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este livro é dedicado a todas as pessoas que, ao longo destes trinta e tal
anos de escrita, me têm encorajado (e às vezes desencorajado) a
continuar. não vou mencionar nomes porque são mais que as mães e
ainda me esquecia de algum ou alguma. mas vocês sabem quem são.
vocês pah!
António Vitorino
Antologia prévia
com prefácio do Excelentíssimo
Professor Doutor Abreu Santinho
capa e arranjo gráfico
Sturrefsit Adjukaatrix
Edição Debaixo do Bulcão
http://debaixodobulcao.blogspot.com
Dados de copyright? Copyquê?
Almada, Abril de 2016
CONFIDENCIOU-ME o meu mui prezado amigo António Victorino que, desenganado quanto à
possibilidade de publicar os diversos tomos da obra literária a qual, laboriosamente e nas trevas, tem
composto ao longo das últimas três décadas, optou por reunir em crestomatia uma selecta de alguns
enunciados, com os quais espera proporcionar não uma colectânea dos seus melhores poemas, mas antes
uma panorâmica diacrónica da evolução do seu fabro forjar de versos. E, amavelmente, convidou este
humílimo escriba a tecer algumas considerações em forma de prefácio.
Estando eu a trabalhar no meu próprio livro, intitulado Epifonias do Ágape Egineta, não obstante não quis,
contudo, subtrair-me a assistenciar este cordato, porém não artiozoário, facharão de labor literário. É pois,
com júbilo que me presto a esta abonação em prol de quem tanto tem pugnado em favor das artes de Ératro
e - porque não dizê-lo? - de Melpômene, quando não até mesmo de Polímnia, e nunca em chave
macarrónea, atente-se.
Porém, representar o pensamento por meio de caracteres de um sistema de escrita a fim de ponderar
operativamente em co-ocorrência com o enunciado dado e proposto a exame afigura-se, convenhamos,
espinhosa hermenêutica. Todavia, e perante a conturbada biografia do autor, ocorre-nos antes de mais a este
respeito a prédica de Aurélio Agostinho de Hipona, o qual reconhecia não haver "lugar para a sabedoria
onde não haja paciência". Munidos, pois, dessa paciência (santa paciência, diria um jocoso que não queira
entender no que digo mais que meros cavalinhos de tróia saindo de outros cavalinhos de tróia), tentemos
entender e perorar sobre a polissémica e polimorfa arte poética que António Victorino representa neste
opúsculo.
Se “os pontos fracos de um livro são com frequência a contrapartida de intenções vazias que não se soube
realizar”, como pretendia Gilles Deleuze, o efeito desta obra organizada que ora pomos diante dos olhos,
demonstra-nos, com sagacidade e à saciedade, a pusilanimidade de um poeta que, sequencialmente, recusa
ser crestado ou atralhoado pelo conjunto de conceitos proto-filosóficos logicamente solidários, mas
considerados mais na sua coerência que na sua verdade, em vigor na actual sociedade do espectáculo e nos
seus dispositivos culturais hegemónicos.
Neste contexto, a poesia de Victorino afigura-se-nos como "arte oculta" e "agente de diferenciação", no
sentido para que Deleuze aponta quando escreve que “um conceito é totalmente incapaz de especificar-se
ou dividir-se; o que age sob ele, como arte oculta, como agente de diferenciação, são os dinamismos
espaciotemporais”. De facto, há em Victorino toda uma ética de diferenciação via dinamismos
espaciotemporais (e é por essa mesma razão que o título Antologia Prévia nos parece tão acertado),
configurada numa gramática de constrições concomitantemente pós-estruturalistas e desconstrutivistas,
sim, sem, contudo, se acercar mais que numa trajectória parabólica (algumas vezes elíptica, mas sobretudo
parabólica) e minimalisticamente tangencial aos poetas associados a ou aparentados com as múltiplas
ramificações da grande árvore conceptual do pós-modernismo.
Apoética de Victorino surge assim, iluminada por esta luz negra da crítica diferenciadora espaciotemporal,
como, na asserção platónica, "o vento que não se vê", então claramente visto pelos "olhos do espírito". Ou,
se nos apraz usar a mui adequada metáfora de Epimaníades Anatólio de Éfeso, como "um panóptico
desterritorializado autorreferente num perene vórtice paroxistico e, frequentemente, peristáltico". Nem mais
nem menos.
Afirmou em tempos Umberto Eco que “o mundo está cheio de livros fantásticos que ninguém lê”.
Que oxalá não seja este um livro fantástico são os meus mais sinceros votos.
Campo de São Paulo, 26 de Abril de 2016
Professor DouctorAbreu Santinho
provedor do Debaixo do Bulcão pozine
poemas de
Antrologia (1981 - 1987)
PROTOPOÉTICA-COSMOGONIA
não te vou falar da lua
ela exacta material
redescobre sua elipse
preferida. e bem sabes não te vou
falar de estrelas: são milhões
e a prosa
é dura.
afinal que mais que ter os pés na terra
sentir a terra?
afinal que mais que ter o sol na boca
(no céu da boca)?
não te vou falar do abismo vertical
falemos só do falar
e do não sei bem
de agora. deixa-me ser infinito:
poesia
é corrente de biciclo que saltou.
é bichinho
é bichano
é bichoso.
a lógica formal é outra coisa.
MINUTO DE SILÊNCIO
"Quem sou eu?" perguntava o pai ao filho.
Depois de se entornarem num copo de cerveja com groselha.
Parece sangue, mas é apenas uma bebida fermentada.
Paga-me um copo de leite, ó paula Xis.
Agora que já confessei as minhas mágoas.
E agora que o dilema se deslumbra com o indício.
E que bebi o leitinho que me quiseste dar, ó paula Xis.
Depois de apanhar aquela bola transviada.
Que me vinha direita às narinas e eu não gosto.
Que as grandes penalidades me fustiguem as narinas.
Agora, pois, que confessei as minhas mágoas.
Só me resta aqui citar um tal poeta do caraças:
"Que infeliz que eu sou e esta merda não faz rir.
Este mundo custa muito e vai tudo acabar."
Agora que este organismo violáceo chega ao fim.
Pum-pam-pim! Pum-pam-pim! Pum-pam-pim!
Venham dois ou três buscar o inestimável colete.
(E antes que a estrela florescesse sob a sombra da Colgate.
Filho ao pai o perguntava "?eu sou quem".
O pai ao quem perguntava "o filho?" sou eu.)
BURNING WILD
nascidos, para quê serpentear entre paisagens
de cimento? vejo a oblíqua trajectória do cocktail
molotof e o homem da publicidade cujo cérebro
não receia o fogo posto. para quê poisar, se o delírio
apenas se manifesta? sapatos novos, ein, são le coq sportif e
assim se artilham os pássaros subjugados à prisão de ventre
mas para isso há pastilhas e sais de frutos e cansaços
curam-se com proteínas vitaminas e orgasmos vegetais.
assim, a estrada pós-sinalizada mente como se fosse
e nunca deriva. chamem-lhe recta. chamem-lhe seta ou
paisagem de andróginos figurantes obsequiando a figura
do primeiro presidente. para quê penetrar se o dilúvio
apenas se pressagia? observo as moles humanas são carne
para comboio suburbano. quantas portas se abrirão
durante a fuga não o saberei contar mas há um vesgo
afirmando aqui mais perto tens os mouros. e tu morres.
mas talvez não. arderá o continente antes da
próxima estrofe?
VIDEOCLIP
imagens pró-diuréticas: eis que pelo monitor
do vítreo sublimar cacofonias
o absurdo é querer temporizar. ou seja
predadores sobrevoando a superfície de seiscentas
e tal linhas, pontos brilhantes, granulado nestlé
sincronismo idiossincrático ou aquilo que. até.
dúbio é o velocímetro para fora da galáxia.
dupla é a via láctea principalmente nos meses
em que o verde favorece e as vacas mais produzem.
cacofónico projecto: e é por isto
que o paraíso vem em folhas de alguns milhares de metros
para usar
e purificar com água (não diz aqui se é benta). ou
como diria copérnico:
não consigo trabalhar quando a TV está acesa.
e isto equivale a um discurso.
MONÓLOGO PARANORMAL
Ich habe eine tia turbulenta e fria
como a façanha feroz dos glaciares
e um pouco mais de porte erecto
germanófilo porrete baralhómetro
sanguessuga minha macabra ironia
ó tia quantos graus de parentesco alcoólico
ó álcool quantos mânfios por dinheiro a minha tia
prostituir-se, herself
e o candeeiro
a noite de um requintado ocidental. para normal
acredito, só me falta a luz do dia. (ironia)
INDIQUEM O NOME POR FORA DO ENVELOPE
recebemos, de anónimo, desejos por detonar
a redacção agradece
agradece a gerência
indiquem o nome, digam-nos o tema
indiquem o sexo, o desejo, o esgar
indiquem, por favor, quando é que vai rebentar
indiquem-nos o sonho, a bem da tipografia
a redacção agradece
agradece a gerência
e o resto da família
MIRADOURO DE SILVEIRA
"Quem sou eu?" perguntava o paixão ao filisteu.
Depois de se entornarem num copo de cesário com groselha
Parece santeiro, mas é apenas um bedum fermentado.
Paga-me um coqueiro de leme, ó apócrifa recapitulatrix.
Agora que já confessei as minhas maiorias.
E que bebi todo o leme que me quiseste dar.
E agora que o dilúvio se deslumbra com a indignação.
Depois de apanhar aquele bolchevique transviado.
Que me vinha direito à nascente e eu não gosto.
Que os grandes pêndulos me fustiguem as nascenças.
Só me resta aqui citar um tal poldro do cara-direita.
"Que infinidade eu sou e este mês já não faz rir.
Esta murça custa muito e vai tudo acabar."
Agora que esta orientação de viração termina.
Venham dois ou três buscar a inestimável coligação.
(E antes que a estria florescesse sob a sonda da Colgate.
Filiesteu ao paixão o perguntava "?eu sou quem".
O paixão ao quem perguntava "o filisteu?" sou eu.)
poemas de
Ex Bócios (1987 - 1988)
INSOMNIA MEMORANDUM
1.00
organização de vocábulos
seminalmente lentos fluindo luar de outubro
e o líquido receio de crismar estes momentos.
montra quase secreta porque não a posso apunhalar
com estes olhos de espanto sangue ou cisma
quadrante de pequenos dísticos e o pó
da terra: a definição do fumo é inconstante.
este pássaro foi água e regride
à reorganização das sensações rebeldes
como se fosse o rasgar destes caminhos
a dinâmica destruição dos símbolos do mundo.
2.00
mas há sempre um recomeço, espelho meu.
3.14
um que pensava ser poeta escrevinhou no wc
“no limiar da passagem aguardarei por teu nome”
mas agora que do outro lado a montanha
revela vórtices estranhos de silêncio
há ainda um talvez não que vem de longe
embrulhado em papel de celofane.
o poeta desafia suas próprias estruturas
vejam como oferece a face oposta (dói-lhe o sangue)
vejam como despe a farsa posta (arde em cio)
4.07
a quem nunca urinou na central de camionagem
de viseu: há um estranho personagem feminino
rabiscado, salvo erro, em meados de outro ano
afirmando peremptoriamente: ”mas que fado!”
5.55
filosofia popular: que ninguém diga
“à central de camionagem nunca eu irei mijar”
OBSCURO
seguramente, a experiência não foi má
singularíssima pala para o manso da sabina
unilateral relativamente bem sucedeu que sim
a epistolice piorou mas não se pode querer tudo
e ninguém vai acordar o menino que dorme lá em baixo
ninguém quer arriscar uma descida a esse inferno.
sabem que um homem não rebenta, nem que chore
mas mesmo assim não querem.
ORANGOTATÓRIA
nem operação sarcástica me tolhe
caravaggio e picasso derretidos na alfândega de andorra
e o carregamento de coca-cola e a bala perfurando
os ossos cranianos de um qualquer personagem secundário
na merda de porca de vida de cidade sinal
des contentamento in contentamento labial
verde que te quero sede dos cânticos positivistas
alguns te contam as tragédias. mas não
a minha gata. um dia destes rifo os teus telões
e a tua salubridade também.
por algum motivo eu não sou o kaiser guilherme segundo.
poemas de
Os dias comem-se tristes (1995 - 1996)
OS DIAS COMEM-SE TRISTES
momentos mudam de cor. transformam o prazer
em golpe súbito. então jorram as palavras
sílabas por desvendar que não se acabam em coágulo
dos dias fica o frio da morte anunciada.
ao ritmo do coração embalas para o lado esquerdo
o leite materno da paisagem que já foi amor
e hoje, agora
neste preciso tormento
a temperatura aumenta, mais um átomo sensível
não o podes contornar. nem mesmo sabes
nem sabes
quais as sílabas que há ainda para unir, agora
despedaçaste a moldura inquebrável destes dias:
excesso de lucidez, o sol queima os teus versos,
mergulhas na euforia.
esquecer de ser. é isso.
EIS AS PALAVRAS ARTICULADAS
o nome de um poema é o mais importante do mundo
logo a seguir vem a carruagem do primeiro verso
e a do segundo e a do terceiro até formar o poema.
mas o que é um poema?
para que serve um poema?
o mundo não explica. a poesia não explica o mundo
serve-se das vísceras como água se fosse bebida
talvez. ainda ninguém sabe. ainda não há ciência.
eis as palavras articuladas.
um pequeno deus arrisca a pergunta: para quê?
CIRCUITO FECHADO
"il tuo dovere è di migliorarti
di stare bene di realizzarti
cerca di essere il meglio che ti riesce
per poi darti agli altri"
Eugenio Finardi
a fonte das lágrimas secou. também as palavras
o que resta de ti?
meter os punhos sangrentos na raiva dos dias
ruídos da cidade cega por modelar
argila pobre dos dias, massa lunar do silêncio
fragmentos da cidade cega, impossível o afecto
o que resta de ti?
amar o labirinto, abres os poros à sedução
de todas as dificuldades, amar o que é difícil.
fechas-te na sala oval do desespero e atrás
de cada porta o mistério. olha:
abre esta devagar, talvez seja o armário da poesia.
não dormes, pensas
o coração promete dar-te mais um dia.
FRASE LAPIDAR
escrever é sobreviver:
voar por cima da vida,
talvez esquecer.
REMAR, MAS DEVAGAR
retiro a mão da água tépida do lago
onde os rafeiros patos boiam a mão turva
o momento indeciso de agarrar no remo
e remar. mas devagar. deixo que o cigarro se apague
na água suja do lago onde boiam
pauzinhos de gelado e papéis de rebuçado.
poemas de
Pequena incursão no labirinto (1997)
E PRONTO AGORA JÁ PODES CHORAR
e pronto, agora
encerraste os teus lírios na camera
obscura do esquecimento e pronto agora
ranges dentes apertas parafusos
no cérebro no torno regulas o torniquete
que evita o jorro de palavras necessárias
para que te possas entender quem és
quem estás a ser que peixes voadores
pululam teus tropismos ou teu sal
de lágrimas que evitas de águas perdidas
de silêncios na volta do fumo para casa
do mar. e pronto agora
agora já podes mudar a cor do rosto
e já podes apertar a porca regular o torniquete
da tua inquisição metódica teu índex
teu ódio teu pesar. e pronto agora
agora que desistes e te fechas no teu quarto
mostra ao mundo a massa de que é feito um poeta.
agora já podes chorar.
RASO CHÃO
1.
o cosmos que encerra esta densidade. semente: cápsula
no campo raso das sílabas que ainda dormem.
cápsula será: nascente de palavras
quando explodir em mil significados: cápsula
que agora desperta as sílabas, conduz o ser vivente
ao caminho de seu próprio discernimento.
caminhar, a grande azáfama: fertilizar os dias
largar hipóteses na terra; de algumas nascerá fruto
de outras só a flor da dúvida,
conceito incompleto mas novamente fértil.
2.
afias a farpa da contradição. e assim
adulteraste uma vez mais a sementeira. diz-me:
que fruto amargo emerge dessa água?
qual o poema que vai morrer depois do júbilo?
que discernimento quase cego em ti
te adivinha os caminhos do exílio figurado
ou sonhado?
quantas peles vais deixar pelo fio do tempo
até que alcances respirar a casa, tua casa?
e existe em que horizonte,
se existe?
A BOMBA DA PAZ
todas as nações deviam ter uma bomba nuclear.
afinal,
todos os supersticiosos
têm a sua moedinha da sorte,
não é assim?
ÁLVARO VELHO EM LISBOA
encalho num beco sujo de lisboa.
meu primo josé pereira já saiu. vem o bafo do bafio
agoniar-me. olho à volta do quarto. quem sou eu?
que morte me convidou a vir?
olho as paredes encardidas, o papel a descolar...
ah, sim! papel na parede, cartografia de outros inquilinos
desta casa. quem eram?
pensamentos, olhos de noite à deriva...
é sempre assim: acostar ao dorso de outra cidade.
sempre assim: eu venho lá da telúrica vida
das grandes pedras, dos silêncios matinais, das serpes
do cheiro vigoroso da terra removida após a chuva...
aqui o cheiro é forte, mas é cansaço de corpos
é mistério de gerações por decifrar entre quatro paredes
é um espasmo adivinhado, agonia, dias de álcool
noites de amor intenso, choro e raivas outra vez...
o ar do quarto carregado de mensagens
desses corpos que passaram...
abro a janela. olho a rua sonolenta: recanto de lisboa.
quem é esta cidade? tento lembrar-me...
cidade grande com muitas cidades dentro,
apoteose de sentidos,
novelo de ingratas vidas, ir e vir, pegar, largar...
capital da complicação superlativa?
artifício, pirotecnia de febres?
ou apenas um formigueiro maior?
aqui, não. mas a vida anda talvez por outros lugares,
ou por largas avenidas ou por bairros mais variados.
penso que só pode ser assim. então,
a lisboa que conheço sempre existe
ou ficou perdida no meu antigo pensamento?
são horas de comer: vou almoçar
que não se enche a barriga por pensar.
KANT SÃO
a vossa evidência visual arde nos olhos
corpos na pupila estranhos de entranhar.
e não mais ofendam este sensitivo globo:
hábeis sois apenas na matéria dada
não na cúpula, perfeitos só na cópula
pois é universal e necessário copular.
mas se matéria bruta vos conforma
não tendes mais razões para um cisma
vinde cá quantos são quero contar
chegai-vos vinde até cá criticar
a priori se ousais a razão dura
o tempo que durar se vos chegardes
à minha mão fechada raiva pura.
PRIMEIRO MONÓLOGO BARATO
vinte e três milhões de galáxias
cairam na minha cabeça.
foi assim na primavera dos dias
no tempo em que nosso pai adão
comia os frutos proibidos
e conversava com eva
na língua bifurcada das serpentes.
assim foi na infância do poema.
SEGUNDO MONÓLOGO BARATO
por essas alvoradas da palavra
articulávamos severos sons:
poetas fomos.
depois, erguemos uma torre muito alta
e deus zangou-se.
é por isso que a poesia não vende:
porque não
e também não é passível de verter em outros moldes.
e trair é atrair a tradição,
não vá deus zangar-se novamente com os versos.
TERCEIRO MONÓLOGO BARATO
os milagres da palavra, edição encadernada
papel de alto risco e delambida lombada.
de galáxias só milhões são vinte e três
de profetas só milhares, trinta e dois
de rimances, muitas rimas, multidões.
outras contas de poetas: contas feitas trinta e três,
noves fora
quase nada.
compre cá. aqui o compre
calhamaço de palavra condenada:
enforcada nesta guita. o cordel não custa nada
e a prosa é barata.
TRAGÉDIA: PRANTO DE POETA ENTRE MILHÕES
não. apontas para mim o sol. não quero.
deixa-me crepuscular aqui na mesa do canto
quietinho. animal submerso em sono e
evidentemente, litros de água com sal.
quanto custa um poema?
sangue, furnas de sangue. vulcão
que expele a raiva toda e por fora...
... o quê? faz-de-conta, rigidez de pedra?
não olhes para mim. não quero.
desisto:
não apontes para mim o sol dos olhos
nem a noite da imaginação,
ponto final.
...
mas
final? quando? que final? não. apenas hibernar
dormir como um pequeno bicho...
isso, para saber que o inverno há-de passar
e o ciclo se renova como papel higiénico.
isto era uma piada
mas também era um ovo de verdade
que há-de nascer. como uma cobra.
eu não. mas há quem coma.
PROMETESTE?
com tantos deuses, tanto amor e ódio
era preciso mais amor e ódio?
pois tinhas de criar mais cio e sangue,
não te bastava o mundo consentido?
que espécie de loucura te perdeu?
não sabias, ó deus, que essa promessa
só amassa na dor a mole humana?
e olha para zeus: alcmena engana
como tantas mortais já enganou.
não te rias. tu sabes que essa hora
só promete por fim tua justiça.
mas chora, prometeu, que ainda tarda
o dia em que te vou largar o fígado.
PROMETEU
prometeu dar-nos a vida, e deu.
prometeu dar-nos o fogo, e deu.
olhámos para nós: eramos vivos
e também tinhamos o fogo para incendiar o mundo.
olhámos para o mundo: era verdade
e tinha-nos a nós para o poder queimar.
lançámos corpos todos a essa longa tarefa.
isso foi há muitas vidas,
hoje estamos quase a cumprir o prometido.
poemas de
Autogeologia (1988)
FOI ASSIM:
à meia noite fria nós quentes pousámos na varanda
e ordenámos a cada um dos olhos que nos dissessem do fogo
que além suspenso estralejava e mesmo só para se ver
alguns de nós desperdiçaram certo vinho impulsionado a gás
alguns de nós mastigaram frutos secos desejando não se engasgar no último
alguns de nós meninos beijámos algumas de nós meninas e assim é que deve ser
depois continuou a eterna noite eterna bebedeira de todos nós
e depois continuou a noite tão de todos como de cada um de nós
e no resto do mundo outras noites coincidiram com dias antes e depois
consequência natural da rotação da terra sobre o seu imaginário eixo.
de manhã inda mal o sol se via
chegar turbulento a casa
arrancar a folha ao calendário
vem o sol
e nós dormir...
AUTOGEOLOGIA
este vulcão adormecido não sou eu
mas a sua massa é igual ao meu silêncio
este magma não ameaça o ser vivente que é em cima
por agora
ruminam os ruminantes e comem os predadores
ignorantes do vulcão adormecido que há em baixo
mas não sou eu.
o vulcão há-de acordar
vai ser obrigado a cuspir o seu calor de morte
e não sou eu
que tenho sempre a escolha de permanecer sereno
com o meu inferno interior
só para mim
descansem, pois, pequenos habitantes de pompeia.
DÚVIDA METÓDICA
OU DISCURSO DO VELHO DO RESTELO
AO INVESTIGADOR CIENTÍFICO
agora que descobriste a molécula
tens a certeza que descobriste a molécula?
eu sei que és sagaz
mas pensas que os teus olhos nunca te enganam?
descobriste o cristal mereces o prémio nobel
mas tens a certeza que descobriste o cristal?
sim descobriste
mas sabes o que vive dentro daquilo que descobriste?
tens a certeza?
por dentro
viste?
ESPARSAAO DESCONCERTO DO MUNDO
agora que deviam regressar as andorinhas
regressou o inverno.
a diferença é:
as andorinhas são seres vivos
o inverno é entidade mitológica
as andorinhas enchem o céu de alegria
e o inverno molha-nos.
FALTA DE IMAGINAÇÃO
"Ainda por cima os homens são os homens
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação."
José Gomes Ferreira
boa noite.
o dia esteve lindo mas poderia ter sido melhor.
enfim não choveu e cá estamos outra vez.
ah! dêem-me um copo de vinho
suor das noites quentes dos poetas frios
(ou será o contrário não me lembro)
e um copo de vinho e um
copo de vinho e um copo
de vinho.
olha lá (diz a musa) não te esqueceste de referir a ganza?
e digo eu à musa: vai bardamerda
mas isso já não é poesia,
boa noite.
PEQUENA CRÓNICA DA NORMALIDADE
"Para os heróis­de­passagem concebi ainda um pedestal ao estilo clássico onde, a troco de uma remuneração
simbólica, eles poderão, sentados na nobre coluna, usufruir os benefícios de uma glória temporária"
Sam, Homenagem ao Caracol e Outras Cerimónias
conseguiste, finalmente eles sabem
qual a perfeita engenharia para essa virtualidade.
o insaciável é demente
e eu aqui que sou um ser humano mais normal
misturo-me com outros seres humanos mais normais
e damos grandes braçadas na merda da normalidade.
mas assim é que está bem.
e enquanto eles te esvaziam o furúnculo da imaginação
nós ficamos de boa saúde
alucinados pela glória prometida mas saudáveis
a imitar uma torrente de espermatozóides
só que em vez do óvulo teremos o pedestal
se o tivermos.
TODOS OS DIAS UM PATO DIFERENTE
cf "Um Pato Chamado Harry"
Fernando Namora, "Marketing"
estamos irremediavelmente sós na cidade.
não
estamos irremediavelmente sós dentro do mundo
que se mexe e fervilha dentro da cidade.
enfim estamos sós por isso vamos ao jardim
vamos conversar com patos
escolheremos todos os dias um pato diferente.
se fosse cisne chamar-lhe-íamos poesia
porém é pato: chamemos-lhe verso branco.
mas
onde se afoga o jardim? que pato?
não.
a cidade já não tem jardins.
a cidade já não tem patos.
estamos irremediavelmente sós na cidade.
POEMA PLATÓNICO OU QUASE ISSO
se eu pudesse ser imaterial
pensamento
estado puro
se eu pudesse existir só por pensar
existir só em pensamento
ser o pensamento
pensar compulsivamente
nascer do pensamento em pensamento
ser menos que ser nuvem, que é matéria
ser muito mais subtil que o próprio ar
ser puro pensamento...
e agora penso
e agora pensando paro para pensar
penso que vocês já entenderam
mas também penso que talvez não tenham entendido.
vem cá, discípulo incrédulo:
faz um pequeno esforço e desloca-te
inspira, abre a boca, faz vibrar essa garganta
diz-me que coisa é pensar.
não digas, que não sabes
não tropeces nessa laje, que te aleijas
e depois ainda ficas a pensar na dor
e assustas-te com o sangue que é vermelho
mesmo quando pensas que sabes que a cor é ilusão.
é complicado, pensar.
e é triste pensar que não se pensa só com pensamento
quando teu joelho esfolado também pensa
pensou na dor antes de ti ou do que pensas ser tu
e agora inteligentemente está inchado
mesmo que tu penses que melhor seria não estar.
é triste pensar que a matéria também pensa
e não saber se há pensamento sem matéria
ossos, sangue, nervos e massa muscular.
pensamento é sobre a terra
não sabemos se o há noutros lugares.
e penso que por fim sei o que sou
mas quem estou agora a ser não o saberei pensar.
isso, acabou, vai lá fazer um penso
e pensa em não voltar a tropeçar.
VLADIMIR MAIAKOVSKI NA PONTE DE BROOKLYN
saúde industrial!
aviões que devem ser para todos!
lâmpadas eléctricas! (a poesia é
o poder do aço temperado pelo homem
e a iluminação do mundo)
mordo fortemente a maçã do júbilo
alegro-me por estar aqui
onde quem não quer morrer de fome cai de cabeça
nas águas oh tão sujas do moderno rio east
e onde os fios eléctricos dão à morte um tom mais brilhante
milhares de vóltios a brincar no corpo do condenado.
alegro-me por estar aqui
onde a gigantesca pata central de manhattan
faz amor com a despudorada brooklyn
e os comboios subterrâneos também dão razão a freud
e os altos edifícios também dão razão a freud.
eia maiakovski! quando uma coisa parece ser boa
parece ser mesmo boa, não é?
LIMO
há um fermento de medo. e germina
dentro do corpo das palavras que não se dizem.
fervilha: e é um fogo plasma do silêncio
na mais profunda caverna do que é ser
revolve o sonho ancestral da solidão.
é tenebroso: porque não tem vocábulos
eppur si muove onde já não há pensamento
labora o limo da razão.
OLHOS
esses dois glóbulos que eu amo
chamam-se olhos (são os teus olhos)
e nascem lá de dentro da caixa craniana
servem para ver
são portanto apêndices do sistema nervoso central
esses olhos onde bebo a tua alma
ou há qualquer anomalia nestes versos
HIPÉRBOLE
escrever poemas é como deitar:
pérolas a pombos
milho a porcos
pão a famintos de justiça.
CIBERLÍRIO
descer a cave: ex cavar
cavername: cavernar
ideia morta na pasta: eis pastar
inferno frio: fritar
aqui sufoca-se contando excesso dar
poemas de
Elogio da Retroescavadora & Homenagem aos Normais
(2002 - 2003)
ICH BIN EIN IRAQUIANO
eu sou um escarro de polvo
tu és o escárnio do povo
(discurso de ibn salamaleikun
- nome fictício para proteger a nossa fonte -
enquanto tentava derrubar à cabeçada
mais uma estátua do grande timoneiro
do sério encantador que teria encantado sinbad o marinheiro
do apócrifo apocalíptico génio da lâmpada eléctrica
daquele que lá se babava enquanto dava de comer aos quarenta ladrões
daquele que se pudera axadrezara xerazade
e abocanharia nabucodonosor o grande rei de babilónia
e que por ser herói e erudito
retiraria a côdea do pão codificado de hamurábi
para dar ao verdadeiro povo eleito
o coiro e a carcassa do corão
a caspa e a casta do autêntico profeta
o coro e o coral da vera kalashnikov aliás ak47.
mas para sermos ainda mais rigorosos ibn salamaleikun
bebe vinho come porco e fuma ópio
e em pequeno sofreu um ataque de asma
sarin antrax varíola e gás mostarda
que aliás é o único condimento que ele põe
por baixo e por cima dos hamburgers do mac donalds
- que a paz do verdadeiro deus seja com ele
pois - afirma a gente ímpia - é só dos pobres de espírito
a mais certa reservation para esse reino dos céus
que talvez já não seja o antigo jardim do éden
mas é sem qualquer dúvida um paraíso novo
chamado the land of the brave and the home of the free.)
A CAUSA DAS COISAS
a maçã que eu encontrei hoje debaixo da cama
só lá foi parar porque eu a deixei cair
há dois dias atrás e me esqueci dela
até que hoje não sei porquê
espreitei para debaixo da cama
e lá estava ela a maçã que encontrei
hoje debaixo da cama.
é claro que se eu não tivesse espreitado
para debaixo da cama
a esta hora ela ainda lá estaria
a maçã que hoje eu encontrei debaixo da cama.
só não está lá ainda porque hoje
não sei porquê eu espreitei
para debaixo da cama e
a encontrei.
se eu não tivesse tirado de baixo da cama
a maçã que hoje encontrei debaixo da cama
a esta hora ela ainda lá estaria
por baixo da cama.
e isto é como tudo na vida.
QUE CÉU INTERURBANO
eu sei que a esta hora (são quatro como se diz da manhã)
não deveria comer feijão. mas estou autenticamente com fome
(antes deveria dizer verdadeiramente) e por isso
abro uma lata de feijão que como
(não a lata, o feijão) às colheradas.
depois vou à janela fumar um cigarro e é então
que noto como se fosse a primeira vez (e é) que o vejo
o horizonte de edifícios sobrepondo-se ao horizonte
de edifícios que por sua vez se sobrepõe
ao horizonte de edifícios.
na verdade nunca me tinha apercebido disto:
o quão interessante é viver no limiar de uma cidade
e poder daqui observar outra cidade e mais adiante
outra cidade. as formas geométricas monótonas
pela sobreposição deixam de ser monótonas
(mas se as visse amanhã diria o mesmo?)
(melhor mesmo é vê-las também amanhã)
e crescem (como se crescessem) no horizonte da noite
cidade sobre cidade até quase florear o céu
(que céu interurbano!)
digo eu.
AINDA BEM QUE CHOVE EM JULHO
ainda bem que chove em julho
pode ser que assim não chova em agosto
que é quando eu tenho as minhas férias marcadas
isto diz o pobre citadino
que não percebe nada de meteorologia popular.
se estivesse lá na terra perguntando ao tio júlio augusto
este dir-lhe-ia que o tempo já não é o que era
mas que de qualquer forma deus é quem manda na máquina do mundo
e talvez deus tenha enlouquecido
ou então fomos talvez nós que pelas nossas malas artes
enlouquecemos ou envenenámos a alma
da terra.
ELOGIO DA RETROESCAVADORA
escavas retrospectivamente o meu passado
removes a tonelada que soterra os ossos de quem fui
a terra que me comeu e há-de comer mais uma vez
(lá fora passa um pequeno ser com um avião na mão
a mãe afasta-o cautelosamente do trabalho da retroescavadora)
e de quem fui no tempo em que voar só nos delírios
do padre bartolomeu que nunca inventou o avião de gusmão
embora tu saibas que isso é mentira
que os fenícios já voavam sobre as rotas do mediterrâneo
e vinham atafulhar-nos de comércio e bugigangas úteis
a pasmaceira que viria a ser a panaceia nacional
já bocage que não sou fez um poema
em que laudava o mérito e a audácia do balão de ar quente
assim se hoje as pequenas criaturas andam com aviões na mão
os aviões voam sim com pequenas criaturas dentro
e observam lá de cima o trabalho das mil retroescavadoras
que (aqui em baixo) esgravatam o passado
removem ossos e entulho até chegar à canalização
de água ou de esgoto ou de televisão por cabo
arranham ou apenas fazem cócegas na carne viva do planeta
e eu finjo acreditar que o que fazem é arqueologia
que buscam buscam uma civilização menos tardia
que recuperam do pó e da lama um meu corpo anterior
os nossos corpos anteriores
que o seu labor é profundo em favor da humanidade
quando afinal
apenas estão a descarnar um tubo útil para a minha rua
para que os habitantes da minha rua possam descansadamente
excrementar o que no intestino grosso ainda resta do almoço
e isso não é trabalho meritório? dizes tu
sem dúvida! responde a retroescavadora
A PONTE (PRONTO: SALAZAR)
salazar grande estadista era também um tipo esperto:
está-se mesmo a ver que quando construiu a sua ponte
do pragal até alcântara era só para bater certo
com o nome árabe de alcântara que significa a ponte.
se não fosse a ponte a margem sul era hoje um deserto
se não fosse a ponte não víamos lisboa tão defronte.
louvemos pois salazar o homem perto
da perfeição: não sei como há quem defeitos lhe aponte.
e aproveitemos para atravessar a ponte várias vezes
ora de cá para lá ora de lá para cá.
é bela a vista da ponte: faz-nos esquecer os revezes
da vida e da portagem que nos coube em sorte e que há
só para gratificar a lusoponte pelo favor que nos faz nos meses
de agosto em que não desembolsamos. que sobre para as férias: oxalá!
RESPOSTA DA VAIDADE HUMANA AO MENINO JEJUM
o menino jejum nasceu a 25 de dezembro desse ano
e veio a falecer (morreu portanto) a 25 de dezembro desse mesmo ano.
a sua fugaz passagem por este mundo breve
apenas serviu para confrontar a vaidade humana
com as humildes perspectivas de quem muito poderia fazer
neste mundo se aqui tivesse vivido mais tempo.
a vaidade humana encolhe os ombros
e diz que viver neste mundo mais tempo
sem fazer nada
é bem melhor que morrer apressadamente
sem fazer tudo aquilo que poderia vir a fazer
e ainda por cima em jejum.
RESPOSTA DO MENINO JEJUM À VAIDADE HUMANA
aqui do alto assunto a que ascendi
vejo bem o quanto és vã ó vaidade humana
e só não te perdoo porque tu lá sabes
muito bem aquilo que fazes.
(aliás é essa a única coisa que tu sabes.)
muito eu te poderia ensinar sobre o não ser
mas sei também que tu não queres aprender
porque aprender implica trabalhar, como bem sabes.
apenas te digo que já não estou em jejum
pois agora que ascendi a um alto assunto
aqui me alimento com todas as palavras do mundo:
sou um poeta.
e mais não digo
porque no alto assunto a que ascendi o meu latim é muito caro.
ó vaidade humana que te contentas em ser apenas
a vaidade humana:
continua a dormir bem vaidade humana
que eu fico acordado a aprender
e a escrever
mas sei que quando me for deitar
também dormirei bem
embora sonhe sonhos um bocado bem diferentes
dos sonhos que tu sonhas ó vaidade humana.
RESPOSTA DA VAIDADE HUMANA
À RESPOSTA DO MENINO JEJUM À VAIDADE HUMANA
a inveja exacerbada (companheira de quarto da vaidade humana)
acordou ao meio dia e vinte e três a vaidade humana
do sonho hiperactivo no qual como habitualmente hiperagia
para lhe dizer que do planeta alto assunto a que ascendeste
recebera uma comunicação urgente do menino jejum.
a vaidade humana refilou um pouco não muito com a inveja exacerbada
(a vaidade humana refila sempre com qualquer um
ou qualquer uma que a acorde ao meio dia e vinte e três)
e por uma vez na sua hiperactiva vida
dispôs-se a fingir que ouvia uma comunicação
vinda do planeta alto assunto a que ascendeste.
depois disse eu quero é que te vás foder
e voltou para o seu sonho hiperactivo
onde sempre hiperage
queira ou não queira o menino jejum
ou qualquer outro habitante do planeta alto assunto a que ascendeste.
HOMENAGEM AOS NORMAIS
esta tarde andando a pé de mochila às costas
(lá vai o anormal) porque não tenho dinheiro para autocarro
veio um gajo pedir-me lume e vender uma arma
vê lá não é das grandes é assim das pequenas
a mim que não tenho dinheiro e por isso ando a pé
e que de qualquer forma não queria comprar uma arma àquele gajo.
também esta tarde um gajo motorizado que decidiu mudar de direcção
mesmo em cima do desvio para a estrada que eu já estava a atravessar
enfiou-me a focinheira do pópó à frente sem fazer pisca
mas como eu abri os braços então é assim? ele
parou e pediu-me desculpa.
afinal era desculpa lá como é que se vai para o alto das barrocas,
coincidências...
esta tarde estava eu a ir para o alto das barrocas
ouço no meio do trânsito um gajo num comercial ligeiro
berrar muito comercialmente ainda te vou matar hoje
não sei se essa ligeireza era para mim mas se fosse
parece que afinal o gajo é dos que não cumprem o que prometem
ou então o gajo ainda não comprou a arma ao outro gajo.
mas já se sabe que eu tenho a mania da perseguição:
mais feliz é o meu amigo joão que esta tarde ao fim da tarde
estava a conversar nitidamente a ser gozado
por um bando de normais mas olha
quando eu lhe disse que não estava para os aturar
ele respondeu-me que estava para os aturar.
é assim a vida.
MEDITAÇÃO DE UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO NÃO INFORMATIZADO
às vezes penso que a solução para a minha vida
seria desistir agora a meio, arquivá-la
numa pasta de arquivo morto e abrir
a segunda gaveta do lado direito a contar de cima
de onde tiraria uma outra vida essa novinha em folha
como um formulário ainda por preencher.
às vezes penso estas coisas
mas o pensamento é tão concreto tão vago tão banal
e tão absurdo
que logo o arquivo na pasta dos pensamentos mortos
e desisto de pensar.
SONETO MUITO CONTEMPORÂNEO
explica-me lá essa história do branco é galinha o põe.
ou nunca viste um ovo acastanhado?
supões talvez que seja um ovo estragado
como aqui ao meu lado alguém supõe?
ai ai esta cidade (esta idade) que a todos predispõe
a consumir sabedoria popular mas num invólucro esterilizado!
é o mal de seres um artista contemporâneo: já nasceste estilizado
carregado com os vinte quilos de bagagem cultural que a actualidade impõe.
e agora vais fazer uma arte agressiva, uma abrupta
rotura com o passado inovadora e expedita
com os ovos e as caixas de ovos que conseguiste obter na luta
com o patrocinador e mecenas que em arte não acredita
mas que enfim lá deu a guita (que grande filho da puta!)
para teu consolo abriu perto de ti uma loja que vende galinha frita.
ESTE POEMA CHAMA-SE ZAPPING (OBVIAMENTE)
cá estou eu à espera que alguém me traga o loto da felicidade
de preferência já contemplado com o grande prémio.
essa coisa do erotismo já me começa a enjoar
nos noventa e nove canais mais um da televisão
por acaso no hallmark passa um filme sobre a tragédia do titanic
o pai de todos os naufrágios
e no canal história um documentário sobre a queda do muro de berlim
a mãe de todas as filhas da mãe
queixo-me de quê se afinal o odisseia até me ensina
que em nova iorque há quatro ratazanas para cada habitante
agora procuro no canal dois mas não me dizem
qual é a proporção dos mesmos bichos lá em mafra
PROIBIDO ESTACIONAR: OBRA EM URSO (AMO-TE MICAS)
nesta rua de cacilhas é proibido estacionar
porque há uma obra em urso.
não sei quem foi o urso que comeu o cê de cão
da obra em curso. mas sei
que alguém diz que te ama ó micas.
será o urso?
HOMENAGEM AOS NORMAIS (SEGUNDA PARTE)
joaquim (para os amigos o quinzinho)
rapaz de bom porte, de voz grossa
testa baixa e sangue na guelra
é um jovem português normal.
joaquim (o quinzinho) como qualquer jovem português normal
gosta de carros rápidos, gajas descomplicadas e fechaduras fáceis.
há dias abriu a fechadura fácil de um carro rápido
que (sorte a dele) era de um amigo mas que
(azar o dele) espatifou contra um separador central
mas não faz mal, que o pai paga.
há dias descobriu que a gaja descomplicada
com quem andava a foder está mesmo grávida
e porque não está cá para aturar putos
quer obrigá-la a fazer um aborto
mas não faz mal, que o pai paga.
ontem mesmo foi apanhado
dentro de uma casa de fechadura fácil
onde entrou com o justificado fim de arranjar dinheiro
para a droga que todos os dias tem de enfiar na veia, coitadinho.
agora vão obrigá-lo a fazer uma cura
mas não faz mal, que o pai paga.
e é este jovem português normal que passa por mim na rua
e me diz: tu não vales um caralho.
pois não.
eu não sou jovem. nem português. nem normal.
um jovem português normal, esse sim, vale um caralho.
O ÚLTIMO A RIR
quando joão se riu de fernando, fernando riu-se de joão
pensando que assim seria o último a rir. mas
andré riu-se de josé que se ria de joão. fernando
riu-se de todos e pensou que assim seria
o último a rir. mas lucília riu-se de marília
e marília riu-se de lucília pensando
que assim seria a última a rir. mas fonseca
riu-se de alberta que se ria de natália que se
ria de proença que se ria de lousada que se ria
de albertino que se ria de francisca que se ria de
tobias que se ria de cristina que se ria
de afonso que se ria de antónio que
se ria de baltasar que se ria de ana que se
ria de mariana que se ria de marília que se ria
de andré que se ria de fernando que se ria de joão.
quando todos se calaram era já de noite
e passou-lhes por cima um camião cisterna tipo tir que vinha
com as luzes apagadas.
ficou apenas fernando. mas esse
coitado
agora já não tinha ninguém de quem rir.
poemas de
A crónica da minha apostasia (2007 - ... [in progress])
NORTE POR NOROESTE
nestes longos campos de milho
abrasados pelo fogo
nestes largos campos de milho
ao sol de agosto
nestes rasos campos de milho
sedentos de vingança
nestes áridos campos de milho
sem uma gota de orvalho
nestes intermináveis campos de milho
que se alongam só no meu pensamento
nestes oh tão indolentes
e tão absurdamente falsos campos de milho
descobri
finalmente
o quanto a minha vida se resume
a uma aparentemente interminável
chatice
nestes sinceramente monótonos campos de milho
e não há uma merda de um avião
(de preferência biplano)
que venha para cima de mim
e me faça pelo menos
levantar o rabo da cadeira
e correr
nestes tão absurdamente crus campos de milho,
passa-me aí as pipocas.
ULISSES O ROBOT FILOSOFANDO
"As minhas palavras elevam­se
mas os meus pensamentos ficam presos à terra:
palavras sem pensamentos
não chegam ao Céu."
Shakespeare, 'Hamlet'
voltar a ser humano
ou nunca mais voltar a ser humano
saber sulcar a terra das palavras
carpinteirar seu barco e navegar
no mundo imenso e duro
ser como num poema de Sophia
o pensamento hábil que floresce
semântico do plácido trabalho
ou enxertar em nós o silicone
do tudofeito&prontoaengordar
a timidez do flácido neurónio,
eis a questão.
ANZOL
ver
ou não
ver
saber
ou não
saber
morder
ou não
morder
eis a questão:
Edição Debaixo do Bulcão Abril de 2016
(imagem: Luisa Trindade 1997)

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Antologia Prévia

  • 1.
  • 2. este livro é dedicado a todas as pessoas que, ao longo destes trinta e tal anos de escrita, me têm encorajado (e às vezes desencorajado) a continuar. não vou mencionar nomes porque são mais que as mães e ainda me esquecia de algum ou alguma. mas vocês sabem quem são. vocês pah!
  • 3. António Vitorino Antologia prévia com prefácio do Excelentíssimo Professor Doutor Abreu Santinho capa e arranjo gráfico Sturrefsit Adjukaatrix Edição Debaixo do Bulcão http://debaixodobulcao.blogspot.com Dados de copyright? Copyquê? Almada, Abril de 2016
  • 4.
  • 5. CONFIDENCIOU-ME o meu mui prezado amigo António Victorino que, desenganado quanto à possibilidade de publicar os diversos tomos da obra literária a qual, laboriosamente e nas trevas, tem composto ao longo das últimas três décadas, optou por reunir em crestomatia uma selecta de alguns enunciados, com os quais espera proporcionar não uma colectânea dos seus melhores poemas, mas antes uma panorâmica diacrónica da evolução do seu fabro forjar de versos. E, amavelmente, convidou este humílimo escriba a tecer algumas considerações em forma de prefácio. Estando eu a trabalhar no meu próprio livro, intitulado Epifonias do Ágape Egineta, não obstante não quis, contudo, subtrair-me a assistenciar este cordato, porém não artiozoário, facharão de labor literário. É pois, com júbilo que me presto a esta abonação em prol de quem tanto tem pugnado em favor das artes de Ératro e - porque não dizê-lo? - de Melpômene, quando não até mesmo de Polímnia, e nunca em chave macarrónea, atente-se. Porém, representar o pensamento por meio de caracteres de um sistema de escrita a fim de ponderar operativamente em co-ocorrência com o enunciado dado e proposto a exame afigura-se, convenhamos, espinhosa hermenêutica. Todavia, e perante a conturbada biografia do autor, ocorre-nos antes de mais a este respeito a prédica de Aurélio Agostinho de Hipona, o qual reconhecia não haver "lugar para a sabedoria onde não haja paciência". Munidos, pois, dessa paciência (santa paciência, diria um jocoso que não queira entender no que digo mais que meros cavalinhos de tróia saindo de outros cavalinhos de tróia), tentemos entender e perorar sobre a polissémica e polimorfa arte poética que António Victorino representa neste opúsculo. Se “os pontos fracos de um livro são com frequência a contrapartida de intenções vazias que não se soube realizar”, como pretendia Gilles Deleuze, o efeito desta obra organizada que ora pomos diante dos olhos, demonstra-nos, com sagacidade e à saciedade, a pusilanimidade de um poeta que, sequencialmente, recusa ser crestado ou atralhoado pelo conjunto de conceitos proto-filosóficos logicamente solidários, mas considerados mais na sua coerência que na sua verdade, em vigor na actual sociedade do espectáculo e nos seus dispositivos culturais hegemónicos. Neste contexto, a poesia de Victorino afigura-se-nos como "arte oculta" e "agente de diferenciação", no sentido para que Deleuze aponta quando escreve que “um conceito é totalmente incapaz de especificar-se ou dividir-se; o que age sob ele, como arte oculta, como agente de diferenciação, são os dinamismos espaciotemporais”. De facto, há em Victorino toda uma ética de diferenciação via dinamismos espaciotemporais (e é por essa mesma razão que o título Antologia Prévia nos parece tão acertado), configurada numa gramática de constrições concomitantemente pós-estruturalistas e desconstrutivistas, sim, sem, contudo, se acercar mais que numa trajectória parabólica (algumas vezes elíptica, mas sobretudo parabólica) e minimalisticamente tangencial aos poetas associados a ou aparentados com as múltiplas ramificações da grande árvore conceptual do pós-modernismo. Apoética de Victorino surge assim, iluminada por esta luz negra da crítica diferenciadora espaciotemporal, como, na asserção platónica, "o vento que não se vê", então claramente visto pelos "olhos do espírito". Ou, se nos apraz usar a mui adequada metáfora de Epimaníades Anatólio de Éfeso, como "um panóptico desterritorializado autorreferente num perene vórtice paroxistico e, frequentemente, peristáltico". Nem mais nem menos. Afirmou em tempos Umberto Eco que “o mundo está cheio de livros fantásticos que ninguém lê”. Que oxalá não seja este um livro fantástico são os meus mais sinceros votos. Campo de São Paulo, 26 de Abril de 2016 Professor DouctorAbreu Santinho provedor do Debaixo do Bulcão pozine
  • 7. PROTOPOÉTICA-COSMOGONIA não te vou falar da lua ela exacta material redescobre sua elipse preferida. e bem sabes não te vou falar de estrelas: são milhões e a prosa é dura. afinal que mais que ter os pés na terra sentir a terra? afinal que mais que ter o sol na boca (no céu da boca)? não te vou falar do abismo vertical falemos só do falar e do não sei bem de agora. deixa-me ser infinito: poesia é corrente de biciclo que saltou. é bichinho é bichano é bichoso. a lógica formal é outra coisa.
  • 8. MINUTO DE SILÊNCIO "Quem sou eu?" perguntava o pai ao filho. Depois de se entornarem num copo de cerveja com groselha. Parece sangue, mas é apenas uma bebida fermentada. Paga-me um copo de leite, ó paula Xis. Agora que já confessei as minhas mágoas. E agora que o dilema se deslumbra com o indício. E que bebi o leitinho que me quiseste dar, ó paula Xis. Depois de apanhar aquela bola transviada. Que me vinha direita às narinas e eu não gosto. Que as grandes penalidades me fustiguem as narinas. Agora, pois, que confessei as minhas mágoas. Só me resta aqui citar um tal poeta do caraças: "Que infeliz que eu sou e esta merda não faz rir. Este mundo custa muito e vai tudo acabar." Agora que este organismo violáceo chega ao fim. Pum-pam-pim! Pum-pam-pim! Pum-pam-pim! Venham dois ou três buscar o inestimável colete. (E antes que a estrela florescesse sob a sombra da Colgate. Filho ao pai o perguntava "?eu sou quem". O pai ao quem perguntava "o filho?" sou eu.)
  • 9. BURNING WILD nascidos, para quê serpentear entre paisagens de cimento? vejo a oblíqua trajectória do cocktail molotof e o homem da publicidade cujo cérebro não receia o fogo posto. para quê poisar, se o delírio apenas se manifesta? sapatos novos, ein, são le coq sportif e assim se artilham os pássaros subjugados à prisão de ventre mas para isso há pastilhas e sais de frutos e cansaços curam-se com proteínas vitaminas e orgasmos vegetais. assim, a estrada pós-sinalizada mente como se fosse e nunca deriva. chamem-lhe recta. chamem-lhe seta ou paisagem de andróginos figurantes obsequiando a figura do primeiro presidente. para quê penetrar se o dilúvio apenas se pressagia? observo as moles humanas são carne para comboio suburbano. quantas portas se abrirão durante a fuga não o saberei contar mas há um vesgo afirmando aqui mais perto tens os mouros. e tu morres. mas talvez não. arderá o continente antes da próxima estrofe?
  • 10. VIDEOCLIP imagens pró-diuréticas: eis que pelo monitor do vítreo sublimar cacofonias o absurdo é querer temporizar. ou seja predadores sobrevoando a superfície de seiscentas e tal linhas, pontos brilhantes, granulado nestlé sincronismo idiossincrático ou aquilo que. até. dúbio é o velocímetro para fora da galáxia. dupla é a via láctea principalmente nos meses em que o verde favorece e as vacas mais produzem. cacofónico projecto: e é por isto que o paraíso vem em folhas de alguns milhares de metros para usar e purificar com água (não diz aqui se é benta). ou como diria copérnico: não consigo trabalhar quando a TV está acesa. e isto equivale a um discurso.
  • 11. MONÓLOGO PARANORMAL Ich habe eine tia turbulenta e fria como a façanha feroz dos glaciares e um pouco mais de porte erecto germanófilo porrete baralhómetro sanguessuga minha macabra ironia ó tia quantos graus de parentesco alcoólico ó álcool quantos mânfios por dinheiro a minha tia prostituir-se, herself e o candeeiro a noite de um requintado ocidental. para normal acredito, só me falta a luz do dia. (ironia)
  • 12. INDIQUEM O NOME POR FORA DO ENVELOPE recebemos, de anónimo, desejos por detonar a redacção agradece agradece a gerência indiquem o nome, digam-nos o tema indiquem o sexo, o desejo, o esgar indiquem, por favor, quando é que vai rebentar indiquem-nos o sonho, a bem da tipografia a redacção agradece agradece a gerência e o resto da família
  • 13. MIRADOURO DE SILVEIRA "Quem sou eu?" perguntava o paixão ao filisteu. Depois de se entornarem num copo de cesário com groselha Parece santeiro, mas é apenas um bedum fermentado. Paga-me um coqueiro de leme, ó apócrifa recapitulatrix. Agora que já confessei as minhas maiorias. E que bebi todo o leme que me quiseste dar. E agora que o dilúvio se deslumbra com a indignação. Depois de apanhar aquele bolchevique transviado. Que me vinha direito à nascente e eu não gosto. Que os grandes pêndulos me fustiguem as nascenças. Só me resta aqui citar um tal poldro do cara-direita. "Que infinidade eu sou e este mês já não faz rir. Esta murça custa muito e vai tudo acabar." Agora que esta orientação de viração termina. Venham dois ou três buscar a inestimável coligação. (E antes que a estria florescesse sob a sonda da Colgate. Filiesteu ao paixão o perguntava "?eu sou quem". O paixão ao quem perguntava "o filisteu?" sou eu.)
  • 14. poemas de Ex Bócios (1987 - 1988)
  • 15. INSOMNIA MEMORANDUM 1.00 organização de vocábulos seminalmente lentos fluindo luar de outubro e o líquido receio de crismar estes momentos. montra quase secreta porque não a posso apunhalar com estes olhos de espanto sangue ou cisma quadrante de pequenos dísticos e o pó da terra: a definição do fumo é inconstante. este pássaro foi água e regride à reorganização das sensações rebeldes como se fosse o rasgar destes caminhos a dinâmica destruição dos símbolos do mundo. 2.00 mas há sempre um recomeço, espelho meu. 3.14 um que pensava ser poeta escrevinhou no wc “no limiar da passagem aguardarei por teu nome” mas agora que do outro lado a montanha revela vórtices estranhos de silêncio há ainda um talvez não que vem de longe embrulhado em papel de celofane. o poeta desafia suas próprias estruturas vejam como oferece a face oposta (dói-lhe o sangue) vejam como despe a farsa posta (arde em cio) 4.07 a quem nunca urinou na central de camionagem de viseu: há um estranho personagem feminino rabiscado, salvo erro, em meados de outro ano afirmando peremptoriamente: ”mas que fado!” 5.55 filosofia popular: que ninguém diga “à central de camionagem nunca eu irei mijar”
  • 16. OBSCURO seguramente, a experiência não foi má singularíssima pala para o manso da sabina unilateral relativamente bem sucedeu que sim a epistolice piorou mas não se pode querer tudo e ninguém vai acordar o menino que dorme lá em baixo ninguém quer arriscar uma descida a esse inferno. sabem que um homem não rebenta, nem que chore mas mesmo assim não querem.
  • 17. ORANGOTATÓRIA nem operação sarcástica me tolhe caravaggio e picasso derretidos na alfândega de andorra e o carregamento de coca-cola e a bala perfurando os ossos cranianos de um qualquer personagem secundário na merda de porca de vida de cidade sinal des contentamento in contentamento labial verde que te quero sede dos cânticos positivistas alguns te contam as tragédias. mas não a minha gata. um dia destes rifo os teus telões e a tua salubridade também. por algum motivo eu não sou o kaiser guilherme segundo.
  • 18. poemas de Os dias comem-se tristes (1995 - 1996)
  • 19. OS DIAS COMEM-SE TRISTES momentos mudam de cor. transformam o prazer em golpe súbito. então jorram as palavras sílabas por desvendar que não se acabam em coágulo dos dias fica o frio da morte anunciada. ao ritmo do coração embalas para o lado esquerdo o leite materno da paisagem que já foi amor e hoje, agora neste preciso tormento a temperatura aumenta, mais um átomo sensível não o podes contornar. nem mesmo sabes nem sabes quais as sílabas que há ainda para unir, agora despedaçaste a moldura inquebrável destes dias: excesso de lucidez, o sol queima os teus versos, mergulhas na euforia. esquecer de ser. é isso.
  • 20. EIS AS PALAVRAS ARTICULADAS o nome de um poema é o mais importante do mundo logo a seguir vem a carruagem do primeiro verso e a do segundo e a do terceiro até formar o poema. mas o que é um poema? para que serve um poema? o mundo não explica. a poesia não explica o mundo serve-se das vísceras como água se fosse bebida talvez. ainda ninguém sabe. ainda não há ciência. eis as palavras articuladas. um pequeno deus arrisca a pergunta: para quê?
  • 21. CIRCUITO FECHADO "il tuo dovere è di migliorarti di stare bene di realizzarti cerca di essere il meglio che ti riesce per poi darti agli altri" Eugenio Finardi a fonte das lágrimas secou. também as palavras o que resta de ti? meter os punhos sangrentos na raiva dos dias ruídos da cidade cega por modelar argila pobre dos dias, massa lunar do silêncio fragmentos da cidade cega, impossível o afecto o que resta de ti? amar o labirinto, abres os poros à sedução de todas as dificuldades, amar o que é difícil. fechas-te na sala oval do desespero e atrás de cada porta o mistério. olha: abre esta devagar, talvez seja o armário da poesia. não dormes, pensas o coração promete dar-te mais um dia.
  • 22. FRASE LAPIDAR escrever é sobreviver: voar por cima da vida, talvez esquecer.
  • 23. REMAR, MAS DEVAGAR retiro a mão da água tépida do lago onde os rafeiros patos boiam a mão turva o momento indeciso de agarrar no remo e remar. mas devagar. deixo que o cigarro se apague na água suja do lago onde boiam pauzinhos de gelado e papéis de rebuçado.
  • 24. poemas de Pequena incursão no labirinto (1997)
  • 25. E PRONTO AGORA JÁ PODES CHORAR e pronto, agora encerraste os teus lírios na camera obscura do esquecimento e pronto agora ranges dentes apertas parafusos no cérebro no torno regulas o torniquete que evita o jorro de palavras necessárias para que te possas entender quem és quem estás a ser que peixes voadores pululam teus tropismos ou teu sal de lágrimas que evitas de águas perdidas de silêncios na volta do fumo para casa do mar. e pronto agora agora já podes mudar a cor do rosto e já podes apertar a porca regular o torniquete da tua inquisição metódica teu índex teu ódio teu pesar. e pronto agora agora que desistes e te fechas no teu quarto mostra ao mundo a massa de que é feito um poeta. agora já podes chorar.
  • 26. RASO CHÃO 1. o cosmos que encerra esta densidade. semente: cápsula no campo raso das sílabas que ainda dormem. cápsula será: nascente de palavras quando explodir em mil significados: cápsula que agora desperta as sílabas, conduz o ser vivente ao caminho de seu próprio discernimento. caminhar, a grande azáfama: fertilizar os dias largar hipóteses na terra; de algumas nascerá fruto de outras só a flor da dúvida, conceito incompleto mas novamente fértil. 2. afias a farpa da contradição. e assim adulteraste uma vez mais a sementeira. diz-me: que fruto amargo emerge dessa água? qual o poema que vai morrer depois do júbilo? que discernimento quase cego em ti te adivinha os caminhos do exílio figurado ou sonhado? quantas peles vais deixar pelo fio do tempo até que alcances respirar a casa, tua casa? e existe em que horizonte, se existe?
  • 27. A BOMBA DA PAZ todas as nações deviam ter uma bomba nuclear. afinal, todos os supersticiosos têm a sua moedinha da sorte, não é assim?
  • 28. ÁLVARO VELHO EM LISBOA encalho num beco sujo de lisboa. meu primo josé pereira já saiu. vem o bafo do bafio agoniar-me. olho à volta do quarto. quem sou eu? que morte me convidou a vir? olho as paredes encardidas, o papel a descolar... ah, sim! papel na parede, cartografia de outros inquilinos desta casa. quem eram? pensamentos, olhos de noite à deriva... é sempre assim: acostar ao dorso de outra cidade. sempre assim: eu venho lá da telúrica vida das grandes pedras, dos silêncios matinais, das serpes do cheiro vigoroso da terra removida após a chuva... aqui o cheiro é forte, mas é cansaço de corpos é mistério de gerações por decifrar entre quatro paredes é um espasmo adivinhado, agonia, dias de álcool noites de amor intenso, choro e raivas outra vez... o ar do quarto carregado de mensagens desses corpos que passaram... abro a janela. olho a rua sonolenta: recanto de lisboa. quem é esta cidade? tento lembrar-me... cidade grande com muitas cidades dentro, apoteose de sentidos, novelo de ingratas vidas, ir e vir, pegar, largar... capital da complicação superlativa? artifício, pirotecnia de febres? ou apenas um formigueiro maior? aqui, não. mas a vida anda talvez por outros lugares, ou por largas avenidas ou por bairros mais variados. penso que só pode ser assim. então, a lisboa que conheço sempre existe ou ficou perdida no meu antigo pensamento? são horas de comer: vou almoçar que não se enche a barriga por pensar.
  • 29. KANT SÃO a vossa evidência visual arde nos olhos corpos na pupila estranhos de entranhar. e não mais ofendam este sensitivo globo: hábeis sois apenas na matéria dada não na cúpula, perfeitos só na cópula pois é universal e necessário copular. mas se matéria bruta vos conforma não tendes mais razões para um cisma vinde cá quantos são quero contar chegai-vos vinde até cá criticar a priori se ousais a razão dura o tempo que durar se vos chegardes à minha mão fechada raiva pura.
  • 30. PRIMEIRO MONÓLOGO BARATO vinte e três milhões de galáxias cairam na minha cabeça. foi assim na primavera dos dias no tempo em que nosso pai adão comia os frutos proibidos e conversava com eva na língua bifurcada das serpentes. assim foi na infância do poema.
  • 31. SEGUNDO MONÓLOGO BARATO por essas alvoradas da palavra articulávamos severos sons: poetas fomos. depois, erguemos uma torre muito alta e deus zangou-se. é por isso que a poesia não vende: porque não e também não é passível de verter em outros moldes. e trair é atrair a tradição, não vá deus zangar-se novamente com os versos.
  • 32. TERCEIRO MONÓLOGO BARATO os milagres da palavra, edição encadernada papel de alto risco e delambida lombada. de galáxias só milhões são vinte e três de profetas só milhares, trinta e dois de rimances, muitas rimas, multidões. outras contas de poetas: contas feitas trinta e três, noves fora quase nada. compre cá. aqui o compre calhamaço de palavra condenada: enforcada nesta guita. o cordel não custa nada e a prosa é barata.
  • 33. TRAGÉDIA: PRANTO DE POETA ENTRE MILHÕES não. apontas para mim o sol. não quero. deixa-me crepuscular aqui na mesa do canto quietinho. animal submerso em sono e evidentemente, litros de água com sal. quanto custa um poema? sangue, furnas de sangue. vulcão que expele a raiva toda e por fora... ... o quê? faz-de-conta, rigidez de pedra? não olhes para mim. não quero. desisto: não apontes para mim o sol dos olhos nem a noite da imaginação, ponto final. ... mas final? quando? que final? não. apenas hibernar dormir como um pequeno bicho... isso, para saber que o inverno há-de passar e o ciclo se renova como papel higiénico. isto era uma piada mas também era um ovo de verdade que há-de nascer. como uma cobra. eu não. mas há quem coma.
  • 34. PROMETESTE? com tantos deuses, tanto amor e ódio era preciso mais amor e ódio? pois tinhas de criar mais cio e sangue, não te bastava o mundo consentido? que espécie de loucura te perdeu? não sabias, ó deus, que essa promessa só amassa na dor a mole humana? e olha para zeus: alcmena engana como tantas mortais já enganou. não te rias. tu sabes que essa hora só promete por fim tua justiça. mas chora, prometeu, que ainda tarda o dia em que te vou largar o fígado.
  • 35. PROMETEU prometeu dar-nos a vida, e deu. prometeu dar-nos o fogo, e deu. olhámos para nós: eramos vivos e também tinhamos o fogo para incendiar o mundo. olhámos para o mundo: era verdade e tinha-nos a nós para o poder queimar. lançámos corpos todos a essa longa tarefa. isso foi há muitas vidas, hoje estamos quase a cumprir o prometido.
  • 37. FOI ASSIM: à meia noite fria nós quentes pousámos na varanda e ordenámos a cada um dos olhos que nos dissessem do fogo que além suspenso estralejava e mesmo só para se ver alguns de nós desperdiçaram certo vinho impulsionado a gás alguns de nós mastigaram frutos secos desejando não se engasgar no último alguns de nós meninos beijámos algumas de nós meninas e assim é que deve ser depois continuou a eterna noite eterna bebedeira de todos nós e depois continuou a noite tão de todos como de cada um de nós e no resto do mundo outras noites coincidiram com dias antes e depois consequência natural da rotação da terra sobre o seu imaginário eixo. de manhã inda mal o sol se via chegar turbulento a casa arrancar a folha ao calendário vem o sol e nós dormir...
  • 38. AUTOGEOLOGIA este vulcão adormecido não sou eu mas a sua massa é igual ao meu silêncio este magma não ameaça o ser vivente que é em cima por agora ruminam os ruminantes e comem os predadores ignorantes do vulcão adormecido que há em baixo mas não sou eu. o vulcão há-de acordar vai ser obrigado a cuspir o seu calor de morte e não sou eu que tenho sempre a escolha de permanecer sereno com o meu inferno interior só para mim descansem, pois, pequenos habitantes de pompeia.
  • 39. DÚVIDA METÓDICA OU DISCURSO DO VELHO DO RESTELO AO INVESTIGADOR CIENTÍFICO agora que descobriste a molécula tens a certeza que descobriste a molécula? eu sei que és sagaz mas pensas que os teus olhos nunca te enganam? descobriste o cristal mereces o prémio nobel mas tens a certeza que descobriste o cristal? sim descobriste mas sabes o que vive dentro daquilo que descobriste? tens a certeza? por dentro viste?
  • 40. ESPARSAAO DESCONCERTO DO MUNDO agora que deviam regressar as andorinhas regressou o inverno. a diferença é: as andorinhas são seres vivos o inverno é entidade mitológica as andorinhas enchem o céu de alegria e o inverno molha-nos.
  • 41. FALTA DE IMAGINAÇÃO "Ainda por cima os homens são os homens Soluçam, bebem, riem e digerem sem imaginação." José Gomes Ferreira boa noite. o dia esteve lindo mas poderia ter sido melhor. enfim não choveu e cá estamos outra vez. ah! dêem-me um copo de vinho suor das noites quentes dos poetas frios (ou será o contrário não me lembro) e um copo de vinho e um copo de vinho e um copo de vinho. olha lá (diz a musa) não te esqueceste de referir a ganza? e digo eu à musa: vai bardamerda mas isso já não é poesia, boa noite.
  • 42. PEQUENA CRÓNICA DA NORMALIDADE "Para os heróis­de­passagem concebi ainda um pedestal ao estilo clássico onde, a troco de uma remuneração simbólica, eles poderão, sentados na nobre coluna, usufruir os benefícios de uma glória temporária" Sam, Homenagem ao Caracol e Outras Cerimónias conseguiste, finalmente eles sabem qual a perfeita engenharia para essa virtualidade. o insaciável é demente e eu aqui que sou um ser humano mais normal misturo-me com outros seres humanos mais normais e damos grandes braçadas na merda da normalidade. mas assim é que está bem. e enquanto eles te esvaziam o furúnculo da imaginação nós ficamos de boa saúde alucinados pela glória prometida mas saudáveis a imitar uma torrente de espermatozóides só que em vez do óvulo teremos o pedestal se o tivermos.
  • 43. TODOS OS DIAS UM PATO DIFERENTE cf "Um Pato Chamado Harry" Fernando Namora, "Marketing" estamos irremediavelmente sós na cidade. não estamos irremediavelmente sós dentro do mundo que se mexe e fervilha dentro da cidade. enfim estamos sós por isso vamos ao jardim vamos conversar com patos escolheremos todos os dias um pato diferente. se fosse cisne chamar-lhe-íamos poesia porém é pato: chamemos-lhe verso branco. mas onde se afoga o jardim? que pato? não. a cidade já não tem jardins. a cidade já não tem patos. estamos irremediavelmente sós na cidade.
  • 44. POEMA PLATÓNICO OU QUASE ISSO se eu pudesse ser imaterial pensamento estado puro se eu pudesse existir só por pensar existir só em pensamento ser o pensamento pensar compulsivamente nascer do pensamento em pensamento ser menos que ser nuvem, que é matéria ser muito mais subtil que o próprio ar ser puro pensamento... e agora penso e agora pensando paro para pensar penso que vocês já entenderam mas também penso que talvez não tenham entendido. vem cá, discípulo incrédulo: faz um pequeno esforço e desloca-te inspira, abre a boca, faz vibrar essa garganta diz-me que coisa é pensar. não digas, que não sabes não tropeces nessa laje, que te aleijas e depois ainda ficas a pensar na dor e assustas-te com o sangue que é vermelho mesmo quando pensas que sabes que a cor é ilusão. é complicado, pensar. e é triste pensar que não se pensa só com pensamento quando teu joelho esfolado também pensa pensou na dor antes de ti ou do que pensas ser tu e agora inteligentemente está inchado mesmo que tu penses que melhor seria não estar. é triste pensar que a matéria também pensa e não saber se há pensamento sem matéria ossos, sangue, nervos e massa muscular. pensamento é sobre a terra não sabemos se o há noutros lugares. e penso que por fim sei o que sou mas quem estou agora a ser não o saberei pensar. isso, acabou, vai lá fazer um penso e pensa em não voltar a tropeçar.
  • 45. VLADIMIR MAIAKOVSKI NA PONTE DE BROOKLYN saúde industrial! aviões que devem ser para todos! lâmpadas eléctricas! (a poesia é o poder do aço temperado pelo homem e a iluminação do mundo) mordo fortemente a maçã do júbilo alegro-me por estar aqui onde quem não quer morrer de fome cai de cabeça nas águas oh tão sujas do moderno rio east e onde os fios eléctricos dão à morte um tom mais brilhante milhares de vóltios a brincar no corpo do condenado. alegro-me por estar aqui onde a gigantesca pata central de manhattan faz amor com a despudorada brooklyn e os comboios subterrâneos também dão razão a freud e os altos edifícios também dão razão a freud. eia maiakovski! quando uma coisa parece ser boa parece ser mesmo boa, não é?
  • 46. LIMO há um fermento de medo. e germina dentro do corpo das palavras que não se dizem. fervilha: e é um fogo plasma do silêncio na mais profunda caverna do que é ser revolve o sonho ancestral da solidão. é tenebroso: porque não tem vocábulos eppur si muove onde já não há pensamento labora o limo da razão.
  • 47. OLHOS esses dois glóbulos que eu amo chamam-se olhos (são os teus olhos) e nascem lá de dentro da caixa craniana servem para ver são portanto apêndices do sistema nervoso central esses olhos onde bebo a tua alma ou há qualquer anomalia nestes versos
  • 48. HIPÉRBOLE escrever poemas é como deitar: pérolas a pombos milho a porcos pão a famintos de justiça.
  • 49. CIBERLÍRIO descer a cave: ex cavar cavername: cavernar ideia morta na pasta: eis pastar inferno frio: fritar aqui sufoca-se contando excesso dar
  • 50. poemas de Elogio da Retroescavadora & Homenagem aos Normais (2002 - 2003)
  • 51. ICH BIN EIN IRAQUIANO eu sou um escarro de polvo tu és o escárnio do povo (discurso de ibn salamaleikun - nome fictício para proteger a nossa fonte - enquanto tentava derrubar à cabeçada mais uma estátua do grande timoneiro do sério encantador que teria encantado sinbad o marinheiro do apócrifo apocalíptico génio da lâmpada eléctrica daquele que lá se babava enquanto dava de comer aos quarenta ladrões daquele que se pudera axadrezara xerazade e abocanharia nabucodonosor o grande rei de babilónia e que por ser herói e erudito retiraria a côdea do pão codificado de hamurábi para dar ao verdadeiro povo eleito o coiro e a carcassa do corão a caspa e a casta do autêntico profeta o coro e o coral da vera kalashnikov aliás ak47. mas para sermos ainda mais rigorosos ibn salamaleikun bebe vinho come porco e fuma ópio e em pequeno sofreu um ataque de asma sarin antrax varíola e gás mostarda que aliás é o único condimento que ele põe por baixo e por cima dos hamburgers do mac donalds - que a paz do verdadeiro deus seja com ele pois - afirma a gente ímpia - é só dos pobres de espírito a mais certa reservation para esse reino dos céus que talvez já não seja o antigo jardim do éden mas é sem qualquer dúvida um paraíso novo chamado the land of the brave and the home of the free.)
  • 52. A CAUSA DAS COISAS a maçã que eu encontrei hoje debaixo da cama só lá foi parar porque eu a deixei cair há dois dias atrás e me esqueci dela até que hoje não sei porquê espreitei para debaixo da cama e lá estava ela a maçã que encontrei hoje debaixo da cama. é claro que se eu não tivesse espreitado para debaixo da cama a esta hora ela ainda lá estaria a maçã que hoje eu encontrei debaixo da cama. só não está lá ainda porque hoje não sei porquê eu espreitei para debaixo da cama e a encontrei. se eu não tivesse tirado de baixo da cama a maçã que hoje encontrei debaixo da cama a esta hora ela ainda lá estaria por baixo da cama. e isto é como tudo na vida.
  • 53. QUE CÉU INTERURBANO eu sei que a esta hora (são quatro como se diz da manhã) não deveria comer feijão. mas estou autenticamente com fome (antes deveria dizer verdadeiramente) e por isso abro uma lata de feijão que como (não a lata, o feijão) às colheradas. depois vou à janela fumar um cigarro e é então que noto como se fosse a primeira vez (e é) que o vejo o horizonte de edifícios sobrepondo-se ao horizonte de edifícios que por sua vez se sobrepõe ao horizonte de edifícios. na verdade nunca me tinha apercebido disto: o quão interessante é viver no limiar de uma cidade e poder daqui observar outra cidade e mais adiante outra cidade. as formas geométricas monótonas pela sobreposição deixam de ser monótonas (mas se as visse amanhã diria o mesmo?) (melhor mesmo é vê-las também amanhã) e crescem (como se crescessem) no horizonte da noite cidade sobre cidade até quase florear o céu (que céu interurbano!) digo eu.
  • 54. AINDA BEM QUE CHOVE EM JULHO ainda bem que chove em julho pode ser que assim não chova em agosto que é quando eu tenho as minhas férias marcadas isto diz o pobre citadino que não percebe nada de meteorologia popular. se estivesse lá na terra perguntando ao tio júlio augusto este dir-lhe-ia que o tempo já não é o que era mas que de qualquer forma deus é quem manda na máquina do mundo e talvez deus tenha enlouquecido ou então fomos talvez nós que pelas nossas malas artes enlouquecemos ou envenenámos a alma da terra.
  • 55. ELOGIO DA RETROESCAVADORA escavas retrospectivamente o meu passado removes a tonelada que soterra os ossos de quem fui a terra que me comeu e há-de comer mais uma vez (lá fora passa um pequeno ser com um avião na mão a mãe afasta-o cautelosamente do trabalho da retroescavadora) e de quem fui no tempo em que voar só nos delírios do padre bartolomeu que nunca inventou o avião de gusmão embora tu saibas que isso é mentira que os fenícios já voavam sobre as rotas do mediterrâneo e vinham atafulhar-nos de comércio e bugigangas úteis a pasmaceira que viria a ser a panaceia nacional já bocage que não sou fez um poema em que laudava o mérito e a audácia do balão de ar quente assim se hoje as pequenas criaturas andam com aviões na mão os aviões voam sim com pequenas criaturas dentro e observam lá de cima o trabalho das mil retroescavadoras que (aqui em baixo) esgravatam o passado removem ossos e entulho até chegar à canalização de água ou de esgoto ou de televisão por cabo arranham ou apenas fazem cócegas na carne viva do planeta e eu finjo acreditar que o que fazem é arqueologia que buscam buscam uma civilização menos tardia que recuperam do pó e da lama um meu corpo anterior os nossos corpos anteriores que o seu labor é profundo em favor da humanidade quando afinal apenas estão a descarnar um tubo útil para a minha rua para que os habitantes da minha rua possam descansadamente excrementar o que no intestino grosso ainda resta do almoço e isso não é trabalho meritório? dizes tu sem dúvida! responde a retroescavadora
  • 56. A PONTE (PRONTO: SALAZAR) salazar grande estadista era também um tipo esperto: está-se mesmo a ver que quando construiu a sua ponte do pragal até alcântara era só para bater certo com o nome árabe de alcântara que significa a ponte. se não fosse a ponte a margem sul era hoje um deserto se não fosse a ponte não víamos lisboa tão defronte. louvemos pois salazar o homem perto da perfeição: não sei como há quem defeitos lhe aponte. e aproveitemos para atravessar a ponte várias vezes ora de cá para lá ora de lá para cá. é bela a vista da ponte: faz-nos esquecer os revezes da vida e da portagem que nos coube em sorte e que há só para gratificar a lusoponte pelo favor que nos faz nos meses de agosto em que não desembolsamos. que sobre para as férias: oxalá!
  • 57. RESPOSTA DA VAIDADE HUMANA AO MENINO JEJUM o menino jejum nasceu a 25 de dezembro desse ano e veio a falecer (morreu portanto) a 25 de dezembro desse mesmo ano. a sua fugaz passagem por este mundo breve apenas serviu para confrontar a vaidade humana com as humildes perspectivas de quem muito poderia fazer neste mundo se aqui tivesse vivido mais tempo. a vaidade humana encolhe os ombros e diz que viver neste mundo mais tempo sem fazer nada é bem melhor que morrer apressadamente sem fazer tudo aquilo que poderia vir a fazer e ainda por cima em jejum.
  • 58. RESPOSTA DO MENINO JEJUM À VAIDADE HUMANA aqui do alto assunto a que ascendi vejo bem o quanto és vã ó vaidade humana e só não te perdoo porque tu lá sabes muito bem aquilo que fazes. (aliás é essa a única coisa que tu sabes.) muito eu te poderia ensinar sobre o não ser mas sei também que tu não queres aprender porque aprender implica trabalhar, como bem sabes. apenas te digo que já não estou em jejum pois agora que ascendi a um alto assunto aqui me alimento com todas as palavras do mundo: sou um poeta. e mais não digo porque no alto assunto a que ascendi o meu latim é muito caro. ó vaidade humana que te contentas em ser apenas a vaidade humana: continua a dormir bem vaidade humana que eu fico acordado a aprender e a escrever mas sei que quando me for deitar também dormirei bem embora sonhe sonhos um bocado bem diferentes dos sonhos que tu sonhas ó vaidade humana.
  • 59. RESPOSTA DA VAIDADE HUMANA À RESPOSTA DO MENINO JEJUM À VAIDADE HUMANA a inveja exacerbada (companheira de quarto da vaidade humana) acordou ao meio dia e vinte e três a vaidade humana do sonho hiperactivo no qual como habitualmente hiperagia para lhe dizer que do planeta alto assunto a que ascendeste recebera uma comunicação urgente do menino jejum. a vaidade humana refilou um pouco não muito com a inveja exacerbada (a vaidade humana refila sempre com qualquer um ou qualquer uma que a acorde ao meio dia e vinte e três) e por uma vez na sua hiperactiva vida dispôs-se a fingir que ouvia uma comunicação vinda do planeta alto assunto a que ascendeste. depois disse eu quero é que te vás foder e voltou para o seu sonho hiperactivo onde sempre hiperage queira ou não queira o menino jejum ou qualquer outro habitante do planeta alto assunto a que ascendeste.
  • 60. HOMENAGEM AOS NORMAIS esta tarde andando a pé de mochila às costas (lá vai o anormal) porque não tenho dinheiro para autocarro veio um gajo pedir-me lume e vender uma arma vê lá não é das grandes é assim das pequenas a mim que não tenho dinheiro e por isso ando a pé e que de qualquer forma não queria comprar uma arma àquele gajo. também esta tarde um gajo motorizado que decidiu mudar de direcção mesmo em cima do desvio para a estrada que eu já estava a atravessar enfiou-me a focinheira do pópó à frente sem fazer pisca mas como eu abri os braços então é assim? ele parou e pediu-me desculpa. afinal era desculpa lá como é que se vai para o alto das barrocas, coincidências... esta tarde estava eu a ir para o alto das barrocas ouço no meio do trânsito um gajo num comercial ligeiro berrar muito comercialmente ainda te vou matar hoje não sei se essa ligeireza era para mim mas se fosse parece que afinal o gajo é dos que não cumprem o que prometem ou então o gajo ainda não comprou a arma ao outro gajo. mas já se sabe que eu tenho a mania da perseguição: mais feliz é o meu amigo joão que esta tarde ao fim da tarde estava a conversar nitidamente a ser gozado por um bando de normais mas olha quando eu lhe disse que não estava para os aturar ele respondeu-me que estava para os aturar. é assim a vida.
  • 61. MEDITAÇÃO DE UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO NÃO INFORMATIZADO às vezes penso que a solução para a minha vida seria desistir agora a meio, arquivá-la numa pasta de arquivo morto e abrir a segunda gaveta do lado direito a contar de cima de onde tiraria uma outra vida essa novinha em folha como um formulário ainda por preencher. às vezes penso estas coisas mas o pensamento é tão concreto tão vago tão banal e tão absurdo que logo o arquivo na pasta dos pensamentos mortos e desisto de pensar.
  • 62. SONETO MUITO CONTEMPORÂNEO explica-me lá essa história do branco é galinha o põe. ou nunca viste um ovo acastanhado? supões talvez que seja um ovo estragado como aqui ao meu lado alguém supõe? ai ai esta cidade (esta idade) que a todos predispõe a consumir sabedoria popular mas num invólucro esterilizado! é o mal de seres um artista contemporâneo: já nasceste estilizado carregado com os vinte quilos de bagagem cultural que a actualidade impõe. e agora vais fazer uma arte agressiva, uma abrupta rotura com o passado inovadora e expedita com os ovos e as caixas de ovos que conseguiste obter na luta com o patrocinador e mecenas que em arte não acredita mas que enfim lá deu a guita (que grande filho da puta!) para teu consolo abriu perto de ti uma loja que vende galinha frita.
  • 63. ESTE POEMA CHAMA-SE ZAPPING (OBVIAMENTE) cá estou eu à espera que alguém me traga o loto da felicidade de preferência já contemplado com o grande prémio. essa coisa do erotismo já me começa a enjoar nos noventa e nove canais mais um da televisão por acaso no hallmark passa um filme sobre a tragédia do titanic o pai de todos os naufrágios e no canal história um documentário sobre a queda do muro de berlim a mãe de todas as filhas da mãe queixo-me de quê se afinal o odisseia até me ensina que em nova iorque há quatro ratazanas para cada habitante agora procuro no canal dois mas não me dizem qual é a proporção dos mesmos bichos lá em mafra
  • 64. PROIBIDO ESTACIONAR: OBRA EM URSO (AMO-TE MICAS) nesta rua de cacilhas é proibido estacionar porque há uma obra em urso. não sei quem foi o urso que comeu o cê de cão da obra em curso. mas sei que alguém diz que te ama ó micas. será o urso?
  • 65. HOMENAGEM AOS NORMAIS (SEGUNDA PARTE) joaquim (para os amigos o quinzinho) rapaz de bom porte, de voz grossa testa baixa e sangue na guelra é um jovem português normal. joaquim (o quinzinho) como qualquer jovem português normal gosta de carros rápidos, gajas descomplicadas e fechaduras fáceis. há dias abriu a fechadura fácil de um carro rápido que (sorte a dele) era de um amigo mas que (azar o dele) espatifou contra um separador central mas não faz mal, que o pai paga. há dias descobriu que a gaja descomplicada com quem andava a foder está mesmo grávida e porque não está cá para aturar putos quer obrigá-la a fazer um aborto mas não faz mal, que o pai paga. ontem mesmo foi apanhado dentro de uma casa de fechadura fácil onde entrou com o justificado fim de arranjar dinheiro para a droga que todos os dias tem de enfiar na veia, coitadinho. agora vão obrigá-lo a fazer uma cura mas não faz mal, que o pai paga. e é este jovem português normal que passa por mim na rua e me diz: tu não vales um caralho. pois não. eu não sou jovem. nem português. nem normal. um jovem português normal, esse sim, vale um caralho.
  • 66. O ÚLTIMO A RIR quando joão se riu de fernando, fernando riu-se de joão pensando que assim seria o último a rir. mas andré riu-se de josé que se ria de joão. fernando riu-se de todos e pensou que assim seria o último a rir. mas lucília riu-se de marília e marília riu-se de lucília pensando que assim seria a última a rir. mas fonseca riu-se de alberta que se ria de natália que se ria de proença que se ria de lousada que se ria de albertino que se ria de francisca que se ria de tobias que se ria de cristina que se ria de afonso que se ria de antónio que se ria de baltasar que se ria de ana que se ria de mariana que se ria de marília que se ria de andré que se ria de fernando que se ria de joão. quando todos se calaram era já de noite e passou-lhes por cima um camião cisterna tipo tir que vinha com as luzes apagadas. ficou apenas fernando. mas esse coitado agora já não tinha ninguém de quem rir.
  • 67. poemas de A crónica da minha apostasia (2007 - ... [in progress])
  • 68. NORTE POR NOROESTE nestes longos campos de milho abrasados pelo fogo nestes largos campos de milho ao sol de agosto nestes rasos campos de milho sedentos de vingança nestes áridos campos de milho sem uma gota de orvalho nestes intermináveis campos de milho que se alongam só no meu pensamento nestes oh tão indolentes e tão absurdamente falsos campos de milho descobri finalmente o quanto a minha vida se resume a uma aparentemente interminável chatice nestes sinceramente monótonos campos de milho e não há uma merda de um avião (de preferência biplano) que venha para cima de mim e me faça pelo menos levantar o rabo da cadeira e correr nestes tão absurdamente crus campos de milho, passa-me aí as pipocas.
  • 69. ULISSES O ROBOT FILOSOFANDO "As minhas palavras elevam­se mas os meus pensamentos ficam presos à terra: palavras sem pensamentos não chegam ao Céu." Shakespeare, 'Hamlet' voltar a ser humano ou nunca mais voltar a ser humano saber sulcar a terra das palavras carpinteirar seu barco e navegar no mundo imenso e duro ser como num poema de Sophia o pensamento hábil que floresce semântico do plácido trabalho ou enxertar em nós o silicone do tudofeito&prontoaengordar a timidez do flácido neurónio, eis a questão.
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  • 72. Edição Debaixo do Bulcão Abril de 2016 (imagem: Luisa Trindade 1997)