Revolução Francesa: a queda da Bastilha e o início da Revolução
1. CLIO História – Textos e Documentos
Revolução Francesa: ela inventou nossos sonhos
Desde a madrugada de 14 de julho de 1789, uma terça-feira,
pelo menos 8 mil parisienses irados estavam reunidos na
esplanada dos Inválidos. Eles queriam armas para enfrentar os
soldados que, acreditavam, o rei Luís XVI estava mandando de
“Os homens nascem livres e iguais em Versalhes. O administrador não sabia o que fazer. A multidão,
direitos; as distinções sociais não então, arrombou os portões e se apoderou de 40 mil fuzis e
podem ser fundadas a não ser na doze canhões. Mas e a pólvora para eles? Estava na formidável
utilidade comum”. fortaleza da Bastilha, transformada em depósito e prisão. Para
Pela Declaração dos Direitos do Homem lá correram todos, em busca de munição. Quem teria, naquele
e do Cidadão, a Assembléia Constituinte momento, pensado em se apoderar daquela fortaleza
estabelece os direitos básicos dos franceses: inexpugnável?
igualdade perante a lei e a obrigação do
Pois antes do anoitecer a fortaleza caiu e com ela veio abaixo
Estado de defender os direitos “naturais” dos
cidadãos, como a liberdade e a propriedade. todo o Antigo Regime, representado na figura do rei e em sua
A modernidade chega definitivamente à vida corte de aristocratas inúteis. A multidão que cercou a Bastilha
social. era muito maior que os 8 mil reunidos de madrugada na praça
dos Inválidos. Mas, conforme cuidadoso recenseamento feito
depois pela Assembléia Nacional, os "vencedores da Bastilha"
foram não mais que oitocentos, registrados e cadastrados, com
nome, endereço e profissão.
Em dois dias, construíram-se 50 mil
lanças para a milícia
Assim, pode-se saber, com segurança, que entre eles
“Quando um povo é obrigado a estavam alguns raros burgueses (três industriais, quatro
obedecer e o faz, age acertadamente; comerciantes, um cervejeiro), muitos pequenos produtores
assim que pode sacudir esse jugo e o independentes, artesãos, oficiais de corporação, militares em
faz, age melhor ainda, porque, profusão. Um terço, pelo menos, era de assalariados da manu-
recuperando a liberdade pelo mesmo fatura e da construção. O mais jovem tinha 8 anos. Uma única
direito por que lha arrebataram, ou tem mulher, uma lavadeira, impedira com sua presença que a queda
ele o direito de retoma-la ou não da Bastilha entrasse para a História como uma aventura vivida
tinham o direito de subtraí-la.” apenas pelos homens.
Jean-Jacques Rousseau, filósofo francês, A multidão estava inquieta desde o dia 12, quando a
1712-1778 demissão do ministro das Finanças, Jacques Necker, foi re-
cebida como prenúncio de que o pão se tornaria mais raro e
mais caro. Foi formada uma milícia cidadã para defender a
cidade, cujo objetivo era também defender os burgueses
proprietários contra os ataques do rei e contra as ameaças das
classes julgadas perigosas — os trabalhadores e os miseráveis.
De saída, a milícia alistou 48 mil voluntários. Como não havia
armas, ordenou-se a construção de lanças — e 50 mil ficaram
prontas em dois dias.
As reuniões sucediam-se, e havia sempre alguém propondo o
recurso à força. "As armas, às armas, cidadãos", era o que mais
se ouvia nos comícios. No Palais-Royal, espécie de território
livre onde tudo se podia dizer, Camila Desmoulins, orador gago
Números que empolgava como ninguém a multidão inquieta, tentava
Em 1789, a população da França ordenar o caos. Por sua sugestão, adotou-se o verde com
alcança 25 milhões de habitantes, emblema. A multidão desfilou pelas ruas, praticamente engoliu
sendo 20 milhões de camponeses. A as tropas que tentaram detê-la. As barreiras que simbolizavam
nobreza constitui 1,5% da população a cobrança de impostos foram destruídas; suspeitos de serem
total. Paris conta com 500 000 açambarcadores (entre estes o convento de Saint-Lazare)
habitantes, dos quais 110 000 são foram atacados.
indigentes. Assim, a multidão que na manhã do dia 14 correu para a
Bastilha não tinha quem a enfrentasse, a não ser a obstinação
do administrador da fortaleza, De Launay, que recusou todos os
apelos (inclusive de quatro comissões enviadas pela Prefeitura)
para que entregasse a munição. O primeiro disparo aconteceu
por volta de 13 horas. Os mais valentes romperam as correntes
da ponte levadiça, que caiu. O pátio da administração foi
2. CLIO História – Textos e Documentos
invadido, mas ali os revoltosos ficaram expostos.
A Bastilha não era um inferno; a vida
“Nobres, vós sois o flagelo da dos presos era bem boa
sociedade, como sois também o inimigo
da Pátria. Vossos exemplos e vossa Às 15:30h chegou um reforço providencial: o chefe da
moral levaram os costumes a um grau lavanderia da rainha Maria Antonieta, um certo Hulin, reunira
de corrupção nunca antes atingido. 36 granadeiros, 21 fuzileiros, 400 cidadãos armados e alguns
Para satisfazer, não vossas paixões, canhões e comandou o primeiro ataque organizado à fortaleza.
mas vossas fantasias, vós os De Launay ainda pensou em atear fogo ao depósito de pólvora
transgredistes ao ponto de vos permitir e mandar tudo pelos ares. Foi impedido por seus próprios
comportamentos cujo preço é o soldados, que preferiram capitular e passar para o lado da
cadafalso.” Revolução. Os invasores então entraram de uma vez, desar-
Panfleto anônimo, igual a milhares de maram os soldados, saquearam tudo, apoderaram-se da
outros em circulação, acusando a nobreza de
pólvora e libertaram os prisioneiros. Estes eram apenas sete:
corrupção, amoralidade, decadência.
quatro falsários, dois loucos e um filho de família rica que
desonrara seu nome. Definitivamente, a Bastilha não era o
inferno criado pela imaginação popular, onde se jogavam os
inimigos do rei para morrer em meio a terríveis sofrimentos. Na
verdade, quem podia pagar contava ali com uma vida bem
razoável, com direito a boa comida, bebida e até criados.
Uma prévia do que viria a ser a violência revolucionária foi
Os sans-culottes são os encenada com o pobre De Launay. Na praça da Prefeitura ele
novos personagens foi agredido, recebeu um golpe de baioneta, um tiro e teve a
da cena política. cabeça cortada, porque a multidão queria vê-la. Contra todos os
Sem os “culottes” e prognósticos, o movimento começava a andar fora dos trilhos.
os perfumes dos Apenas dois anos antes, em 1787, o pavio da mais clássica das
nobres, eles são os revoluções burguesas, a Revolução Francesa, fora aceso por
amigos da mãos nobres. Em outros tempos, tudo não passaria de um
Revolução: levante palaciano; no final do século XVIII, porém, a rebelião
humildes artesãos, da nobreza foi o sinal esperado por outro protagonista
empregados poderoso, a burguesia, para subir ao palco da História. O pe-
pobres do ríodo inicial da Revolução Francesa, que vai de 1787 a 1791, é
“fauborg”, usam a a crônica desse esforço da burguesia para passar à frente dos
lança, o sabre e o atores antigos.
fuzil para livrar a As finanças reais estavam combalidas há muito tempo, mas
Revolução dos nos dez anos anteriores haviam chegado à beira da bancarrota
seus inimigos e porque o governo francês empenhou-se em ajudar os Estados
exigir a Unidos na luta pela independência.
verdadeira
igualdade entre O governo estava falido. Então, pensou
os cidadãos. em taxar clero e nobreza
O relatório financeiro de março de 1788 mostrava que as
despesas somavam 629 milhões de libras, mas a receita
alcançava apenas 503 milhões. Só os juros da dívida pública,
ampliada pela guerra, devoravam 318 milhões de libras. Mais
da metade dos gastos, que se agravavam ainda com a
necessidade de abastecer o luxo da nobreza, na corte, com
supérfluos de toda ordem. O governo precisava aumentar sua
receita, mas sabia que não era possível lançar nenhum novo
Números imposto sobre a massa da população, já exaurida. Pensou,
No início da Revolução, a posse útil da então, em acabar com os privilégios do clero e da nobreza, que
terra na França estava assim não pagavam nenhum imposto, embora fossem grandes pro-
distribuída: 45%, camponeses; 20%, prietários. A França tinha então pouco mais de 25 milhões de
burguesia; 35%, nobreza e clero. habitantes, dos quais 80 por cento eram camponeses. Os 20
Porém, em razão dos direitos feudais, a por cento restantes amontoavam-se precariamente em
aristocracia detém a propriedade povoações que mal chegavam aos 2 mil habitantes.
senhorial de 97% sobre todas as terras. Paris, com 650 mil, era uma exceção — e uma das maiores
cidades do mundo. Todas as outras eram modestas, pelos
padrões modernos Lyon tinha 135 mil habitantes; Marselha, 90
mil; Bordéus, 84 mil; Nantes, 57 mil. Essa sociedade estava
dividida em estados, a forma feudal de estratificação social, em
que cada classe tinha seus estatutos, privilégios, obrigações e
3. CLIO História – Textos e Documentos
modo de vida definidos legalmente.
O Primeiro Estado era formado pelo clero, mais ou menos 1
por cento da população. Estava dividido em clero superior,
formado pelos bispos, arcebispos e cardeais, tinha vida
faustosa, como a nobreza, e possuía cerca de 20 por cento de
todas as terras do país. O baixo clero, ao contrário, embora
partilhasse dos privilégios do seu estado (por exemplo, não
Brasil pagar impostos), era formado por padres muitas vezes tão
pobres quanto seus paroquianos.
É enforcado no Rio de Janeiro, a 21 de
O Segundo Estado era formado pela nobreza, dividida em
abril de 1789, Joaquim José da Silva
nobreza de espada, tradicional e orgulhosa de linhagens que
Xavier, o Tiradentes. Único condenado
remontavam muitas vezes à alta Idade Média, e nobreza
à morte entre os participantes da
togada, formada por plebeus enriquecidos, que compraram
Inconfidência Mineira, revolta contra a
títulos de nobreza, e seus descendentes. Compreendia 2 por
dominação portuguesa, fortemente
cento da população, algo entre 250 e 400 mil pessoas.
influenciada pelas idéias francesas,
Apropriava-se de um terço de todas as rendas do país e tinha o
pelas “luzes” do século XVIII.
monopólio dos mais altos cargos do Judiciário, da burocracia, do
clero e do Exército.
Os burgueses tinham dinheiro e sonhavam
conquistar o poder
O Terceiro Estado compreendia, formalmente, todo o
restante da população, mas sua facção mais destacada era a
burguesia, uma classe economicamente poderosa. Apesar de
participar do poder, mediante a compra de cargos e títulos,
seus negócios eram tolhidos pela existência de aduanas in-
ternas e pedágios, que impediam e oneravam a circulação de
mercadorias dentro do país. Ressentia-se, ainda, da existência
de companhias comerciais monopolistas, controladas pelo
Estado, que dificultavam sua participação no comércio externo,
de um lado; e de outro havia as limitações corporativas à
liberdade de trabalho que impediam a livre contratação de
trabalhadores. As camadas inferiores do terceiro estado eram
formadas pela plebe das cidades, um conjunto de artesãos,
operários, pequenos comerciantes e pequenos empresários.
Eram os sans-culottes, que teriam, mais tarde, um papel
decisivo na Revolução, da qual seriam, segundo o historiador
inglês Eric Hobsbawn, "a principal força de choque". Ao seu lado
acumulava-se, principalmente em Paris, uma formidável e
explosiva massa de miseráveis.
Os camponeses formavam a classe mais numerosa e eram a
base da sociedade francesa. A pobreza, entre eles, era
generalizada, atingindo níveis dramáticos. O historiador
Georges Lefebvre calcula que 10 por cento deles mendigavam,
durante o ano todo, de propriedade em propriedade. Eram
oprimidos, ainda, por mais de trezentas obrigações feudais que
tolhiam completamente sua liberdade.
Na metade do século XVIII, reforçou-se o direito exclusivo da
nobreza aos altos cargos da administração e do Exército. A
restrição pareceu intolerável ao Terceiro Estado —e foi um erro
fatal cometido pelo rei Luís XVI.
Mais de 40 000 “Cahiers de
doléances” foram escritos na
A nobreza quis convocar os Estados Gerais.
campanha eleitoral para os Estados
Suicidou-se
Gerais, como todo tipo de
reivindicações, como esta: “Que o
Terceiro Estado seja representado nos Essa combinação de miséria popular e conflito entre os
Estados Gerais por deputados privilégios aristocráticos e os interesses da burguesia tornou-se
escolhidos por sua ordem”. explosiva quando combinada com a crise financeira da
monarquia. Em 1787, o rei tentou criar um imposto a ser pago
pela nobreza, que reagiu bravamente a esse ataque a seus
privilégios. Foi convocada uma Assembléia de Notáveis,
formado por representantes da aristocracia e do clero, os dois
primeiros estados que desfrutavam as mesmas prerrogativas, e
4. CLIO História – Textos e Documentos
ela decidiu que só a nação inteira, representada nos Estados
Gerais, poderia criar novos impostos.
O rei fez de tudo para revogar a decisão — prendeu
parlamentares, exilou outros tantos — em vão. A rebelião
cresceu e a nobreza ameaçada tornou-se porta-voz de uma
nação que já não tolerava o poder real absoluto. Em julho de
1788, isolado e pressionado de todos os lados, o governo
capitulou e aceitou convocar os Estados Gerais para 1º de maio
de 1789.
Para infelicidade de Luís XVI, os debates e a exigência de
mudanças já tinham ido tão longe que, inadvertida-mente, ele
próprio levou o movimento reformista a um novo andamento ao
convocar os Estados Gerais. Os deputados deviam ser eleitos
em assembléias distritais, em todas as regiões da França;
assim, a crise econômica, que desencadeou a crise política, pas-
sou a ser discutida por toda a nação em uma campanha
“Primeiramente um cavalo deve ser eleitoral cujo tom era a denúncia do absolutismo. Formou-se
escovado dez vezes com a almofaça de então o Partido Nacional, uma frente contra a monarquia
ferro e somente então podeis vós absolutista, que desejava implantar na França um regime
limpá-lo com a escova macia. Terei de monárquico à moda inglesa, regulado por uma Constituição.
escovar-vos com violência, e quem Sua organização foi eficaz, e seu comitê central, a Sociedade
sabe se chegarei jamais à escova dos Trinta, reuniu-se desde outubro de 1788 em Paris,
macia.” congregando homens unidos pela mesma vontade de mudança,
De um proprietário de terras russo a seus como o abade Emmanuel-Joseph Sieyès; Georges-Jacques
servos, em 1780. Danton; marquês de La Fayette; François VI, duque de La
Rochefoucauld; Marie-Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, marquês
de Condorcet; Jacques-Pierre Brissot de Waiville; Adrien-Jean-
François Duport; e Honoré-Gabriel Rigueti, conde de Mirabeau.
Com a Assembléia Nacional, o poder começou
a trocar de mãos
No dia 5 de maio de 1789, em sessão solene com a presença
do rei, foram abertos os Estados Gerais. Na sala de cerimônias,
em Versalhes — o palácio que Luís XIV, o avô de Luís XVI,
também chamado Rei Sol, construíra fora de Paris —, o clero e
a nobreza ocuparam seus lugares, à direita e à esquerda do rei.
Educação pública Para enfatizar a posição subalterna do Terceiro Estado, seus
O Marquês de Condorcet defende na representantes foram amontoados em banquetas, separados
Assembléia seu projeto de “uma escola das ordens privilegiadas por uma barreira. Luís XVI advertiu
universal, para meninos e meninas, contra o "desejo exagerado de inovação". Inutilmente; abria-se
leiga e gratuita, capaz de respeitar a ali o cenário do segundo ato do drama revolucionário.
liberdade individual e estimular os Um novo tema logo somou-se ao debate: os critérios de
talentos”. votação. Havia uma tendência clara de rejeição da forma
tradicional de votação, como a adotada até a última vez que os
Estados Gerais foram convocados, em 1614: um voto para cada
estado. A nobreza e o clero insistiam no critério antigo que
favorecia sua posição. O terceiro estado — que representava 95
por cento da nação — exigiu por sua vez o voto por cabeça, que
daria posição de destaque à massa da orquestra política.
Era o impasse: a nobreza e o clero queriam uma assembléia
com poderes limitados, enquanto a burguesia queria
transformá-la em Assembléia Nacional para escrever uma
Constituição e impor limites ao poder do rei. Assim, decidiu
tocar música própria e transformou os Estados Gerais em
Assembléia Nacional, em 15 de junho de 1789, para a qual
convocou solene-mente os deputados dos estados privilegiados.
Era a rebelião aberta contra a autoridade real.
O círculo íntimo dos colaboradores do rei aconselhou-o a
tornar medidas de força, mas dividia-se quanto ao que fazer em
seguida. 0 ministro Jacques Necker, um reformista da corte,
recomendava algumas concessões para atrair a Assembléia
Nacional.