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                                                                                                          MERCaDO DE EsCRavOs Na RUa DO valONGO, debret, aquareLa sobre papeL, C. 1816-1828. reprodução do Livro DEBRET E O BRasIl – OBRa COMPlETa, ed. Capivara, 2009
      Ossos que
        falam
                         escavações na zona portuária do
                           rio de Janeiro revelam retrato
                          pouco conhecido da escravidão

                                          carlos Haag




o
              Instituto Nacional de Criminalís-     e submeter as evidências materiais aos analistas
              tica estabelece uma série de pro-     nos laboratórios. É preciso superar a mera histo-
              cedimentos para se investigar um      riografia documental ou a visão economicista que
              crime: o reconhecimento, que de-      só vê o escravismo do ponto de vista dos modos
              limita a extensão da cena do crime    de produção. A escravidão deve ser materializa-
e a preserva; a documentação cuidadosa e a ob-      da”, diz Tânia Andrade Lima, arqueóloga do Mu-
servação científica do lugar; a procura de provas   seu Nacional, no Rio, e coordenadora do projeto
e evidências a serem coletadas; a análise cientí-   de escavação do Cais do Valongo, porto por onde
fica num laboratório das provas recolhidas pelo     passaram, entre 1811 e 1831, 1 milhão de africanos.
perito. É na junção dessas áreas que se encontra    Foram as obras do Porto Maravilha, a revitaliza-
a solução de, por exemplo, um assassinato. Seria    ção da área portuária carioca iniciada neste ano
possível usar os mesmos procedimentos para          tendo em vista as Olimpíadas de 2016, que per-
“desvendar” um crime cometido há vários sécu-       mitiram aos arqueólogos reabrir a “cena do crime”
los, com milhões de vítimas? Pesquisas recentes     oculta desde 1843, quando foi recoberta com 60
feitas em universidades brasileiras indicam que     centímetros de pavimento e se transformou no
a adoção da mesma interdisciplinaridade, reu-       Cais da Imperatriz, lugar de recepção para Tere-
nindo historiadores, arqueólogos, geneticistas      sa Cristina, a futura mulher de Pedro II. “Havia
(paleogenéticos) e patologistas, poderá, enfim,     outros lugares, mas se optou pelo Valongo como
dar conta de um dos maiores crimes já cometi-       forma de apagamento das manchas passadas da
dos: a escravidão.                                  escravidão”, diz Tânia. Essas cercavam todo o cais,
   “Para se entender a realidade da escravidão é    formando o complexo do Valongo. Casas próxi-
preciso devassar arquivos, desencavar o passado     mas armazenavam e comercializavam os negros.

24 | dezeMbro de 2011
aNtropoLoGia



                                                                                       arqueoLoGia




                                                     uma das “casas de
Quem ficava doente era levado ao lazareto vizinho,   carne” do mercado do
                                                     valongo na visão algo
onde o tratamento se reduzia a “sangrias” feitas     otimista de debret
por barbeiros negros. Os que não resistiam eram      ao mostrar poucos
enterrados, com total descaso, em valas comuns       escravos vigiados pelo
a poucos metros do cais. Logo, o sítio é o sonho     comerciante
de qualquer arqueólogo, trazendo à luz, diaria-
mente, pilhas de objetos pessoais e rituais dos
chamados “pretos novos”, cativos recém-chegados
da África: contas, búzios, cachimbos, brincos com
a “meia-lua” islâmica, miçangas e até “pedras de                                            História
assentamento de orixás”. Sacerdotes e especialis-
tas na cultura e religião africanas ajudam a reco-
nhecer e catalogar os achados.
   “O complexo do Valongo foi criado para ti-
rar os negros do centro do Rio, pois eles eram
vistos como ameaça à saúde, ‘carregadores de
doenças’ e um perigo à ordem pública”, explica
o historiador Cláudio Honorato, autor do estudo
Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro
(Universidade Federal Fluminense, UFF, 2008).
“O Valongo era parte do projeto ‘civilização na-
cional’, intensificado com a transformação do

                                                                              pesquisa Fapesp 190 | 25
tem dois pés de profundidade. Levam o




                                                                                                                                               institUto pretos novos
                                                                                                morto e o atiram no buraco como a um
                                                                                                cão morto, põem um pouco de terra em
                                                                                                cima e se alguma parte do corpo fica des-
                                                                                                coberta, socam-no com tocos de madeiro,
                                                                                                formando um mingau de terra, sangue e
                                                                                                excrementos”, descreveu o viajante Carl
                                                                                                Seidler em 1834. O lugar, porém, obede-
                                                                                                cia à lógica e às regras que engendraram
                                                                                                                     o complexo: “Os es-
                                                                                                                     cravos que não forem
                                                                                                                     vendidos não sairão
                                                                                                                     do Valongo nem de-
                                                                                                                     pois de mortos”.
                                                                                                                        Estima-se que o ce-
                                                                         “os escravos que                            mitério abrigou mais
                                                                                                                     de 20 mil corpos até
                                                                         não forem                                   ser fechado em 1830,
                                                                                                                     por causa de recla-
                                                                         vendidos não                                mações dos vizinhos,
                                                                         sairão do valongo                           temerosos dos “mias-
                                                                                                                     mas” exalados pelos
                                                                         nem mortos”,                                cadáveres “à flor da
                                                                                                                     terra”, bem como da
                                                                         escreveu lavradio                           suspensão do tráfico,
                                                                                                                     não obstante sua con-
                                                                                                                     tinuidade ilegal. O lu-
foto tirada em 1996 na casa em que pedreiros encontraram ossadas                                                     gar caiu no esqueci-
                                                                                                                     mento, vindo a ser co-


                                                  a
Rio em sede do Império. Mas resultou                       pós 60 dias a bordo de um “tum-      berto pela malha urbana que se expandiu
de um paradoxo: criar uma Corte ‘eu-                       beiro”, os africanos, exauridos e    na região portuária em fins do século XIX.
ropeia’ com multidões de negros soltos                     doentes, enfrentavam a falta de      Só foi redescoberto em 1996 durante uma
pelas ruas. Pensou-se que a solução se-            alimentação, de roupas e moradias apro-      reforma numa casa, quando operários
ria usar os escravos para criar a cidade           priadas. A combinação com os castigos        abriram sondagens para alicerce e encon-
à altura do rei. Esse movimento, porém,            os deixava propensos a contrair vírus,       traram milhares de dentes e fragmentos
aumentou a demanda por mais escravos               bacilos, bactérias e parasitas que flores-   de ossos humanos. Como uma “cena do
e, assim, a cidade não conseguia perder            ciam na população densa do Rio. Mais de      crime” era preciso saber quem eram as
as ‘feições do atraso’. Era preciso dimi-          4% dos escravos morriam no primeiro          vítimas. Determinar a origem geográfi-
nuir um pouco daquela promiscuidade                momento, entre o desembarque, a qua-         ca dos 5 milhões de escravos forçados a
e, assim, tirou-se o mercado escravista            rentena e a exposição no mercado. Era        vir ao Brasil é fundamental para várias
da região do Paço, levando-o para um               preciso um lugar para enterrar tantos        áreas do conhecimento, já que dá pistas da
lugar distante e desabitado: o Valongo,            mortos e assim criou-se nas proximi-         constituição genética e cultural dos bra-
um porto natural na Gamboa”, construí-             dades o Cemitério dos Pretos Novos. “A       sileiros, muito impactados pela mestiça-
do por ordem do vice-rei, o Marquês de             mortalidade alta justificaria lugar na ló-   gem. “O tráfico negreiro provocou um dos
Lavradio. Em pouco tempo, o comércio               gica de importação de mão de obra em         maiores deslocamentos populacionais da
de escravos atraiu a população e o local           números crescentes, onde mais mortes         humanidade. Entre os séculos XVI e XIX
virou um dos mais movimentados do                  significava trazer mais escravos. Nos seus   mais de 12,5 milhões de africanos foram
Rio. Além do cais, o complexo do Va-               últimos seis anos, o cemitério superou       escravizados e levados para a América e
longo abrigava 50 “casas de carne”, on-            uma média anual de mil enterros”, afir-      Europa. Desses, cerca de 10,7 milhões che-
de os negros recém-chegados eram ne-               ma o historiador Júlio César Pereira, da     garam vivos ao fim da travessia”, afirma o
gociados. “A primeira loja de carne em             Fiocruz, autor de À flor da terra (Gara-     historiador Manolo Florentino, da UFF,
que entramos continha 300 crianças. O              mond, 2007). A vinda da Corte aumentou       autor de Em costas negras (Companhia
mais velho podia ter 12 anos e o mais              a chegada de cativos pelo porto do Rio:      das Letras, 1997). “Os registros dos na-
novo, não mais de 6. Os coitadinhos fica-          se em 1807 entraram menos de 10 mil,         vios negreiros não são confiáveis sobre a
vam agachados num armazém. O cheiro                em 1828 foram 45 mil. O ano também           origem dos africanos, porque o porto de
e o calor da sala eram repugnantes. O              marcou um recorde no cemitério com           embarcação, registrado nos arquivos, nem
termômetro indicava 33ºC e estávamos               o enterro de mais de 2 mil pretos no-        sempre refletia a origem geográfica dos
no inverno!”, escreveu o inglês Charles            vos. “Sem esquife e sem a menor peça de      negros, por vezes capturados no interior,
Brand em 1822.                                     roupa são atirados numa cova que nem         a quilômetros do litoral”, observa.

26 | dezeMbro de 2011
Nessa tarefa os his-
leo raMos




            toriadores recebem
            grandes contribui-
            ções dos geneticistas,
            como mostra a repor-
            tagem “A África nos
            genes do povo brasi-
            leiro” (Pesquisa FA-
            PESP, n o 134) sobre
            a pesquisa do gene-
            ticista Sérgio Danilo
            Pena, da Universida-
            de Federal de Minas
            Gerais (UFMG), que
            comparou o padrão
            de alterações genéti-
            cas compartilhado por
            africanos e brasileiros.
            Com isso, Pena ajudou
            a revisar a versão his-
            tórica de que a maior                   obelisco do Cais da imperatriz: a seta verde indica vestígios do cais de teresa Cristina e a vermelha o valongo recoberto
            parte dos escravos era


                                                                  r
            da região centro-ocidental africana, dei-                     egistros feitos pela igreja de San- da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fio-
            xando de lado a participação relevante de                     ta Rita, que administrava o lugar, cruz), concluída recentemente. Foi fei-
            negros vindos da África Ocidental. “Por                       permitem afirmar que 95% dos ta a análise da composição isotópica de
            isso a transdisciplinaridade é fundamental corpos são de pretos novos (os outros estrôncio de esmalte dentário presente
            para entender a escravidão. Cada enfoque 5% seriam de escravos “ladinos”). O sí- nas amostras colhidas em 1996, com a
            é limitado para dar conta das perguntas e tio privilegiado deu origem à pesquisa finalidade de determinar a origem geo-
            nenhum é suficiente. As pesquisas gené- bioarqueológica Por uma antropologia gráfica dos vestígios. “Os dentes são for-
            ticas são muito informativas, mas partem biológica do tráfico de escravos africa- mados na infância e não se remodelam,
            da análise de brasileiros que são descen- nos para o Brasil: análise das origens dos o que permite descobrir onde alguém
            dentes dos escravos”, diz Pena. Daí a im- remanescentes esqueletais do Cemité- viveu seus primeiros anos. O estrôncio
            portância do Cemitério dos Pretos Novos, rio dos Pretos Novos, coordenada pelo é como um DNA geoquímico e existe
            que abrigava primordialmente escravos bioantropólogo Ricardo Ventura Santos, como dois isótopos, de números 86 e 87.
            africanos recém-chegados ao Brasil.                    da Escola Nacional de Saúde Pública As proporções entre eles são assinatu-
                                                                                                                           ras geoquímicas ligadas às característi-
                                                                                                                           cas das rochas de uma região”, explica
                                                                                                                           Sheila de Souza, integrante do projeto.
               rio de Janeiro em 1820                                                                                      A pesquisa revelou uma grande diver-
                                                                                                                           sidade de valores dessas proporções, o
                                 Costão de
                               N. s. da saúde
                                                                                                  ilha das                 que indica (e confirma) que os escravos
                                                                                                   Cobras
                                                                                                                           trazidos ao Rio vieram de múltiplas re-
                                                                                                                           giões da África. Confirmou-se também
                                 rua do
                  saco da
                                cemitério     valongo                                                                      que se tratava de negros africanos, jovens
                  Gamboa
                                                                                                                           e recém-chegados.
                                                                                                                               Para estabelecer essa delimitação fo-
                              Cemitério dos                                                                                ram detectadas “modificações intencio-
                              pretos Novos
                                                                                                                           nais dos dentes”, cortes feitos na arcada
                                                                                     paço                                  de motivação cultural, característicos de
                                                                                                                           regiões africanas como Moçambique, o
                                                                                                                           que, de certa forma, corrobora a tese de
                                                                                                                           Pena. “Vimos também o polimento dos
                                                                                                                           dentes, que geram ranhuras microscópi-
                           rJ                                                                                              cas e são características da higiene bucal
                                                                                                                           de grupos africanos, que usavam gravetos
                                                                                                       praia de            nos dentes e mastigavam plantas como
                                                                                                     santa Luzia
                    Contorno                                                                                               ‘pasta dental’. É uma prática restrita de
                    da cidade                                                                                              pretos novos, pois, uma vez aqui, não
                    atual                                                        Lapa
                                                                                                                           havia como mantê-la. Dentes de ‘ladi-

                                                                                                                                                    pesquisa Fapesp 190 | 27
nos’ não têm essas marcas”, diz Sheila.     e, entre 1760 e 1830, o Rio, revelam os re-




                                                                                                                                               institUto pretos novos
A variabilidade de razões de estrôncio      gistros, efetivamente recebeu negros de
observada contrasta com o encontrado        muitas regiões africanas”, nota Florentino.
em outros cemitérios de escravos das        “Também se confirma um padrão do trá-
Américas, sendo maior, por exemplo,         fico, que agia da costa para o interior, em
do que a medida nos                                             busca dos que haviam
africanos enterrados                                            migrado do litoral.”
no New York Burial                                                 É possível compro-
Ground, cemitério de                                            var até o caminho da
escravos americanos                                             ilegalidade, que não
encontrado em Ma-                                               rendeu documenta-
nhattan em 1991.                                                ção. Em 1815, Portu-
   “Na contramão da                                             gal e Inglaterra as-
América do Norte e        o aumento                             sinaram um acordo
de outras regiões do                                            que proibia a compra
Brasil, o Rio recebia     da demanda de                         e tráfico de escravos
uma quantidade mais                                             ao norte do equador.
expressiva de cativos
                          escravos para                         “As pesquisas de Pe-
                                                                                                                          arcada dentária
                                                                                                                            recuperada no
com uma maior diver-      a corte deixou                        na e Santos demons-                                      cemitério com os
                                                                                                                       cortes rituais feitos
sidade étnica e genéti-                                         tram, na prática, que,                                   nos dentes pelos
ca”, afirma Santos. Po-   poucas partes                         apesar da proibição,                                              africanos
de-se identificar que a                                         os contrabandistas
base alimentar desses     da áfrica livres                      atuavam na área. Di-      escravizadas para o Brasil a partir de
indivíduos na infância                                          zendo navegar até         meados do século XIX, porque eram
não continha itens de
                          de traficantes                        Angola, desviavam         mais “maleáveis” que os adultos e su-
procedência marinha.                                            para a Nigéria, onde      portavam melhor as travessias. Nos es-
“Faz todo o sentido. A                                          pegavam escravos,         tertores do tráfico, em especial no Rio,
chegada da família real aumentou a de-      que registravam como angolanos”, diz          um em cada três escravos era criança.
manda por escravos, culminando na fase      o historiador. A análise sobre o cemi-        “A elite escravocrata ao sentir que o fim
áurea do tráfico, que acabou legitimando    tério igualmente comprovou uma face-          do tráfico estava próximo passou a bus-
uma situação de fato: a Coroa não tinha     ta pouco conhecida do tráfico: a baixa        car mais mulheres, ou seja, mais úteros
mais o monopólio, o que dava livre aces-    faixa etária dos cativos. “Os vestígios       para gerar escravos; e crianças, que tra-
so ao comércio. Logo, poucas partes do      são de negros muito jovens”, fala San-        balhariam por mais tempo após o fim
continente ficaram ilesas aos traficantes   tos. Cerca de 780 mil crianças foram          do tráfico”, explica Florentino.


objetos encontrados no valongo
uma caixa contendo                                   Cachimbos com                                  pequeno brinco
pequenas miçangas                                    imagem africana                                feminino de ouro
foi achada na                                        foram achados                                  com a “meia-lua”
escavação, com o                                     em grande                                      do islamismo
mesmo tipo de contas                                 quantidade
achadas num crânio
infantil do cemitério                                                                                                      anel de
                                                                                                                           piaçava feito
                                                                                                                           com grande
                                                                                                                           delicadeza

                                                                               dados usados
                                                                               para jogos de
                                                                               azar, então
                                                                               proibidos naquela
                                                                               parte da cidade,                            Contas
                                                                               eram fonte de                               usadas em
                                                                               lazer para os                               colares para
                                                                               cativos                                     proteção
                                                                                                                           mágica
                                                                                                                                               Fotos leo raMos




28 | dezeMbro de 2011
n
                                              ovas escavações no cemitério cor-
reinaldo tavares e CláUdio honorato




                                              roboram essa prática pela presen-
                                              ça de crânios e arcadas de jovens.
                                      As prospecções foram retomadas pela
                                      equipe de Tânia Lima, que, temerosa das
                                      consequências da especulação imobiliá-
                                      ria em torno do sítio, por causa do Por-
                                      to Maravilha, encarregou o arqueólogo
                                      Reinaldo Tavares, do Museu Nacional,
                                      da pesquisa O Cemitério dos Pretos No-
                                      vos: delimitação espacial, que até o final
                                      do ano traçará o mapa do cemitério. O
                                      seu tamanho é uma incógnita. Segundo
                                      relatos da época, teria 50 braças, algo co-
                                      mo um campo de futebol. O arqueólogo
                                      desconfia da medida, exígua demais para
                                      abrigar tantos corpos. Abrindo valas no
                                      entorno do sítio ele busca os seus limi-
                                      tes. “Não é preciso cavar mais do que 70
                                      centímetros para deparar com restos de
                                      corpos”, diz. O lugar era uma vala comum       ossos à flor da terra revelados nas novas escavações realizadas no cemitério
                                      onde os corpos eram jogados, após fica-
                                      rem dias amontoados num canto. Quando
                                      a fossa enchia, era reaberta e os vestígios   boratório de Genética Molecular de Mi-                 Uma escavação em particular trouxe
                                      eram incinerados e destruídos para dar        crorganismos da Fiocruz, que rastreia,              revelações importantes. “Ossadas encon-
                                      lugar a novos corpos. “Encontramos tam-       via DNA, as moléstias do Rio colonial.              tradas na igreja Nossa Senhora do Car-
                                      bém lixo urbano misturado aos ossos:          No cemitério de escravos da praça XV,               mo, no Rio, de sepulturas do século XVII,
                                      comida, vidros, material de construção,       por exemplo, verificou-se pelas ossadas             destinadas a pessoas de ascendência eu-
                                      animais mortos, dejetos. A tese inicial       que 7 em cada 10 cativos estavam infec-             ropeia, apesar de muito degradadas, de-
                                      era que o cemitério fora transformado         tados com protozoários ou helmintos.                ram positivo para tuberculose em 7 das
                                      em ‘lixão’ da vizinhança após seu fecha-      “Era resultado da péssima nutrição dos              10 costelas analisadas”, afirma Alena. No
                                      mento. As escavações apontam que ele          escravos, aliada às condições impróprias            local foram também encontradas ossadas
                                      ainda funcionava quando os detritos fo-       de higiene em que viviam”, diz Alena. A             de índios e negros. Na comparação dos
                                      ram jogados com os corpos.”                   descoberta genética comprova vários as-             vestígios, a pesquisadora concluiu não só
                                         A genética só aumenta o peso simbólico     pectos do estudo clássico da historiado-            que a tuberculose já grassava na cidade no
                                      provocado por esse desprezo. “Os escra-       ra americana Mary Karasch, A vida dos               século XVII, mas que, na medida em que
                                      vos entravam no Brasil pelo Nordeste ou       escravos no Rio de Janeiro (Companhia               apenas os europeus deram positivo para
                                      pelo Rio. A própria proximidade geográfi-     das Letras, 2000). Como a afirmação de              tuberculose, foram os colonizadores os
                                      ca levou escravos da África Ocidental para    que “as condições de vida dos escravos e            responsáveis pela introdução da doença
                                      o Nordeste e os da África Central para o      as doenças matavam mais do que a vio-               no Rio. “Em estudos que fiz sobre material
                                      Rio. Desses, a grande maioria era de ban-     lência física do cativeiro”.                        pré-colombiano, encontrei helmintíases
                                      tos”, diz Pena. Seriam, portanto, corpos                                                          intestinais e registros da doença de Cha-


                                                                                    a
                                      desse grupo étnico que lotam o cemité-                pesquisadora estudou o Cemité-              gas. Concluímos que eram doenças que
                                      rio. Do cais e dos armazéns era possível              rio dos Pretos Novos, onde en-              não vieram com os europeus. No Brasil
                                      ver como os seus mortos eram tratados.                controu traços de tuberculose,              colonial, ao contrário, evidencia-se o papel
                                      “Para os bantos, o sepultamento indigno       um total de 25% de amostras positivas.              de europeus na introdução e disseminação
                                      impossibilita a reunião entre o morto e       “As condições desumanas em que eram                 de doenças epidêmicas como a tubercu-
                                      seus antepassados, crença central da et-      transportados faziam os escravos susce-             lose.” Logo, os temores das “doenças dos
                                      nia. Pode-se imaginar que se sentiam con-     tíveis a contrair, já na chegada, a doen-           negros” que levaram à criação, exatos 200
                                      denados a uma ‘segunda morte’, cientes        ça, então difundida pela cidade.” Isso              anos atrás, do Cais do Valongo, seriam in-
                                      de que se apagara da memória o lugar de       também remete à pesquisa documental                 fundados. Não há crime perfeito quando
                                      seu repouso final”, observa Júlio César. Os   da americana: “A mortalidade dos afri-              os conhecimentos se reúnem. n
                                      vivos, porém, não tinham grandes chan-        canos recém-chegados ao Valongo não
                                      ces: só um terço dos pretos novos viveria     se relacionava apenas às condições terrí-
                                      como escravo mais do que 16 anos.             veis dos ‘tumbeiros’. Mesmo sobreviven-               artigo científico
                                         A causa dessas precocidades dos óbi-       do à travessia, no cais eles enfrentavam              JAEGER, L. H. et al. Mycobacterium
                                      tos eram as muitas doenças com que con-       um desafio maior: adaptar-se às novas,                tuberculosis complex detection in human
                                                                                                                                          remains: tuberculosis spread since the 17th
                                      viviam, como comprovam as pesquisas           e péssimas, condições de vida para não                century in Rio de Janeiro, Brazil. Infection,
                                      paleogenéticas de Alena Mayo, do La-          sucumbir, de cara, às doenças do Rio”.                Genetics and Evolution. No prelo.


                                                                                                                                                                    pesquisa Fapesp 190 | 29

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Ossos que falam

  • 1. capa MERCaDO DE EsCRavOs Na RUa DO valONGO, debret, aquareLa sobre papeL, C. 1816-1828. reprodução do Livro DEBRET E O BRasIl – OBRa COMPlETa, ed. Capivara, 2009 Ossos que falam escavações na zona portuária do rio de Janeiro revelam retrato pouco conhecido da escravidão carlos Haag o Instituto Nacional de Criminalís- e submeter as evidências materiais aos analistas tica estabelece uma série de pro- nos laboratórios. É preciso superar a mera histo- cedimentos para se investigar um riografia documental ou a visão economicista que crime: o reconhecimento, que de- só vê o escravismo do ponto de vista dos modos limita a extensão da cena do crime de produção. A escravidão deve ser materializa- e a preserva; a documentação cuidadosa e a ob- da”, diz Tânia Andrade Lima, arqueóloga do Mu- servação científica do lugar; a procura de provas seu Nacional, no Rio, e coordenadora do projeto e evidências a serem coletadas; a análise cientí- de escavação do Cais do Valongo, porto por onde fica num laboratório das provas recolhidas pelo passaram, entre 1811 e 1831, 1 milhão de africanos. perito. É na junção dessas áreas que se encontra Foram as obras do Porto Maravilha, a revitaliza- a solução de, por exemplo, um assassinato. Seria ção da área portuária carioca iniciada neste ano possível usar os mesmos procedimentos para tendo em vista as Olimpíadas de 2016, que per- “desvendar” um crime cometido há vários sécu- mitiram aos arqueólogos reabrir a “cena do crime” los, com milhões de vítimas? Pesquisas recentes oculta desde 1843, quando foi recoberta com 60 feitas em universidades brasileiras indicam que centímetros de pavimento e se transformou no a adoção da mesma interdisciplinaridade, reu- Cais da Imperatriz, lugar de recepção para Tere- nindo historiadores, arqueólogos, geneticistas sa Cristina, a futura mulher de Pedro II. “Havia (paleogenéticos) e patologistas, poderá, enfim, outros lugares, mas se optou pelo Valongo como dar conta de um dos maiores crimes já cometi- forma de apagamento das manchas passadas da dos: a escravidão. escravidão”, diz Tânia. Essas cercavam todo o cais, “Para se entender a realidade da escravidão é formando o complexo do Valongo. Casas próxi- preciso devassar arquivos, desencavar o passado mas armazenavam e comercializavam os negros. 24 | dezeMbro de 2011
  • 2. aNtropoLoGia arqueoLoGia uma das “casas de Quem ficava doente era levado ao lazareto vizinho, carne” do mercado do valongo na visão algo onde o tratamento se reduzia a “sangrias” feitas otimista de debret por barbeiros negros. Os que não resistiam eram ao mostrar poucos enterrados, com total descaso, em valas comuns escravos vigiados pelo a poucos metros do cais. Logo, o sítio é o sonho comerciante de qualquer arqueólogo, trazendo à luz, diaria- mente, pilhas de objetos pessoais e rituais dos chamados “pretos novos”, cativos recém-chegados da África: contas, búzios, cachimbos, brincos com a “meia-lua” islâmica, miçangas e até “pedras de História assentamento de orixás”. Sacerdotes e especialis- tas na cultura e religião africanas ajudam a reco- nhecer e catalogar os achados. “O complexo do Valongo foi criado para ti- rar os negros do centro do Rio, pois eles eram vistos como ameaça à saúde, ‘carregadores de doenças’ e um perigo à ordem pública”, explica o historiador Cláudio Honorato, autor do estudo Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro (Universidade Federal Fluminense, UFF, 2008). “O Valongo era parte do projeto ‘civilização na- cional’, intensificado com a transformação do pesquisa Fapesp 190 | 25
  • 3. tem dois pés de profundidade. Levam o institUto pretos novos morto e o atiram no buraco como a um cão morto, põem um pouco de terra em cima e se alguma parte do corpo fica des- coberta, socam-no com tocos de madeiro, formando um mingau de terra, sangue e excrementos”, descreveu o viajante Carl Seidler em 1834. O lugar, porém, obede- cia à lógica e às regras que engendraram o complexo: “Os es- cravos que não forem vendidos não sairão do Valongo nem de- pois de mortos”. Estima-se que o ce- “os escravos que mitério abrigou mais de 20 mil corpos até não forem ser fechado em 1830, por causa de recla- vendidos não mações dos vizinhos, sairão do valongo temerosos dos “mias- mas” exalados pelos nem mortos”, cadáveres “à flor da terra”, bem como da escreveu lavradio suspensão do tráfico, não obstante sua con- tinuidade ilegal. O lu- foto tirada em 1996 na casa em que pedreiros encontraram ossadas gar caiu no esqueci- mento, vindo a ser co- a Rio em sede do Império. Mas resultou pós 60 dias a bordo de um “tum- berto pela malha urbana que se expandiu de um paradoxo: criar uma Corte ‘eu- beiro”, os africanos, exauridos e na região portuária em fins do século XIX. ropeia’ com multidões de negros soltos doentes, enfrentavam a falta de Só foi redescoberto em 1996 durante uma pelas ruas. Pensou-se que a solução se- alimentação, de roupas e moradias apro- reforma numa casa, quando operários ria usar os escravos para criar a cidade priadas. A combinação com os castigos abriram sondagens para alicerce e encon- à altura do rei. Esse movimento, porém, os deixava propensos a contrair vírus, traram milhares de dentes e fragmentos aumentou a demanda por mais escravos bacilos, bactérias e parasitas que flores- de ossos humanos. Como uma “cena do e, assim, a cidade não conseguia perder ciam na população densa do Rio. Mais de crime” era preciso saber quem eram as as ‘feições do atraso’. Era preciso dimi- 4% dos escravos morriam no primeiro vítimas. Determinar a origem geográfi- nuir um pouco daquela promiscuidade momento, entre o desembarque, a qua- ca dos 5 milhões de escravos forçados a e, assim, tirou-se o mercado escravista rentena e a exposição no mercado. Era vir ao Brasil é fundamental para várias da região do Paço, levando-o para um preciso um lugar para enterrar tantos áreas do conhecimento, já que dá pistas da lugar distante e desabitado: o Valongo, mortos e assim criou-se nas proximi- constituição genética e cultural dos bra- um porto natural na Gamboa”, construí- dades o Cemitério dos Pretos Novos. “A sileiros, muito impactados pela mestiça- do por ordem do vice-rei, o Marquês de mortalidade alta justificaria lugar na ló- gem. “O tráfico negreiro provocou um dos Lavradio. Em pouco tempo, o comércio gica de importação de mão de obra em maiores deslocamentos populacionais da de escravos atraiu a população e o local números crescentes, onde mais mortes humanidade. Entre os séculos XVI e XIX virou um dos mais movimentados do significava trazer mais escravos. Nos seus mais de 12,5 milhões de africanos foram Rio. Além do cais, o complexo do Va- últimos seis anos, o cemitério superou escravizados e levados para a América e longo abrigava 50 “casas de carne”, on- uma média anual de mil enterros”, afir- Europa. Desses, cerca de 10,7 milhões che- de os negros recém-chegados eram ne- ma o historiador Júlio César Pereira, da garam vivos ao fim da travessia”, afirma o gociados. “A primeira loja de carne em Fiocruz, autor de À flor da terra (Gara- historiador Manolo Florentino, da UFF, que entramos continha 300 crianças. O mond, 2007). A vinda da Corte aumentou autor de Em costas negras (Companhia mais velho podia ter 12 anos e o mais a chegada de cativos pelo porto do Rio: das Letras, 1997). “Os registros dos na- novo, não mais de 6. Os coitadinhos fica- se em 1807 entraram menos de 10 mil, vios negreiros não são confiáveis sobre a vam agachados num armazém. O cheiro em 1828 foram 45 mil. O ano também origem dos africanos, porque o porto de e o calor da sala eram repugnantes. O marcou um recorde no cemitério com embarcação, registrado nos arquivos, nem termômetro indicava 33ºC e estávamos o enterro de mais de 2 mil pretos no- sempre refletia a origem geográfica dos no inverno!”, escreveu o inglês Charles vos. “Sem esquife e sem a menor peça de negros, por vezes capturados no interior, Brand em 1822. roupa são atirados numa cova que nem a quilômetros do litoral”, observa. 26 | dezeMbro de 2011
  • 4. Nessa tarefa os his- leo raMos toriadores recebem grandes contribui- ções dos geneticistas, como mostra a repor- tagem “A África nos genes do povo brasi- leiro” (Pesquisa FA- PESP, n o 134) sobre a pesquisa do gene- ticista Sérgio Danilo Pena, da Universida- de Federal de Minas Gerais (UFMG), que comparou o padrão de alterações genéti- cas compartilhado por africanos e brasileiros. Com isso, Pena ajudou a revisar a versão his- tórica de que a maior obelisco do Cais da imperatriz: a seta verde indica vestígios do cais de teresa Cristina e a vermelha o valongo recoberto parte dos escravos era r da região centro-ocidental africana, dei- egistros feitos pela igreja de San- da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fio- xando de lado a participação relevante de ta Rita, que administrava o lugar, cruz), concluída recentemente. Foi fei- negros vindos da África Ocidental. “Por permitem afirmar que 95% dos ta a análise da composição isotópica de isso a transdisciplinaridade é fundamental corpos são de pretos novos (os outros estrôncio de esmalte dentário presente para entender a escravidão. Cada enfoque 5% seriam de escravos “ladinos”). O sí- nas amostras colhidas em 1996, com a é limitado para dar conta das perguntas e tio privilegiado deu origem à pesquisa finalidade de determinar a origem geo- nenhum é suficiente. As pesquisas gené- bioarqueológica Por uma antropologia gráfica dos vestígios. “Os dentes são for- ticas são muito informativas, mas partem biológica do tráfico de escravos africa- mados na infância e não se remodelam, da análise de brasileiros que são descen- nos para o Brasil: análise das origens dos o que permite descobrir onde alguém dentes dos escravos”, diz Pena. Daí a im- remanescentes esqueletais do Cemité- viveu seus primeiros anos. O estrôncio portância do Cemitério dos Pretos Novos, rio dos Pretos Novos, coordenada pelo é como um DNA geoquímico e existe que abrigava primordialmente escravos bioantropólogo Ricardo Ventura Santos, como dois isótopos, de números 86 e 87. africanos recém-chegados ao Brasil. da Escola Nacional de Saúde Pública As proporções entre eles são assinatu- ras geoquímicas ligadas às característi- cas das rochas de uma região”, explica Sheila de Souza, integrante do projeto. rio de Janeiro em 1820 A pesquisa revelou uma grande diver- sidade de valores dessas proporções, o Costão de N. s. da saúde ilha das que indica (e confirma) que os escravos Cobras trazidos ao Rio vieram de múltiplas re- giões da África. Confirmou-se também rua do saco da cemitério valongo que se tratava de negros africanos, jovens Gamboa e recém-chegados. Para estabelecer essa delimitação fo- Cemitério dos ram detectadas “modificações intencio- pretos Novos nais dos dentes”, cortes feitos na arcada paço de motivação cultural, característicos de regiões africanas como Moçambique, o que, de certa forma, corrobora a tese de Pena. “Vimos também o polimento dos dentes, que geram ranhuras microscópi- rJ cas e são características da higiene bucal de grupos africanos, que usavam gravetos praia de nos dentes e mastigavam plantas como santa Luzia Contorno ‘pasta dental’. É uma prática restrita de da cidade pretos novos, pois, uma vez aqui, não atual Lapa havia como mantê-la. Dentes de ‘ladi- pesquisa Fapesp 190 | 27
  • 5. nos’ não têm essas marcas”, diz Sheila. e, entre 1760 e 1830, o Rio, revelam os re- institUto pretos novos A variabilidade de razões de estrôncio gistros, efetivamente recebeu negros de observada contrasta com o encontrado muitas regiões africanas”, nota Florentino. em outros cemitérios de escravos das “Também se confirma um padrão do trá- Américas, sendo maior, por exemplo, fico, que agia da costa para o interior, em do que a medida nos busca dos que haviam africanos enterrados migrado do litoral.” no New York Burial É possível compro- Ground, cemitério de var até o caminho da escravos americanos ilegalidade, que não encontrado em Ma- rendeu documenta- nhattan em 1991. ção. Em 1815, Portu- “Na contramão da gal e Inglaterra as- América do Norte e o aumento sinaram um acordo de outras regiões do que proibia a compra Brasil, o Rio recebia da demanda de e tráfico de escravos uma quantidade mais ao norte do equador. expressiva de cativos escravos para “As pesquisas de Pe- arcada dentária recuperada no com uma maior diver- a corte deixou na e Santos demons- cemitério com os cortes rituais feitos sidade étnica e genéti- tram, na prática, que, nos dentes pelos ca”, afirma Santos. Po- poucas partes apesar da proibição, africanos de-se identificar que a os contrabandistas base alimentar desses da áfrica livres atuavam na área. Di- escravizadas para o Brasil a partir de indivíduos na infância zendo navegar até meados do século XIX, porque eram não continha itens de de traficantes Angola, desviavam mais “maleáveis” que os adultos e su- procedência marinha. para a Nigéria, onde portavam melhor as travessias. Nos es- “Faz todo o sentido. A pegavam escravos, tertores do tráfico, em especial no Rio, chegada da família real aumentou a de- que registravam como angolanos”, diz um em cada três escravos era criança. manda por escravos, culminando na fase o historiador. A análise sobre o cemi- “A elite escravocrata ao sentir que o fim áurea do tráfico, que acabou legitimando tério igualmente comprovou uma face- do tráfico estava próximo passou a bus- uma situação de fato: a Coroa não tinha ta pouco conhecida do tráfico: a baixa car mais mulheres, ou seja, mais úteros mais o monopólio, o que dava livre aces- faixa etária dos cativos. “Os vestígios para gerar escravos; e crianças, que tra- so ao comércio. Logo, poucas partes do são de negros muito jovens”, fala San- balhariam por mais tempo após o fim continente ficaram ilesas aos traficantes tos. Cerca de 780 mil crianças foram do tráfico”, explica Florentino. objetos encontrados no valongo uma caixa contendo Cachimbos com pequeno brinco pequenas miçangas imagem africana feminino de ouro foi achada na foram achados com a “meia-lua” escavação, com o em grande do islamismo mesmo tipo de contas quantidade achadas num crânio infantil do cemitério anel de piaçava feito com grande delicadeza dados usados para jogos de azar, então proibidos naquela parte da cidade, Contas eram fonte de usadas em lazer para os colares para cativos proteção mágica Fotos leo raMos 28 | dezeMbro de 2011
  • 6. n ovas escavações no cemitério cor- reinaldo tavares e CláUdio honorato roboram essa prática pela presen- ça de crânios e arcadas de jovens. As prospecções foram retomadas pela equipe de Tânia Lima, que, temerosa das consequências da especulação imobiliá- ria em torno do sítio, por causa do Por- to Maravilha, encarregou o arqueólogo Reinaldo Tavares, do Museu Nacional, da pesquisa O Cemitério dos Pretos No- vos: delimitação espacial, que até o final do ano traçará o mapa do cemitério. O seu tamanho é uma incógnita. Segundo relatos da época, teria 50 braças, algo co- mo um campo de futebol. O arqueólogo desconfia da medida, exígua demais para abrigar tantos corpos. Abrindo valas no entorno do sítio ele busca os seus limi- tes. “Não é preciso cavar mais do que 70 centímetros para deparar com restos de corpos”, diz. O lugar era uma vala comum ossos à flor da terra revelados nas novas escavações realizadas no cemitério onde os corpos eram jogados, após fica- rem dias amontoados num canto. Quando a fossa enchia, era reaberta e os vestígios boratório de Genética Molecular de Mi- Uma escavação em particular trouxe eram incinerados e destruídos para dar crorganismos da Fiocruz, que rastreia, revelações importantes. “Ossadas encon- lugar a novos corpos. “Encontramos tam- via DNA, as moléstias do Rio colonial. tradas na igreja Nossa Senhora do Car- bém lixo urbano misturado aos ossos: No cemitério de escravos da praça XV, mo, no Rio, de sepulturas do século XVII, comida, vidros, material de construção, por exemplo, verificou-se pelas ossadas destinadas a pessoas de ascendência eu- animais mortos, dejetos. A tese inicial que 7 em cada 10 cativos estavam infec- ropeia, apesar de muito degradadas, de- era que o cemitério fora transformado tados com protozoários ou helmintos. ram positivo para tuberculose em 7 das em ‘lixão’ da vizinhança após seu fecha- “Era resultado da péssima nutrição dos 10 costelas analisadas”, afirma Alena. No mento. As escavações apontam que ele escravos, aliada às condições impróprias local foram também encontradas ossadas ainda funcionava quando os detritos fo- de higiene em que viviam”, diz Alena. A de índios e negros. Na comparação dos ram jogados com os corpos.” descoberta genética comprova vários as- vestígios, a pesquisadora concluiu não só A genética só aumenta o peso simbólico pectos do estudo clássico da historiado- que a tuberculose já grassava na cidade no provocado por esse desprezo. “Os escra- ra americana Mary Karasch, A vida dos século XVII, mas que, na medida em que vos entravam no Brasil pelo Nordeste ou escravos no Rio de Janeiro (Companhia apenas os europeus deram positivo para pelo Rio. A própria proximidade geográfi- das Letras, 2000). Como a afirmação de tuberculose, foram os colonizadores os ca levou escravos da África Ocidental para que “as condições de vida dos escravos e responsáveis pela introdução da doença o Nordeste e os da África Central para o as doenças matavam mais do que a vio- no Rio. “Em estudos que fiz sobre material Rio. Desses, a grande maioria era de ban- lência física do cativeiro”. pré-colombiano, encontrei helmintíases tos”, diz Pena. Seriam, portanto, corpos intestinais e registros da doença de Cha- a desse grupo étnico que lotam o cemité- pesquisadora estudou o Cemité- gas. Concluímos que eram doenças que rio. Do cais e dos armazéns era possível rio dos Pretos Novos, onde en- não vieram com os europeus. No Brasil ver como os seus mortos eram tratados. controu traços de tuberculose, colonial, ao contrário, evidencia-se o papel “Para os bantos, o sepultamento indigno um total de 25% de amostras positivas. de europeus na introdução e disseminação impossibilita a reunião entre o morto e “As condições desumanas em que eram de doenças epidêmicas como a tubercu- seus antepassados, crença central da et- transportados faziam os escravos susce- lose.” Logo, os temores das “doenças dos nia. Pode-se imaginar que se sentiam con- tíveis a contrair, já na chegada, a doen- negros” que levaram à criação, exatos 200 denados a uma ‘segunda morte’, cientes ça, então difundida pela cidade.” Isso anos atrás, do Cais do Valongo, seriam in- de que se apagara da memória o lugar de também remete à pesquisa documental fundados. Não há crime perfeito quando seu repouso final”, observa Júlio César. Os da americana: “A mortalidade dos afri- os conhecimentos se reúnem. n vivos, porém, não tinham grandes chan- canos recém-chegados ao Valongo não ces: só um terço dos pretos novos viveria se relacionava apenas às condições terrí- como escravo mais do que 16 anos. veis dos ‘tumbeiros’. Mesmo sobreviven- artigo científico A causa dessas precocidades dos óbi- do à travessia, no cais eles enfrentavam JAEGER, L. H. et al. Mycobacterium tos eram as muitas doenças com que con- um desafio maior: adaptar-se às novas, tuberculosis complex detection in human remains: tuberculosis spread since the 17th viviam, como comprovam as pesquisas e péssimas, condições de vida para não century in Rio de Janeiro, Brazil. Infection, paleogenéticas de Alena Mayo, do La- sucumbir, de cara, às doenças do Rio”. Genetics and Evolution. No prelo. pesquisa Fapesp 190 | 29