasto. Aqui tem um radinho! – Que descansava
encima da única mesa da sala que ficava perto da porta. – E lá dentro... – Apontou pra
cozinha. – Tem uma geladeira pequena e um fogão de duas bocas caso precise esquentar
a marmita. As ferramentas e o resto do material ficam num quartinho lá fora perto da
capela...




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Jaílton O Coveiro Covarde



  - Certo, certo... – Coçou a nuca antes de continuar. Não sabia bem por onde começar...
– Mas antes tenho que ter certeza se vou trabalhar aqui...
  - Se depender de mim, você já está contratado! – Riu ele. – Não sou eu quem vai
pagá-lo, é a prefeitura. Você vai ter que ir lá todo final de mês e pegar seu salário. E
preciso de ajuda aqui, não consigo mais dar conta de tudo sozinho...
  - E quanto vou receber?
  - Um salário ué!
  - Um salário? – Esperava mais.
  - Não tá bom? – Levantou os braços querendo dizer, ‘seja razoável, o que esperava?’
E riu.
  - Está sim! – Emitiu isto quase como um bufar. Fez uma careta, compreensível e
suspirou. – Quando começo?
  - Quando pode começar?
  - Amanhã!
  - Ótimo. Mas vou precisar de você só segunda feira bem de manhãzinha...
  - Segunda! – Se levantou, ainda era sexta. – Tudo bem, ‘vou estar’ aqui, então...
‘Umas oito horas está bom’?
  - Sete, o mais tardar! – Também se levantou. – Preciso te passar todos os
procedimentos... Nada muito difícil de entender, mas será bom pra você se acostumar!
  - Entendo! – Sorriu, começava a se acostumar com a ideia. – Vai ser de que horas a
que horas?
  - Vai começar umas sete e meia, mais ou menos, até umas doze horas...
  Ufa!! Moleza... Pensou sem conter um riso diabólico.
  - Preciso que fique até bem de noitinha por causa da minha ‘saída’...
  - De noitinha? Mas não é só até o meio dia?
  - Doze horas da noite, meu filho! – Emburrou-se o barbudo mal encarado. – Não quer
trabalhar não, é?
  Bosta! Quase gritou isso, mas moveu os lábios. Bosta, bosta e mais bosta. Moraria lá,
praticamente, num cemitério daqui por diante. Bosta!
  - Escuta aqui meu filho... – Começou Pablo o guiando para fora da ‘moradia’. – Se
você não quiser, não precisa ficar avexado, ta? Pode falar... Mas você ficará aqui o dia
inteiro só até eu voltar... – Bateu em seus ombros magros. – Você vai ver... Não é tão
ruim assim. Ninguém vai te amolar o dia inteiro e se começar cedo, antes da hora do
almoço já vai ter acabado todas suas obrigações... Na prática, a prefeitura vai te pagar só
pra coçar o saco o dia intero, isso não é bom?
  - Até que é sim. – Esboçou um sorriso tímido. – Quando você voltar, eu ou o senhor
vai ficar com o turno da noite?
  - Eu!
  - Que bom...! – Desabafou. – Não estou muito acostumado com cemitérios. Acho que
é a primeira vez que piso num depois da morte de meu pai.
  - Não gosta de cemitério? – Alisou o queixo barbudo e crespo e parou prendendo mais
a atenção de sua companhia. Até Tonico, o cachorro, parecia entendê-lo. – Tem medo
dos enterrados é?
  - Não. Não é isso. – Mentiu descaradamente. – Só um receiozinho de nada! –
Assinalou a palavra com o polegar e o indicador quase encostados. – Nunca se sabe.
  - Se nunca se sabe... O que o senhor sabe que lhe mete medo?




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Suzo Bianco



 Mais uma daquelas e ele falaria umas boas e poucas para Pablo.
 - Não sei nada... – Tentou justificar-se.
 - Então não há nada a temer! – Definiu abruptamente o zelador.
 O pior que o safado tinha razão. Medo de quê? Medo de quem? Medo nenhum!
 Só um receiozinho...


                                         3.

  No fim de semana Jailton passou as tardes se sentindo melhor. A idéia de se zelador-
coveiro do cemitério da cidade ficou mais aceitável. Reparava nos turistas da pousada,
nas meninas que ajudavam dona Joana na cozinha e no senhor José arrumando a perna
de uma poltrona num dos quartos vagos e pensou: Ora, todos estão felizes por serem
úteis de alguma forma. Por quê não eu?
  Pensou sobre toda sua vida de intempéries e dificuldades ocasionais. Sobre os bicos
em construções que há muito tempo não fazia. A cidade simplesmente parou de crescer.
E o quê faria se não fosse o trabalho no cemitério...?
  Agora isso era passado, já se sentia um homem importante mesmo antes de começar.
Seria alguém, afinal das contas, nada muito ‘glamoroso’, mas bem vindo de qualquer
forma. Seria um trabalhador fixo e honesto como a maioria e poderia olhar a todos de
cabeça erguida, como a muito não fazia. Chega de ‘serrar’ cigarros e pedir dinheiro
emprestado. Pagaria ele mesmo.
  Um dia quente e agradável e cercado por amigos.
  Sim senhor, ele estava feliz.
  Nem conseguia se lembrar do por quê dos receios de trabalhar no cemitério. Como foi
bobo. Ainda bem que lutou contra seus instintos mais preguiçosos e pegou o ‘trampo’.
  Seu José, um homem magro de cabelos brancos pela idade - usava seu inseparável
boné vermelho e uma camisa velha listrada – trabalhava despreocupado. Agora, vendo-
o ali varrendo a sala com a vassoura de palha, sentiu-se tão importante quanto ele.
  Poderiam respeitá-lo agora. Não veria mais aquele olhar destinado a ele que dizia:
‘Você é gente fina Jailton, pena que é vagabundo...’
  Lembrou-se que fora o velhinho que dera a dica da vaga de zelador para dona Jô.
Aproximou-se, iria agradecer ele mesmo...
  - Boa tarde seu José! – Era tarde de domingo.
  O velho o espiou surpreso. Vendo quem era abriu um sorriso amistoso:
  - Boa tarde Jailton!
  - Quero lhe agradecer a indicação para a vaga no cemitério...
  - Ah! – Parou de varrer. – Não precisa agradecer a mim não, homem. Só comentei o
assunto com a dona Jô, ela que teve a ideia de lhe indicar!
  - Mesmo assim!
  - Não há o que me agradecer! Pelo jeito você conseguiu a vaga né?
  - Consegui sim, começo segunda feira bem cedinho!
  - Que bom. Que bom mesmo... Você vai ver. Eu mesmo já trabalhei lá uns anos
atrás... Foi bem... – Pensou por um instante. – Bem diferente! – Risadinhas.




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Jaílton O Coveiro Covarde



  - Diferente como? – Xiii! Aí tinha...
  - Nada de mais se você não for um cagão!
  - Como assim seu José? – Seu medo dava sinais de progresso. Isso era mau... Tinha
que falar com o velho mesmo?
  - Já te disse. Nada demais. De qualquer forma, não me arrependo de nada. Foi bom
trabalhar lá, tranquilo e sossegado. Só saí porque já tava velho demais pra coisa...
  - Mas você disse que foi diferente... Diferente do quê? E por quê? Diz aí, me deixou
preocupado...
  - Não precisa ficar preocupado. Você vai dar conta... – Voltou a varrer
despreocupado. Não queria prolongar o assunto, isto estava claro.
  - Conta do quê homem?
  - Jailton! – Parou e o encarou. – Tem coisas neste mundo que agente simplesmente
não entende! E vai por mim garoto. É melhor agente nem saber, fica mais fácil pra lidar
com a coisa, entende?
  - Não!
  - Então esqueça o que falei. Estou velho e nem sei mais o que falo!
  - Eu, no começo estava um pouco preocupado em trabalhar lá. Depois consegui
aceitar a ideia. Sabia que não seria nada demais... – Resolveu se abrir, não podia deixar
aquilo assim. - Mas agora que o senhor falou estas coisas, já não tenho tanta certeza...
Se não é nada demais... Por que não me fala o que é?
  José parou mais uma vez de varrer, e desta fez fitou Jailton nos olhos sem sorrir.
  - Quer mesmo saber?
  - Quero!
  - De verdade? Não vai contar pra ninguém que lhe disse isso, vai?
  - Não senhor... Pode falar!
  - Tem certeza? Porque jurei que não ia contar pra ninguém... Se você der nos bico,
vou te capar Jailton. Juro!
  Pode falar seu José! – Riu ele. O velho não guardava segredos... Era só onda. Tinha
certeza disso. – Juro que não conto pra ninguém.
  - Tá bom... – Olhou para todos os lados. Parou de falar no momento em que um turista
atravessava a sala. Continuou. – Foi numa madrugada em que passei a noite lá... Se quer
um conselho Jailton. Nunca passe a noite lá, se você tiver medo destas coisas...
  - Que coisas? – Sentou numa poltrona enquanto o velho fingia que varria os cantos.
  - Dos mortos! – Falou dando à frase a maior entonação que conseguia.
  Jailton não percebeu, mas seus olhos já estavam estalados. Impressionava-se
facilmente, ainda mais naquelas condições, iria trabalhar no palco do causo do velho.
Estava lascado!
  - Dos mortos Jailton! – O velho o encarava segurando o cabo da vassoura com força.
– Das almas penadas, dos incansáveis, dos preguiçosos do além, dos...
  - Tá, tá, tá! Já entendi! – Receios...
  - Pois bem. Foi de madrugada quando eu cuidada do lugar que eu o vi!
  - Viu o que?
  - Ele! – Mais entonações exageradas.
  - Ele quem?
  - Deixa eu contar que você vai saber! Não interrompa!
  - Tá bem.




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Suzo Bianco



  - Eu estava caminhando despreocupado com Tonico, o cachorro do zelador, pelos
caminhos que vão entre os túmulos. Só queria esticar as pernas até o sono voltar. Não
conseguia dormir de jeito nenhum naquele dia...
  “Caminhava lentamente debaixo daquele céu lindo. Tinha muita estrela e a lua
brilhava como um sol. Bonita demais, demais... Uma coruja piava lá no fundo, perto da
capela e os grilos cantavam, cantavam... Depois parei, tirei a rolha da garrafa de cachaça
que levava comigo e dei uns goles. Como é bom aquela danada... Sentei num cantinho
perto da ameixeira mais encima no cemitério, sabe? E fiquei ali ao lado de Tonico
vendo as casas vizinhas e os túmulos à minha frente que seguiam até lá embaixo.
  Eu gostava dali. Era bom. Calmo. E dava pra ver tudo sem precisar ficar andando de
um lado pro outro. Foi nesta hora mesmo que ouvi alguma coisa...
  ‘Joséééééé!’ Falava a voz. Eu ouvi nitidamente. Mas no começo achei que fosse efeito
na malvada. Tonico nem se moveu. Daí a pouco ouvi de novo... ‘Joséééééé!’
  Daquela vez não tinha como negar. Alguém estava me chamando. Até mesmo o
cachorro ouviu, porque ficou com as orelhas em pé. Levantou-se e deu três latidos. A
voz parecia de uma velha carcomida. Vou te falar uma coisa, você pode nem acreditar,
mas não fiquei com medo nenhum. Na hora achei que alguém estava de brincadeira
comigo. ‘Me alevantei, enchi ‘os pulmão’... E gritei...
  Quem é que tá aí?
  Ninguém me respondeu. E gritei de novo e bem mais alto. Nem liguei se ia acordar
alguém... ‘Quem é que tá me chamando aí?’ O grito foi tão alto e poderoso que até
desafinei, e nem era de medo não... Mas se a pessoa tava querendo me assustar, não
conseguiu, estava conseguindo é me deixar nervoso. E quando eu fico nervoso... Sai de
baixo que é chumbo quente!
  ‘Josééééé, Josééééé, pára de gritar comigo Joséééé...’
  Pronto. Foi nesta hora que comecei a ficar com um cadim de medo! Mas não muito...
A voz estava alta e vinha de mais abaixo. De dentro do cemitério mesmo. Tonico já se
tremia inteirinho. “Aquele cagão, só mete medo em gente mais cagona que ele.” A cena
do cachorro lhe latindo no cemitério, quando foi fazer a entrevista, passou-lhe pela
cabeça, mas não iria dizer nada ao velho.
  “Mesmo sem saber o que era, eu andei até o meio das árvores mais a baixo e comecei
a procurar de onde vinha a voz. Se eu pegasse o fulano naquela hora, ia lhe encher de
cascudos.
  De repente uma coisa passou pela minha cabeça fazendo um barulho esquisito. Tonico
danou-se a latir nesta hora. Tomei um susto danado, mas era só a coruja, aquela sem
vergonha.
  ‘Você está aí Joséééééé...?’ A voz estava mais clara ali. Parecia vim bem do outro
lado das criptas que me separavam do outro caminho. Seja quem for, pensei, vou dá-lhe
uma garrafada na cabeça para nunca mais tentar dar sustos nos outros. Não que eu
tivesse com medo – Só um receio, pensou Jailton. – mas não sabia quem era. Era
melhor tomar cuidado.
  Dei a volta e subi a trilha até onde achei ter ouvido o gemido.
  Tonico já estava lá e latia sem parar para um canto bem escuro duma vala aberta entre
dois túmulos.
  Aproximei-me lentamente já com a garrafa na mão. Dei uns goles só pra esquentar...
Era só um golpe na coisa e pronto.




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Jaílton O Coveiro Covarde



  Mas quando cheguei lá, uma voz veio bem de frente, saindo da vala aberta. Tonico
latia como se estivesse vendo um fantasma.
  “Enchi-me de coragem e cheguei bem pertinho do buraco...”
  - ‘Crauuuuummmm!’ – Gritou José para Jailton tentando assustá-lo. – Um gato
enorme pulou pra fora da vala e sumiu de vista. Nem olhou pra trás! Ficou com tanto
medo de mim que nunca mais o vi naquele cemitério... Tenho certeza de que as vozes
eram ‘só’ coisa da minha cabeça, porque eu estava mamado...
  Jailton estava de olhos arregalados, mas no final riu daquela besteira toda. Que velho
safado, o enrolara o tempo todo com aquela lorota...
  - Nossa! Seu José... Por um momento estava quase acreditando no senhor! –Riu
despreocupado. – Chegou a me assustar.
  - E quem disse que é mentira? – Parecia indignado com seu ouvinte. – Não é mentira
não filho. É a mais pura verdade! – Cruzou os dedos diante do rosto e os beijou três
vezes.
  - Se está dizendo, deve ser... – Se levantou do sofá. – Mas o senhor me disse que era
sobre mortos, então...
  - Era o gato! – Foi sucinto. – O gato era o morto!
  - Como é? – O velho estava insistindo. Puts. Já estava claro que o velhinho queria
apenas assustá-lo. – O gato?
  - É! O gato era o morto... Não entendeu? – Apontou o cabo da vassoura pra ele. –
Aquele gato estava enterrado ali Jailton. Eu não te disse, mas naquele cemitério, a dona
dele tinha enterrado o bicho junto ao túmulo do marido. A mulher era doida, mas tinha
bastante dinheiro antes de morrer, então pagou a gente pra enterrar a coisinha ali... Fazer
o que? Não nos custava nada...
  - Você enterrou um gato no cemitério? – Que mentira. Pensou. – Não é proibido isso?
  - Que eu saiba não... Só não é comum. Enterrei sim, e daí? Ganhei pra isso e ninguém
se incomodou.
  - Nossa... Você tem certeza que o gato estava morto quando o enterrou?
  - Absoluta certeza. Mortinho da Silva. Enterrei numa vala rasa, mas mesmo se
estivesse vivo, não tinha como sair dali não.
  - Sei lá heim seu José. – Tentou ser simpático. – Não acredito muito nisso não.
  - Ah é? Não acredita em mim?
  - Me desculpa... Mas como poderia? Gato morto, e falando seu nome?
  - Era a dona...
  - Dona? – Quanto mais se explica maior é a mentira. Como dizia seu pai.
  - A dona do gato que estava me chamando. Tenho certeza, e quando cheguei perto, o
gato apareceu e me deu aquele susto. Ela foi enterrada uma semana depois do bicho,
bem ao lado.
  - Tá bom. – Riu e deu de ombros. – Bem... Tenho que ir. Vou dar um passeio e
aproveitar a folga.
  - Pode ir... – O velho o encarou sério. – Por mais que possa parecer mentira isso.
Saiba que não é. Mas se quiser ter certeza, é só passar uma noite lá e você vai ver...
  - Não pretendo passar nenhuma noite lá...
  - Ué! Ta com medo? – Provocou José rindo dele.
  - Nenhum. Mas prefiro dormir em casa.




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Suzo Bianco



  - Se você está dizendo... – Deixou claro que não acreditava na suposta coragem de
Jailton. Ora, havia contado tudo aquilo pra ele porque sabia que o rapaz se cagava de
medo de cemitérios.
  - E estou. Bem, boa tarde, seu José. – Se despediu.
  - Boa tarde Jailton. – Desistiu de prosseguir a conversa. Afinal das contas, ele é quem
queria ficar sozinho. Mas aproveitou a chance de brincar um pouco com o medo do
homem... Sabia que tinha dado certo. Até que Jailton disfarçou bem, mas geralmente as
pessoas quando escutam aquela estória, não ficam com os olhos tão arregalados como
ele ficou. – Não vá ter pesadelos eim?
  - Pode deixar! – Devolveu o aceno e se retirou. Teria um longo dia amanhã.
  Aquela estória de José lhe impressionou mais do que queria admitir. O velho estava
lhe assustando de graça. Que sacana. Mal começou a trabalhar no lugar e já tinha
alguém querendo ‘sacaneá-lo’.
  Que seja. Era um trabalhador agora e nada neste mundo o faria mudar de ideia, de
novo.


                                           4.

   Em fim o grande dia chegou.
   Jailton levantou bem cedinho e se dirigiu ao banheiro segurando num dos braços a
roupa que iria vestir. O sol nem tinha aparecido ainda, mas o galo de algum vizinho já
cantava anunciando a chegada da nova manhã. O ar ainda estava frio, mesmo assim
tirou a roupa e entrou de baixo do chuveiro. A água estava fria. Quase perdeu o ar...
Bosta. Mas era melhor do que nada, fedendo a suor é que não podia ficar.
   Logo se acostumou e relaxou os músculos. Pensava na estória do senhor José.
   Até onde aquilo tudo era verdade? Achava que o velho não teria tanta imaginação, a
ponto de criar ele sozinho, toda aquela lorota. Se é que era mentira... Queria não
acreditar, contudo...
   Arrumou-se. Vestiu sua camisa vermelha, suas calças jeans surradas e seus sapatos
velhos. Estava bom assim. Não passaria frio depois que a manhã partisse.
   Depois de andar por uns quarenta minutos vendo o sol aparecer devagarzinho além
das montanhas chegou ao seu destino. O cemitério parecia vazio... Abandonado. Logo
Tonico se aproximou correndo e latindo como se nunca tivesse visto Jailton em sua
vida. Cachorros.
   Esperou por uns cinco minutos depois de sua primeira salva de palmas. A porta da
casinha branca se abriu, como esperava, e de lá saiu Pablo cambaleando um pouco.
Tinha acabado de acordar, com certeza.
   - Bom dia rapaz! – Cumprimentou ele de longe acenando avidamente. Que energia
tinha o homem. Tonico, assim que notou a presença do dono, correu para ele saltitante
numa saudade invejável.
   - Bom dia! – Respondeu ele mais timidamente. Esticou os braços e bocejou. Estava
morrendo de sono. Nos últimos meses não havia precisado se levantar tão cedo. Tinha
se desacostumado. – Como vai?




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Jaílton O Coveiro Covarde



  - Bem, graças a Deus! – Disse Pablo se aproximando lentamente e ignorando Tonico
na medida do possível. – Dormiu bem? Terá um longo dia pela frente.
  - Dormi sim! – Sorriu enquanto o barbudo abria o portão de ferro. – Só esqueci de
trazer comida, mas acho que vou poder saí pra comprar alguma coisinha né?
  - Não vai não. Não vai precisar... Separei algumas coisas pra você na cozinha.
  - Obrigado então. – Se deram as mãos.
  - Vem! Entra... – Pablo lhe deu as costas e voltou para a casa do zelador seguido por
ele. – Vamos tomar um café primeiro.
  Assim que entrou, Jailton reparou numa mala de couro, velha e entupida, também
sentiu o agradável cheiro incomparável do café caseiro e simples.
  - Vai viajar hoje? – Perguntou a Pablo que o olhou incrédulo.
  - Claro! Não te contei?
  - Contou, mas achei que seria amanhã...
  - Não, não. – Estendeu um copo de alumínio cheio de café quente para Jailton. –
Tome! Não, vou hoje mesmo e será daqui a pouco... Comprei as passagens ontem e o
ônibus vai partir umas oito horas mais ou menos!
  - Nossa! – Jailton tomou um gole e se sentou no sofá velho fazendo companhia a
Tonico. – Será que vou dar conta de tudo tão rápido?
  - Vai sim. Claro que vai. – Pablo se retirou para cozinha e logo voltou com seu
próprio copo, de plástico, cheio até a boca. Andava devagar para não derramar o
conteúdo, depois de descansá-lo encima da mezinha deu sua atenção ao rapaz. – Você
sabe varrer?
  - Sei! – Respondeu a isso fazendo uma careta. – Claro que sei.
  - Bom, bom. Excelente. – Riu Pablo. – Sabe trancar portas com cadeados?
  - Lógico que sei... Que pergunta...
  - Sabe dar comida pra cachorro e andar por um lugar sem dormir?
  - Aonde você quer chegar?
  - Sabe ou não sabe?
  - É obvio que sei todas estas coisas, quem não saberia? – Estava quase irritado. Ele o
estava provocando por quê?
  - Então Jailson...
  - JailTON! – Corrigiu. Odiava quando erravam seu nome.
  - Jailton! É o que quero lhe dizer. Quem não sabe fazer estas coisas? Será o que você
terá de fazer aqui... Além de zelar pelo lugar. Óbvio! Não deixar ninguém entrar sem se
identificar e nem roubarem os santos dos túmulos... Consegue fazer isso?
  - Sim...
  - É fácil não é? Eu disse que seria moleza... – Tomou mais um pouco da bebida quente
e sorriu simpaticamente. – Escute. Não se preocupe. Tudo vai dar certo... O pior que
pode lhe acontecer é flagrar algum casalzinho mais assanhado por ai e ter que enxotá-
los. Cemitério não é motel... Entendeu?
  - Entendi! Pode deixar...
  - Mas isso não significa que você não possa trazer uma namorada pra cá, ta?
  - Ta bem... – Riu Jailton. Já estava bem à vontade e começando a gostar de Pablo.
Parecia um homem honesto e sincero.
  - Você tem namorada Jailton?
  - Tenho nada! – Voltou a rir sem jeito. – Quem iria me querer? – Queria confete.




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Suzo Bianco



  - Sei lá! – Riu Pablo timidamente. – Mas pra cada panela...
  -...há uma tampa! Tô sabendo. – Completou a frase parecendo um pouco descontente.
  - Que seja! Se arranjar uma, não se avexe... Pode trazer, é seu direito como homem e
responsável por aqui, ta bom?
  - Ta bom!
  Pablo suspirou, sorveu o resto do café e se levantou. Pegou sua mala e se despediu:
  - Bem... Tenho que ir, já são sete horas e não posso correr o risco de perder o ônibus.
– Estendeu a mão para Jailton que a pegou sorridente. – Tchau pra você também
companheiro. – Se dirigia ao cachorro que o olhava com ternura. De alguma maneira
sabia o que estava acontecendo ali. – Tchau pros dois...
  Pablo saiu, desta vez andando rápido, e acenou de fora do cemitério. Parou, olhou
para o campo de enterrados por um longo tempo... De lá gritou:
  - Adeus aos dois!
  Jailton se arrepiou com aquela despedida. Adeus? Tinha algo errado ali... Não sabia o
que era. Mas que tinha, isso tinha... Tonico ficou no portão latindo até perder Pablo de
vista, e mesmo depois, uivou tristemente por meia hora. Quando se cansou, deitou
escorado no portão e ali ficou até a noite cair.
  A noite...


                                           5.

  Um belo dia era aquele. Nuvens de algodão branco e fofo flutuavam indiferentes meio
ao céu azul. O sol não castigava tanto quanto imaginou que aconteceria. Uma brisa boa
acariciava as árvores do cemitério e arrancava as folhas menos resistentes e mais velhas.
  Tonico estava encostado no portão despreocupado. Suspirava de solidão. Aquele olhar
canino era comovente apesar de tudo.
  Jailton varria sem pressa as folhas amarelas e secas que se acumulavam ao redor das
criptas e nos escorredores sujos. Tinha todo o dia pela frente. Estava feliz de certo
modo. O trabalho enobrece o homem de fato. Seja qual trabalho for, se era honesto,
valia a pena.
  Mas uma coisa era inegável. O clima dali era diferente... Diferente de qualquer outro
lugar numa cidade. Diferente de uma igreja, de um hospital, de uma praça, de uma
vila... Ali, sabia-se e sentia-se a tristeza. Não a melancolia afetada de pessoas
mesquinhas e nada altruístas que caminhavam pelas ruas perdidas em seus pensamentos
problemáticos. Não. Ali existia a verdadeira melancolia. Num cemitério, pessoas mais
sensíveis podiam sentir o ar pesado e repleto de sentimentos sinceros daqueles que
frequentavam o jardim.
  Senhoras viúvas que rezavam pelos maridos que se foram. Filhos que saudavam as
boas lembranças dos pais que já tinham ido para o céu. Mulheres que se entristeciam ao
se lembrarem de seus irmãos falecidos... A tristeza e a saudade, daqueles que
frequentavam de vez em quando o lugar, pelos enterrados era o que ficava e temperava
o ar dali. Não era algo a se considerar ruim. Era um choro insistente, mas respeitável.
   Jailton se lembrou... Nunca esquecera de verdade.




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Jaílton O Coveiro Covarde



   Por mais que uma pessoa fosse insensível, ninguém ficaria indiferente caminhando
entre os túmulos de anônimos e desconhecidos que descansavam para sempre no
subsolo. Ninguém. Todos tinham aquela feição séria e respeitosa. Pelo menos na
maioria das vezes. Até aqueles que tentavam sorrir e conversar normalmente sentiam a
coisa ao redor deles. Não era possível ignorá-la. Era como um pagão numa catedral, por
mais que não seguisse os caminhos de Jesus, ou confiasse em Deus, sabia que algo
estava presente ali.
  E era este algo que verdadeiramente zelava o cemitério.
  Até mesmo, principalmente, Jailton, sendo uma pessoa simples, era vulnerável a estas
sensações. De início, logo quando começou a varrer o primeiro monte de folhas, ele
sentiu a presença onipotente que flutuava ao redor. Não era uma energia má, nem boa,
apenas sincera e paterna. Como um enorme lobo assassino cuidando da cria, como um
pássaro zelando pelos filhotinhos no ninho. Parecia perigoso, mas dava a sensação de
proteção. “Menos mau...”
  Ele varria, parava por um momento e olhava ao seu redor. Pai... Tentava se acostumar
com a paisagem dali. No seu subconsciente ele sabia. O cemitério era como um tesouro
desprotegido. Um lugar desamparado como um cão sem seu dono. Um dono que nunca
mais iria voltar, pois estava morto. Morto e distante dali. O que lhe dava forças eram
seus sonhos, e a esperança de um dia revê-lo. Como Tonico...
  Jailton observou o cão ali. Parado. Deitado sobre as patas cruzadas e encarando a rua
na esperança de rever Pablo a qualquer momento. Pensou em chamá-lo na hora, mas
para que? Como se ampara um cachorro? Como se faz isso?
  Deixa pra lá! Pensou ele. Depois lhe dou comida...
  No fim de semana, principalmente depois de ouvir aquela estória boba do senhor José,
ele quase voltara atrás em sua decisão de trabalhar ali. Mas agora, isso lhe parecia um
absurdo. Algo... Algo estava mesmo querendo que ele ficasse. Que ele cuidasse do
lugar.
  Era difícil explicar aquela sensação. Mas era legítima.
  Também era quase impossível não relacionar o lugar a morte do pai. Senhor
Damaceno. O velho e bom pedreiro que o guiou a vida inteira. O mesmo homem que
perdera a esposa e o caçula quando a mulher tentava dar a luz ao segundo filho. Os dois
morreram no parto. Apenas ele e Jailton ficaram no mundo para passar fome. Não teve
escolha e foi embora para o sul. Para São Paulo.
  Na cidade grande não foi muito diferente do sertão baiano. Quase morreram de frio e
fome nas ruas, até que souberam por um amigo de rua que estavam precisando de
pedreiros no interior. Pedro, o homem dos gatos...
  Vieram a pé. A viagem foi dura, mas conseguiram.
  Deus, como foi duro aquilo tudo.
  Damaceno arranjou um canto num barraco onde conseguiu trabalho e ali ficou. Depois
de colocar o filho na escola, deu um jeito de levar a vida com trabalhos em construções
de novas casas que surgiam. Até que havia sido uma época promissora, lembrou Jailton.
Foi a melhor fase de sua vida com o pai.
  Depois conseguiu alugar uma casa bem simples onde moraram por um bom tempo.
Jailton cresceu e terminou o colegial. Depois de sair da escola nunca conseguiu arranjar
um emprego fixo. Então se virou como ajudante de pedreiro. Ajudante de Damaceno.
  Mas o destino foi implacável e levou seu pai usando a desculpa de taquicardia.




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Suzo Bianco



  Seu pai era um homem forte e saudável. Morrer decorrente de problemas no coração
foi duro de engolir. Contudo, o que ele, um reles mortal, poderia fazer?
  Nada.
  E foi o que fez até hoje. Nada...
  Com o tempo, os bicos foram definhando. Logo se viu sem dinheiro ou chances de
arranjar algum. Passou cinco meses morando de favor, na prática, na pousada de dona
Joana. A velha e simpática senhora que o ‘acolhera’ gentilmente. Ela e seu pai eram
amigos. Jailton desconfiava que eram até mais do que isso, mas nunca tirou a limpo.
Não necessitava saber destas coisas...
  Seu pai se fora e não voltaria nunca mais. Nunca mais.
  Por pura obra do destino, Damaceno foi enterrado naquele mesmo cemitério. No
mesmo jardim que ele varria agora.
  Evitou desde o começo ver a jazida de seu pai. Fora lá apenas uma vez. Quando teve
de enterrá-lo. A tristeza e o desespero que sentiu foram tão fortes que jurou que nunca
mais iria voltar ali. Não pelo seu pai. Mas por ele mesmo. Não se lembrava de quem,
mas alguém uma vez lhe dissera que era sempre melhor esquecer os mortos, caso
contrário, eles talvez não conseguissem chegar ao céu. O sentimento de lamentações dos
que ficavam serviam como âncora para eles. Não era bom chorar os mortos.
  Mas ele chorou mesmo assim. Por muito tempo. Não diante do túmulo, não no
cemitério, mas em seu coração. Isso estava enraizado nele até hoje. Nunca esqueceria
seu pai. Nunca.
  Era a única coisa de valor que possuía, e Deus lhe tomara implacavelmente. Sem dó.
Sem misericórdia.
  Desde a morte de seu pai, nunca mais pisou numa igreja. Não que passasse a odiar
Deus, mas o ignorava. Queria mostrar ao criador o quanto estava magoado pelas suas
ações em sua vida. Levara-lhe a mãe, o irmão que nem chegou a conhecer e seu pai. Seu
amado pai.
  E quase levou a ele mesmo junto de tanta tristeza. Quase. Mas Jailton aguentou
firme... Bem, nem tão firme assim. Passou a fumar e a beber.
  O cemitério parecia ler sua mente e alma. As árvores balançavam os galhos como se
dissesse: ‘Esqueça isso filho, olhe como nós dançamos bem, mesmo sem podermos nos
mover!’ Que ideia tola. Como era tolo...
  Seus sonhos anestesiavam a dura e cruel realidade. Mas não tapavam o sol com
eficiência...
  Alguém espirrou. Olhou rapidamente na direção do som e notou que Tonico foi o
responsável. Cachorros.
  Continuou a varrer até a jazida evitada até hoje.
  Lá estava ela. Uma cruz de pedra pintada de branco por cima de uma chapa de
cimento suja de terra. Algum mato já crescia audaciosamente entre as saliências do
túmulo. Uma pequena chapa de mármore negro identificava o falecido com uma
pequena fotografia preto e branco protegida por um vidrinho elíptico emoldurado: ‘Aqui
descansa em paz o amado pai e querido companheiro José Fransisco Damaceno.
Nascido em: 1947, e embaixo; Falecido em: 2002.’
  E o inevitável ocorreu. Sua garganta se engomou. Seu queixo tremeu. Seus olhos
nublaram.




                                          19
Jaílton O Coveiro Covarde



  - Pai! – Murmurou para o vento. Encostou a vassoura no chão. Ajoelhou-se diante da
cruz. – Pai! – Fechou os olhos e chorou com as mãos cruzadas sob a face trêmula.
  O dia estava lindo, mas seu coração ficou pesado.
  - Oh pai! – Falou olhando para a imagem do pai na fotografia. Parecia tão vivo ali.
Um senhor negro de olhos brilhantes. – Que saudade do senhor!
  Jailton ainda ficou ali por um bom tempo perdido em seus devaneios. Desabafou toda
sua vida para o morto. Todas as suas angústias e medos. Tudo. Como se de alguma
maneira seu pai pudesse ajudá-lo do além túmulo.
  Sonhos...
  O canto desesperado dos passarinhos ali perto lhe despertou.
  Tinha que trabalhar. Agora teria todo o tempo do mundo para visitar seu falecido pai.
  Como pôde ter ficado tanto tempo sem vê-lo?
  Levantou-se e pegou a vassoura.
  O céu ainda estava claro, mas com menos nuvens. O sol brilhava bem acima de sua
cabeça. Encarou o astro apertando a vista.
  ‘Onde será que o senhor está?’ Pensou.
  Alguns pombos pousaram nas jazidas à frente e iniciaram uma caçada inútil por
comida. Ali não havia o que comer, além dos defuntos. Apenas os vermes se
satisfaziam...
  Apenas os vermes se alimentam dos mortos.
  Caminhou de volta para o quartinho de ferramentas depois de recolher as folhas secas
e velhas que estavam espalhadas pelo cemitério. Não foi tão duro assim. Era como
cuidar de casa e ser pago para isso.
  O portão estava destrancado caso alguém quisesse visitar algum parente. Mas
ninguém apareceu.
  Jailton separou a comida de Tonico e tentou chamá-lo para comer, em vão. O cão
estava sem fome. Depois entrou ele mesmo na casa do zelador e procurou os
mantimentos que Pablo lhe disse. Havia uma panela na geladeira contendo arroz, mais
três potes com feijão e mistura.
  Esquentou tudo usando uma única panela no fogão. Um mexido lhe cairia bem, tinha
uma aparência horrível, mas era saboroso. Arroz, feijão, farinha, ovo e carne. Estava
ótimo.
  Foi pra sala com a panela de alumínio cheia. Amparava-a com a mão esquerda coberta
por um pano de algodão bordado e com a outra segurava a colher. Sentou-se na poltrona
de Pablo e ligou o rádio.
  Vida mansa era o que sempre sonhara. As coisas estavam indo bem. Ainda se sentia
um pouco triste depois de rever o túmulo do pai, mas sabia que logo isso passaria. Pelo
menos esperava que passasse.
  Após comer tudo, estava faminto, resolveu dar uma cochilada. Seus músculos estavam
cansados e ele mesmo não parava de bocejar. Acordou mais cedo do que estava
acostumado. Fumou um cigarro, deixou a panela vazia de lado e relaxou.
  Logo estava dormindo...


                                          6.




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Suzo Bianco




  Tonico se cansou de esperar. Seu estômago estava roncando.
  O homem novo tinha sumido e já estava anoitecendo.
  Estava sozinho.
  Sozinho...
  Levantou-se rapidamente, sentou-se e coçou alguma coisa ‘coçante’ atrás da orelha.
Gemeu de alívio. Finalmente tomou seu rumo. Fome. Fome danada...
  Andou até o canto da capela, bem ao lado da casa do homem-de-sempre e encontrou o
prato de metal. Tinha comida ali. Bom. Muito bom mesmo. Balançou o rabo e enfiou o
focinho avidamente no ‘rango’. Nada de ração pra ele, não senhor. Pra ele, Tonico, era
só comida de verdade. Tinha arroz, velho, feijão, velho e uns generosos pedaços de osso
de galinha, morta. Quando tinha sorte vinha um pouco do músculo e umas tirinhas
esquecidas de carne. Contudo, não teve sorte daquela vez. Era só osso e tutano. Já
estava bom, essa era a verdade.
  O homem novo devia ter colocado pra ele. Mas onde ele devia estar?
  Depois de limpar o prato e desaparecer com os ossos pequenos da falecida galinha,
Tonico resolveu procurar o cara. Aquele escurinho e magro rapaz. Sentia cheiro de
medo nele. Daquele tamanho e era medroso. Caramba! Será que estaria bem nas mãos
dele?
  Deu uma corridinha esperançosa até a casa do homem-de-sempre e encontrou a porta
aberta. Mais cheiro de comida.
  Lá estava seu homem. Sentado na poltrona do seu dono. Dormindo. Menos mal, nem
ligava... Queria achar a fonte daquele cheiro de arroz-feijão-ovo-carne maravilhoso. Se
tivesse sorte, ainda houvesse alguma coisa lá ainda esperando para ser devorada.
  Farejou e farejou até que encontrou. Encima da mesa. Hmmm... Dentro da coisa de
colocar comida.
  Olhou de soslaio para o escurinho. Nada. Nem sinal de animação. Estava baldeado.
  Beleza!
  Andando bem sorrateiro e sem tirar os olhos de Jailton, se aproximou da mesinha.
Ergueu-se e equilibrou-se nas patas traseiras. Cocô! Não dava, até alcançava a beirada
com as patas, mas não conseguiria nunca cair de focinho na panela.
  Seus olhos brilharam. Tão perto e tão longe...
  Olhando ao redor viu o que precisava. Um andar...
  Subiu com facilidade no banquinho esquecido ao lado da mesinha. Sorte grande meu
rapaz.
  - Uaaaahh!! - Opa! O homem novo bocejou. Tonico se congelou e esperou.
  Esperou mais um pouco até constatar que o escurinho ainda dormia.
  Nenhum movimento. Ótimo, era a hora.
  Deu um salto habilidoso e atingiu a parte de cima da mesa, onde a panela estava
desprotegida de seu predador.
  Espiou mais uma vez o homem. Sabia que era dele, seja o que for que tinha na panela,
era do homem. Tinha que agir rápido.
  Atacou o interior do objeto...
  Cocô! Estava vazia. Nadica de nada.




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Jaílton O Coveiro Covarde



  Tanto trabalho à toa. Desceu da mesa de uma só vez, chateado. Iria passear na cidade
quieta então...
  E foi. Caminhando entre as jazidas que ele o viu...
  O gato. Era um bicho grandinho, quase do seu tamanho. Tinha os olhos enormes e
atentos. De pêlo ocre e traçado por manchas mais escuras.
  Tinha que fazer alguma coisa. Era o seu trabalho não? Cuidar do cemitério...
  Aquele gato fedia. Parecia o fedor das coisas que morriam...
  Empinou o traseiro, abaixou a cabeça e latiu o mais alto que pôde.
  Mas o gato nem se moveu, apenas emitiu aquele palavrão indecifrável: Miau!
  Bicho idiota!
  Isso lhe deu mais raiva ainda. Latiu, latiu e latiu... Mas nada. O bichano ainda estava
lá o encarando desdenhosamente. Era hora do plano B. O ataque mortal.
  Saltou para cima do cretino... Ah sim. Desta vez teve êxito em sua investida mais
agressiva. O gato correu habilidosamente por cima das lápides até atingir um galho mais
baixo de uma ameixeira. Era esperta a criatura. Tinha que admitir...
  Mas não desistiu e continuou a latir.
  Cai miserável, cai daí e você vai ver o que te faço...
  Tonico saltitava e latia:
  - ‘Au!’ – Cai! – Au-au! – Cai-cai! – Au-auauauauau! – Cai-caicaicaicaicaicai...
  - Tonico! – Gritou alguém atrás dele lhe dando um susto danado. Sua alma pulou pra
fora e voltou. Seus pêlos se arrepiaram e ele esganiçou: ‘Caincaincain!’ Correu por uns
dois metros sem parar pra olhar, só depois de se sentir numa distância segura parou e
olhou de volta. Nada. Ninguém.
  Farejou o ar e não sentiu nenhum cheiro incomum. Que estranho.
  - Tonico? – Mais um susto. Mas desta vez foi mais corajoso e só se virou contraído, já
esperando ser devorado por um monstro inimaginável. Mas era só o homem novo. – O
que houve cachorro?
  Queria responder... Mas como?
  Olhou de volta, na direção das lápides onde esteve a pouco tempo latindo pro intruso
peludo. Nem o gato estava mais lá. Que sacana, se aproveitou de seu deslize e fugiu.
Covarde. Todos os gatos eram covardes...
  - Está tudo bem aqui? – Continuou Jailton olhando pra mesma direção. Até que ele
não é tão burro. – Pra quem você estava latindo?
  Tonico o encarou e pensou: ‘Estava latindo para um intruso senhor! Ache-o...’ Andou
até chegar debaixo da árvore que serviu de refúgio ao gato e constatou a ausência do
inimigo. Olhou entre as criptas e valas e farejou. Nada. Só o cheiro do gato... Quem
havia lhe dado aquele susto?
  - Vem cá garoto! – Gritou o escurinho pra ele. – Não tem nada aí, tem?
  Por que não vem aqui e veja por si mesmo? Latiu.
  - Deixe eu ver! – Ué! Ele tinha entendido seu latido? Coincidência. – O que é?
  Não sei o que era, mas estava aqui...
  Jailton chegou. Olhou pra tudo que é canto e, claro, não viu nada demais.
  - Seu cachorro louco! – Jailton bufou. – Não tem nada aqui. Quer me assustar é?
  Sendo assim, o escurinho o deixou sozinho e voltou pros fundos do cemitério. Era
sempre a mesma coisa. Ninguém nunca o entendia...
  Cocô!




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                                           7.

  A noite de fato caiu e com ela veio a música noturna.
  Jailton já não aguentava mais coçar o saco. Sentado no sofá escutava música sertaneja
e se lembrava de sua infância sofrida. Isso pelo menos o reconfortava, fazia-lhe dar
valor a nova rotina. Que diferença. Abençoados sejam dona Jô, senhor José e Pablo.
Pensando nele, no zelador original, se ‘incucava’. O que foi aquilo de manhã cedo?
Aquele aceno seguido de um ‘Adeus’? Estranho. Tinha um mau pressentimento quanto
aquilo.
  Será? Será que Pablo não pretendia voltar como havia dito?
  Tinha bons motivos pra acreditar nisso.
  O homem não deixou nenhum objeto pessoal pra contar a história. Nada. Só o rádio,
mas até aí, o aparelho já estava velho e mal pegava as emissoras locais. Será?
  Se de fato não fosse retornar, era só dizer... Não iria mudar nada. Ou iria? Não sabia o
que pensar. Pablo não lhe pareceu ser mentiroso ou desonesto. Pelo contrário... Que
paranóia.
  Mesmo assim não podia ter certeza de nada...
  Só lhe restava esperar pra ver.
  Espreguiçou-se e forçou-se a caminhar. Ora, fazia parte de seu serviço, de suas
obrigações como zelador do Cemitério Joaquim. Saiu e inspirou. Soltou o ar em seguida
fazendo um ruído seco. Tirou o amassado maço do bolso e pegou um cigarro torto.
Riscou um fósforo e acendeu o pequeno bastão envenenado. Tragou com vontade. Ao
longe, Tonico que o observa atento achou ter visto um vaga-lume laranja aparecer e
sumir.
  O cachorro correu alegre até o homem novo e se pôs ao seu lado. Estava começando a
gostar dele...
  Jailton abaixou-se e acariciou o dorso do cão.
  - Como vai rapaz? – Sorriu entre uma tragada e outra. Papai do céu! Aquilo fedia
mesmo... Pensou Tonico.
  Ajeitando a camisa vermelha pra dentro das calças iniciou a patrulha.
  Nossa! Pensou. Como aquele lugar era escuro de noite. Existiam apenas dois postes
de luz no cemitério. Um encostado ao portão do lado de dentro e outro no fundo lá
encima, rente ao muro. Na casinha branca, uma lâmpada velha, acima da porta,
iluminava pouco. Nem contava. Fora isso, apenas as velas grossas no muro e na capela
cintilavam nas sombras do cemitério.
  Aproximou-se da capela, não tinha dado muita atenção a ela desde que chegou. Era
uma construção simples. Um quartinho coberto por telhas marrons e paredes brancas.
Uma pequena leva de degraus de cimento levava ao seu interior onde uma imagem de
gesso de Nossa Senhora de meio metro posava eternamente em sua calmaria. Aquele
olhar eternizado pelo escultor causava melancolia. Algumas velas derretiam lentamente
abaixo dela, no chão, onde outras imagens de santos vigiavam as rezas murmuradas




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Jaílton O Coveiro Covarde



daqueles que ali chegavam. Mas agora, de noite, apenas Jailton absorvia o clima
estranho da coisa.
  Foi neste momento que ele ouviu ao longe um gemido. Não teve certeza do que ouvira
de inicio, mas aguçou os ouvidos. Tonico empinou as orelhas e voltou sua atenção para
o fundo do cemitério. Pra o norte do jardim...
  Jailton se voltou praquela direção também e apertou as vistas. Estava escuro, mas seus
olhos já estavam acostumados com a escuridão. Então viu algo. Alguém atravessou a
trilha que levava para cima, entre os túmulos, bem perto da ameixeira. Pôde ver isso
claramente. Era uma pessoa e andava despreocupada, pois não fazia barulho quando
andava. Por mais que a visão do intruso tenha sido rápida, Jailton pôde notar de que se
tratava de uma figura masculina.
  Tonico não latiu, apenas rosnou baixinho por duas vezes e olhou para o homem novo
na esperança dele fazer alguma coisa.
  - Jaiiiiiiiltonnnn! – Alguém gemeu de lá. – Jaiiiiiiiilt...! – Era uma voz áspera que
causava frio.
  Quando alguém conta um caso semelhante, o ouvinte nunca pode sentir, de fato, o que
aquelas vozes causam. Jailton pôde confirmar isso. Os pêlos de seus braços se eriçaram
como os da nuca. Seu coração ficou pesado e seus nervos irritados. Respirar era difícil e
consciente. O gemido lhe causou uma paralisia instantânea. O que iria fazer agora?
Deixou seu cigarro cair. Seus instintos mais profundos lhe garantiam uma coisa; seja o
que for não era normal.
  Depois de um tempo indeterminado, se moveu. Andou lentamente até a casa do
zelador a fim de encontrar uma lanterna. Tonico estava quieto lá fora. Procurou por
todos os cantos, até mesmo na cozinha e não encontrou nada, teria que improvisar.
  Saiu e se dirigiu à capela. Abaixou-se e arrancou uma vela acesa do chão. Que Nossa
Senhora e todos os santos o perdoassem, mas precisava daquilo.
  Seu medo voltou. O seu velho receio dos mortos regressou com força. Achou que já
tivesse superado aquilo, mas estava enganado. Bastou apenas ver algo estranho para
desencadear toda a irracional fobia pelo cemitério.
  A coincidência foi tanta que, logo ao retirar a vela da capela, o mundo ao seu redor
pareceu mudar. Para pior ao seu modo. Inexplicavelmente, passou a discernir na
escuridão noturna, pequenas sombras de animaizinhos esquisitos empoleirados nas
árvores. Eles pareciam não se mover. Nem um pouco, apenas espiavam das trevas.
Tinham olhos-de-gato, mas Jailton sabia que não eram felinos. Eram outras coisas. Mas
talvez, e bem provável, que fossem apenas sua imaginação afetada pelo medo.
  Receio.
  Procurou não olhar e nem definir os vultos ali, tinha medo de conseguir. Além disso,
mesmo no silêncio, escutava algo como se viesse de longe, vozes. Não, não eram vozes,
reparou. Era um barulho longínquo de gralhar. Como se gralhas ensandecidas rissem de
sua situação. O pior foi ver todas aquelas coisas ‘refletidas’ nos olhos de Tonico. O
cachorro também parecia perceber a mudança no ambiente, pois estava parado e os
pêlos de seu dorso ouriçados. Ele não latia...
  Mais uma vez, seja quem for, atravessou o norte do cemitério, agora da esquerda para
direita. Lá nos fundos. Parecia querer ser notado... Estranha atitude.
   Jailton ergueu-se nos pés a fim de prolongar a visão do homem, mas não conseguiu. A
visão fora bloqueada pelas lápides mais além.




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  - Quem está ai? – Gritou ele, segurando a vela mantendo o cuidado de não se queimar.
– Eu já te vi e não vai adiantar se esconder! –Tornou a gritar. Enquanto esperava a
resposta, e ainda se mantinha parado perto da capela, ele pensou – pensou? – ouvir
risadas sussurradas vindas das copas das árvores. Aquilo lhe gelou o sangue.
  Tonico, enfim, latiu. O cão já não conseguia conter seu medo calado.
  - Não me faça ter que ir até aí...! – Jailton não perdia a esperança de ver alguém
pulando o muro para fora e fugir. Mas nada disso aconteceu, pelo contrário, viu um gato
grande saltar para a murada branca do cemitério, e de lá pra dentro outra vez.
  Não tinha outro jeito, teria que ir até lá. E fingir ser o cara mais perverso deste mundo
e enxotar o invasor responsável pelos chamados; Jaiiiiiiton...
  Caminhou segurando a vela ao lado do ombro, e sendo acompanhado de perto por
Tonico, que farejava o chão de vez em quando, prosseguiu.
  Conforme caminhava, as sombras dançavam meio a luz bruxuleante de sua grossa
vela. Aquilo lhe causava arrepios. Tinha na cabeça a ideia de ver uma daquelas sombras
dançantes se apresentarem como o homem, de repente. A qualquer momento. Tinha que
tomar cuidado. O invasor poderia estar armado de um revolver ou um facão. Nunca se
sabe. Sentiu-se um idiota, nem lhe passou pela cabeça procurar alguma coisa no
quartinho de ferramentas que lhe pudesse servir como arma de defesa.
  Tarde demais, não iria voltar logo agora, poderia perder o homem de vista ou então,
ao se voltar, dar as costas ao inimigo. Isso seria perigoso. Bastante perigoso. Contudo,
seu receio de que o intruso na verdade fosse um ‘morador’ do cemitério descartava
qualquer possibilidade de defesa real. Como se defenderia de alguém que já tinha
morrido?
  Não tinha como se defender. Esta era a verdade.
  Isso está mesmo acontecendo?
  Respirava com dificuldade enquanto seu coração batia com facilidade. Queria até
mesmo que isso parasse, pois a criatura, ou o homem, poderia ouvir as batidas.
Exageros que a mente aplicava. Mesmo sabendo disso, seu receio não diminuía.
  ‘Crack.’ Algo se quebrou acima dele. Meio a densa folhagem da copa da ameixeira.
Isso era inegável, algo estava ali. Nos galhos escuros.
  Olhou pra cima e ergueu a vela com a máxima cautela já imaginando um zumbi
babando sangue e o fitando ávido, louco para devorar seus miolos como naquele filme
da TV.
  Felizmente era só um gato, do tamanho de uma jaguatirica, mas ainda sim, apenas um
gatinho de rua... O felino o encarava quieto, Jailton podia ver nos seus olhos o medo
que tinha dele. Deu de ombros e prosseguiu a sua caça ao invasor. Ora, o que aquele
gato poderia fazer de ruim num cemitério?
  Tonico pensaria diferente, mas não reparou no bichano. Nem ligou, o que lhe
despertava curiosidade era o fedor incomum vindo de uma lápide logo ali. Tinha alguma
coisa fedorenta perto deles, e estava morta. Seu focinho era infalível. Coisa morta fora
do chão...
  - Jailtonnnn! – Alguém o chamou meio as sombras. – Jailton meu filho... – Sussurrava
a voz áspera. – Não tenha medo, só me escute, não corra e me escute...
  E o aspirante a coveiro tremeu. Seus olhos se arregalaram tanto que seria hilário em
outra ocasião. Tonico latiu alto desta vez e não parou mais. A voz vinha da cruz branca.
Vinha da direção do túmulo de Damaceno.




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Jaílton O Coveiro Covarde



  - Q-quem está ai? – Jailton gemeu. – Q-quem está me chamando? – E como sabe meu
nome? Pensou na hora. Aquela voz era diferente dos primeiros gemidos de outrora.
Tinha quase certeza quanto a isso. Mesmo assim estava se borrando de medo.
Controlou-se usando toda sua força de vontade para não molhar as calças.
  - Quem e-está aí, diga logo... – Mesmo tremendo de medo, conseguia falar. Apontou a
vela para aquela direção e o viu. Alguém estava sentado com as pernas cruzadas encima
da chapa de cimento do túmulo de seu pai. Usava trapos como mendigo. O cachorro se
calou...
  - Quem é você? – Não dava pra enxergar direito, mas podia distinguir a figura de um
homem velho e negro. O homem segurava algum tipo de colar nas mãos que
descansavam no colo. – Pode falar! Não vou te fazer nada se disser e ir embora, não
pode ficar aqui este horário. – Estava mais calmo. Depois de confirmar se tratar apenas
de um homem velho, seu medo e receio se extinguiu quase por completo.
  - Não posso lhe dizer meu nome... – Falou o velho dali, Jailton não se aproximava.
Era melhor manter distância. – É a primeira lei. A segunda é que não posso sair daqui
tão cedo...
  - Pode sim. Estou lhe dizendo... – Seja quem for, estava lhe testando. – Você vai me
encrencar se eu o deixar dormir aqui. Vê se colabora e vá embora... – Quase pediu ‘por
favor’, mas isso diminuiria seu respeito.
  - Já disse! – Falou o velho. Aquela voz era calma e... – Não posso, enquanto eu não
resolver meu problema. – Pareceu raspar a garganta. – Não se preocupe, não vou lhe
encrencar se você me ajudar...
  - Olha meu senhor... – Jailton deu um passou na direção do velho.
  - Não! – Protestou o homem. – Fique aí. Não chegue mais perto... Por favor, só me
escute... – Pareceu reconsiderar. – Se o fizer, logo vou embora. Juro...
  - Olha meu senhor. – O coveiro parou, por um instante teve medo de uma má reação
do velho, mas nada aconteceu. – Então diga logo o que tem pra dizer e vai embora, está
bem?
  - Está bem Jailton, está bem...
  - Antes quero saber uma coisa. Como sabe meu nome?
  - Por enquanto não posso te responder isso... Não tenho muito tempo...
  - Se está atrasado pra alguma coisa, pode ir embora! – ‘Por favor, por favor, some
logo daqui’ rezou.
  - Ainda não. Preste atenção... Deixe-me falar...
  - Está bem...
  - Vim aqui pra te dar um aviso Jailton. É muito importante.
  - Pode dizer! – Ele já não aguentava mais aquela lengalenga.
  - Algo ruim vai lhe acontecer e estou aqui pra te ajudar, este é meu objetivo e pra isso
estou aqui. Este lugar é a morada de muitas pessoas boas, meu jovem rapaz, mas mesmo
assim a ‘vizinhança’ tem seus exemplares ruins. Como sei que ele já fez maldade no
passado, sei que vai fazer de novo. Você é novo e tenho medo que não consiga
permanecer neste emprego por muito tempo... Isso seria um desastre na sua vida. Sei
disso. Sei sim...
  - Do que é que você está falando? Está querendo me ameaçar é?
  - Nada disso. Muito pelo contrário... Já lhe disse. Quero te ajudar. Escute este velho
preto meu filho. Confie em seu coração, não vou e nem quero lhe fazer maldade.




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  - Está bem... Supondo que esteja sendo verdadeiro, como pode saber de tudo isso?
  - Desculpa! – Raspou a garganta mais uma vez. – Mas não posso lhe dizer, minha
única esperança é que acredite em mim. Que me escute e se cuide. Ele vai parecer ser
seu amigo e vai tentar te enganar, não lhe dê atenção está me entendendo? Não lhe dê
ouvidos Jailton por mais que se sinta tentado. Nunca. Ele tem uma boa maneira de
convencer, meu rapaz, e vai tentar te enrolar... Não lhe sirva, não lhe dê esperanças se
não, vai ser pior. Principalmente isto. Não fale com ele, não chegue perto dele e evite-o
o máximo que puder. E se não puder... Bem... Ignore-o!
  - Está bem, mas... – Aquilo estava realmente lhe assustando. Muito.
  - Jure!
  - Eu juro!
  - Jailton, Jailton. Isto não é nenhuma brincadeira. Se você subestimá-lo será seu fim. E
lembre-se acima de tudo, aquele que te ama, não lhe pede cama. – O negro se levantou e
depositou algo no chão. - Adeus filho... ‘Se cuida’!
  - Espere! – Queria saber quem era ele. De quem o velho estava falando?
  O velho desapareceu.
  Simplesmente sumiu.
  Talvez tenha se movido tão rápido que não pôde vê-lo partir. Era possível, naquela
escuridão. A luz da vela não iluminava tanto assim.
  Tonico foi o primeiro a averiguar a situação. Aproximou-se do local onde o velho
estava e farejou a jazida. Jailton se mantinha parado. Não mexia um músculo se quer.
Algo lhe ocorreu quando o senhor se despediu...
  “Adeus filho... se cuida!”
  ...daquela maneira.
  A voz. O jeito de falar e aquela despedida.
  Não. Que besteira... Não podia ser.
  Se fosse ele teria se borrado inteiro ou corrido pra longe.
  Mas... O velho se parecia demais com seu falecido pai. Parecia demais...
  Despertou-se à vida e notou que o clima do cemitério voltara ao normal.
  Aproximou-se da jazida do pai. Tonico havia encontrado algo ali...
  Abaixou-se e pegou o colar. Era um rosário azul-claro. Descansou a vela ali mesmo e
não a pegou mais.
  Tonico saiu dali e foi farejar outras lápides enquanto Jailton examinava melhor o
objeto deixado pelo velho com ajuda da luz bruxuleante. De alguma maneira o rosário
lhe era familiar. Mas não se lembrava de ninguém que o usara. Era só a sensação.
  Levantou-se e, mais calmo, voltou para a casa do zelador. Resolvera dormir ali
mesmo, no sofá. Queria pensar melhor em tudo que ouvira do desabrigado que
encontrou. O homem não era mal, isso teve certeza, mas não batia bem das ideias. Era
‘pinel’.
  Deitou-se no sofá velho e fechou os olhos.
  Logo estava dormindo e teve uma noite de sonhos nostálgicos. Sonhou com o pai
Damaceno. Sonhou com sua infância sofrida. Sonhou com Pablo. Sonhou com o
presente e passado. E...
  Com o gato...




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                                         8.

  Acordou sobressaltado com o latido esganiçado de Tonico.
  Levantou-se e abriu a porta. Espreguiçou-se. Esticou o pescoço pra fora pra ver se
havia alguém ao portão.
  Não tinha ninguém, como, de alguma maneira, desconfiava. O cachorro latia para um
gato. O mesmo gato do dia anterior... Sabia disso.
  Sem dar muita importância ao fato voltou pro sofá e descansou mais um pouco.
  Aquela casinha devia ter uns quarenta anos no mínimo. A tinta nas paredes estava
descascando e cheia de fungos nos cantos. Na cozinha o azulejo do chão estava
quebrado em vários pontos e o cheiro de comida estragada estava impregnado na pia.
Quantos já não dormiram ali naquele mesmo sofá da sala?
  O trabalho de coveiro estava mudando sua maneira de ver a vida. Olhar
incessantemente aquelas lápides frias e sem vida lhe causava uma estranha sensação de
privilégio. Como se, estar vivo, ali, onde a maioria esmagadora dormia eternamente,
fosse algo que ele não merecesse. Queria fazer por merecer...
  A manhã correu sem muitas novidades. Quatro pessoas apareceram no cemitério e
visitaram seus respectivos parentes e mais nada. Uma delas, uma moça vestindo um
vestido vermelho sangue, chorou bastante diante do túmulo do ente querido. Depositou
um buquê de rosas brancas e foi embora...
  Tédio.
  Tonico passeava de um lado para o outro despreocupado depois de desistir em
capturar seu inimigo. Já o gato, também curtia o ar fresco saltando esporadicamente de
uma lápide para a outra.
  Jailton se perdia em devaneios quando avistou o rosário jogado encima da mesa.
  Levantou-se e pegou o ‘colarzinho’. Examinou-o por um longo tempo. Aquilo lhe era
familiar, era sim...
  - Pra que serve isso pai? – Ele perguntou um dia para o senhor Damaceno. O homem
segurava cada esfera azul de um rosário com as duas mãos e fechava os olhos. Ficava
assim por uns trinta segundos, e deslizava os dedos para o próximo. – Pai?
  - Estou rezando pra sua mãe Jailton! – Respondeu ainda de olhos fechados.
Sussurrava uma ladainha, sentado num pedaço de papelão improvisado para dormir. – E
pro seu irmãozinho.
  Estavam morando num barraco de rua em São Paulo na época. Na época ruim...
  - Ah! – Respondeu o menino. Não entendeu nada. Pra que servia aquela coisa? Rezar
não era na igreja e antes de dormir? – Mas pra quê serve estas bolinhas?
  - Pra contar o número de orações... – Suspirou e deu de ombros. Seu filho só o
deixaria em paz se explicasse tudo logo. – Agente usa isso pra não perder a conta, pra
facilitar e carregar com agente... Pode usar como colar, como pulseira... Do jeito que
quiser e nos dá proteção do nosso Senhor e da Virgem... – Estendeu o rosário pro
menino. – Nosso amigo daqui que me deu isto ontem enquanto você dormia...
  - O tio dos gatos?




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Suzo Bianco



  - Ele mesmo. Bom homem é aquele. Bom homem... – Esfregou os olhos como se
tivesse com dor de cabeça. – Não sei como pessoas tão boas podem acabar nesta
situação.
  Jailton apenas o observou e devolveu o rosário. Seu pai o colocou no pescoço.
  - Não sei como pode... Falando nele... Ele nos deu uma boa dica filho. – Ensaiou um
sorriso. - Numa cidade perto daqui estão precisando de pedreiros... Acho que lá
poderemos conseguir alguma coisa boa. O que acha?
  - Muito bom pai! – Sorriu em toda sua inocência. – Agente vai pra lá?
  - Vamos sim.
  - Quando?
  - Amanhã antes do nascer do sol... Tem que ser bem cedinho pra gente chegar rápido.
  - E vai demorar?
  - Bem menos do que levamos pra chegar da Bahia pra cá. Bem menos.
  - Então não vai demorar... – Damaceno conteve-se. Iam demorar sim. E muito... -
Vamos de caminhão ou de ônibus?
  - A pé... Vamos pegar carona... Um pouco dos dois.
  Jailton não conseguiu esconder a decepção.
  - Escute meu filho... – Damaceno abraçou Jailton. – Agente tem que ir embora, se não
agente vai morrer de fome aqui... Está me entendendo? - O garoto ficou calado.
Manteve-se quieto e pensativo. Triste. – Vamos pra lá e seja o que Deus quiser!
  Naquela noite Damaceno chorou sem seu filho ver. E vice-versa.
  Lembrando daquilo sentiu um arrepio. O rosário em sua mão era idêntico ao do seu
pai.
  Talvez, teria como saber se era tão parecido assim...
  Diante da lápide do pai, se ajoelhou e fitou a fotografia na pedra. Tonico fazia-lhe
companhia enquanto coçava a orelha.
  Jailton chegou bem perto pra ter certeza do que via.
  Sim... Era isso. Seu pai usava um rosário como colar quando tirou aquela foto. Seus
olhos brilhantes, seu sorriso... Deus, Damaceno era um excelente pai e um
extraordinário homem. Por que o levou Cristo?
  - Aquele velho de ontem... – Sussurrou para a imagem de José Francisco. – Era o
senhor pai? – Aquilo foi mais difícil de dizer do que imaginou. Admitir a possibilidade
daquele mendigo ser de fato seu falecido ente era tenebroso. Reconfortante? Não sabia
dizer... Era uma sensação inimaginável. Seu pai estava morto. MORTO. Não havia
possibilidade alguma daquele senhor ser seu pai. Não mesmo, não podia pensar assim...
Entretanto. Eram parecidos. Mais do que queria acreditar. As semelhanças eram
assustadoramente enormes.
  O rosário, o timbre de voz, o sotaque sertanista baiano... Só agora se dava conta de
como fora bizarro, e estranho, tudo aquilo.
  - Sim. – Admitiu. Foi relutante, mas no fim assumiu pra si mesmo. – Era você sim...
De alguma maneira era você aqui ontem, não era?
  - Miauuuummm! – O gato de rua apareceu diante dele equilibrando-se na cruz branca
acima da lápide.
  - Olá garotão! – Brincou Jailton achando graça, enquanto Tonico avançou contra o
bichano sem latir. Farejou a cruz e deu um único latido balançando o rabo.




                                          29
Jaílton O Coveiro Covarde



  O gato pulou pro chão e correu para um pequeno arbusto mais abaixo na trilha
cimentada. Tonico tentou ir atrás, mas Jailton o impediu segurando-o pelo pescoço.
  - Calma cachorro... Deixa o bicho em paz...
  Voltou-se para a fotografia do pai e depois releu as inscrições na lápide; ‘Aqui
descansa em paz o amado pai e querido companheiro José Fransisco Damaceno.
Nascido em: 1947 Falecido em: 2002.’
  Falecido em: 2002.
  Falecido...
  Sorriu sem achar graça e voltou para a casa do zelador.


                                          9.

  A noite voltou, mas desta vez escondendo as estrelas. O céu estava nublado e o cheiro
de terra molhada trazido com o vento era ameaçador. Iria chover. Provavelmente.
  Tonico dormia encostado ao portão trancado sem ligar para nada. Sonhava e sonhava.
  Jailton o espiava, sentado num dos degraus da capela, e fumava um cigarro pensando
na vida.
  ‘Vim aqui pra te dar um aviso Jailton. É muito importante...’
  Aquele homem.
  ‘Ele vai parecer ser seu amigo e vai tentar te enganar, não lhe dê ouvidos está me
entendendo? Não lhe dê ouvidos Jailton, por mais que se sinta tentado...’
  De quem ele estava falando? Pai? De quem eu devo tomar cuidado?
  ‘Ignore-o...’
  Ignorar quem?
  Seus olhos estavam olhando, mas não enxergavam nada.
  Seu pai, se é que era mesmo o fantasma de Damaceno, lhe tinha dado um aviso...
  Suspirou e teve um sobressalto. Sonho. Será que não havia sonhado tudo aquilo?
  Ora, ora... Pra que se enganar? Não era nenhum idiota completo, claro que foi real...
Claro o quanto foi possível ser no escuro do cemitério. Aquele velho calmo, tranquilo e
de fala pausada e firme era, de alguma forma, seu pai.
  - Jaiiiiiiilton! – Soou um gemido meio ao breu. – Jaiiiiiiilton... Socoooorrooooo!
  Levantou-se como se tivesse tomado um choque repentino no degrau. Em pé ele
tremeu mais uma vez.
  Desta vez não vou responder nada... Pensou. Desta vez vou seguir as vozes e ver
quem é o engraçadinho que está querendo me assustar. Ah! Se vou... Abaixou-se e
apossou-se de mais uma generosa vela. Jailton seguiu os gemidos, que repetiam sem
parar seu nome e a pedir por ajuda... Estava bambo de receio, contudo seguiu firme
passo a passo em frente.
  Logo estava diante de um par de lápides...
  As duas pedras eram de um cinza escuro como grafite e dividiam uma única plaqueta
identificadora entre elas; ‘Aqui jaz Marcos Augusto Filho: nascido em 1957, morto em
1997 e sua adorável esposa Carla Maria Augusto Filho: nascida em 1960, morta em
2006. Um casal exemplar e amado pelos amigos.’




                                          30
Suzo Bianco



  Os gemidos estranhamente vinham dali... Debaixo.
  Ao lado da jazida da mulher existia outra bem menor e mais simples, contudo também
possuía sua identificação, onde se lia: ‘Mimi, a gata mais amada’; e embaixo: ’Por Carla
Maria’.
  Uma gata? Pensou Jailton esquecendo por alguns instantes, os chamados.
  Nesse instante os tais gemidos cessaram, mas só depois dele ter tido certeza de que
viam de lá. Assim pôde se concentrar mais nas lápides diante dele sem ser molestado
por supostas vozes do além...
  - Então... – Murmurou. – A lorota do seu José não era mentira?!
  Realmente haviam enterrado um bicho ali... Sinistro.
  Mas nada era mais sinistro do que aqueles gemidos esquisitos chorados pela terra.
  Agachou-se encima de uma das criptas e fez o máximo de silêncio possível. Não
moveu nenhum músculo, apenas protegia a chama sensível da vela com as mãos do leve
vento.
  Queria ter certeza absoluta do que tinha acontecido.
  Queria ter certeza absoluta de que aqueles gemidos medonhos tinham mesmo partido
dali...
  Sentiu uma presença estranha às suas costas...
  Será que era ele?
  Ficou onde estava, relutava em se virar... O medo voltara. O clima do cemitério se
alterou como no dia anterior. Sim, tudo de uma vez só. Rápido como um feixe de luz.
  Sentiu a respiração da criatura atrás dele...
  Reuniu toda sua força de vontade e coragem e se virou lentamente já preparando sua
mente para o pior...
  Tonico o olhou confuso. O homem novo estava com medo dele?
  Jailton colocou a mão no peito quase deixando a vela cair e fechou os olhos de alívio.
  - Não dá pra você fazer mais barulho enquanto anda cachorro? – Perguntou baixinho.
– Quase me mata do coração seu bostinha.
  O cão achando se tratar de um elogio, se aproximou balançado o rabo e lambeu-lhe a
perna agachada. O zelador o acolheu sorridente, e aliviado por não ser ele, e lhe
acariciou as orelhas pretas.
  - O que quer aqui? – Falou com o cão... – Eim? Viu alguma coisa?
  Tonico apenas ofegava a maneira canina e curtia o carinho bem vindo.
  - Jaaaii...! – Sussurrou algo dali debaixo dele. Parecia mesmo sair da cova do velho e
falecido Marcos. A palavra foi cortada ao meio como se tivesse saído num engasgo...
Com terra? Como se o fantasma tivesse mudado de ideia talvez... Mesmo assim não foi
um gemido curto e baixo o bastante para não ser notado, além de causar uma nova série
de tremedeiras em Jailton.
  Ele estagnou-se. Os olhos estalados. Tonico fizera o mesmo e o encarava confuso.
  - Jái...! – Outra vez. Contudo foi mais claro, e mais repentino. – Jaiiiiiiton... –
Conseguiu em fim proferir a voz rouca e gélida da coisa enterrada embaixo dele. Tonico
chispou-se como um raio, nem sequer fez barulho.
  - Minha Nossa Senhora Mãe de Deus! – Resmungou Jailton mantendo os olhos
cerrados de medo e choque. Não queria ter ouvido aquilo... Contudo, se não queria, o
que estava fazendo ali naquela posição? – Pai do Céu que me proteja, sai de reto
satanás... – Continuou desesperado.




                                          31
Jaílton O Coveiro Covarde



  Se pudesse, daria qualquer coisa a qualquer um pra lembrar a oração do credo, que
sabia fazer bem para aquelas situações. Infelizmente ele estava armado apenas de uma
vela acesa e um cachorro covarde que nestas horas... Cachorro? Que cachorro?
  Nenhum maldito ‘au-au’ para espantar a criatura. Tonico se mandara rápido como um
relâmpago...
  O desespero e o medo lhe davam sempre estas esperanças idiotas. O que um cão
poderia fazer contra um fantasma?
  - Você está aí Jailtoooon? – Continuou a voz medonha. – Você está mesmo de
verdade encima da minha casa Jailtoooon?
  Sem pensar duas vezes ele saltou pra fora da jazida. De pé na trilha ele respondeu ao
seu interrogador do além numa rapidez constrangedora – suas mãos tremiam tanto que a
chama da vela quase se extinguiu por completa.
  - Num-tô-mais-não-senhor! – Isso saiu de uma vez numa voz fina e desafinada. – D-
desculpa não s-sabia q-que... – Gaguejou ao mesmo tempo em que se equilibrava
naquela realidade trêmula.
  - Não tem problema não Jailton... – Disse a voz rouca. – Só quis saber, homem...
  - T-tá bem, mas eu não estou m-mais não. – Queria chorar. Por que? Medo. Claro,
puro medo.
  - Está com medo de mim coveiro? – Desdenhou a coisa enterrada. – Logo eu? Um
inválido sem possibilidade de ir e vir? Que vergonha... Medo de um...
  - N-não estou com medo não... – Falou na medida do possível, controlando sua
gagueira repentina e engolindo em seco. – Só um receiozinho.
  - Receiozinho? – Riu. O riso era áspero como serra partindo um tronco grosso de
eucalipto. – Receiozinho Jailton?
  - É sim senhor! – Respondeu como uma criança com medo do professor que descobriu
sua cola durante a prova.
  - Receio não faz ninguém gaguejar coveiro! – Parou de rir. – Seu medo por mim me
ofende! O que eu poderia lhe fazer de mau homem do céu? – Parecia realmente
indignado e sincero. – Me diz? O que um morto, se é que estou mesmo morto, poderia
lhe fazer além de assustá-lo de inicio? Fale-me?
  - Não sei, mas...
  - Ta vendo só? Não sabe... Se não sabe, por que está com medo?
  - Porque... – Pensou ainda controlando a vontade louca de correr dali. – Porque...
  - Ora! – Bufou. – ‘Porque, porque...’ Pare com isso homem! – Deu-lhe a bronca como
um pai faz com o filho. Percebia-se na entonação da voz a boa intenção. – Você já está
velho demais pra ter medo de fantasma...
  - Não é medo... – Tentou questionar Jailton.
  - ‘É só um receiozinho...’ – Imitou o morto. Morto sim. Isso já estava bem óbvio para
ele. – Estou sabendo. – Um ruído molhado de bocejo. – Escute aqui meu rapaz. Coloque
uma coisa na sua cabeça. Eu não quero lhe fazer mal nenhum...
  - Então o que você quer de mim?
  - Apenas palestrar!
  - Palestrar?
  - É! Homem do céu... – Ficou um pouco impaciente. – Conversar, bater papo, trocar
ideias... Entendeu?




                                          32
Suzo Bianco



  - Sim. – Engoliu em seco de novo, deu um passo pra frente, e perguntou. – Sobre o
quê?
  - Nada demais... – Estava claramente satisfeito. – Qualquer coisa. Você não sabe,
embora eu saiba que um dia vai me entender... Ficar aqui embaixo o dia inteiro e a
noite toda, sozinho e sem ter ninguém pra falar é difícil viu... Muuuito difícil. A solidão
bate na gente de uma maneira ruuuuimmm... Nem queira imaginar.
  - Nem quero...
  - Eheheheh! Nem queira mesmo. Bem, mas isso não importa mais... Acho que você já
está perdendo o medo de mim. E isso já está muito bom... Muito bom mesmo, de
verdade.
  - Você acha? – Pra que perguntar? Era verdade... Aquele defunto enrolava e
anestesiava o medo como um médico faz ao entreter uma criança na hora de aplicar uma
injeção.
  - Acho! – Foi categórico. – E isso me faz ficar feliz de verdade. Você está começando
a entender... Um morto é apenas um morto e só pode fazer mal se não for enterrado
direito, poluindo a terra. Mas onde estou... Não, isso é impossível... Não estou dizendo
que faria maldades por aí, pelo contrário... Bem, só quis dizer, me entendeu, não é?
  - Entendi... – Quase. Mantinha-se na defensiva no máximo. Talvez aquele morto fosse
o tal ‘ele’ que seu pai lhe avisara. Ou estivesse sonhando...
  - Pois é! Sempre fui uma boa pessoa enquanto estive... Bem... Vivo! Não é só porque
morri, ficaria malvado. Que ideias tolas que este pessoal inventa... Brincadeira né?
  - É...!
  - Agora eu durmo a maior parte do tempo. Enquanto estou sonhando até que é bom.
Parece vida real. – Riu. – Mas quando desperto é um horror... Já não tenho quase mais
pele nenhuma e mesmo assim sinto algumas coceiras desagradáveis. Isso é foda! Já
tentou se imaginar tendo estas coceiras sem poder se mexer? Acredite amigo. É o
inferno... Sabe do que mais?
  - Não...!
  - Eu estou puto! – Pela voz, era o que parecia ao coveiro. – Acho uma baita injustiça.
Nunca fui ladrão, assassino e nem um tipo de marginal ou depravado. E mesmo assim...
Mesmo assim, algum cretino lá encima me condenou a passar a eternidade dentro de um
paletó de madeira pra ser comido por vermes. Isso é uma bosta! Definitivamente uma
bosta gigantesca.
  Jailton não sabia o que dizer... Mantinha-se calado e só respondia em pausas
estratégicas.
  - Está sendo muito chato isto aqui Jailton. Muuuito chato. Nem te conto o que
acontece quando chove... Ah! Aí sim é uma bosta mesmo... Sabe o que acontece quando
chove aqui coveiro? Sabe?
  - Não!
  - Claro que não sabe. Mas devia pelo menos imaginar... – Aquilo foi uma ofensa?
Pensou Jailton – Isso aqui vira uma privada meu amigo. É sim. Uma droga duma
privada nojenta de parada de caminhão! – Marcos, o defunto, estava nervoso. Não com
ele, nem com ninguém especificamente, e sim com a vida... Ou melhor, com a morte. O
coveiro deixou o ‘homem’ desabafar. O que tinha demais nisso? Só por que era um
morto falante? Nem quis responder a esses pensamentos. – A água da chuva encharca
toda a terra aqui embaixo. Sim. E não é só isso... Não senhor... Ela faz toda a sujeira daí




                                            33
Jaílton O Coveiro Covarde



de cima, a mesma sujeira que o senhoooor não limpou, descer até aqui e me cobrir de
porcaria. Meu velho terno de linho nem existe mais... Apodreceu mais rápido do que eu.
Vê se pode uma coisa dessas. Sinto cada monte de barro me cobrindo e me inundando.
Neeeemmm os malditos e covardes vermes me amolam mais por causa disso. Os
bichinhos depois de me comerem toda a carne, ainda viviam aqui comigo, mas depois
da primeira leva de porcaria, foram embora, se mudaram para o vizinho daqui do lado...
– A indignação em cada palavra era incontestável. Se o morto realmente pudesse sair
dali, ele já teria feito isso há muito tempo. – Falando nisso... Quem é que está enterrado
aqui do lado?
  - Quem o quê? – Tentou fingir Jailton.
  - Quem está enterrado aqui do meu lado homem de Deus?!
  - De qual lado você está falando? – Jailton sabia bem de qual lado, mas quis ganhar
tempo. Não sabia se dizia ou não, ao morto irritado, que sua mulher é quem estava
coberta.
  - Jailton...
  - Sua mulher! – Respondeu logo. E que se danasse, ele faria o que? Não era culpa de
ninguém... Talvez até gostasse. Sua esposa o fazia companhia, por quê não gostaria?
  - Minha mulher? – Parecia confuso, perguntou isso numa voz baixa e incerta.
  - É sim senhor!
  - Carla é o nome dela?
  - É sim senhor, Carla Maria...
  - É ela mesmo! – Interrompeu numa voz embargada. – Minha Carla... Minha mulher...
– Parecia estar à beira do choro. – Tem certeza não é mesmo?
  - Tenho sim senhor! – Pensou confuso. – Hm... Eu lamento. – Raspou a garganta. –
Meus pesamos. – Ele estava dando pesamos a um morto? Deus!
  - Nãããããããoooooo...! – Chorou o defunto escondido dentro da tumba. – Minha
Carlinhaaaa... Por que você me deixou Carlinha? Por queeeê? Me diz... – Jailton espiou
de rabo de olho a jazida de Carla e pensou: ‘Não responde não, pelo amor de Deus.’
  “Por que você me deixou?” O que aquele cadáver estava falando? Caramba o cara
ficou louco depois de morto... Pensou Jailton quase sentindo pena do penado. E o estava
enlouquecendo também.
  - Está bem senhor...? – Perguntou o coveiro tentando ser gentil.
  - Eu pareço estar bem homem? – Gritou desesperado ainda em pleno absurdo pranto.
  - Não senhor! – Sussurrou Jailton.
  - Me deixe em paz por hoje... – Soluçou Marcos. – Quero ficar sozinho!
  Jailton não lhe respondeu nada. ‘Quero ficar sozinho...’ Ave Maria, cada uma... A vela
em sua mão já havia ficado dois centímetros menor. Deu de ombros e se retirou meio ao
incessante pranto do cadáver.
  Deus! O que era aquilo? Pensou consigo.
  O clima pesado extingui-se repentinamente assim que alcançou a principal trilha do
cemitério, a que levava do portão à capela branca.
  Assim que se sentou no sofá velho, onde Tonico já estava há tempos, é que todo o
ocorrido lhe caiu como uma bigorna na cabeça. – Minha Nossa Senhora do Rosário! –
Proferiu sustentando o rosto com as mãos. – O que foi isso Pai do céu?
  Ele tinha mesmo conversado com um defunto?
  Ele tinha mesmo ouvido o defunto chorar?




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O Coveiro Covarde
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  • 2. Jaílton O Coveiro Covarde Um conto de Suzo Bianco Jaílton O Coveiro Covarde São Paulo – SP - 4/8/2011 Esta obra não pode ser reproduzida, nem comercializada sem a autorização direta e explícita de Suzo Bianco Evangelista vide a lei que protege os direitos intelectuais e artísticos do autor. Para contato com o autor desta obra: suzobianco@hotmail.com ILUSTRAÇÃO DE CAPA: Edson Evangelista e-mail: evangelistaartista@yahoo.com.br 2
  • 3. Suzo Bianco Jaílton O Coveiro Covarde 1. O velho terno preto que seu pai lhe doara antes de partir para o além não lhe caía tão bem, mas servia para a ocasião. Afinal de contas, não era uma reunião de negócios numa empresa executiva na Avenida Paulista ou algo do tipo. Quem dera o fosse... Pois mesmo sabendo ser um incompetente em negociatas confusas e de honestidade questionável adoraria ter um daqueles empregos bem remunerados. Era o que imaginava... Sonhos. E foram estes sonhos desconexos e insensatos que o acomodaram ao passar dos anos. Não queria perder toda sua juventude em livros de estudos e faculdades chatas. Embora, se soubesse, teria feito uma forcinha. Mas, afinal de contas, quem ele estava querendo enganar? Não teria chance nenhuma. Aqueles cargos de executivo eram para o clero capitalista e para pessoas bem afortunadas. Era o que pensava... As faculdades eram caríssimas para serem cursadas por um filho de pedreiro nordestino recém chegado ao Sudeste. Era negro, pobre e feio... Feio. Quanto a isso não tinha muita certeza. Como dizia seu pai antes de morrer? ‘Pra cada panela há uma tampa!’ Isso. Era isso mesmo. Ele acreditava neste ditado... Uma pessoa sem dinheiro e sem amigos importantes contava apenas com seus sonhos. Não deveria ter vergonha de sonhar. Nunca. Os sonhos eram seu combustível, a sua esperança. Não só a dele, mas a de muitos como ele que não tinham a vida e o destino como um aliado respeitável neste quesito. Agora ele ali, caminhando calmamente e falsamente arrumado como um ‘Doutor’, mas pensava na amarga realidade. Não que tivesse medo do lugar ou pavor pelo que iria começar fazer, mas a gente nunca imagina um dia trabalhar num cemitério. Um jardim cinzento e verde repleto de andarilhos esquisitos. A vida nos prega cada peça. Fazer o que? Jaílton esfregava as mãos e os dedos enquanto seguia seu caminho pela calçada suja de terra na pequena Santa Cruz, uma cidade humilde e bem cuidada no sul do estado de São Paulo. Estava preocupado em não sujar a calça limpa e bem passada que usava, e muito menos seus sapatos recém engraxados, por ele mesmo, frente ao albergue que morava de uns meses para cá. Uma pousada na verdade... A Pousada de Santa Maria de Deus. Dona Joana, Jô, para os mais chegados, era a dona do estabelecimento. Dona Jô além de proprietária, era a gerente, zeladora, mestre-cozinha e agiota. Simplesmente uma empresária de pequeno porte da cidade. Uma senhora de olhos azuis e cabelos brancos sempre curtos e limpos, baixinha e gorda como uma típica nona. 3
  • 4. Jaílton O Coveiro Covarde E para a sorte de Jaílton, ela também era simpática e muito compreensível. Caso não fosse, ele estaria enrascado. Desde que chegou à pousada de Santa Maria, o rapaz de 32 anos pagara somente dois meses e já estava devendo cinco. Não conseguia juntar dinheiro para pagar as mensalidades do quarto em que ocupava. Ocupar seria a palavra mais adequada no seu caso, pois seu canto se resumia numa cama, que já estava lá, numa escrivaninha, que também já estava e um micro armário com um cheiro de naftalina quase insuportável que fora a primeira coisa que adotara. Mas os móveis velhos eram de madeira vermelha e resistente, pelo menos. Baratos, mas nenhum fora comprado por ele... O que era de propriedade de Jaílton ali não tinha muito valor real. Um micro aparelho de TV preto e branco, algumas peças de roupa, uma escova de dente pouco usada, mas bastante tempo não reciclada, uma escova de pentear, um sabonete velho e já trincado que era mais usado como abrigo pelos pentelhos rebeldes do que pelo dono, um maço amassado de cigarros vagabundo, uma caixa de fósforos com sete palitos, um pacote de biscoito de maizena já consumido pela metade e uma sacola de plástico para carregar suas ‘riquezas’ por onde necessitasse. E necessitaria em breve se as coisas continuassem indo como estavam. Se não fosse a simpática dona Jô... Estava desempregado por um bom tempo, vivendo de bicos e biscates mal remunerados. Era o suficiente apenas para comprar seus cigarros e cachaças. Vícios malditos... Mas era o que o ajudava a segurar as pontas. Não se matava de beber, era só pra acalmar os nervos, como ele mesmo dizia aos conhecidos e vizinhos da pousada. O vício mesmo era o tosco tabaco. Dona Jô tinha um bom empreendimento ali. Só não ficava rica porque, de fato, não queria. Não era materialista, amava Jesus e só. Era o bastante para ela, uma mulher velha, com seus 53 anos duros, mas saudáveis. Era feliz à sua maneira e se contentava com pouco, não que isso a fizesse se acomodar numa rede e dormir o dia inteiro, pelo contrário. Sentia-se viva e desperta para o mundo cuidando da pousada, com muito sacrifício erguida e fundada. E mais ainda mantida com muito amor e atenção, até hoje. O lugar não era um hotel cinco estrelas, porém confortável. Uma casa térrea e comprida. Localizada numa paralela da rua principal de Santa Cruz. A rua era de paralelepípedos e subia para o norte. Sua pousada era referência. A entrada, enfeitada por uma modesta e bem cuidada tabuleta sobre o jardim, convidava o turista a ter noites agradáveis e calmas. Os quartos – concentrados num comprido corredor de lajotas cor de vinho - eram pequenos, mas limpos. Havia apenas dois banheiros para os veranistas, bem no final do corredor ao lado da porta que ligava a cozinha. Era o bastante para se manter. O custo de vida em Santa Cruz não era exorbitante. Uma sala grande, equipada de sofás com armações de palha tratada e pantufas caseiras era bem arejada por janelas grandes que se mantinham o máximo de tempo possível abertas. Geralmente era onde os turistas e moradores gostavam de passar a tarde conversando. Jaílton adorava a pousada. Porque se sentia num palácio. Não tinha planos de ir embora tão cedo, mesmo que a necessidade exigisse isso. Estava acostumado com muito menos que aquilo de onde veio. Nativo de uma região miserável, no sertão da Bahia, conhecia bem a ausência de conforto. Morou numa casinha de sapé e teto de barro. 4
  • 5. Suzo Bianco Passou fome... Passou sede... Tempos ruins de verdade. Coisa que o mais pobre morador de cidade grande nem se quer imaginava ser possível. Pois é... E havia gente que o perguntava se não queria coisa melhor na cidade. A resposta era sempre a mesma: Claro! Por mais que Jaílton tivesse uma origem humilde e miserável não significava que se contentava com pouco e fosse um completo ignorante. Vivia chorando as mágoas pelos cantos, quando se via sozinho, sonhando por uma vida melhor. Um dia conversou com Dona Jô sobre o assunto... Ela lhe deu bons conselhos. Foi quando soube do cemitério. - Olha Jaílton. Você é jovem e forte. Pode trabalhar na cidade grande e ganhar dinheiro como quer. Não acho que tenha motivos para se lamentar tanto assim... - Mas nunca vou ficar rico... – Estavam reunidos na cozinha naquela ocasião para se esconderem do frio noturno. - E pra quê você quer ficar rico homem de Deus? Saúde e felicidade já não são o bastante? Deveria se dar por satisfeito por Jesus lhe dar braços resistentes e uma boa cabeça... - A senhora pode ter razão. – Sentou-se numa cadeirinha numa das mesas postas para o almoço das cozinheiras. Ela preparava um cafezinho. – Mas estou lhe devendo cinco meses e não sei como vou te pagar isso... - Você vai me pagar uma hora, não vai? – Jô disse isso, mas não acreditava que fosse possível tão cedo. - Vou sim. Claro... Mas quando? Não gosto de dever ninguém dona Jô... Não mesmo. Meu pai, quando me trouxe da Bahia, me ensinou muita coisa e pôde me sustentar o suficiente pra eu terminar a escola... E uma das coisas que nunca vi meu pai fazer foi dever alguém. Era pobre como eu, mas honesto e direito. Não quero envergonhá-lo... – Suspirou. – Mas estou. Isso me deixa triste às vezes... Tenho que arranjar um emprego. E logo. - Você vai arranjar um bom emprego Jaílton, e logo, Jesus vai te ajudar. – Ela também sentou à mesa com a garrafa térmica na mão. – Sou velha e mesmo assim ainda não desisti de minha vida. Trabalho praticamente sozinha aqui e mesmo assim não desisto. Nunca. É difícil. Mesmo com ajuda das meninas e do senhor José, tenho que reunir forças todos os dias para não desanimar. Tenho fé que você ainda vai encontrar o que merece... - Deus te ouça dona Jô. Deus te ouça. Já estou quase desistindo. Se não fosse a senhora entender minha situação, não sei o que faria... Já pensei em ir embora para São Paulo, mas tenho medo. - Jaílton... – Ela pegou a garrafa de café quente e derramou a bebida fervendo na xícara que separara minutos antes. Depois de encher empurrou para seu amigo e inquilino. Após sorver um pouco do café de sua própria xícara prosseguiu. – Não tenho certeza absoluta, mas acho que sei um lugar que precisam de alguém para trabalhar de zelador... - Mesmo? – Nem tocou no café. Mais por distração do que por desfeita. – Onde? 5
  • 6. Jaílton O Coveiro Covarde - Antes preciso ter certeza de duas coisas... Se a vaga não é só um boato e se você realmente está disposto a trabalhar. Por favor, não se ofenda, mas é que não posso indicar alguém que não vá ficar muito tempo no cargo... - Que isso dona Jô! – Finalmente tomou um gole do café quente, queimando a língua. – Claro que estou interessado em trabalhar. Onde é que seja... Não vou pra lugar nenhum, se aqui tiver lugar para trabalhar... Claro que não. Vou ficar. Gosto daqui... - Desculpe-me, mas foi justamente o que eu não queria que pensasse. – Ela sorriu um pouco constrangida. – É que geralmente as pessoas não gostam destes lugares... Uma besteira, mas eu tinha que ter certeza. - Como assim...? É uma vaga de zelador num p... - Não. Não... – Riu ela. – Nada disso Jaílton. Não é nestes lugares não. Sei que você é um homem direito e por certo eu não lhe indicaria pra um lugar destes. - Então? Onde é? - Num cemitério. – Ela parou e deixou que seu amigo absorvesse melhor a ideia. – No Cemitério Joaquim aqui perto. Sabe onde fica? - Cemitério? – Estava pasmo. – Puxa - Tinha medo de cemitério... E agora, o que faria? – Cemitério? - Jaílton? – Jô notou sua surpresa. – Sabe onde fica? - Sei sim... Sei sim dona Jô. – Parou quieto por um instante. Pareceu pensar. Deu mais um lento gole no seu café preto. – É dentro ou fora? - Como assim ‘dentro ou fora’? – Dona Joana quase riu. - Do cemitério. – Se controlou. Não queria que dona Jô percebesse que tinha receios de cemitérios. ‘Receio’ sim, porque homem que é homem não tem medo. Tem receio. – A vaga é pra cuidar dele dentro ou fora? Dona Joana não conseguiu segurar desta vez. Gargalhou. O homem estava com medo. Deus do céu, um marmanjo com medo de cemitério era hilário demais. - Você está brincando comigo não é mesmo Jaílton? – Provocou ela, ainda dando risinhos descontrolados. – Não pode estar falando sério. É claro que é dentro. Como se pode cuidar de um lugar pelo lado de fora homem de Deus? – E voltou a rir. A cena de Jaílton andando rente ao muro branco do cemitério do lado de fora, fazendo cara de mal, era engraçadíssima. - Ué! Só achei! – Foi o que conseguiu dizer. As risadas nada contidas da dona da pousada lhe deixaram constrangido. - Não Jaílton. – Tentava parar de rir. – A vaga é pra zelador ‘interno’ do cemitério... – Parou de vez com as risadas. Encarou o homem e tentou ser o mais séria possível. – Você tem medo de cemitérios Jaílton? Pensou em mentir. Mas não ia lhe adiantar nada, mais cedo ou mais tarde ela saberia. - Um pouco sim... - Pára com isso meu rapaz. – Riu. – Um homem deste tamanho com medo do que já se foi? Você tem que ter medo dos que ainda estão. Estes sim podem lhe fazer algum mal de verdade. No cemitério você só vai encontrar silêncio e muita folha de árvore para varrer. - Tem razão... Mas mesmo assim tenho meus receios... - Pára com isso! A vaga está lá, creio eu, e é um ótimo emprego. Principalmente para você Jaílton. Está desempregado e sem dinheiro. Com o salário de coveiro... - Coveiro? Não era zelador? 6
  • 7. Suzo Bianco - Coveiro... Zelador... Como preferir. O que quero dizer que o salário não é ruim e vai dar pra você pagar suas dívidas no começo e manter-se ‘bem’ morando nesta cidade. Além disso, você terá a opção de morar lá. - Como é? Morar no cemitério? Nem morto... Trabalhar num lugar destes até vai, mas morar lá. Nem morto! - Bem que morto você não terá escolha não é meso? – Riu. - Tem razão. Tem razão! – Riu junto. – Mas não sei se vou me acostumar com a coisa. De qualquer forma... Qual seria o horário? - Do que? - Do serviço. Eu ficaria no cemitério de que horas a que horas? - A sim... – Pensou. – Não sei Jaílton. Isso será o empregador que irá lhe dizer... - Certo. – Pensou cabisbaixo. Queria escapar daquela situação. Tinha que trabalhar... Mas num cemitério? Caramba. Não tinha escolha, teria que aceitar. Dona Jô já lhe fizera o favor de lhe dizer a respeito do emprego, que tipo de homem seria ele se negasse? Pelo menos iria ver do que se tratava em detalhes.– E quando posso ir até lá ver a vaga? - Amanhã te digo. Vou falar com o senhor José, foi ele que me falou da vaga. – Ela só não disse o jeito que lhe foi passada a informação. O Senhor José era um velhinho que ajudava Joana a cuidar da pousada. Concertava vazamentos, tratava do jardim e outras coisas. Ele comentou rindo sobre a vaga: ‘Quem iria querer trabalhar naquele cemitério dona Joana?’ E ria muito... - Quando eu souber dos detalhes, vou te procurar e avisar quando poderá ir... Está bem assim? - Está sim dona Jô. E obrigado pelo favor... – Tomou o último gole de sua xícara e se levantou. – Agradeço mesmo. De coração. Como eu já disse... Se não fosse a senhora... - Seria outra pessoa! – Comentou também se levantando. – Você é uma boa pessoa Jaílton. Sempre terá alguém pronto a lhe estender as mãos e te ajudar. Confie em Jesus, que todos que estão por ele, terão uma boa recompensa no final... - Amém dona Jô. A senhora que é realmente uma boa pessoa. Ajudando um perdido como eu que lhe deve dinheiro... Ainda vou lhe recompensar por tudo que está fazendo por mim. - Se quer mesmo me recompensar Jaílton, faça por si mesmo. Se cuide e já me fará um grande favor e me deixará muito contente. Gosto de ver meus amigos bem, isso que importa. - Obrigado mais uma vez. – Jaílton se despediu sorridente. Ainda tinha receios... No fundo estava torcendo para que a vaga no cemitério já estivesse preenchida. Não lhe agradava a ideia de ser coveiro. – E boa noite. - Boa noite Jailton! Dona Jô se retirou para seu quarto depois de lavar as xícaras. 2. Ele bem que quis desistir, mas no dia seguinte, Joana lhe informou das boas novas. A vaga realmente existia e estava à espera dele. 7
  • 8. Jaílton O Coveiro Covarde Droga! E ali estava ele todo emperiquitado e cheio de receios. Fazia um calor desgraçado que o fazia suar muito. O terno já fedia a suor e poeira quando chegou ao Cemitério Joaquim. Quem havia inventado o terno devia tomar uns tapões... Aquilo era desconfortável – não lhe passou pela cabeça que geralmente aquela vestimenta era feita por encomenda – e no calor esquentava quando no frio esfriava. Uma besteira de roupa. Só a tinha vestido porque sabia bem que entrevistas de emprego deviam ser feitas daquele jeito. Droga! Coveiro? Diante da porta de ferro gradeada, que estava trancada a cadeados, parou e espiou para dentro. O lugar até que era bonito. O terreno era inclinado e repleto de árvores robustas e criptas cinzentas. Algumas - as dos mais pobres - eram simples e pintadas de cal, mas não estragavam a beleza bucólica do jardim. Havia um caminho cimentado que levava da entrada à casa do zelador nos fundos, do lado de uma improvisada capela branca e outras trilhas que seguiam entre os túmulos. Bem encostado ao muro, tanto na parte de dentro quanto na de fora, saliências largas na horizontal eram usadas para serem depositadas velas e santos, geralmente de gesso, dos visitantes que ali passavam. Algumas das velas ainda estavam acesas, como bem notou Jailton. Segurando as grades do portão, e com o rosto apoiado entre elas como se quisesse atravessá-las, pensou se iria mesmo entrar ou não quando foi surpreendido por um latido estridente. Graças ao susto, escapou de uma dolorosa mordida do vira-lata preto e branco que latia rente ao portão do lado de dentro. Maldito cão! Droga! Coveiro? Cachorros? O miserável cão era ridiculamente pequeno, mas parecia bravo como uma jaguatirica. Quem seria seu dono? - Pois não? – Perguntou um homem mal encarado e barbudo vestindo trapos pouco apresentáveis. Dirigia-se a ele logo atrás do cachorro escandaloso e caminhava preguiçosamente. Tinha um sotaque caipira carregado e aparentava uns cinquenta anos de idade mal vividos. – Em que posso ajudá-lo? – O cachorro calou-se. -Oi! – Se recompôs Jailton. – Estou aqui para uma entrevista de emprego... - Ah, sei... – O homem o olhou de cima a baixo e deu de ombros. – Sobre a vaga de coveiro?! - Isso mesmo... – Sorriu enquanto o recém chegado destrancava o portão com uma enorme chave pesada meio a um malho repleto de outras. Suas mãos eram sujas e sua blusa azul, estava quase cinza. – Quando o vi, achei que era um ‘adervogado’ ou um agente funerário. – Escancarou as grades enquanto o cão farejava algo interessante nas calças de Jailton. – Venha, pode entrar! - Ele não morde? – Perguntou olhando assustado pro enxerido canino. - Claro que morde! – Riu o homem. – É um cachorro, se não servir nem pra morder eu o jogaria fora! Mas pode ficar tranquilo que ele só morde gente ruim! Você não é ruim, é? - Não! – Se acalmou. – Claro que não. 8
  • 9. Suzo Bianco - Então me acompanhe, por favor, vou te levar até o ‘escritório’! – Riu e coçou a cabeça quando falou a última palavra. – O senhor está muito ‘chic’ vestido deste jeito, não precisava, ainda mais nesta lua danada que está fazendo! Lua... Era um sol. SOL! Que mania besta deste povo de comparar aquele sol escaldante com a lua... Nunca viu semelhanças. - É que é bom se vestir bem para uma entrevista, sabe como é, né? - Não sei não! – Já se encaminhavam para a casinha branca. – Mas se você está dizendo, deve ser! Cara chato. Tomara que não seja seu companheiro de trabalho. O homem entendia tudo ao pé da letra e não achava graça em nada além do que ele mesmo ‘profanava’. - Posso te fazer uma pergunta? – Arriscou Jailton enquanto examinava melhor os arredores. – Quem é o senhor? O zelador atual? - Sou sim senhor! Atual e definitivo! Como é que é? Pensou sobressaltado Jailton deixando escapar um ‘uh?’. - Por que? - Porque achei que a vaga fosse justamente para zelador do cemitério... - E é! - Agora não estou entendendo mais nada. - É que, além de não dar conta sozinho... – Girou os dedos para grifar o que dizia. – Pretendo visitar minha família em Abaité. Preciso que alguém cuide do lugar pra mim por alguns dias... Não posso deixar tudo isso aqui para as moscas. - Entendo! – No fundo até tinha ficado feliz. Então aquela tortura não seria por muitos dias. – É um trabalho temporário! - Né nada! É fixo! – O homem, que não apresentara o nome até agora, parou e abriu a porta de madeira pintada desleixadamente de branco da casinha e abriu espaço para que o visitante entrasse primeiro. – Mas ficará sozinho por dez dias até eu voltar. - Dez dias? – Assustou-se Jailton parando e bloqueando a entrada do anfitrião. – Tudo isso? - Tudo isso? Eu acho é pouco pra visitar minha gente. – O homem o empurrou gentilmente para que ele mesmo pudesse entrar e apontou um sofá velho e já muito esburacado. O cachorro, que os seguia, passou rápido e pulou para um confortável canto do móvel. Já sabia a causa dos rasgos no estofado. – Não liga pra ele, é bonzinho! - Não ligo não. – Acomodou-se no mesmo sofá, enquanto o barbudo sentava numa poltrona de couro marrom à sua frente e o cachorro o encarava como se Jailton fosse a coisa mais incomum que vira em toda sua vida canina. – Então, a vaga é pra zelador... - E coveiro se precisar que seja. – O senhor estendeu a mão. – Sou Pablo e cuido daqui a 36 anos. – Jailton a apertou e disse seu próprio nome. Sentia-se constrangido como se tivesse na casa de alguém. E estava de certo modo. Não duvidaria que Pablo dormisse ali mesmo. O lugar se resumia na salinha, no banheiro pequeno e mal tratado e só. Só mesmo. – O lugar não é lá aquelas coisas... – Comentou, notando o olhar crítico do candidato a vaga. – Mas dá pro gasto. Aqui tem um radinho! – Que descansava encima da única mesa da sala que ficava perto da porta. – E lá dentro... – Apontou pra cozinha. – Tem uma geladeira pequena e um fogão de duas bocas caso precise esquentar a marmita. As ferramentas e o resto do material ficam num quartinho lá fora perto da capela... 9
  • 10. Jaílton O Coveiro Covarde - Certo, certo... – Coçou a nuca antes de continuar. Não sabia bem por onde começar... – Mas antes tenho que ter certeza se vou trabalhar aqui... - Se depender de mim, você já está contratado! – Riu ele. – Não sou eu quem vai pagá-lo, é a prefeitura. Você vai ter que ir lá todo final de mês e pegar seu salário. E preciso de ajuda aqui, não consigo mais dar conta de tudo sozinho... - E quanto vou receber? - Um salário ué! - Um salário? – Esperava mais. - Não tá bom? – Levantou os braços querendo dizer, ‘seja razoável, o que esperava?’ E riu. - Está sim! – Emitiu isto quase como um bufar. Fez uma careta, compreensível e suspirou. – Quando começo? - Quando pode começar? - Amanhã! - Ótimo. Mas vou precisar de você só segunda feira bem de manhãzinha... - Segunda! – Se levantou, ainda era sexta. – Tudo bem, ‘vou estar’ aqui, então... ‘Umas oito horas está bom’? - Sete, o mais tardar! – Também se levantou. – Preciso te passar todos os procedimentos... Nada muito difícil de entender, mas será bom pra você se acostumar! - Entendo! – Sorriu, começava a se acostumar com a ideia. – Vai ser de que horas a que horas? - Vai começar umas sete e meia, mais ou menos, até umas doze horas... Ufa!! Moleza... Pensou sem conter um riso diabólico. - Preciso que fique até bem de noitinha por causa da minha ‘saída’... - De noitinha? Mas não é só até o meio dia? - Doze horas da noite, meu filho! – Emburrou-se o barbudo mal encarado. – Não quer trabalhar não, é? Bosta! Quase gritou isso, mas moveu os lábios. Bosta, bosta e mais bosta. Moraria lá, praticamente, num cemitério daqui por diante. Bosta! - Escuta aqui meu filho... – Começou Pablo o guiando para fora da ‘moradia’. – Se você não quiser, não precisa ficar avexado, ta? Pode falar... Mas você ficará aqui o dia inteiro só até eu voltar... – Bateu em seus ombros magros. – Você vai ver... Não é tão ruim assim. Ninguém vai te amolar o dia inteiro e se começar cedo, antes da hora do almoço já vai ter acabado todas suas obrigações... Na prática, a prefeitura vai te pagar só pra coçar o saco o dia intero, isso não é bom? - Até que é sim. – Esboçou um sorriso tímido. – Quando você voltar, eu ou o senhor vai ficar com o turno da noite? - Eu! - Que bom...! – Desabafou. – Não estou muito acostumado com cemitérios. Acho que é a primeira vez que piso num depois da morte de meu pai. - Não gosta de cemitério? – Alisou o queixo barbudo e crespo e parou prendendo mais a atenção de sua companhia. Até Tonico, o cachorro, parecia entendê-lo. – Tem medo dos enterrados é? - Não. Não é isso. – Mentiu descaradamente. – Só um receiozinho de nada! – Assinalou a palavra com o polegar e o indicador quase encostados. – Nunca se sabe. - Se nunca se sabe... O que o senhor sabe que lhe mete medo? 10
  • 11. Suzo Bianco Mais uma daquelas e ele falaria umas boas e poucas para Pablo. - Não sei nada... – Tentou justificar-se. - Então não há nada a temer! – Definiu abruptamente o zelador. O pior que o safado tinha razão. Medo de quê? Medo de quem? Medo nenhum! Só um receiozinho... 3. No fim de semana Jailton passou as tardes se sentindo melhor. A idéia de se zelador- coveiro do cemitério da cidade ficou mais aceitável. Reparava nos turistas da pousada, nas meninas que ajudavam dona Joana na cozinha e no senhor José arrumando a perna de uma poltrona num dos quartos vagos e pensou: Ora, todos estão felizes por serem úteis de alguma forma. Por quê não eu? Pensou sobre toda sua vida de intempéries e dificuldades ocasionais. Sobre os bicos em construções que há muito tempo não fazia. A cidade simplesmente parou de crescer. E o quê faria se não fosse o trabalho no cemitério...? Agora isso era passado, já se sentia um homem importante mesmo antes de começar. Seria alguém, afinal das contas, nada muito ‘glamoroso’, mas bem vindo de qualquer forma. Seria um trabalhador fixo e honesto como a maioria e poderia olhar a todos de cabeça erguida, como a muito não fazia. Chega de ‘serrar’ cigarros e pedir dinheiro emprestado. Pagaria ele mesmo. Um dia quente e agradável e cercado por amigos. Sim senhor, ele estava feliz. Nem conseguia se lembrar do por quê dos receios de trabalhar no cemitério. Como foi bobo. Ainda bem que lutou contra seus instintos mais preguiçosos e pegou o ‘trampo’. Seu José, um homem magro de cabelos brancos pela idade - usava seu inseparável boné vermelho e uma camisa velha listrada – trabalhava despreocupado. Agora, vendo- o ali varrendo a sala com a vassoura de palha, sentiu-se tão importante quanto ele. Poderiam respeitá-lo agora. Não veria mais aquele olhar destinado a ele que dizia: ‘Você é gente fina Jailton, pena que é vagabundo...’ Lembrou-se que fora o velhinho que dera a dica da vaga de zelador para dona Jô. Aproximou-se, iria agradecer ele mesmo... - Boa tarde seu José! – Era tarde de domingo. O velho o espiou surpreso. Vendo quem era abriu um sorriso amistoso: - Boa tarde Jailton! - Quero lhe agradecer a indicação para a vaga no cemitério... - Ah! – Parou de varrer. – Não precisa agradecer a mim não, homem. Só comentei o assunto com a dona Jô, ela que teve a ideia de lhe indicar! - Mesmo assim! - Não há o que me agradecer! Pelo jeito você conseguiu a vaga né? - Consegui sim, começo segunda feira bem cedinho! - Que bom. Que bom mesmo... Você vai ver. Eu mesmo já trabalhei lá uns anos atrás... Foi bem... – Pensou por um instante. – Bem diferente! – Risadinhas. 11
  • 12. Jaílton O Coveiro Covarde - Diferente como? – Xiii! Aí tinha... - Nada de mais se você não for um cagão! - Como assim seu José? – Seu medo dava sinais de progresso. Isso era mau... Tinha que falar com o velho mesmo? - Já te disse. Nada demais. De qualquer forma, não me arrependo de nada. Foi bom trabalhar lá, tranquilo e sossegado. Só saí porque já tava velho demais pra coisa... - Mas você disse que foi diferente... Diferente do quê? E por quê? Diz aí, me deixou preocupado... - Não precisa ficar preocupado. Você vai dar conta... – Voltou a varrer despreocupado. Não queria prolongar o assunto, isto estava claro. - Conta do quê homem? - Jailton! – Parou e o encarou. – Tem coisas neste mundo que agente simplesmente não entende! E vai por mim garoto. É melhor agente nem saber, fica mais fácil pra lidar com a coisa, entende? - Não! - Então esqueça o que falei. Estou velho e nem sei mais o que falo! - Eu, no começo estava um pouco preocupado em trabalhar lá. Depois consegui aceitar a ideia. Sabia que não seria nada demais... – Resolveu se abrir, não podia deixar aquilo assim. - Mas agora que o senhor falou estas coisas, já não tenho tanta certeza... Se não é nada demais... Por que não me fala o que é? José parou mais uma vez de varrer, e desta fez fitou Jailton nos olhos sem sorrir. - Quer mesmo saber? - Quero! - De verdade? Não vai contar pra ninguém que lhe disse isso, vai? - Não senhor... Pode falar! - Tem certeza? Porque jurei que não ia contar pra ninguém... Se você der nos bico, vou te capar Jailton. Juro! Pode falar seu José! – Riu ele. O velho não guardava segredos... Era só onda. Tinha certeza disso. – Juro que não conto pra ninguém. - Tá bom... – Olhou para todos os lados. Parou de falar no momento em que um turista atravessava a sala. Continuou. – Foi numa madrugada em que passei a noite lá... Se quer um conselho Jailton. Nunca passe a noite lá, se você tiver medo destas coisas... - Que coisas? – Sentou numa poltrona enquanto o velho fingia que varria os cantos. - Dos mortos! – Falou dando à frase a maior entonação que conseguia. Jailton não percebeu, mas seus olhos já estavam estalados. Impressionava-se facilmente, ainda mais naquelas condições, iria trabalhar no palco do causo do velho. Estava lascado! - Dos mortos Jailton! – O velho o encarava segurando o cabo da vassoura com força. – Das almas penadas, dos incansáveis, dos preguiçosos do além, dos... - Tá, tá, tá! Já entendi! – Receios... - Pois bem. Foi de madrugada quando eu cuidada do lugar que eu o vi! - Viu o que? - Ele! – Mais entonações exageradas. - Ele quem? - Deixa eu contar que você vai saber! Não interrompa! - Tá bem. 12
  • 13. Suzo Bianco - Eu estava caminhando despreocupado com Tonico, o cachorro do zelador, pelos caminhos que vão entre os túmulos. Só queria esticar as pernas até o sono voltar. Não conseguia dormir de jeito nenhum naquele dia... “Caminhava lentamente debaixo daquele céu lindo. Tinha muita estrela e a lua brilhava como um sol. Bonita demais, demais... Uma coruja piava lá no fundo, perto da capela e os grilos cantavam, cantavam... Depois parei, tirei a rolha da garrafa de cachaça que levava comigo e dei uns goles. Como é bom aquela danada... Sentei num cantinho perto da ameixeira mais encima no cemitério, sabe? E fiquei ali ao lado de Tonico vendo as casas vizinhas e os túmulos à minha frente que seguiam até lá embaixo. Eu gostava dali. Era bom. Calmo. E dava pra ver tudo sem precisar ficar andando de um lado pro outro. Foi nesta hora mesmo que ouvi alguma coisa... ‘Joséééééé!’ Falava a voz. Eu ouvi nitidamente. Mas no começo achei que fosse efeito na malvada. Tonico nem se moveu. Daí a pouco ouvi de novo... ‘Joséééééé!’ Daquela vez não tinha como negar. Alguém estava me chamando. Até mesmo o cachorro ouviu, porque ficou com as orelhas em pé. Levantou-se e deu três latidos. A voz parecia de uma velha carcomida. Vou te falar uma coisa, você pode nem acreditar, mas não fiquei com medo nenhum. Na hora achei que alguém estava de brincadeira comigo. ‘Me alevantei, enchi ‘os pulmão’... E gritei... Quem é que tá aí? Ninguém me respondeu. E gritei de novo e bem mais alto. Nem liguei se ia acordar alguém... ‘Quem é que tá me chamando aí?’ O grito foi tão alto e poderoso que até desafinei, e nem era de medo não... Mas se a pessoa tava querendo me assustar, não conseguiu, estava conseguindo é me deixar nervoso. E quando eu fico nervoso... Sai de baixo que é chumbo quente! ‘Josééééé, Josééééé, pára de gritar comigo Joséééé...’ Pronto. Foi nesta hora que comecei a ficar com um cadim de medo! Mas não muito... A voz estava alta e vinha de mais abaixo. De dentro do cemitério mesmo. Tonico já se tremia inteirinho. “Aquele cagão, só mete medo em gente mais cagona que ele.” A cena do cachorro lhe latindo no cemitério, quando foi fazer a entrevista, passou-lhe pela cabeça, mas não iria dizer nada ao velho. “Mesmo sem saber o que era, eu andei até o meio das árvores mais a baixo e comecei a procurar de onde vinha a voz. Se eu pegasse o fulano naquela hora, ia lhe encher de cascudos. De repente uma coisa passou pela minha cabeça fazendo um barulho esquisito. Tonico danou-se a latir nesta hora. Tomei um susto danado, mas era só a coruja, aquela sem vergonha. ‘Você está aí Joséééééé...?’ A voz estava mais clara ali. Parecia vim bem do outro lado das criptas que me separavam do outro caminho. Seja quem for, pensei, vou dá-lhe uma garrafada na cabeça para nunca mais tentar dar sustos nos outros. Não que eu tivesse com medo – Só um receio, pensou Jailton. – mas não sabia quem era. Era melhor tomar cuidado. Dei a volta e subi a trilha até onde achei ter ouvido o gemido. Tonico já estava lá e latia sem parar para um canto bem escuro duma vala aberta entre dois túmulos. Aproximei-me lentamente já com a garrafa na mão. Dei uns goles só pra esquentar... Era só um golpe na coisa e pronto. 13
  • 14. Jaílton O Coveiro Covarde Mas quando cheguei lá, uma voz veio bem de frente, saindo da vala aberta. Tonico latia como se estivesse vendo um fantasma. “Enchi-me de coragem e cheguei bem pertinho do buraco...” - ‘Crauuuuummmm!’ – Gritou José para Jailton tentando assustá-lo. – Um gato enorme pulou pra fora da vala e sumiu de vista. Nem olhou pra trás! Ficou com tanto medo de mim que nunca mais o vi naquele cemitério... Tenho certeza de que as vozes eram ‘só’ coisa da minha cabeça, porque eu estava mamado... Jailton estava de olhos arregalados, mas no final riu daquela besteira toda. Que velho safado, o enrolara o tempo todo com aquela lorota... - Nossa! Seu José... Por um momento estava quase acreditando no senhor! –Riu despreocupado. – Chegou a me assustar. - E quem disse que é mentira? – Parecia indignado com seu ouvinte. – Não é mentira não filho. É a mais pura verdade! – Cruzou os dedos diante do rosto e os beijou três vezes. - Se está dizendo, deve ser... – Se levantou do sofá. – Mas o senhor me disse que era sobre mortos, então... - Era o gato! – Foi sucinto. – O gato era o morto! - Como é? – O velho estava insistindo. Puts. Já estava claro que o velhinho queria apenas assustá-lo. – O gato? - É! O gato era o morto... Não entendeu? – Apontou o cabo da vassoura pra ele. – Aquele gato estava enterrado ali Jailton. Eu não te disse, mas naquele cemitério, a dona dele tinha enterrado o bicho junto ao túmulo do marido. A mulher era doida, mas tinha bastante dinheiro antes de morrer, então pagou a gente pra enterrar a coisinha ali... Fazer o que? Não nos custava nada... - Você enterrou um gato no cemitério? – Que mentira. Pensou. – Não é proibido isso? - Que eu saiba não... Só não é comum. Enterrei sim, e daí? Ganhei pra isso e ninguém se incomodou. - Nossa... Você tem certeza que o gato estava morto quando o enterrou? - Absoluta certeza. Mortinho da Silva. Enterrei numa vala rasa, mas mesmo se estivesse vivo, não tinha como sair dali não. - Sei lá heim seu José. – Tentou ser simpático. – Não acredito muito nisso não. - Ah é? Não acredita em mim? - Me desculpa... Mas como poderia? Gato morto, e falando seu nome? - Era a dona... - Dona? – Quanto mais se explica maior é a mentira. Como dizia seu pai. - A dona do gato que estava me chamando. Tenho certeza, e quando cheguei perto, o gato apareceu e me deu aquele susto. Ela foi enterrada uma semana depois do bicho, bem ao lado. - Tá bom. – Riu e deu de ombros. – Bem... Tenho que ir. Vou dar um passeio e aproveitar a folga. - Pode ir... – O velho o encarou sério. – Por mais que possa parecer mentira isso. Saiba que não é. Mas se quiser ter certeza, é só passar uma noite lá e você vai ver... - Não pretendo passar nenhuma noite lá... - Ué! Ta com medo? – Provocou José rindo dele. - Nenhum. Mas prefiro dormir em casa. 14
  • 15. Suzo Bianco - Se você está dizendo... – Deixou claro que não acreditava na suposta coragem de Jailton. Ora, havia contado tudo aquilo pra ele porque sabia que o rapaz se cagava de medo de cemitérios. - E estou. Bem, boa tarde, seu José. – Se despediu. - Boa tarde Jailton. – Desistiu de prosseguir a conversa. Afinal das contas, ele é quem queria ficar sozinho. Mas aproveitou a chance de brincar um pouco com o medo do homem... Sabia que tinha dado certo. Até que Jailton disfarçou bem, mas geralmente as pessoas quando escutam aquela estória, não ficam com os olhos tão arregalados como ele ficou. – Não vá ter pesadelos eim? - Pode deixar! – Devolveu o aceno e se retirou. Teria um longo dia amanhã. Aquela estória de José lhe impressionou mais do que queria admitir. O velho estava lhe assustando de graça. Que sacana. Mal começou a trabalhar no lugar e já tinha alguém querendo ‘sacaneá-lo’. Que seja. Era um trabalhador agora e nada neste mundo o faria mudar de ideia, de novo. 4. Em fim o grande dia chegou. Jailton levantou bem cedinho e se dirigiu ao banheiro segurando num dos braços a roupa que iria vestir. O sol nem tinha aparecido ainda, mas o galo de algum vizinho já cantava anunciando a chegada da nova manhã. O ar ainda estava frio, mesmo assim tirou a roupa e entrou de baixo do chuveiro. A água estava fria. Quase perdeu o ar... Bosta. Mas era melhor do que nada, fedendo a suor é que não podia ficar. Logo se acostumou e relaxou os músculos. Pensava na estória do senhor José. Até onde aquilo tudo era verdade? Achava que o velho não teria tanta imaginação, a ponto de criar ele sozinho, toda aquela lorota. Se é que era mentira... Queria não acreditar, contudo... Arrumou-se. Vestiu sua camisa vermelha, suas calças jeans surradas e seus sapatos velhos. Estava bom assim. Não passaria frio depois que a manhã partisse. Depois de andar por uns quarenta minutos vendo o sol aparecer devagarzinho além das montanhas chegou ao seu destino. O cemitério parecia vazio... Abandonado. Logo Tonico se aproximou correndo e latindo como se nunca tivesse visto Jailton em sua vida. Cachorros. Esperou por uns cinco minutos depois de sua primeira salva de palmas. A porta da casinha branca se abriu, como esperava, e de lá saiu Pablo cambaleando um pouco. Tinha acabado de acordar, com certeza. - Bom dia rapaz! – Cumprimentou ele de longe acenando avidamente. Que energia tinha o homem. Tonico, assim que notou a presença do dono, correu para ele saltitante numa saudade invejável. - Bom dia! – Respondeu ele mais timidamente. Esticou os braços e bocejou. Estava morrendo de sono. Nos últimos meses não havia precisado se levantar tão cedo. Tinha se desacostumado. – Como vai? 15
  • 16. Jaílton O Coveiro Covarde - Bem, graças a Deus! – Disse Pablo se aproximando lentamente e ignorando Tonico na medida do possível. – Dormiu bem? Terá um longo dia pela frente. - Dormi sim! – Sorriu enquanto o barbudo abria o portão de ferro. – Só esqueci de trazer comida, mas acho que vou poder saí pra comprar alguma coisinha né? - Não vai não. Não vai precisar... Separei algumas coisas pra você na cozinha. - Obrigado então. – Se deram as mãos. - Vem! Entra... – Pablo lhe deu as costas e voltou para a casa do zelador seguido por ele. – Vamos tomar um café primeiro. Assim que entrou, Jailton reparou numa mala de couro, velha e entupida, também sentiu o agradável cheiro incomparável do café caseiro e simples. - Vai viajar hoje? – Perguntou a Pablo que o olhou incrédulo. - Claro! Não te contei? - Contou, mas achei que seria amanhã... - Não, não. – Estendeu um copo de alumínio cheio de café quente para Jailton. – Tome! Não, vou hoje mesmo e será daqui a pouco... Comprei as passagens ontem e o ônibus vai partir umas oito horas mais ou menos! - Nossa! – Jailton tomou um gole e se sentou no sofá velho fazendo companhia a Tonico. – Será que vou dar conta de tudo tão rápido? - Vai sim. Claro que vai. – Pablo se retirou para cozinha e logo voltou com seu próprio copo, de plástico, cheio até a boca. Andava devagar para não derramar o conteúdo, depois de descansá-lo encima da mezinha deu sua atenção ao rapaz. – Você sabe varrer? - Sei! – Respondeu a isso fazendo uma careta. – Claro que sei. - Bom, bom. Excelente. – Riu Pablo. – Sabe trancar portas com cadeados? - Lógico que sei... Que pergunta... - Sabe dar comida pra cachorro e andar por um lugar sem dormir? - Aonde você quer chegar? - Sabe ou não sabe? - É obvio que sei todas estas coisas, quem não saberia? – Estava quase irritado. Ele o estava provocando por quê? - Então Jailson... - JailTON! – Corrigiu. Odiava quando erravam seu nome. - Jailton! É o que quero lhe dizer. Quem não sabe fazer estas coisas? Será o que você terá de fazer aqui... Além de zelar pelo lugar. Óbvio! Não deixar ninguém entrar sem se identificar e nem roubarem os santos dos túmulos... Consegue fazer isso? - Sim... - É fácil não é? Eu disse que seria moleza... – Tomou mais um pouco da bebida quente e sorriu simpaticamente. – Escute. Não se preocupe. Tudo vai dar certo... O pior que pode lhe acontecer é flagrar algum casalzinho mais assanhado por ai e ter que enxotá- los. Cemitério não é motel... Entendeu? - Entendi! Pode deixar... - Mas isso não significa que você não possa trazer uma namorada pra cá, ta? - Ta bem... – Riu Jailton. Já estava bem à vontade e começando a gostar de Pablo. Parecia um homem honesto e sincero. - Você tem namorada Jailton? - Tenho nada! – Voltou a rir sem jeito. – Quem iria me querer? – Queria confete. 16
  • 17. Suzo Bianco - Sei lá! – Riu Pablo timidamente. – Mas pra cada panela... -...há uma tampa! Tô sabendo. – Completou a frase parecendo um pouco descontente. - Que seja! Se arranjar uma, não se avexe... Pode trazer, é seu direito como homem e responsável por aqui, ta bom? - Ta bom! Pablo suspirou, sorveu o resto do café e se levantou. Pegou sua mala e se despediu: - Bem... Tenho que ir, já são sete horas e não posso correr o risco de perder o ônibus. – Estendeu a mão para Jailton que a pegou sorridente. – Tchau pra você também companheiro. – Se dirigia ao cachorro que o olhava com ternura. De alguma maneira sabia o que estava acontecendo ali. – Tchau pros dois... Pablo saiu, desta vez andando rápido, e acenou de fora do cemitério. Parou, olhou para o campo de enterrados por um longo tempo... De lá gritou: - Adeus aos dois! Jailton se arrepiou com aquela despedida. Adeus? Tinha algo errado ali... Não sabia o que era. Mas que tinha, isso tinha... Tonico ficou no portão latindo até perder Pablo de vista, e mesmo depois, uivou tristemente por meia hora. Quando se cansou, deitou escorado no portão e ali ficou até a noite cair. A noite... 5. Um belo dia era aquele. Nuvens de algodão branco e fofo flutuavam indiferentes meio ao céu azul. O sol não castigava tanto quanto imaginou que aconteceria. Uma brisa boa acariciava as árvores do cemitério e arrancava as folhas menos resistentes e mais velhas. Tonico estava encostado no portão despreocupado. Suspirava de solidão. Aquele olhar canino era comovente apesar de tudo. Jailton varria sem pressa as folhas amarelas e secas que se acumulavam ao redor das criptas e nos escorredores sujos. Tinha todo o dia pela frente. Estava feliz de certo modo. O trabalho enobrece o homem de fato. Seja qual trabalho for, se era honesto, valia a pena. Mas uma coisa era inegável. O clima dali era diferente... Diferente de qualquer outro lugar numa cidade. Diferente de uma igreja, de um hospital, de uma praça, de uma vila... Ali, sabia-se e sentia-se a tristeza. Não a melancolia afetada de pessoas mesquinhas e nada altruístas que caminhavam pelas ruas perdidas em seus pensamentos problemáticos. Não. Ali existia a verdadeira melancolia. Num cemitério, pessoas mais sensíveis podiam sentir o ar pesado e repleto de sentimentos sinceros daqueles que frequentavam o jardim. Senhoras viúvas que rezavam pelos maridos que se foram. Filhos que saudavam as boas lembranças dos pais que já tinham ido para o céu. Mulheres que se entristeciam ao se lembrarem de seus irmãos falecidos... A tristeza e a saudade, daqueles que frequentavam de vez em quando o lugar, pelos enterrados era o que ficava e temperava o ar dali. Não era algo a se considerar ruim. Era um choro insistente, mas respeitável. Jailton se lembrou... Nunca esquecera de verdade. 17
  • 18. Jaílton O Coveiro Covarde Por mais que uma pessoa fosse insensível, ninguém ficaria indiferente caminhando entre os túmulos de anônimos e desconhecidos que descansavam para sempre no subsolo. Ninguém. Todos tinham aquela feição séria e respeitosa. Pelo menos na maioria das vezes. Até aqueles que tentavam sorrir e conversar normalmente sentiam a coisa ao redor deles. Não era possível ignorá-la. Era como um pagão numa catedral, por mais que não seguisse os caminhos de Jesus, ou confiasse em Deus, sabia que algo estava presente ali. E era este algo que verdadeiramente zelava o cemitério. Até mesmo, principalmente, Jailton, sendo uma pessoa simples, era vulnerável a estas sensações. De início, logo quando começou a varrer o primeiro monte de folhas, ele sentiu a presença onipotente que flutuava ao redor. Não era uma energia má, nem boa, apenas sincera e paterna. Como um enorme lobo assassino cuidando da cria, como um pássaro zelando pelos filhotinhos no ninho. Parecia perigoso, mas dava a sensação de proteção. “Menos mau...” Ele varria, parava por um momento e olhava ao seu redor. Pai... Tentava se acostumar com a paisagem dali. No seu subconsciente ele sabia. O cemitério era como um tesouro desprotegido. Um lugar desamparado como um cão sem seu dono. Um dono que nunca mais iria voltar, pois estava morto. Morto e distante dali. O que lhe dava forças eram seus sonhos, e a esperança de um dia revê-lo. Como Tonico... Jailton observou o cão ali. Parado. Deitado sobre as patas cruzadas e encarando a rua na esperança de rever Pablo a qualquer momento. Pensou em chamá-lo na hora, mas para que? Como se ampara um cachorro? Como se faz isso? Deixa pra lá! Pensou ele. Depois lhe dou comida... No fim de semana, principalmente depois de ouvir aquela estória boba do senhor José, ele quase voltara atrás em sua decisão de trabalhar ali. Mas agora, isso lhe parecia um absurdo. Algo... Algo estava mesmo querendo que ele ficasse. Que ele cuidasse do lugar. Era difícil explicar aquela sensação. Mas era legítima. Também era quase impossível não relacionar o lugar a morte do pai. Senhor Damaceno. O velho e bom pedreiro que o guiou a vida inteira. O mesmo homem que perdera a esposa e o caçula quando a mulher tentava dar a luz ao segundo filho. Os dois morreram no parto. Apenas ele e Jailton ficaram no mundo para passar fome. Não teve escolha e foi embora para o sul. Para São Paulo. Na cidade grande não foi muito diferente do sertão baiano. Quase morreram de frio e fome nas ruas, até que souberam por um amigo de rua que estavam precisando de pedreiros no interior. Pedro, o homem dos gatos... Vieram a pé. A viagem foi dura, mas conseguiram. Deus, como foi duro aquilo tudo. Damaceno arranjou um canto num barraco onde conseguiu trabalho e ali ficou. Depois de colocar o filho na escola, deu um jeito de levar a vida com trabalhos em construções de novas casas que surgiam. Até que havia sido uma época promissora, lembrou Jailton. Foi a melhor fase de sua vida com o pai. Depois conseguiu alugar uma casa bem simples onde moraram por um bom tempo. Jailton cresceu e terminou o colegial. Depois de sair da escola nunca conseguiu arranjar um emprego fixo. Então se virou como ajudante de pedreiro. Ajudante de Damaceno. Mas o destino foi implacável e levou seu pai usando a desculpa de taquicardia. 18
  • 19. Suzo Bianco Seu pai era um homem forte e saudável. Morrer decorrente de problemas no coração foi duro de engolir. Contudo, o que ele, um reles mortal, poderia fazer? Nada. E foi o que fez até hoje. Nada... Com o tempo, os bicos foram definhando. Logo se viu sem dinheiro ou chances de arranjar algum. Passou cinco meses morando de favor, na prática, na pousada de dona Joana. A velha e simpática senhora que o ‘acolhera’ gentilmente. Ela e seu pai eram amigos. Jailton desconfiava que eram até mais do que isso, mas nunca tirou a limpo. Não necessitava saber destas coisas... Seu pai se fora e não voltaria nunca mais. Nunca mais. Por pura obra do destino, Damaceno foi enterrado naquele mesmo cemitério. No mesmo jardim que ele varria agora. Evitou desde o começo ver a jazida de seu pai. Fora lá apenas uma vez. Quando teve de enterrá-lo. A tristeza e o desespero que sentiu foram tão fortes que jurou que nunca mais iria voltar ali. Não pelo seu pai. Mas por ele mesmo. Não se lembrava de quem, mas alguém uma vez lhe dissera que era sempre melhor esquecer os mortos, caso contrário, eles talvez não conseguissem chegar ao céu. O sentimento de lamentações dos que ficavam serviam como âncora para eles. Não era bom chorar os mortos. Mas ele chorou mesmo assim. Por muito tempo. Não diante do túmulo, não no cemitério, mas em seu coração. Isso estava enraizado nele até hoje. Nunca esqueceria seu pai. Nunca. Era a única coisa de valor que possuía, e Deus lhe tomara implacavelmente. Sem dó. Sem misericórdia. Desde a morte de seu pai, nunca mais pisou numa igreja. Não que passasse a odiar Deus, mas o ignorava. Queria mostrar ao criador o quanto estava magoado pelas suas ações em sua vida. Levara-lhe a mãe, o irmão que nem chegou a conhecer e seu pai. Seu amado pai. E quase levou a ele mesmo junto de tanta tristeza. Quase. Mas Jailton aguentou firme... Bem, nem tão firme assim. Passou a fumar e a beber. O cemitério parecia ler sua mente e alma. As árvores balançavam os galhos como se dissesse: ‘Esqueça isso filho, olhe como nós dançamos bem, mesmo sem podermos nos mover!’ Que ideia tola. Como era tolo... Seus sonhos anestesiavam a dura e cruel realidade. Mas não tapavam o sol com eficiência... Alguém espirrou. Olhou rapidamente na direção do som e notou que Tonico foi o responsável. Cachorros. Continuou a varrer até a jazida evitada até hoje. Lá estava ela. Uma cruz de pedra pintada de branco por cima de uma chapa de cimento suja de terra. Algum mato já crescia audaciosamente entre as saliências do túmulo. Uma pequena chapa de mármore negro identificava o falecido com uma pequena fotografia preto e branco protegida por um vidrinho elíptico emoldurado: ‘Aqui descansa em paz o amado pai e querido companheiro José Fransisco Damaceno. Nascido em: 1947, e embaixo; Falecido em: 2002.’ E o inevitável ocorreu. Sua garganta se engomou. Seu queixo tremeu. Seus olhos nublaram. 19
  • 20. Jaílton O Coveiro Covarde - Pai! – Murmurou para o vento. Encostou a vassoura no chão. Ajoelhou-se diante da cruz. – Pai! – Fechou os olhos e chorou com as mãos cruzadas sob a face trêmula. O dia estava lindo, mas seu coração ficou pesado. - Oh pai! – Falou olhando para a imagem do pai na fotografia. Parecia tão vivo ali. Um senhor negro de olhos brilhantes. – Que saudade do senhor! Jailton ainda ficou ali por um bom tempo perdido em seus devaneios. Desabafou toda sua vida para o morto. Todas as suas angústias e medos. Tudo. Como se de alguma maneira seu pai pudesse ajudá-lo do além túmulo. Sonhos... O canto desesperado dos passarinhos ali perto lhe despertou. Tinha que trabalhar. Agora teria todo o tempo do mundo para visitar seu falecido pai. Como pôde ter ficado tanto tempo sem vê-lo? Levantou-se e pegou a vassoura. O céu ainda estava claro, mas com menos nuvens. O sol brilhava bem acima de sua cabeça. Encarou o astro apertando a vista. ‘Onde será que o senhor está?’ Pensou. Alguns pombos pousaram nas jazidas à frente e iniciaram uma caçada inútil por comida. Ali não havia o que comer, além dos defuntos. Apenas os vermes se satisfaziam... Apenas os vermes se alimentam dos mortos. Caminhou de volta para o quartinho de ferramentas depois de recolher as folhas secas e velhas que estavam espalhadas pelo cemitério. Não foi tão duro assim. Era como cuidar de casa e ser pago para isso. O portão estava destrancado caso alguém quisesse visitar algum parente. Mas ninguém apareceu. Jailton separou a comida de Tonico e tentou chamá-lo para comer, em vão. O cão estava sem fome. Depois entrou ele mesmo na casa do zelador e procurou os mantimentos que Pablo lhe disse. Havia uma panela na geladeira contendo arroz, mais três potes com feijão e mistura. Esquentou tudo usando uma única panela no fogão. Um mexido lhe cairia bem, tinha uma aparência horrível, mas era saboroso. Arroz, feijão, farinha, ovo e carne. Estava ótimo. Foi pra sala com a panela de alumínio cheia. Amparava-a com a mão esquerda coberta por um pano de algodão bordado e com a outra segurava a colher. Sentou-se na poltrona de Pablo e ligou o rádio. Vida mansa era o que sempre sonhara. As coisas estavam indo bem. Ainda se sentia um pouco triste depois de rever o túmulo do pai, mas sabia que logo isso passaria. Pelo menos esperava que passasse. Após comer tudo, estava faminto, resolveu dar uma cochilada. Seus músculos estavam cansados e ele mesmo não parava de bocejar. Acordou mais cedo do que estava acostumado. Fumou um cigarro, deixou a panela vazia de lado e relaxou. Logo estava dormindo... 6. 20
  • 21. Suzo Bianco Tonico se cansou de esperar. Seu estômago estava roncando. O homem novo tinha sumido e já estava anoitecendo. Estava sozinho. Sozinho... Levantou-se rapidamente, sentou-se e coçou alguma coisa ‘coçante’ atrás da orelha. Gemeu de alívio. Finalmente tomou seu rumo. Fome. Fome danada... Andou até o canto da capela, bem ao lado da casa do homem-de-sempre e encontrou o prato de metal. Tinha comida ali. Bom. Muito bom mesmo. Balançou o rabo e enfiou o focinho avidamente no ‘rango’. Nada de ração pra ele, não senhor. Pra ele, Tonico, era só comida de verdade. Tinha arroz, velho, feijão, velho e uns generosos pedaços de osso de galinha, morta. Quando tinha sorte vinha um pouco do músculo e umas tirinhas esquecidas de carne. Contudo, não teve sorte daquela vez. Era só osso e tutano. Já estava bom, essa era a verdade. O homem novo devia ter colocado pra ele. Mas onde ele devia estar? Depois de limpar o prato e desaparecer com os ossos pequenos da falecida galinha, Tonico resolveu procurar o cara. Aquele escurinho e magro rapaz. Sentia cheiro de medo nele. Daquele tamanho e era medroso. Caramba! Será que estaria bem nas mãos dele? Deu uma corridinha esperançosa até a casa do homem-de-sempre e encontrou a porta aberta. Mais cheiro de comida. Lá estava seu homem. Sentado na poltrona do seu dono. Dormindo. Menos mal, nem ligava... Queria achar a fonte daquele cheiro de arroz-feijão-ovo-carne maravilhoso. Se tivesse sorte, ainda houvesse alguma coisa lá ainda esperando para ser devorada. Farejou e farejou até que encontrou. Encima da mesa. Hmmm... Dentro da coisa de colocar comida. Olhou de soslaio para o escurinho. Nada. Nem sinal de animação. Estava baldeado. Beleza! Andando bem sorrateiro e sem tirar os olhos de Jailton, se aproximou da mesinha. Ergueu-se e equilibrou-se nas patas traseiras. Cocô! Não dava, até alcançava a beirada com as patas, mas não conseguiria nunca cair de focinho na panela. Seus olhos brilharam. Tão perto e tão longe... Olhando ao redor viu o que precisava. Um andar... Subiu com facilidade no banquinho esquecido ao lado da mesinha. Sorte grande meu rapaz. - Uaaaahh!! - Opa! O homem novo bocejou. Tonico se congelou e esperou. Esperou mais um pouco até constatar que o escurinho ainda dormia. Nenhum movimento. Ótimo, era a hora. Deu um salto habilidoso e atingiu a parte de cima da mesa, onde a panela estava desprotegida de seu predador. Espiou mais uma vez o homem. Sabia que era dele, seja o que for que tinha na panela, era do homem. Tinha que agir rápido. Atacou o interior do objeto... Cocô! Estava vazia. Nadica de nada. 21
  • 22. Jaílton O Coveiro Covarde Tanto trabalho à toa. Desceu da mesa de uma só vez, chateado. Iria passear na cidade quieta então... E foi. Caminhando entre as jazidas que ele o viu... O gato. Era um bicho grandinho, quase do seu tamanho. Tinha os olhos enormes e atentos. De pêlo ocre e traçado por manchas mais escuras. Tinha que fazer alguma coisa. Era o seu trabalho não? Cuidar do cemitério... Aquele gato fedia. Parecia o fedor das coisas que morriam... Empinou o traseiro, abaixou a cabeça e latiu o mais alto que pôde. Mas o gato nem se moveu, apenas emitiu aquele palavrão indecifrável: Miau! Bicho idiota! Isso lhe deu mais raiva ainda. Latiu, latiu e latiu... Mas nada. O bichano ainda estava lá o encarando desdenhosamente. Era hora do plano B. O ataque mortal. Saltou para cima do cretino... Ah sim. Desta vez teve êxito em sua investida mais agressiva. O gato correu habilidosamente por cima das lápides até atingir um galho mais baixo de uma ameixeira. Era esperta a criatura. Tinha que admitir... Mas não desistiu e continuou a latir. Cai miserável, cai daí e você vai ver o que te faço... Tonico saltitava e latia: - ‘Au!’ – Cai! – Au-au! – Cai-cai! – Au-auauauauau! – Cai-caicaicaicaicaicai... - Tonico! – Gritou alguém atrás dele lhe dando um susto danado. Sua alma pulou pra fora e voltou. Seus pêlos se arrepiaram e ele esganiçou: ‘Caincaincain!’ Correu por uns dois metros sem parar pra olhar, só depois de se sentir numa distância segura parou e olhou de volta. Nada. Ninguém. Farejou o ar e não sentiu nenhum cheiro incomum. Que estranho. - Tonico? – Mais um susto. Mas desta vez foi mais corajoso e só se virou contraído, já esperando ser devorado por um monstro inimaginável. Mas era só o homem novo. – O que houve cachorro? Queria responder... Mas como? Olhou de volta, na direção das lápides onde esteve a pouco tempo latindo pro intruso peludo. Nem o gato estava mais lá. Que sacana, se aproveitou de seu deslize e fugiu. Covarde. Todos os gatos eram covardes... - Está tudo bem aqui? – Continuou Jailton olhando pra mesma direção. Até que ele não é tão burro. – Pra quem você estava latindo? Tonico o encarou e pensou: ‘Estava latindo para um intruso senhor! Ache-o...’ Andou até chegar debaixo da árvore que serviu de refúgio ao gato e constatou a ausência do inimigo. Olhou entre as criptas e valas e farejou. Nada. Só o cheiro do gato... Quem havia lhe dado aquele susto? - Vem cá garoto! – Gritou o escurinho pra ele. – Não tem nada aí, tem? Por que não vem aqui e veja por si mesmo? Latiu. - Deixe eu ver! – Ué! Ele tinha entendido seu latido? Coincidência. – O que é? Não sei o que era, mas estava aqui... Jailton chegou. Olhou pra tudo que é canto e, claro, não viu nada demais. - Seu cachorro louco! – Jailton bufou. – Não tem nada aqui. Quer me assustar é? Sendo assim, o escurinho o deixou sozinho e voltou pros fundos do cemitério. Era sempre a mesma coisa. Ninguém nunca o entendia... Cocô! 22
  • 23. Suzo Bianco 7. A noite de fato caiu e com ela veio a música noturna. Jailton já não aguentava mais coçar o saco. Sentado no sofá escutava música sertaneja e se lembrava de sua infância sofrida. Isso pelo menos o reconfortava, fazia-lhe dar valor a nova rotina. Que diferença. Abençoados sejam dona Jô, senhor José e Pablo. Pensando nele, no zelador original, se ‘incucava’. O que foi aquilo de manhã cedo? Aquele aceno seguido de um ‘Adeus’? Estranho. Tinha um mau pressentimento quanto aquilo. Será? Será que Pablo não pretendia voltar como havia dito? Tinha bons motivos pra acreditar nisso. O homem não deixou nenhum objeto pessoal pra contar a história. Nada. Só o rádio, mas até aí, o aparelho já estava velho e mal pegava as emissoras locais. Será? Se de fato não fosse retornar, era só dizer... Não iria mudar nada. Ou iria? Não sabia o que pensar. Pablo não lhe pareceu ser mentiroso ou desonesto. Pelo contrário... Que paranóia. Mesmo assim não podia ter certeza de nada... Só lhe restava esperar pra ver. Espreguiçou-se e forçou-se a caminhar. Ora, fazia parte de seu serviço, de suas obrigações como zelador do Cemitério Joaquim. Saiu e inspirou. Soltou o ar em seguida fazendo um ruído seco. Tirou o amassado maço do bolso e pegou um cigarro torto. Riscou um fósforo e acendeu o pequeno bastão envenenado. Tragou com vontade. Ao longe, Tonico que o observa atento achou ter visto um vaga-lume laranja aparecer e sumir. O cachorro correu alegre até o homem novo e se pôs ao seu lado. Estava começando a gostar dele... Jailton abaixou-se e acariciou o dorso do cão. - Como vai rapaz? – Sorriu entre uma tragada e outra. Papai do céu! Aquilo fedia mesmo... Pensou Tonico. Ajeitando a camisa vermelha pra dentro das calças iniciou a patrulha. Nossa! Pensou. Como aquele lugar era escuro de noite. Existiam apenas dois postes de luz no cemitério. Um encostado ao portão do lado de dentro e outro no fundo lá encima, rente ao muro. Na casinha branca, uma lâmpada velha, acima da porta, iluminava pouco. Nem contava. Fora isso, apenas as velas grossas no muro e na capela cintilavam nas sombras do cemitério. Aproximou-se da capela, não tinha dado muita atenção a ela desde que chegou. Era uma construção simples. Um quartinho coberto por telhas marrons e paredes brancas. Uma pequena leva de degraus de cimento levava ao seu interior onde uma imagem de gesso de Nossa Senhora de meio metro posava eternamente em sua calmaria. Aquele olhar eternizado pelo escultor causava melancolia. Algumas velas derretiam lentamente abaixo dela, no chão, onde outras imagens de santos vigiavam as rezas murmuradas 23
  • 24. Jaílton O Coveiro Covarde daqueles que ali chegavam. Mas agora, de noite, apenas Jailton absorvia o clima estranho da coisa. Foi neste momento que ele ouviu ao longe um gemido. Não teve certeza do que ouvira de inicio, mas aguçou os ouvidos. Tonico empinou as orelhas e voltou sua atenção para o fundo do cemitério. Pra o norte do jardim... Jailton se voltou praquela direção também e apertou as vistas. Estava escuro, mas seus olhos já estavam acostumados com a escuridão. Então viu algo. Alguém atravessou a trilha que levava para cima, entre os túmulos, bem perto da ameixeira. Pôde ver isso claramente. Era uma pessoa e andava despreocupada, pois não fazia barulho quando andava. Por mais que a visão do intruso tenha sido rápida, Jailton pôde notar de que se tratava de uma figura masculina. Tonico não latiu, apenas rosnou baixinho por duas vezes e olhou para o homem novo na esperança dele fazer alguma coisa. - Jaiiiiiiiltonnnn! – Alguém gemeu de lá. – Jaiiiiiiiilt...! – Era uma voz áspera que causava frio. Quando alguém conta um caso semelhante, o ouvinte nunca pode sentir, de fato, o que aquelas vozes causam. Jailton pôde confirmar isso. Os pêlos de seus braços se eriçaram como os da nuca. Seu coração ficou pesado e seus nervos irritados. Respirar era difícil e consciente. O gemido lhe causou uma paralisia instantânea. O que iria fazer agora? Deixou seu cigarro cair. Seus instintos mais profundos lhe garantiam uma coisa; seja o que for não era normal. Depois de um tempo indeterminado, se moveu. Andou lentamente até a casa do zelador a fim de encontrar uma lanterna. Tonico estava quieto lá fora. Procurou por todos os cantos, até mesmo na cozinha e não encontrou nada, teria que improvisar. Saiu e se dirigiu à capela. Abaixou-se e arrancou uma vela acesa do chão. Que Nossa Senhora e todos os santos o perdoassem, mas precisava daquilo. Seu medo voltou. O seu velho receio dos mortos regressou com força. Achou que já tivesse superado aquilo, mas estava enganado. Bastou apenas ver algo estranho para desencadear toda a irracional fobia pelo cemitério. A coincidência foi tanta que, logo ao retirar a vela da capela, o mundo ao seu redor pareceu mudar. Para pior ao seu modo. Inexplicavelmente, passou a discernir na escuridão noturna, pequenas sombras de animaizinhos esquisitos empoleirados nas árvores. Eles pareciam não se mover. Nem um pouco, apenas espiavam das trevas. Tinham olhos-de-gato, mas Jailton sabia que não eram felinos. Eram outras coisas. Mas talvez, e bem provável, que fossem apenas sua imaginação afetada pelo medo. Receio. Procurou não olhar e nem definir os vultos ali, tinha medo de conseguir. Além disso, mesmo no silêncio, escutava algo como se viesse de longe, vozes. Não, não eram vozes, reparou. Era um barulho longínquo de gralhar. Como se gralhas ensandecidas rissem de sua situação. O pior foi ver todas aquelas coisas ‘refletidas’ nos olhos de Tonico. O cachorro também parecia perceber a mudança no ambiente, pois estava parado e os pêlos de seu dorso ouriçados. Ele não latia... Mais uma vez, seja quem for, atravessou o norte do cemitério, agora da esquerda para direita. Lá nos fundos. Parecia querer ser notado... Estranha atitude. Jailton ergueu-se nos pés a fim de prolongar a visão do homem, mas não conseguiu. A visão fora bloqueada pelas lápides mais além. 24
  • 25. Suzo Bianco - Quem está ai? – Gritou ele, segurando a vela mantendo o cuidado de não se queimar. – Eu já te vi e não vai adiantar se esconder! –Tornou a gritar. Enquanto esperava a resposta, e ainda se mantinha parado perto da capela, ele pensou – pensou? – ouvir risadas sussurradas vindas das copas das árvores. Aquilo lhe gelou o sangue. Tonico, enfim, latiu. O cão já não conseguia conter seu medo calado. - Não me faça ter que ir até aí...! – Jailton não perdia a esperança de ver alguém pulando o muro para fora e fugir. Mas nada disso aconteceu, pelo contrário, viu um gato grande saltar para a murada branca do cemitério, e de lá pra dentro outra vez. Não tinha outro jeito, teria que ir até lá. E fingir ser o cara mais perverso deste mundo e enxotar o invasor responsável pelos chamados; Jaiiiiiiton... Caminhou segurando a vela ao lado do ombro, e sendo acompanhado de perto por Tonico, que farejava o chão de vez em quando, prosseguiu. Conforme caminhava, as sombras dançavam meio a luz bruxuleante de sua grossa vela. Aquilo lhe causava arrepios. Tinha na cabeça a ideia de ver uma daquelas sombras dançantes se apresentarem como o homem, de repente. A qualquer momento. Tinha que tomar cuidado. O invasor poderia estar armado de um revolver ou um facão. Nunca se sabe. Sentiu-se um idiota, nem lhe passou pela cabeça procurar alguma coisa no quartinho de ferramentas que lhe pudesse servir como arma de defesa. Tarde demais, não iria voltar logo agora, poderia perder o homem de vista ou então, ao se voltar, dar as costas ao inimigo. Isso seria perigoso. Bastante perigoso. Contudo, seu receio de que o intruso na verdade fosse um ‘morador’ do cemitério descartava qualquer possibilidade de defesa real. Como se defenderia de alguém que já tinha morrido? Não tinha como se defender. Esta era a verdade. Isso está mesmo acontecendo? Respirava com dificuldade enquanto seu coração batia com facilidade. Queria até mesmo que isso parasse, pois a criatura, ou o homem, poderia ouvir as batidas. Exageros que a mente aplicava. Mesmo sabendo disso, seu receio não diminuía. ‘Crack.’ Algo se quebrou acima dele. Meio a densa folhagem da copa da ameixeira. Isso era inegável, algo estava ali. Nos galhos escuros. Olhou pra cima e ergueu a vela com a máxima cautela já imaginando um zumbi babando sangue e o fitando ávido, louco para devorar seus miolos como naquele filme da TV. Felizmente era só um gato, do tamanho de uma jaguatirica, mas ainda sim, apenas um gatinho de rua... O felino o encarava quieto, Jailton podia ver nos seus olhos o medo que tinha dele. Deu de ombros e prosseguiu a sua caça ao invasor. Ora, o que aquele gato poderia fazer de ruim num cemitério? Tonico pensaria diferente, mas não reparou no bichano. Nem ligou, o que lhe despertava curiosidade era o fedor incomum vindo de uma lápide logo ali. Tinha alguma coisa fedorenta perto deles, e estava morta. Seu focinho era infalível. Coisa morta fora do chão... - Jailtonnnn! – Alguém o chamou meio as sombras. – Jailton meu filho... – Sussurrava a voz áspera. – Não tenha medo, só me escute, não corra e me escute... E o aspirante a coveiro tremeu. Seus olhos se arregalaram tanto que seria hilário em outra ocasião. Tonico latiu alto desta vez e não parou mais. A voz vinha da cruz branca. Vinha da direção do túmulo de Damaceno. 25
  • 26. Jaílton O Coveiro Covarde - Q-quem está ai? – Jailton gemeu. – Q-quem está me chamando? – E como sabe meu nome? Pensou na hora. Aquela voz era diferente dos primeiros gemidos de outrora. Tinha quase certeza quanto a isso. Mesmo assim estava se borrando de medo. Controlou-se usando toda sua força de vontade para não molhar as calças. - Quem e-está aí, diga logo... – Mesmo tremendo de medo, conseguia falar. Apontou a vela para aquela direção e o viu. Alguém estava sentado com as pernas cruzadas encima da chapa de cimento do túmulo de seu pai. Usava trapos como mendigo. O cachorro se calou... - Quem é você? – Não dava pra enxergar direito, mas podia distinguir a figura de um homem velho e negro. O homem segurava algum tipo de colar nas mãos que descansavam no colo. – Pode falar! Não vou te fazer nada se disser e ir embora, não pode ficar aqui este horário. – Estava mais calmo. Depois de confirmar se tratar apenas de um homem velho, seu medo e receio se extinguiu quase por completo. - Não posso lhe dizer meu nome... – Falou o velho dali, Jailton não se aproximava. Era melhor manter distância. – É a primeira lei. A segunda é que não posso sair daqui tão cedo... - Pode sim. Estou lhe dizendo... – Seja quem for, estava lhe testando. – Você vai me encrencar se eu o deixar dormir aqui. Vê se colabora e vá embora... – Quase pediu ‘por favor’, mas isso diminuiria seu respeito. - Já disse! – Falou o velho. Aquela voz era calma e... – Não posso, enquanto eu não resolver meu problema. – Pareceu raspar a garganta. – Não se preocupe, não vou lhe encrencar se você me ajudar... - Olha meu senhor... – Jailton deu um passou na direção do velho. - Não! – Protestou o homem. – Fique aí. Não chegue mais perto... Por favor, só me escute... – Pareceu reconsiderar. – Se o fizer, logo vou embora. Juro... - Olha meu senhor. – O coveiro parou, por um instante teve medo de uma má reação do velho, mas nada aconteceu. – Então diga logo o que tem pra dizer e vai embora, está bem? - Está bem Jailton, está bem... - Antes quero saber uma coisa. Como sabe meu nome? - Por enquanto não posso te responder isso... Não tenho muito tempo... - Se está atrasado pra alguma coisa, pode ir embora! – ‘Por favor, por favor, some logo daqui’ rezou. - Ainda não. Preste atenção... Deixe-me falar... - Está bem... - Vim aqui pra te dar um aviso Jailton. É muito importante. - Pode dizer! – Ele já não aguentava mais aquela lengalenga. - Algo ruim vai lhe acontecer e estou aqui pra te ajudar, este é meu objetivo e pra isso estou aqui. Este lugar é a morada de muitas pessoas boas, meu jovem rapaz, mas mesmo assim a ‘vizinhança’ tem seus exemplares ruins. Como sei que ele já fez maldade no passado, sei que vai fazer de novo. Você é novo e tenho medo que não consiga permanecer neste emprego por muito tempo... Isso seria um desastre na sua vida. Sei disso. Sei sim... - Do que é que você está falando? Está querendo me ameaçar é? - Nada disso. Muito pelo contrário... Já lhe disse. Quero te ajudar. Escute este velho preto meu filho. Confie em seu coração, não vou e nem quero lhe fazer maldade. 26
  • 27. Suzo Bianco - Está bem... Supondo que esteja sendo verdadeiro, como pode saber de tudo isso? - Desculpa! – Raspou a garganta mais uma vez. – Mas não posso lhe dizer, minha única esperança é que acredite em mim. Que me escute e se cuide. Ele vai parecer ser seu amigo e vai tentar te enganar, não lhe dê atenção está me entendendo? Não lhe dê ouvidos Jailton por mais que se sinta tentado. Nunca. Ele tem uma boa maneira de convencer, meu rapaz, e vai tentar te enrolar... Não lhe sirva, não lhe dê esperanças se não, vai ser pior. Principalmente isto. Não fale com ele, não chegue perto dele e evite-o o máximo que puder. E se não puder... Bem... Ignore-o! - Está bem, mas... – Aquilo estava realmente lhe assustando. Muito. - Jure! - Eu juro! - Jailton, Jailton. Isto não é nenhuma brincadeira. Se você subestimá-lo será seu fim. E lembre-se acima de tudo, aquele que te ama, não lhe pede cama. – O negro se levantou e depositou algo no chão. - Adeus filho... ‘Se cuida’! - Espere! – Queria saber quem era ele. De quem o velho estava falando? O velho desapareceu. Simplesmente sumiu. Talvez tenha se movido tão rápido que não pôde vê-lo partir. Era possível, naquela escuridão. A luz da vela não iluminava tanto assim. Tonico foi o primeiro a averiguar a situação. Aproximou-se do local onde o velho estava e farejou a jazida. Jailton se mantinha parado. Não mexia um músculo se quer. Algo lhe ocorreu quando o senhor se despediu... “Adeus filho... se cuida!” ...daquela maneira. A voz. O jeito de falar e aquela despedida. Não. Que besteira... Não podia ser. Se fosse ele teria se borrado inteiro ou corrido pra longe. Mas... O velho se parecia demais com seu falecido pai. Parecia demais... Despertou-se à vida e notou que o clima do cemitério voltara ao normal. Aproximou-se da jazida do pai. Tonico havia encontrado algo ali... Abaixou-se e pegou o colar. Era um rosário azul-claro. Descansou a vela ali mesmo e não a pegou mais. Tonico saiu dali e foi farejar outras lápides enquanto Jailton examinava melhor o objeto deixado pelo velho com ajuda da luz bruxuleante. De alguma maneira o rosário lhe era familiar. Mas não se lembrava de ninguém que o usara. Era só a sensação. Levantou-se e, mais calmo, voltou para a casa do zelador. Resolvera dormir ali mesmo, no sofá. Queria pensar melhor em tudo que ouvira do desabrigado que encontrou. O homem não era mal, isso teve certeza, mas não batia bem das ideias. Era ‘pinel’. Deitou-se no sofá velho e fechou os olhos. Logo estava dormindo e teve uma noite de sonhos nostálgicos. Sonhou com o pai Damaceno. Sonhou com sua infância sofrida. Sonhou com Pablo. Sonhou com o presente e passado. E... Com o gato... 27
  • 28. Jaílton O Coveiro Covarde 8. Acordou sobressaltado com o latido esganiçado de Tonico. Levantou-se e abriu a porta. Espreguiçou-se. Esticou o pescoço pra fora pra ver se havia alguém ao portão. Não tinha ninguém, como, de alguma maneira, desconfiava. O cachorro latia para um gato. O mesmo gato do dia anterior... Sabia disso. Sem dar muita importância ao fato voltou pro sofá e descansou mais um pouco. Aquela casinha devia ter uns quarenta anos no mínimo. A tinta nas paredes estava descascando e cheia de fungos nos cantos. Na cozinha o azulejo do chão estava quebrado em vários pontos e o cheiro de comida estragada estava impregnado na pia. Quantos já não dormiram ali naquele mesmo sofá da sala? O trabalho de coveiro estava mudando sua maneira de ver a vida. Olhar incessantemente aquelas lápides frias e sem vida lhe causava uma estranha sensação de privilégio. Como se, estar vivo, ali, onde a maioria esmagadora dormia eternamente, fosse algo que ele não merecesse. Queria fazer por merecer... A manhã correu sem muitas novidades. Quatro pessoas apareceram no cemitério e visitaram seus respectivos parentes e mais nada. Uma delas, uma moça vestindo um vestido vermelho sangue, chorou bastante diante do túmulo do ente querido. Depositou um buquê de rosas brancas e foi embora... Tédio. Tonico passeava de um lado para o outro despreocupado depois de desistir em capturar seu inimigo. Já o gato, também curtia o ar fresco saltando esporadicamente de uma lápide para a outra. Jailton se perdia em devaneios quando avistou o rosário jogado encima da mesa. Levantou-se e pegou o ‘colarzinho’. Examinou-o por um longo tempo. Aquilo lhe era familiar, era sim... - Pra que serve isso pai? – Ele perguntou um dia para o senhor Damaceno. O homem segurava cada esfera azul de um rosário com as duas mãos e fechava os olhos. Ficava assim por uns trinta segundos, e deslizava os dedos para o próximo. – Pai? - Estou rezando pra sua mãe Jailton! – Respondeu ainda de olhos fechados. Sussurrava uma ladainha, sentado num pedaço de papelão improvisado para dormir. – E pro seu irmãozinho. Estavam morando num barraco de rua em São Paulo na época. Na época ruim... - Ah! – Respondeu o menino. Não entendeu nada. Pra que servia aquela coisa? Rezar não era na igreja e antes de dormir? – Mas pra quê serve estas bolinhas? - Pra contar o número de orações... – Suspirou e deu de ombros. Seu filho só o deixaria em paz se explicasse tudo logo. – Agente usa isso pra não perder a conta, pra facilitar e carregar com agente... Pode usar como colar, como pulseira... Do jeito que quiser e nos dá proteção do nosso Senhor e da Virgem... – Estendeu o rosário pro menino. – Nosso amigo daqui que me deu isto ontem enquanto você dormia... - O tio dos gatos? 28
  • 29. Suzo Bianco - Ele mesmo. Bom homem é aquele. Bom homem... – Esfregou os olhos como se tivesse com dor de cabeça. – Não sei como pessoas tão boas podem acabar nesta situação. Jailton apenas o observou e devolveu o rosário. Seu pai o colocou no pescoço. - Não sei como pode... Falando nele... Ele nos deu uma boa dica filho. – Ensaiou um sorriso. - Numa cidade perto daqui estão precisando de pedreiros... Acho que lá poderemos conseguir alguma coisa boa. O que acha? - Muito bom pai! – Sorriu em toda sua inocência. – Agente vai pra lá? - Vamos sim. - Quando? - Amanhã antes do nascer do sol... Tem que ser bem cedinho pra gente chegar rápido. - E vai demorar? - Bem menos do que levamos pra chegar da Bahia pra cá. Bem menos. - Então não vai demorar... – Damaceno conteve-se. Iam demorar sim. E muito... - Vamos de caminhão ou de ônibus? - A pé... Vamos pegar carona... Um pouco dos dois. Jailton não conseguiu esconder a decepção. - Escute meu filho... – Damaceno abraçou Jailton. – Agente tem que ir embora, se não agente vai morrer de fome aqui... Está me entendendo? - O garoto ficou calado. Manteve-se quieto e pensativo. Triste. – Vamos pra lá e seja o que Deus quiser! Naquela noite Damaceno chorou sem seu filho ver. E vice-versa. Lembrando daquilo sentiu um arrepio. O rosário em sua mão era idêntico ao do seu pai. Talvez, teria como saber se era tão parecido assim... Diante da lápide do pai, se ajoelhou e fitou a fotografia na pedra. Tonico fazia-lhe companhia enquanto coçava a orelha. Jailton chegou bem perto pra ter certeza do que via. Sim... Era isso. Seu pai usava um rosário como colar quando tirou aquela foto. Seus olhos brilhantes, seu sorriso... Deus, Damaceno era um excelente pai e um extraordinário homem. Por que o levou Cristo? - Aquele velho de ontem... – Sussurrou para a imagem de José Francisco. – Era o senhor pai? – Aquilo foi mais difícil de dizer do que imaginou. Admitir a possibilidade daquele mendigo ser de fato seu falecido ente era tenebroso. Reconfortante? Não sabia dizer... Era uma sensação inimaginável. Seu pai estava morto. MORTO. Não havia possibilidade alguma daquele senhor ser seu pai. Não mesmo, não podia pensar assim... Entretanto. Eram parecidos. Mais do que queria acreditar. As semelhanças eram assustadoramente enormes. O rosário, o timbre de voz, o sotaque sertanista baiano... Só agora se dava conta de como fora bizarro, e estranho, tudo aquilo. - Sim. – Admitiu. Foi relutante, mas no fim assumiu pra si mesmo. – Era você sim... De alguma maneira era você aqui ontem, não era? - Miauuuummm! – O gato de rua apareceu diante dele equilibrando-se na cruz branca acima da lápide. - Olá garotão! – Brincou Jailton achando graça, enquanto Tonico avançou contra o bichano sem latir. Farejou a cruz e deu um único latido balançando o rabo. 29
  • 30. Jaílton O Coveiro Covarde O gato pulou pro chão e correu para um pequeno arbusto mais abaixo na trilha cimentada. Tonico tentou ir atrás, mas Jailton o impediu segurando-o pelo pescoço. - Calma cachorro... Deixa o bicho em paz... Voltou-se para a fotografia do pai e depois releu as inscrições na lápide; ‘Aqui descansa em paz o amado pai e querido companheiro José Fransisco Damaceno. Nascido em: 1947 Falecido em: 2002.’ Falecido em: 2002. Falecido... Sorriu sem achar graça e voltou para a casa do zelador. 9. A noite voltou, mas desta vez escondendo as estrelas. O céu estava nublado e o cheiro de terra molhada trazido com o vento era ameaçador. Iria chover. Provavelmente. Tonico dormia encostado ao portão trancado sem ligar para nada. Sonhava e sonhava. Jailton o espiava, sentado num dos degraus da capela, e fumava um cigarro pensando na vida. ‘Vim aqui pra te dar um aviso Jailton. É muito importante...’ Aquele homem. ‘Ele vai parecer ser seu amigo e vai tentar te enganar, não lhe dê ouvidos está me entendendo? Não lhe dê ouvidos Jailton, por mais que se sinta tentado...’ De quem ele estava falando? Pai? De quem eu devo tomar cuidado? ‘Ignore-o...’ Ignorar quem? Seus olhos estavam olhando, mas não enxergavam nada. Seu pai, se é que era mesmo o fantasma de Damaceno, lhe tinha dado um aviso... Suspirou e teve um sobressalto. Sonho. Será que não havia sonhado tudo aquilo? Ora, ora... Pra que se enganar? Não era nenhum idiota completo, claro que foi real... Claro o quanto foi possível ser no escuro do cemitério. Aquele velho calmo, tranquilo e de fala pausada e firme era, de alguma forma, seu pai. - Jaiiiiiiilton! – Soou um gemido meio ao breu. – Jaiiiiiiilton... Socoooorrooooo! Levantou-se como se tivesse tomado um choque repentino no degrau. Em pé ele tremeu mais uma vez. Desta vez não vou responder nada... Pensou. Desta vez vou seguir as vozes e ver quem é o engraçadinho que está querendo me assustar. Ah! Se vou... Abaixou-se e apossou-se de mais uma generosa vela. Jailton seguiu os gemidos, que repetiam sem parar seu nome e a pedir por ajuda... Estava bambo de receio, contudo seguiu firme passo a passo em frente. Logo estava diante de um par de lápides... As duas pedras eram de um cinza escuro como grafite e dividiam uma única plaqueta identificadora entre elas; ‘Aqui jaz Marcos Augusto Filho: nascido em 1957, morto em 1997 e sua adorável esposa Carla Maria Augusto Filho: nascida em 1960, morta em 2006. Um casal exemplar e amado pelos amigos.’ 30
  • 31. Suzo Bianco Os gemidos estranhamente vinham dali... Debaixo. Ao lado da jazida da mulher existia outra bem menor e mais simples, contudo também possuía sua identificação, onde se lia: ‘Mimi, a gata mais amada’; e embaixo: ’Por Carla Maria’. Uma gata? Pensou Jailton esquecendo por alguns instantes, os chamados. Nesse instante os tais gemidos cessaram, mas só depois dele ter tido certeza de que viam de lá. Assim pôde se concentrar mais nas lápides diante dele sem ser molestado por supostas vozes do além... - Então... – Murmurou. – A lorota do seu José não era mentira?! Realmente haviam enterrado um bicho ali... Sinistro. Mas nada era mais sinistro do que aqueles gemidos esquisitos chorados pela terra. Agachou-se encima de uma das criptas e fez o máximo de silêncio possível. Não moveu nenhum músculo, apenas protegia a chama sensível da vela com as mãos do leve vento. Queria ter certeza absoluta do que tinha acontecido. Queria ter certeza absoluta de que aqueles gemidos medonhos tinham mesmo partido dali... Sentiu uma presença estranha às suas costas... Será que era ele? Ficou onde estava, relutava em se virar... O medo voltara. O clima do cemitério se alterou como no dia anterior. Sim, tudo de uma vez só. Rápido como um feixe de luz. Sentiu a respiração da criatura atrás dele... Reuniu toda sua força de vontade e coragem e se virou lentamente já preparando sua mente para o pior... Tonico o olhou confuso. O homem novo estava com medo dele? Jailton colocou a mão no peito quase deixando a vela cair e fechou os olhos de alívio. - Não dá pra você fazer mais barulho enquanto anda cachorro? – Perguntou baixinho. – Quase me mata do coração seu bostinha. O cão achando se tratar de um elogio, se aproximou balançado o rabo e lambeu-lhe a perna agachada. O zelador o acolheu sorridente, e aliviado por não ser ele, e lhe acariciou as orelhas pretas. - O que quer aqui? – Falou com o cão... – Eim? Viu alguma coisa? Tonico apenas ofegava a maneira canina e curtia o carinho bem vindo. - Jaaaii...! – Sussurrou algo dali debaixo dele. Parecia mesmo sair da cova do velho e falecido Marcos. A palavra foi cortada ao meio como se tivesse saído num engasgo... Com terra? Como se o fantasma tivesse mudado de ideia talvez... Mesmo assim não foi um gemido curto e baixo o bastante para não ser notado, além de causar uma nova série de tremedeiras em Jailton. Ele estagnou-se. Os olhos estalados. Tonico fizera o mesmo e o encarava confuso. - Jái...! – Outra vez. Contudo foi mais claro, e mais repentino. – Jaiiiiiiton... – Conseguiu em fim proferir a voz rouca e gélida da coisa enterrada embaixo dele. Tonico chispou-se como um raio, nem sequer fez barulho. - Minha Nossa Senhora Mãe de Deus! – Resmungou Jailton mantendo os olhos cerrados de medo e choque. Não queria ter ouvido aquilo... Contudo, se não queria, o que estava fazendo ali naquela posição? – Pai do Céu que me proteja, sai de reto satanás... – Continuou desesperado. 31
  • 32. Jaílton O Coveiro Covarde Se pudesse, daria qualquer coisa a qualquer um pra lembrar a oração do credo, que sabia fazer bem para aquelas situações. Infelizmente ele estava armado apenas de uma vela acesa e um cachorro covarde que nestas horas... Cachorro? Que cachorro? Nenhum maldito ‘au-au’ para espantar a criatura. Tonico se mandara rápido como um relâmpago... O desespero e o medo lhe davam sempre estas esperanças idiotas. O que um cão poderia fazer contra um fantasma? - Você está aí Jailtoooon? – Continuou a voz medonha. – Você está mesmo de verdade encima da minha casa Jailtoooon? Sem pensar duas vezes ele saltou pra fora da jazida. De pé na trilha ele respondeu ao seu interrogador do além numa rapidez constrangedora – suas mãos tremiam tanto que a chama da vela quase se extinguiu por completa. - Num-tô-mais-não-senhor! – Isso saiu de uma vez numa voz fina e desafinada. – D- desculpa não s-sabia q-que... – Gaguejou ao mesmo tempo em que se equilibrava naquela realidade trêmula. - Não tem problema não Jailton... – Disse a voz rouca. – Só quis saber, homem... - T-tá bem, mas eu não estou m-mais não. – Queria chorar. Por que? Medo. Claro, puro medo. - Está com medo de mim coveiro? – Desdenhou a coisa enterrada. – Logo eu? Um inválido sem possibilidade de ir e vir? Que vergonha... Medo de um... - N-não estou com medo não... – Falou na medida do possível, controlando sua gagueira repentina e engolindo em seco. – Só um receiozinho. - Receiozinho? – Riu. O riso era áspero como serra partindo um tronco grosso de eucalipto. – Receiozinho Jailton? - É sim senhor! – Respondeu como uma criança com medo do professor que descobriu sua cola durante a prova. - Receio não faz ninguém gaguejar coveiro! – Parou de rir. – Seu medo por mim me ofende! O que eu poderia lhe fazer de mau homem do céu? – Parecia realmente indignado e sincero. – Me diz? O que um morto, se é que estou mesmo morto, poderia lhe fazer além de assustá-lo de inicio? Fale-me? - Não sei, mas... - Ta vendo só? Não sabe... Se não sabe, por que está com medo? - Porque... – Pensou ainda controlando a vontade louca de correr dali. – Porque... - Ora! – Bufou. – ‘Porque, porque...’ Pare com isso homem! – Deu-lhe a bronca como um pai faz com o filho. Percebia-se na entonação da voz a boa intenção. – Você já está velho demais pra ter medo de fantasma... - Não é medo... – Tentou questionar Jailton. - ‘É só um receiozinho...’ – Imitou o morto. Morto sim. Isso já estava bem óbvio para ele. – Estou sabendo. – Um ruído molhado de bocejo. – Escute aqui meu rapaz. Coloque uma coisa na sua cabeça. Eu não quero lhe fazer mal nenhum... - Então o que você quer de mim? - Apenas palestrar! - Palestrar? - É! Homem do céu... – Ficou um pouco impaciente. – Conversar, bater papo, trocar ideias... Entendeu? 32
  • 33. Suzo Bianco - Sim. – Engoliu em seco de novo, deu um passo pra frente, e perguntou. – Sobre o quê? - Nada demais... – Estava claramente satisfeito. – Qualquer coisa. Você não sabe, embora eu saiba que um dia vai me entender... Ficar aqui embaixo o dia inteiro e a noite toda, sozinho e sem ter ninguém pra falar é difícil viu... Muuuito difícil. A solidão bate na gente de uma maneira ruuuuimmm... Nem queira imaginar. - Nem quero... - Eheheheh! Nem queira mesmo. Bem, mas isso não importa mais... Acho que você já está perdendo o medo de mim. E isso já está muito bom... Muito bom mesmo, de verdade. - Você acha? – Pra que perguntar? Era verdade... Aquele defunto enrolava e anestesiava o medo como um médico faz ao entreter uma criança na hora de aplicar uma injeção. - Acho! – Foi categórico. – E isso me faz ficar feliz de verdade. Você está começando a entender... Um morto é apenas um morto e só pode fazer mal se não for enterrado direito, poluindo a terra. Mas onde estou... Não, isso é impossível... Não estou dizendo que faria maldades por aí, pelo contrário... Bem, só quis dizer, me entendeu, não é? - Entendi... – Quase. Mantinha-se na defensiva no máximo. Talvez aquele morto fosse o tal ‘ele’ que seu pai lhe avisara. Ou estivesse sonhando... - Pois é! Sempre fui uma boa pessoa enquanto estive... Bem... Vivo! Não é só porque morri, ficaria malvado. Que ideias tolas que este pessoal inventa... Brincadeira né? - É...! - Agora eu durmo a maior parte do tempo. Enquanto estou sonhando até que é bom. Parece vida real. – Riu. – Mas quando desperto é um horror... Já não tenho quase mais pele nenhuma e mesmo assim sinto algumas coceiras desagradáveis. Isso é foda! Já tentou se imaginar tendo estas coceiras sem poder se mexer? Acredite amigo. É o inferno... Sabe do que mais? - Não...! - Eu estou puto! – Pela voz, era o que parecia ao coveiro. – Acho uma baita injustiça. Nunca fui ladrão, assassino e nem um tipo de marginal ou depravado. E mesmo assim... Mesmo assim, algum cretino lá encima me condenou a passar a eternidade dentro de um paletó de madeira pra ser comido por vermes. Isso é uma bosta! Definitivamente uma bosta gigantesca. Jailton não sabia o que dizer... Mantinha-se calado e só respondia em pausas estratégicas. - Está sendo muito chato isto aqui Jailton. Muuuito chato. Nem te conto o que acontece quando chove... Ah! Aí sim é uma bosta mesmo... Sabe o que acontece quando chove aqui coveiro? Sabe? - Não! - Claro que não sabe. Mas devia pelo menos imaginar... – Aquilo foi uma ofensa? Pensou Jailton – Isso aqui vira uma privada meu amigo. É sim. Uma droga duma privada nojenta de parada de caminhão! – Marcos, o defunto, estava nervoso. Não com ele, nem com ninguém especificamente, e sim com a vida... Ou melhor, com a morte. O coveiro deixou o ‘homem’ desabafar. O que tinha demais nisso? Só por que era um morto falante? Nem quis responder a esses pensamentos. – A água da chuva encharca toda a terra aqui embaixo. Sim. E não é só isso... Não senhor... Ela faz toda a sujeira daí 33
  • 34. Jaílton O Coveiro Covarde de cima, a mesma sujeira que o senhoooor não limpou, descer até aqui e me cobrir de porcaria. Meu velho terno de linho nem existe mais... Apodreceu mais rápido do que eu. Vê se pode uma coisa dessas. Sinto cada monte de barro me cobrindo e me inundando. Neeeemmm os malditos e covardes vermes me amolam mais por causa disso. Os bichinhos depois de me comerem toda a carne, ainda viviam aqui comigo, mas depois da primeira leva de porcaria, foram embora, se mudaram para o vizinho daqui do lado... – A indignação em cada palavra era incontestável. Se o morto realmente pudesse sair dali, ele já teria feito isso há muito tempo. – Falando nisso... Quem é que está enterrado aqui do lado? - Quem o quê? – Tentou fingir Jailton. - Quem está enterrado aqui do meu lado homem de Deus?! - De qual lado você está falando? – Jailton sabia bem de qual lado, mas quis ganhar tempo. Não sabia se dizia ou não, ao morto irritado, que sua mulher é quem estava coberta. - Jailton... - Sua mulher! – Respondeu logo. E que se danasse, ele faria o que? Não era culpa de ninguém... Talvez até gostasse. Sua esposa o fazia companhia, por quê não gostaria? - Minha mulher? – Parecia confuso, perguntou isso numa voz baixa e incerta. - É sim senhor! - Carla é o nome dela? - É sim senhor, Carla Maria... - É ela mesmo! – Interrompeu numa voz embargada. – Minha Carla... Minha mulher... – Parecia estar à beira do choro. – Tem certeza não é mesmo? - Tenho sim senhor! – Pensou confuso. – Hm... Eu lamento. – Raspou a garganta. – Meus pesamos. – Ele estava dando pesamos a um morto? Deus! - Nãããããããoooooo...! – Chorou o defunto escondido dentro da tumba. – Minha Carlinhaaaa... Por que você me deixou Carlinha? Por queeeê? Me diz... – Jailton espiou de rabo de olho a jazida de Carla e pensou: ‘Não responde não, pelo amor de Deus.’ “Por que você me deixou?” O que aquele cadáver estava falando? Caramba o cara ficou louco depois de morto... Pensou Jailton quase sentindo pena do penado. E o estava enlouquecendo também. - Está bem senhor...? – Perguntou o coveiro tentando ser gentil. - Eu pareço estar bem homem? – Gritou desesperado ainda em pleno absurdo pranto. - Não senhor! – Sussurrou Jailton. - Me deixe em paz por hoje... – Soluçou Marcos. – Quero ficar sozinho! Jailton não lhe respondeu nada. ‘Quero ficar sozinho...’ Ave Maria, cada uma... A vela em sua mão já havia ficado dois centímetros menor. Deu de ombros e se retirou meio ao incessante pranto do cadáver. Deus! O que era aquilo? Pensou consigo. O clima pesado extingui-se repentinamente assim que alcançou a principal trilha do cemitério, a que levava do portão à capela branca. Assim que se sentou no sofá velho, onde Tonico já estava há tempos, é que todo o ocorrido lhe caiu como uma bigorna na cabeça. – Minha Nossa Senhora do Rosário! – Proferiu sustentando o rosto com as mãos. – O que foi isso Pai do céu? Ele tinha mesmo conversado com um defunto? Ele tinha mesmo ouvido o defunto chorar? 34