O Contacto, jornal de língua portuguesa no Luxemburgo, foi distinguido com mais dois prémios europeus na 23.ª edição dos European Newspaper Awards, considerado o maior concurso de jornais da Europa.
3. 2 | 3 de Novembro de 2021 3 de Novembro de 2021 | 3
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Mau tempo no canal
Em 2016 um referendo ditou o adeus do Reino Unido
à União Europeia. Os britânicos pensavam que com
o Brexit iriam viver o paraíso na terra. Um futuro de rosas.
Mas a realidade é bem diferente
Paulo Anunciação, em Londres
N
as últimas semanas, os postos de ga-
solina nos portos de Calais, Dunker-
que, Bilbau ou Hoek van Holland têm
recebido mais turistas britânicos do
que o habitual. Poucos minutos antes
de embarcar nos ferries de regresso à Inglaterra,
os motoristas fazem questão de cumprir um novo
ritual de última hora: encher os depósitos de ga-
solina. Não é que o preço do combustível seja mui-
to mais barato em França, na Espanha ou na Ho-
landa. A razão é outra. E muito simples: quem con-
duz nas estradas inglesas, hoje em dia, nem sem-
pre tem a garantia de que pode encontrar com-
bustível disponível. Enquanto nas autoestradas
europeias as placas de sinalização das gasolinei-
ras informam sobre os diversos preços do gasóleo
e da gasolina, na Inglaterra a informação passou
agora a ser bem mais simples e crua: hoje temos
(ou não temos) combustível para vender.
No início de outubro, dois terços dos postos esta-
vam “secos” e mantiveram-se assim durante mui-
tos dias. Um mês mais tarde, a crise ainda não
está totalmente debelada. Os mais idosos compa-
raram a míngua com os dias de penúria do pós-
guerra ou da crise petrolífera da década de 1970.
Com uma diferença, porém: para a generalidade
dos observadores, a escassez atual é autoinfligi-
da porque resulta diretamente do referendo de ju-
nho de 2016 que ditou o adeus do Reino Unido à
União Europeia (Brexit). E
4. complicado. Mas agora estamos organizados de
forma a que nunca nos faltem os produtos essen-
ciais”, explica João Diogo, um alentejano de 50
anos radicado na Inglaterra desde meados da dé-
cada de 1990. Ele é dono da empresa Supermer-
cado Portugal que se dedica exclusivamente à
venda online de produtos portugueses e brasilei-
ros no Reino Unido. “O Brexit implica um atraso
adicional de três dias [na importação de produ-
tos] e muitos custos adicionais porque tive de
contratar pessoas em Portugal e no Reino Unido
que tratam da burocracia”.
O empresário Ilídio Ferreira Silva, da empresa
de transportes e mudanças Silva & Silva, alinha
pelo mesmo tom. O Brexit, diz ele, provocou uma
quebra de 40 por cento no volume de negócios
desta firma especializada no circuito entre Portu-
gal e o Reino Unido. “Os transportes para Portu-
gal continuam, mas no sentido inverso [para o
Reino Unido] há pouco movimento. O Brexit com-
plicou a vida. Há muito mais papelada, obrigam-
me a contratar despachantes em Portugal e na In-
glaterra, além das despesas adicionais com IVA
nos dois países e custos com armazenamento e ta-
xas alfandegárias que antigamente não existiam.
Quando transportamos coisas para Portugal, por
vezes temos de esperar quatro ou cinco dias pelo
desalfandegamento”, diz Ilídio Silva, de 56 anos,
natural de Cucujães e radicado em Norfolk desde
2004.
Não é fácil encontrar um português que tenha
uma opinião favorável relativamente ao Brexit. A
mesma Susana Forte Vaz, que trabalha no apoio
à comunidade portuguesa residente em Norfolk,
confirma que muita gente foi embora – sobretu-
do pessoas da Europa do Leste, mas também mui-
tos portugueses. A região do chamado “Retângu-
lo de Norfolk”, que se estende a cidades de re-
giões limítrofes como Boston, Peterborough ou
Ipswich, tinha mais de 90 mil portugueses. Era a
segunda zona mais portuguesa do Reino Unido,
depois da capital. Os portugueses trabalham so-
bretudo nas fábricas de produtos alimentares,
mas também na hotelaria, restauração e limpe-
zas.
Muitos foram embora. A desvalorização da li-
bra, acentuada depois do referendo, foi outro fa-
tor importante. No Verão de 2015, uma pou-
pança de mil libras transferida para Portugal ti-
nha um valor cambial de mais de 1400 euros. Ho-
je em dia o câmbio turístico coloca as duas moe-
das em quase paridade. “Não terá sido unica-
mente por causa do Brexit, mas aconteceu. Outra
coisa que noto é um aumento da discriminação e
do racismo. Antigamente os comentários eram
mais subtis, mas agora são bem mais explícitos e
na nossa cara”, diz ainda Susana, mãe de quatro
filhos, todos nascidos na Inglaterra.
Com o bacon e os perus do Natal em risco, o Go-
verno britânico anunciou nas últimas semanas
que iria conceder vistos provisórios para cinco
mil motoristas e outros 5500 para imigrantes que
queiram trabalhar nas indústrias de aves e de car-
ne de porco. Sempre atento às flutuações da opi-
nião pública, o primeiro-ministro Boris Johnson
terá começado a notar a frustração crescente de
uma população a quem nunca foi explicado, no
referendo de 2016, que as consequências da saí-
da da UE seriam a escassez de mão-de-obra, as
complicações nas fronteiras, as prateleiras vazias
e as filas nos postos de gasolina.
No congresso anual do Partido Conservador,
no mês passado, o populista Johnson voltou a
prometer um futuro de rosas e uma economia de
“salários altos, qualificações altas, produtivida-
de alta”. Os salários estão a subir, de facto, em-
purrados pela escassez de pessoal – tal como
estão a subir os preços, a inflação e a carga fis-
cal. Para Johnson e seus ministros, os problemas
atuais nada têm que ver com o Brexit. Mas para a
portuguesa Marta Mateus, da empresa Marta Vi-
ne, há dez anos importadora e distribuidora de vi-
nhos portugueses no Reino Unido, não restam
dúvidas. “As mudanças são evidentes. O Brexit
não trouxe nada de bom. Por vezes ponho-me a
pensar, esforço-me por encontrar algum aspeto
positivo. Mas não encontro um único”, diz Mar-
ta.
“
A pandemia, aliada
ao Brexit, teve efeitos
drásticos. Muita gente fez as
malas, desfez-se de tudo e foi
embora. Outros mandaram os
filhos”
Ricardina Pederneira
“
O Brexit não trouxe
nada de bom. Por
vezes ponho-me a pensar,
esforço-me por encontrar
algum aspeto positivo. Mas
não encontro um único”
Marta Mateus
(Continuação da página 6)
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