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---------------------- O Homem Que Via Lugares ----------------------




LUÍS TIAGO CARVALHO
O HOMEM QUE VIA LUGARES




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                               O Homem Que Via Lugares


Consideremos antes de mais que existe uma peculiar sensação que é um tanto ou quanto
mais imprecisa que as demais, sôfrega mas agradável q.b., de uma voracidade estéril,
um certo gosto a estorvo que apetece. É uma inquietação peganhenta que remanesce de
uma espécie de rebelião sonhada.
Frutífera apenas enquanto a pupila não destapa a íris, fértil quando o sono pesa sobre os
olhos, a rebelião onírica implode no instante em que o mundo corpóreo nos atinge e
envolve em toda a sua extensão com o primeiro sinal de vida.
Rendamo-nos à descrição possível e esquivemo-nos de outras que temo não lograr de
engenho para dar: a sensação remanescente encobre-se nas margens, perdura nas
sombras do mundo desperto – vivido em consciência –, mas ainda assim mantém-se
suficientemente presente para suster consequências transversais a toda a nossa
existência. Ensaia apenas o abrir de uma brecha, manter o enigma, murmurar.

Agora sim.


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2 de Dezembro, 2010
Fez um gracejo e fixou a cara dela como se fosse uma coisa, o sorriso de mármore,
deliberadamente distraído, hesitante em abandonar totalmente o ecrã do computador;
fez um gracejo e fixou a cara dela e levou-a consigo pelo corredor afora. Abriu a porta
da casa de banho das senhoras e trancou-se; depois destrancou a porta.


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Em 10 anos de serviço aquela foi a segunda vez que Abel arriscou tanto; ou talvez
sempre o fizesse, se comungarmos da reflexão comum de que o medo é um animal
peculiar que nos doma. Não por acaso, sobre ele – o medo –, diz-se amiúde que quem
vive cego morre sempre depois.
Abel reconhecia a ironia. Enquanto criança assimilou o conceito de medo junto com o
conceito de mudança. Como resultado acostumou-se a desenvolver uma percepção
meramente fotográfica de espaço e tempo, vacilando ao enquadrar o passado em
qualquer outro contexto. Mais do que ingrato, torna-se deveras difícil estabelecer como
e quando começou: definir uma data, um lugar, um agente causal. Talvez o dia em que

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Abel desfaleceu na escola, intoxicado pelos comprimidos cor-de-rosa da avó que
deglutiu debaixo da cama; talvez a desgostosa tarde da primeira comunhão, quando por
descuido arruinou na braseira os ténis caros comprados para a ocasião; talvez o dia em
que os pais regressaram de uma viagem de que nunca soube o destino, quando lhe foi
explicado que o pai iria sair de casa mas tudo ficaria bem. São vários os momentos que
lhe ocorrem, rolos e mais rolos de fotografias sem real contexto.
Agora, com 32 anos, e por temperamento avesso a riscos, havia circunstâncias em que
Abel ansiava pelo regaço do medo. Culpava o TOC por esses desvios, as suas manias e
rituais para impedir a “coisa má” de acontecer. O TOC incentivava façanhas peregrinas,
o TOC sujeitava Abel à perpetuação de repetições, o TOC era promessa e castigo.
Convivia com o T.C.O. Sempre que Abel se convencia do módico risco que afinal
corria ousava ir mais longe, recuperar o mais importante agente em jogo: o acaso.
Naquele dia escutou alguém a bater à porta, de seguida ouviu um click e o deslizar da
porta; mas os seus olhos cerrados não reagiram e quando finalmente se abriram no
silêncio, com a vista ainda embrumada, vislumbrou apenas um vulto retroceder em
passos atrapalhados, urgentes. Teve a vaga sensação de ver o vulto primeiro atropelar o
pé com a porta e de imediato bater com o cotovelo na esquina. A porta ficou encostada.


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A manhã tinha os sons e aromas de mais uma manhã de Primavera, balsâmica, o ar com
seu quê de corpóreo, tangível. Fazia bastante vento. O sol estava alto – ostensivo -,
derramava uma luz amarela e cálida por todo o escritório, como se fosse um imenso
irrigador de luz e calor debruçado sobre um pequeno canteiro.
Abel voltou nervoso da casa de banho. Ao relancear a vista pelos seus quatro colegas de
escritório (havia mais dois escritórios no mesmo edifício, ocupados por 5 técnicos cada,
e ainda o gabinete do advogado, contabilista, e secretário-geral da Associação), estes
pareceram-lhe indiferentes ao seu retorno; apenas um arredou o rosto do expediente mas
logo regressou ao trabalho. Abel sentiu-se aliviado. Só quando regressou aos afazeres
que o aguardavam – e Deus sabe como eles nunca iam a qualquer lado – deu-se conta da
corda bamba em que caminhou no regresso ao seu lugar. E se algum daqueles quatro
colegas o confrontasse, como reagiria? Saberia defender-se? A corda que calcou
animou-se então como algo concreto: um novelo que desenrodilhava a partir da casa de
banho e cessava na cadeira onde o seu corpo assentava, uma cauda presa na porta. Facto


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provado de que a maioria das pessoas que envelhece só presta pouca atenção a
pormenores.


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«O meu computador. Abel. Podes-me ajudar?»
«Claro. Diz, Rita.»
«O Word não detecta erros.»
Abel dirigiu-se à secretária da colega.
«Andaste a mexer nas configurações?»
«Não. Não que me lembre. Não que o tenha feito sabendo que o estava a fazer.»
Abel pegou no rato do computador e verificou as opções de correcção automática do
Word.
«Bem, Rita, não sei porque se desconfigurou, mas não está accionada a opção para
verificar erros. Agora deve estar bem.»
Palavras surgiram sublinhadas a vermelho a assinalar erros de ortografia; frases
sublinhadas a verde indicaram incorrecções gramaticais; num parágrafo inteiro, um
pequeno erro de sintaxe foi suficiente para que a totalidade do bloco de texto assentasse
sobre pequenas ondas a verde: riscos finos como fios, fulgentes como sol, ostensivos.
Abel sentiu as pernas bambas, uma tremura em ondas. Não, algo não estava bem.


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Antes o mundo cansado mas seguro na palma de uma mão fechada, antes o enfado que
o risco. Mil vezes o enfado ao risco. Manter as coisas como estão. As coisas como elas
são. Nada muda, tudo se repete ad aeternum; nada falha, quebra ou estoura; nada
renasce porque nada morre.
Aquela manhã, Abel perdeu-a em rituais.


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Há 10 anos, no final do primeiro de dia de trabalho na Associação, um dia de Setembro
invulgarmente gélido, Abel, ensimesmado, estranhou a apatia com que chegou a casa,
amorfo e alheado de qualquer metamorfose na sua vida. Achava-se, sem que fizesse por
isso, avesso ao fulgor de uma nova etapa, quebra de rotina, renovação. O dia todo –
embora bombardeado por novos rostos, tarefas, informações – foi incapaz de deixar-se


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arrebatar pelo extraordinário, sentira-se não em transformação, não a renascer, mas em
trânsito.
À luz âmbar do pôr-do-sol recostou-se no sofá cor-de-vinho, duas pedras de gelo a girar
num copo de whiskey, e ficou a ver escurecer os lugares mais recônditos da sala:
bugigangas e vasos de louça no topo da estante de carvalho, lombadas de livros,
quadros antigos com motivos de coutadas e montarias reais. Quando finalmente o sol se
pôs, restou a Abel olhar para baixo. Estendeu o corpo no sofá, copo pousado sobre o
peito, e girando o pescoço serpenteou os olhos pelos padrões orientais da carpete como
se os desenrolasse; ingeriu golos subitâneos de whiskey até pousar por fim o copo no
chão e adormecer.


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Apresentemo-lo de uma vez: Abel, 32 anos, solteiro, funcionário desde os 22 de uma
Associação que optamos por conservar no anonimato, filho único com pais divorciados
desde os tempos de adolescência. A mãe voltou a casar, mas separou-se há quatro anos.
Vive com o filho.
Na ressaca do segundo divórcio, a mãe de Abel regressou para viver com o filho.
Quando decidira a casar pela segunda vez mudara-se para casa do noivo, um viúvo de
58 anos – dois anos mais velho –, ficando Abel como único ocupante da casa. Na
prática, a presença da mãe continuou a ser uma constante na vida de Abel, um apêndice
na vida do filho. Cozinhava para Abel, passava a ferro, fazia a lida da casa. Assim,
quando o casamento terminou, voltou para aquela casa, que considerava tão sua quanto
de Abel. É verdade que notou desde logo a insatisfação do filho. Mas o tempo passa e
uma pessoa habitua-se a tudo.
A mãe via Abel apenas durante minutos breves e mudos ao jantar, depois dava o dia por
terminado e adormecia no seu quarto em frente à televisão. Abel regressava entrentanto
ao conforto do computador, à sua música, às suas leituras. Uma pessoa habitua-se
realmente a tudo. Mesmo a viver com um estranho e a amar um filho. Tudo numa
promessa só.


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Soavam no escritório as canções cansadas de sempre, «clássicos por insistência»
chamava-lhes Abel, equiparava a rádio a um pântano, um lugar morto.


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Ao fim de alguns anos naquele escritório, Abel percebeu que mesmo ouvindo quase oito
horas diárias de música, perguntando-se-lhe no final do dia «que canções passaram na
rádio?» ele não saberia responder. «As mesmas de sempre» diria, contraindo os ombros.
Escapes como a música ou a literatura eram alicerces do mundo de Abel. À noite, ao
computador, ouvia a música de que gostava. Lia sobretudo nas manhãs de fim-de-
semana, entre os lençóis. Saboreava melhor a leitura enquanto ainda não estava
completamente desperto.
A medida certa de sonolência na leitura permitia esbater as fronteiras do sonho, torná-lo
não num lugar encerrado por pálpebras, mas numa curiosa fabricação onírica que
consiste num arremedo de ninho ou toca que nos acomoda quando necessitamos. Com
sorte era possível conservar essa sensação toda a semana, adormecer a inquietação.


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Ao longo da sua vida, Abel aprendeu a exercer em determinados momentos o controlo
sobre o que pensar e como pensá-lo. No decurso do dia-a-dia, quando em trânsito, esse
controlo era quase inexistente. Abel capitulava face às miríades de pensamentos que
brotavam dispersas e sem rumo, a reboque de solicitações correntes, pura resposta a
impulsos e impressões. Contudo, o pensamento convertia-se num caudal, e fluía
deliberado, em momentos de enorme vertigem laboral – apenas algum stress não era
suficiente –, ou então quando --


Setembro, 2005
«O que estás a fazer, Abel?».
«Nada.»
«Amor, porque fazes essa dança ao entrar no quarto?»
«Não faças caso.»
«E há também aquela coisa das luzes. Acendes e apagas.»
«Esquece isso.»
«Amor, explica-me.»
«Ok.»




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Rita era a responsável técnica pela divisão de trabalho que Abel integrava. Ligeiramente
mais velha que Abel, mas pouco dada a rugas, era casada e mãe de um rapaz de 6 anos,
tida por Abel como inteligente e boa colega.

Abel gostava de facto de Rita. Mas atrevia-se apenas a fantasiar com ela dentro do
campo de acção banal dos seus corriqueiros devaneios eróticos. Enredar por fantasias
que admitissem sentimentos era cevar uma quimera. Tornava-se desrespeitoso por
arrogar uma inclinação sentimental da parte fantasiada – era uma apropriação que
parecia mais obscena a Abel –, e era perigoso ao exigir investimento emocional por
parte de Abel. Ficções pornográficas não iludem, são caprichos que se esvaecem por si,
não frustam nem doem. São meros cismas sensuais lascivos com desígnios amorais; um
início e um fim, uma função clara. Há que interditar a presença às nuances
assombreadas do amor, que essas, plangentes, amiseram sempre com uma espécie
quérula de tristeza vã.


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Foi ao final da manhã que começou. Rita foi chamada ao gabinete do Eng.º Paulo
Ramos, secretário-geral da Associação. Abel sentiu uma repentina ebulição do sangue,
um susto agudo mas desdito de imediato pelo bom senso: «É certamente outro assunto
qualquer.» Ainda assim, pendência. Inspira; não expira.

Olhos no ecrã. Foco para além do ponto em que é possível ler a informação. Durante a
ausência de Rita, Abel acudiu a cada distracção com que se deparava, abstraiu-se.
Corrigiu erros em documentos de word, descarregou o servidor da conta de correio
electrónico vezes sem conta, abriu antigas apresentações de power point, recordou
brochuras e cartazes em pdf e voltou a fechá-los. Todas aquelas notas de imprensa
redigidas ao longo de anos, as dezenas de circulares enviadas aos associados.

Rita tornou ao escritório aparentemente alheia a Abel. Porém distintamente contida,
com passos que pareciam digladiar-se para avançar, dubitativos. Olhos em contenda
com o chão. Abel podia jurar que digladiar-se era exactamente o que Rita fazia.




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Quando regressou do almoço, Abel surpreendeu-se a inventariar o material disperso
pela sua secretária. Um computador pessoal, dois montes caóticos de papel no seu lado
esquerdo: um mais próximo com documentos de utilização corrente e outro mais antigo
e anárquico com papéis e rascunhos que Abel preferia ter à mão a arrumar em dossiers.
Ainda: uma das duas impressoras afectas ao escritório, post-its amarelos e laranjas
estrategicamente colados ao monitor do computador, canetas e lápis e borracha, furador
e agrafador, um telefone sem fios e o respectivo berço. Nas duas gavetas encaixadas por
baixo do tampo acondicionava-se material diverso, como gravadores, microfones,
cabos, agendas antigas, cartões de apresentação personalizados (Abel Nunes Alves,
técnico de comunicação), uma folha de papel com contactos, mais papéis antigos e clips
e agrafos.

A atenção de Abel voltou-se em seguida para a informação no computador. Haveria lá
algum documento seu? Um embaraço em potência, se de hoje para amanhã o afastassem
do escritório? Abel correu com o ponteiro do rato dezenas de pastas e subpastas. Não
encontrou nada que fosse seu, qualquer vestígio, uma pegada na lama. Seria até um
desafio comprovar que aquele ser humano em particular utilizou aquele computador
durante 10 anos – sempre que mudava de computador, o que acontecera por três vezes,
Abel transferia todo o conteúdo para o novo disco –, nenhuma originalidade ínfima,
nenhuma extravagância, nenhuma singularidade.

Fosse despedido e este computador e documentos de trabalho representariam de certa
forma a sua continuidade na Associação. Impessoais, poderiam ser encaminhados para
um outro funcionário, que mesmo inicialmente se perdendo entre as pastas e os
ficheiros, paulatinamente compreenderia a mente de Abel, o trabalhador. «Talvez isso
não seja algo mau», pensou Abel.



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Abril, 2008
«Eu sou uma pessoa com bom humor.»

«Eu sei, Abel…»

«Então que raio de conversa vem a ser essa?»

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«Apenas quis dizer-- Ouve… Abel, não me vou repetir.»

«Porra, Laura. Tu não me explicaste a ponta de um corno.»

«Abel… tu sabes que isso--»

«Certo. Tudo bem. Seja.»



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Abel tinha dificuldade em defini-la. Reduzi-la a um receio irracional de perder quem
nos é querido não explica a certeza sempre presente de que nem a pior tragédia nos
liberta do encantamento da “coisa má”. Nada é definitivo. Quem alimenta a “coisa má”
somos nós. Esconde-se no seio de um lugar obscuro e esquivo que não conseguimos
alcançar. Não há como nos rebelarmos.



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É certo que Abel nunca foi o que se pode chamar de homem religioso, mas tal não
impediu que toda a vida se sentisse acossado por uma indistinta suspeita de culpa –
ubíqua, a bambolear-se por entre toda a sorte de pensamentos triviais, antevendo e
questionando e julgando. Abstracta ao ponto de ser mais intuição do que consciência,
um tipo de culpa ambígua e inata, pressentida.

Esta culpa deambuladora, ao conspurcar com dubiedade o infinito caudal de informação
por processar, criou no espírito de Abel uma desordem que nunca foi resolvida. Nos
dias bons era como um espanador que se limita a espalhar o pó. Nos dias maus era
como se o espanador nunca concedesse tréguas ao pó, jamais permitisse-lhe assentar
sobre outro lugar. Sem um guia moral, incapaz de sentir paz na bênção, Abel
desenvolveu uma concepção mágica de culpa.

É delicado definir quando começou. Pouco mais simples se torna explicar o que fez
Abel criar a penitência. Entre os seus 12 e 14 anos – e isto é certo para Abel - viu-se de
um dia para o outro fisicamente incapaz de resistir ao cumprimento de rituais.
Inicialmente antes de se deitar; de seguida antes de se permitir adormecer; em breve
também ao acordar. Os rituais cresceram gulosos e em pouco anos todo o decurso dos

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dias era susceptível de envolver compulsões. Abel aceitou viver com elas. Considerava
as obsessões estavam sob controlo porque só em casa as compulsões assumiam
contornos extravagantes.

No fundo, Abel criou um deus de que era discípulo único, intuiu ritos, formou a sua
própria concepção de Graça; criou uma doutrina igual a tantas outras, é certo, os
mesmos desígnios vagos e os mesmos pressupostos dúbios, mas ainda assim
reconfortante, uma origem para a culpa com expiação a condizer.

A sua magia tornou-se na única crença que Abel aceitava como imperfeita. Uma magia
que nos carrega sempre consigo, faz de nós seus bastardos, torna-nos seus. O TOC
surgiu do nada, mas logo se fez imenso e converteu Abel num recém-nascido ao seu
colo; permitiu a Abel crescer também, mas nunca fora do seu alcance. A seu tempo,
Abel atreveu-se a questioná-lo, desafiá-lo, até a advogar-se dono e senhor do TOC. Em
desespero contestou a sua própria existência. Um dia rebelou-se apenas para se provar
insuficiente.




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Junho, 2008
«Como anda a tua mãe?»
«Bem, pai. Normal.»
«E a Laura?»
«Não sei.»
«Passou-se alguma coisa?»
«Diga o que pretende, pai.»
«É possível que eu tenha de sair da cidade.»
«Onde vai?»
«Só estou a dizer que é possível que eu venha a sair da cidade. Não é certo.»
«Para onde pensa ir?»
«Eu…»
«Pai… está aí?»
«Só estou a dizer que é possível.»
«E a loja?»

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«Só estou--»
«Ok, pai.»


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Ao início da tarde o telefone de Rita tocou. Abel ouviu-a retribuir ao que lhe diziam
com uma parafernália de assentimentos. O seu coração dobrou de velocidade quando
Rita indagou o interlocutor – que entretanto Abel percebera ser o Eng.º Paulo – sobre a
necessidade de levar determinados documentos para a reunião com o Dr. Ribeiro Lopes.
A presença do presidente da direcção da Associação no escritório era rara.
Esporadicamente, em dias de reuniões da direcção, cumpria um périplo pelos escritórios
da Associação para observar a labuta; em conversas com funcionários aparentava
tentear o encalço de algo escondido da vista, algo omisso. Mas regra geral só se
deslocava à Associação para resolver assuntos pendentes, assinar cheques e documentos
importantes, tomar decisões urgentes.

Rita levantou-se, pegou em dois dossiers e apressou-se a sair do escritório. Com o foco
da visão imediatamente distanciado para a porta, avançou ligeira.




                                                  18

Janeiro, 2009
«Desculpa, Abel. Fala. Diz o que tens a dizer.»

«Eu não sei o que tenho a dizer, Laura. Sei o que quero que resulte daquilo que eu
diga.»

«Abel, por favor, não--»

«Não adianta. Bem sei.»

«Não voltemos a discutir tudo de novo. É desgastante, circular, um deserto. Não somos
dois garotos.»

«O meu pai telefonou-me a dizer que vai pôr-se a andar daqui para fora.»

«Para onde vai?»

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«Talvez eu também devesse fazer o mesmo.»

«Mas não o vais fazer.»

«Eu podia. Lisboa, talvez. Ainda sou novo.»

«Não o vais fazer.»




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Um braço de luz cobria em tons saturados de amarelo-torrado o cinzento da mesa de
Abel quando foi acesa a iluminação do escritório. Os candeeiros suspensos no tecto
dispararam luz com um espasmo, uma breve convulsão de luz amarela e límpida, que
quando assentou reduziu as sombras a nada, nenhum contraste, tudo iluminado por
igual.

A tarde ia a meio quando Rita regressou ao escritório e pediu a Abel que não se fosse
embora sem falar com o secretário-geral. Fez por disfarçar o esforço. Aproximou-se
com aparente tranquilidade da secretária, pareceu a Abel até um pouco absorta – como
se estivesse ausente daquele momento e apenas Abel o estivesse a viver – e entregou-lhe
o recado. Abel deveria aguardar o telefonema a convocá-lo para se dirigir ao gabinete
do secretário-geral.

«Passa-se alguma coisa, Rita?»

«Não sei dizer. O engenheiro pediu-me que esperasses pelo seu telefonema.»

«O Dr. Ribeiro Lopes já se foi?»

Ainda que expectante na cadeira, Abel não insistira, mas Rita contornou a secretária
para se debruçar sobre si; os dois corpos flectiram como uma concha que abertamente se
fecha sobre um segredo.




                                                 20

As janelas do escritório de Abel davam para um pequeno quintal nas traseiras do
edifício, um exíguo espaço habitado por um pomar de laranjeiras, com ramos extensos e
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esguios, folhagem basta e muito verde, mas laranjas escassas. Ao cair da tarde, as bolas
cor-de-laranja redondas e acanhadas pareciam assomar entre o verde como aparições.

Dias de vento como aquele exigiam dos funcionários uma certa habituação para ignorar
o ruído do revolver dos ramos das laranjeiras, um apego extra às tarefas em mão para
não aquiescer ao encantamento proporcionado pelo motim das árvores. Abel, mais do
que pelo estrépito no quintal, apercebia-se do tumulto através do recorte de janela que
invadia o canto do seu olho esquerdo, insurgindo-se no seu ângulo de visão; nessas
ocasiões afastava o olhar do ecrã do computador e esticava a vista através da janela.
Raramente demorava os olhos mais do que cinco segundos na cadência inebriada das
laranjeiras, nunca chegava a contemplá-la. Era-lhe suficiente comprazer-se com o
distinto conforto que resultava de descobrir pontos laranja na copa verde.

Naquela tarde, porém, Abel concedeu mais de dois minutos ao embriagado conturbar
das laranjeiras. Assistiu impávido, absorto. Perguntou-se até que ponto os vislumbres
diários do pomar – a ramagem soava o ar ao ritmo do vento – influiriam para o seu
temperamento quotidiano. Esta presença incessante de uma convulsão apercebida mas
jamais observada. Seriam dias de vento os dias em que mais periclitante se sentia? O
dia era de vento e Abel tremia.


                                                 21

É quando se entende o TOC que principiam os compromissos. Uma espécie de
maturidade na relação com a magia. Consentimos que as compulsões nos aliviem da
ansiedade atiçada pelas obsessões – seja por instantes, dias ou semanas –, que suprimam
o desconforto de resistir.

Subsiste sempre o apego à lógica, uma demanda por coerência, mas esvazia-se como
quaisquer outros princípios e valores. Perpetuam-se algumas compulsões, outras
extinguem-se à primeira lacuna. Não se criam mártires nos braços assoberbantes do
TOC.

Quanto mais Abel reflectia sobre o TOC, mais se convencia de que não lhe cabia a
culpa do “incidente”. Fora mero soldado numa missão, um funcionário no labor. Mas
afligia-o a evidente impossibilidade de tentar sequer fazer-se entender. Pela primeira
vez em muitos anos ofendia-o a ponto de choro que o mundo inteiro fosse alheio às suas

                                                                                        13
---------------------- O Homem Que Via Lugares ----------------------


regras. O seu fardo, tão cáustico, colava-se-lhe ao corpo como uma iniquidade que
frustrava à partida qualquer intento de a combater. Se alguém o denunciara, restava a
Abel receber a culpa como sua, amaldiçoar-se por receber a culpa como sua, fazer-se à
estrada e procurar outros lugares.




                                                 22

Maio, 2009
«Abel.»
«Pai? De onde está a ligar?»
«Eu só te queria dizer que estou bem.»
«Pai, que número é este? Brasil?»
«Alguém falou contigo?»
«Sobre o quê? Pai…»
«Abel. A polícia falou contigo?»
«Onde está pai?»
«Não interessa onde estou, Abel. Eu estou bem.»
«Não, pai. Ninguém falou comigo.»
«Tudo o que te contarem é verdade.»
«A loja. Já declarou falência?»
«Filho, ouve, eles provavelmente vão apresentar queixa.»
«Quem vai apresentar queixa? Pai… o que aconteceu? Este indicativo é do Brasil?»
«Os funcionários vão apresentar queixa. Depois digo-te onde estou.»
«Quando? Tem dinheiro consigo?»
«Eu estou bem. Não tentes ligar para este número, não é meu.»



                                                 23

As mãos absortas sobre o teclado; o olhar bem para lá do ecrã do monitor; dois
rectângulos de papelada perfeitamente alinhados. No quintal, o negro cerrado, recortado
apenas por um farrapo sujo azul-escuro no céu. Mas ainda assim chegou como uma
vertigem. Abel ensaiara o susto, o bramir do alarme, mas jamais o furor da urgência: o



                                                                                        14
---------------------- O Homem Que Via Lugares ----------------------


assombro. É escusado subjugar o susto sem domar o assombro, domesticar o coração
sem lhe prestar satisfações.




                                                 24

2 de Dezembro de 2010

«Também são coisas destas que nos fazem mexer, Abel, pôr pé na estrada, descobrir o
que nos aguarda mais à frente, crescer. Não é um drama, tu sabes que não é o fim do
mundo, caramba. Cartas sobre a mesa, Abel. Creio que tu próprio não estás certo de
querer estar aqui – andas à deriva, pá, sem rota, aos soluços –, as pessoas notam Abel.
Pessoalmente acredito que vês neste emprego, no teu escritório, tua secretária, um
cantinho que existe e que está sempre aqui para ti. E tem sido sempre assim até agora.
Mas a Associação está com problemas, temos de mudar de rumo, procurar --

Ouve, Abel, empresas que sobrevivem a tempos difíceis não se prendem a lugares. Não
são como nós: como eu, tu… sei lá. O certo é que empresas que sobrevivem vêem
sempre novos caminhos. Digo empresas, associações, o que quiseres chamar. Todas têm
responsabilidades maiores.»

«Entendo.»

«Entendes mesmo, Abel?»

«Posso levantar-me?»

«Por curiosidade, Abel, tu sabes há quantos anos estás empregado na Associação?»

«Não.»

«Há 10 anos. Como vês, isto também não é fácil para nós, amigo Abel. Repito que nada
tem a ver com o teu desempenho profissional, a tua competên --»

«O Eng.º precisa de mais alguma coisa?»

«Assina só esta cópia do ofício em como recebeste o original.»




                                                                                        15
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                                                 25

Nesse mesmo dia três outros funcionários da Associação receberam cartas de
despedimento, nenhum do escritório de Abel. À noite, já em casa, Abel ainda hesitou,
mas decidiu-se por aceitar o convite de Rita. Telefonou-lhe conforme combinado e os
dois encontraram-se num café e falaram largos minutos sobre pequenos nadas, lugares-
comuns, confortos e tempos melhores.

Abel gostava realmente de Rita. O seu comportamento arrebatado, benigno ensejo de
empatia por o lugar do outro, lembrava a Abel tardes de Verão em que uma só nuvem,
desgarrada e distante, peregrinava pelos céus, o branco anódino no azul imenso,
vestígios de vida em movimento.

Abel manteve-se na Associação durante várias semanas, aguardando a saída efectiva.
Semanas em que o apego ao escritório, à sua secretária e aos documentos do
computador se reduziram a nada. Semanas em que o TOC deu tréguas momentâneas,
permitiu o desleixo, não contestou a incúria. Quando Abel finalmente saiu, sentia-se já
deslocado, fora do lugar. Na Associação moveu-se durante anos como um carrossel num
giro eterno em rodo de um eixo, desenhando anéis ora maiores ora menores, mas
sempre alheios aos lugares que ocupam ou vazam. Circular parecia-lhe subitamente
terapêutico. Divagar tornou-se essencial. Um homem em trânsito nunca se conclui a si
próprio enquanto divaga.

O escritório estava vazio quando Abel desligou pela última vez o computador. A sua
secretária, despida de papéis e post-its, declarava-se enfim inteiramente anónima.
Encerrava uma espécie de leveza de espectro à espera de ser reencarnado. Abel pousou
por uma última vez a vista no seu antigo espaço e o mesmo fio de olhar resvalou para a
secretária de Rita e deslizou pelas secretárias dos outros três colegas; pareciam em
repouso, num sono ligeiro, um olho fechado e o outro aberto. Nesse final de tarde, sem
qualquer esforço, Abel viu uma continuidade de lugares. Não eram ninhos ou tocas.
Não eram fotografias. Toda aquela sucessão de lugares formava claramente um
caminho. Um a seguir ao outro a seguir--

Abel bocejou.

                                               FIM


                                                                                        16

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  • 1. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- LUÍS TIAGO CARVALHO O HOMEM QUE VIA LUGARES 1
  • 2. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- O Homem Que Via Lugares Consideremos antes de mais que existe uma peculiar sensação que é um tanto ou quanto mais imprecisa que as demais, sôfrega mas agradável q.b., de uma voracidade estéril, um certo gosto a estorvo que apetece. É uma inquietação peganhenta que remanesce de uma espécie de rebelião sonhada. Frutífera apenas enquanto a pupila não destapa a íris, fértil quando o sono pesa sobre os olhos, a rebelião onírica implode no instante em que o mundo corpóreo nos atinge e envolve em toda a sua extensão com o primeiro sinal de vida. Rendamo-nos à descrição possível e esquivemo-nos de outras que temo não lograr de engenho para dar: a sensação remanescente encobre-se nas margens, perdura nas sombras do mundo desperto – vivido em consciência –, mas ainda assim mantém-se suficientemente presente para suster consequências transversais a toda a nossa existência. Ensaia apenas o abrir de uma brecha, manter o enigma, murmurar. Agora sim. 1 2 de Dezembro, 2010 Fez um gracejo e fixou a cara dela como se fosse uma coisa, o sorriso de mármore, deliberadamente distraído, hesitante em abandonar totalmente o ecrã do computador; fez um gracejo e fixou a cara dela e levou-a consigo pelo corredor afora. Abriu a porta da casa de banho das senhoras e trancou-se; depois destrancou a porta. 2 Em 10 anos de serviço aquela foi a segunda vez que Abel arriscou tanto; ou talvez sempre o fizesse, se comungarmos da reflexão comum de que o medo é um animal peculiar que nos doma. Não por acaso, sobre ele – o medo –, diz-se amiúde que quem vive cego morre sempre depois. Abel reconhecia a ironia. Enquanto criança assimilou o conceito de medo junto com o conceito de mudança. Como resultado acostumou-se a desenvolver uma percepção meramente fotográfica de espaço e tempo, vacilando ao enquadrar o passado em qualquer outro contexto. Mais do que ingrato, torna-se deveras difícil estabelecer como e quando começou: definir uma data, um lugar, um agente causal. Talvez o dia em que 2
  • 3. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- Abel desfaleceu na escola, intoxicado pelos comprimidos cor-de-rosa da avó que deglutiu debaixo da cama; talvez a desgostosa tarde da primeira comunhão, quando por descuido arruinou na braseira os ténis caros comprados para a ocasião; talvez o dia em que os pais regressaram de uma viagem de que nunca soube o destino, quando lhe foi explicado que o pai iria sair de casa mas tudo ficaria bem. São vários os momentos que lhe ocorrem, rolos e mais rolos de fotografias sem real contexto. Agora, com 32 anos, e por temperamento avesso a riscos, havia circunstâncias em que Abel ansiava pelo regaço do medo. Culpava o TOC por esses desvios, as suas manias e rituais para impedir a “coisa má” de acontecer. O TOC incentivava façanhas peregrinas, o TOC sujeitava Abel à perpetuação de repetições, o TOC era promessa e castigo. Convivia com o T.C.O. Sempre que Abel se convencia do módico risco que afinal corria ousava ir mais longe, recuperar o mais importante agente em jogo: o acaso. Naquele dia escutou alguém a bater à porta, de seguida ouviu um click e o deslizar da porta; mas os seus olhos cerrados não reagiram e quando finalmente se abriram no silêncio, com a vista ainda embrumada, vislumbrou apenas um vulto retroceder em passos atrapalhados, urgentes. Teve a vaga sensação de ver o vulto primeiro atropelar o pé com a porta e de imediato bater com o cotovelo na esquina. A porta ficou encostada. 3 A manhã tinha os sons e aromas de mais uma manhã de Primavera, balsâmica, o ar com seu quê de corpóreo, tangível. Fazia bastante vento. O sol estava alto – ostensivo -, derramava uma luz amarela e cálida por todo o escritório, como se fosse um imenso irrigador de luz e calor debruçado sobre um pequeno canteiro. Abel voltou nervoso da casa de banho. Ao relancear a vista pelos seus quatro colegas de escritório (havia mais dois escritórios no mesmo edifício, ocupados por 5 técnicos cada, e ainda o gabinete do advogado, contabilista, e secretário-geral da Associação), estes pareceram-lhe indiferentes ao seu retorno; apenas um arredou o rosto do expediente mas logo regressou ao trabalho. Abel sentiu-se aliviado. Só quando regressou aos afazeres que o aguardavam – e Deus sabe como eles nunca iam a qualquer lado – deu-se conta da corda bamba em que caminhou no regresso ao seu lugar. E se algum daqueles quatro colegas o confrontasse, como reagiria? Saberia defender-se? A corda que calcou animou-se então como algo concreto: um novelo que desenrodilhava a partir da casa de banho e cessava na cadeira onde o seu corpo assentava, uma cauda presa na porta. Facto 3
  • 4. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- provado de que a maioria das pessoas que envelhece só presta pouca atenção a pormenores. 4 «O meu computador. Abel. Podes-me ajudar?» «Claro. Diz, Rita.» «O Word não detecta erros.» Abel dirigiu-se à secretária da colega. «Andaste a mexer nas configurações?» «Não. Não que me lembre. Não que o tenha feito sabendo que o estava a fazer.» Abel pegou no rato do computador e verificou as opções de correcção automática do Word. «Bem, Rita, não sei porque se desconfigurou, mas não está accionada a opção para verificar erros. Agora deve estar bem.» Palavras surgiram sublinhadas a vermelho a assinalar erros de ortografia; frases sublinhadas a verde indicaram incorrecções gramaticais; num parágrafo inteiro, um pequeno erro de sintaxe foi suficiente para que a totalidade do bloco de texto assentasse sobre pequenas ondas a verde: riscos finos como fios, fulgentes como sol, ostensivos. Abel sentiu as pernas bambas, uma tremura em ondas. Não, algo não estava bem. 5 Antes o mundo cansado mas seguro na palma de uma mão fechada, antes o enfado que o risco. Mil vezes o enfado ao risco. Manter as coisas como estão. As coisas como elas são. Nada muda, tudo se repete ad aeternum; nada falha, quebra ou estoura; nada renasce porque nada morre. Aquela manhã, Abel perdeu-a em rituais. 6 Há 10 anos, no final do primeiro de dia de trabalho na Associação, um dia de Setembro invulgarmente gélido, Abel, ensimesmado, estranhou a apatia com que chegou a casa, amorfo e alheado de qualquer metamorfose na sua vida. Achava-se, sem que fizesse por isso, avesso ao fulgor de uma nova etapa, quebra de rotina, renovação. O dia todo – embora bombardeado por novos rostos, tarefas, informações – foi incapaz de deixar-se 4
  • 5. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- arrebatar pelo extraordinário, sentira-se não em transformação, não a renascer, mas em trânsito. À luz âmbar do pôr-do-sol recostou-se no sofá cor-de-vinho, duas pedras de gelo a girar num copo de whiskey, e ficou a ver escurecer os lugares mais recônditos da sala: bugigangas e vasos de louça no topo da estante de carvalho, lombadas de livros, quadros antigos com motivos de coutadas e montarias reais. Quando finalmente o sol se pôs, restou a Abel olhar para baixo. Estendeu o corpo no sofá, copo pousado sobre o peito, e girando o pescoço serpenteou os olhos pelos padrões orientais da carpete como se os desenrolasse; ingeriu golos subitâneos de whiskey até pousar por fim o copo no chão e adormecer. 7 Apresentemo-lo de uma vez: Abel, 32 anos, solteiro, funcionário desde os 22 de uma Associação que optamos por conservar no anonimato, filho único com pais divorciados desde os tempos de adolescência. A mãe voltou a casar, mas separou-se há quatro anos. Vive com o filho. Na ressaca do segundo divórcio, a mãe de Abel regressou para viver com o filho. Quando decidira a casar pela segunda vez mudara-se para casa do noivo, um viúvo de 58 anos – dois anos mais velho –, ficando Abel como único ocupante da casa. Na prática, a presença da mãe continuou a ser uma constante na vida de Abel, um apêndice na vida do filho. Cozinhava para Abel, passava a ferro, fazia a lida da casa. Assim, quando o casamento terminou, voltou para aquela casa, que considerava tão sua quanto de Abel. É verdade que notou desde logo a insatisfação do filho. Mas o tempo passa e uma pessoa habitua-se a tudo. A mãe via Abel apenas durante minutos breves e mudos ao jantar, depois dava o dia por terminado e adormecia no seu quarto em frente à televisão. Abel regressava entrentanto ao conforto do computador, à sua música, às suas leituras. Uma pessoa habitua-se realmente a tudo. Mesmo a viver com um estranho e a amar um filho. Tudo numa promessa só. 8 Soavam no escritório as canções cansadas de sempre, «clássicos por insistência» chamava-lhes Abel, equiparava a rádio a um pântano, um lugar morto. 5
  • 6. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- Ao fim de alguns anos naquele escritório, Abel percebeu que mesmo ouvindo quase oito horas diárias de música, perguntando-se-lhe no final do dia «que canções passaram na rádio?» ele não saberia responder. «As mesmas de sempre» diria, contraindo os ombros. Escapes como a música ou a literatura eram alicerces do mundo de Abel. À noite, ao computador, ouvia a música de que gostava. Lia sobretudo nas manhãs de fim-de- semana, entre os lençóis. Saboreava melhor a leitura enquanto ainda não estava completamente desperto. A medida certa de sonolência na leitura permitia esbater as fronteiras do sonho, torná-lo não num lugar encerrado por pálpebras, mas numa curiosa fabricação onírica que consiste num arremedo de ninho ou toca que nos acomoda quando necessitamos. Com sorte era possível conservar essa sensação toda a semana, adormecer a inquietação. 9 Ao longo da sua vida, Abel aprendeu a exercer em determinados momentos o controlo sobre o que pensar e como pensá-lo. No decurso do dia-a-dia, quando em trânsito, esse controlo era quase inexistente. Abel capitulava face às miríades de pensamentos que brotavam dispersas e sem rumo, a reboque de solicitações correntes, pura resposta a impulsos e impressões. Contudo, o pensamento convertia-se num caudal, e fluía deliberado, em momentos de enorme vertigem laboral – apenas algum stress não era suficiente –, ou então quando -- Setembro, 2005 «O que estás a fazer, Abel?». «Nada.» «Amor, porque fazes essa dança ao entrar no quarto?» «Não faças caso.» «E há também aquela coisa das luzes. Acendes e apagas.» «Esquece isso.» «Amor, explica-me.» «Ok.» 6
  • 7. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- 10 Rita era a responsável técnica pela divisão de trabalho que Abel integrava. Ligeiramente mais velha que Abel, mas pouco dada a rugas, era casada e mãe de um rapaz de 6 anos, tida por Abel como inteligente e boa colega. Abel gostava de facto de Rita. Mas atrevia-se apenas a fantasiar com ela dentro do campo de acção banal dos seus corriqueiros devaneios eróticos. Enredar por fantasias que admitissem sentimentos era cevar uma quimera. Tornava-se desrespeitoso por arrogar uma inclinação sentimental da parte fantasiada – era uma apropriação que parecia mais obscena a Abel –, e era perigoso ao exigir investimento emocional por parte de Abel. Ficções pornográficas não iludem, são caprichos que se esvaecem por si, não frustam nem doem. São meros cismas sensuais lascivos com desígnios amorais; um início e um fim, uma função clara. Há que interditar a presença às nuances assombreadas do amor, que essas, plangentes, amiseram sempre com uma espécie quérula de tristeza vã. 11 Foi ao final da manhã que começou. Rita foi chamada ao gabinete do Eng.º Paulo Ramos, secretário-geral da Associação. Abel sentiu uma repentina ebulição do sangue, um susto agudo mas desdito de imediato pelo bom senso: «É certamente outro assunto qualquer.» Ainda assim, pendência. Inspira; não expira. Olhos no ecrã. Foco para além do ponto em que é possível ler a informação. Durante a ausência de Rita, Abel acudiu a cada distracção com que se deparava, abstraiu-se. Corrigiu erros em documentos de word, descarregou o servidor da conta de correio electrónico vezes sem conta, abriu antigas apresentações de power point, recordou brochuras e cartazes em pdf e voltou a fechá-los. Todas aquelas notas de imprensa redigidas ao longo de anos, as dezenas de circulares enviadas aos associados. Rita tornou ao escritório aparentemente alheia a Abel. Porém distintamente contida, com passos que pareciam digladiar-se para avançar, dubitativos. Olhos em contenda com o chão. Abel podia jurar que digladiar-se era exactamente o que Rita fazia. 7
  • 8. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- 12 Quando regressou do almoço, Abel surpreendeu-se a inventariar o material disperso pela sua secretária. Um computador pessoal, dois montes caóticos de papel no seu lado esquerdo: um mais próximo com documentos de utilização corrente e outro mais antigo e anárquico com papéis e rascunhos que Abel preferia ter à mão a arrumar em dossiers. Ainda: uma das duas impressoras afectas ao escritório, post-its amarelos e laranjas estrategicamente colados ao monitor do computador, canetas e lápis e borracha, furador e agrafador, um telefone sem fios e o respectivo berço. Nas duas gavetas encaixadas por baixo do tampo acondicionava-se material diverso, como gravadores, microfones, cabos, agendas antigas, cartões de apresentação personalizados (Abel Nunes Alves, técnico de comunicação), uma folha de papel com contactos, mais papéis antigos e clips e agrafos. A atenção de Abel voltou-se em seguida para a informação no computador. Haveria lá algum documento seu? Um embaraço em potência, se de hoje para amanhã o afastassem do escritório? Abel correu com o ponteiro do rato dezenas de pastas e subpastas. Não encontrou nada que fosse seu, qualquer vestígio, uma pegada na lama. Seria até um desafio comprovar que aquele ser humano em particular utilizou aquele computador durante 10 anos – sempre que mudava de computador, o que acontecera por três vezes, Abel transferia todo o conteúdo para o novo disco –, nenhuma originalidade ínfima, nenhuma extravagância, nenhuma singularidade. Fosse despedido e este computador e documentos de trabalho representariam de certa forma a sua continuidade na Associação. Impessoais, poderiam ser encaminhados para um outro funcionário, que mesmo inicialmente se perdendo entre as pastas e os ficheiros, paulatinamente compreenderia a mente de Abel, o trabalhador. «Talvez isso não seja algo mau», pensou Abel. 13 Abril, 2008 «Eu sou uma pessoa com bom humor.» «Eu sei, Abel…» «Então que raio de conversa vem a ser essa?» 8
  • 9. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- «Apenas quis dizer-- Ouve… Abel, não me vou repetir.» «Porra, Laura. Tu não me explicaste a ponta de um corno.» «Abel… tu sabes que isso--» «Certo. Tudo bem. Seja.» 14 Abel tinha dificuldade em defini-la. Reduzi-la a um receio irracional de perder quem nos é querido não explica a certeza sempre presente de que nem a pior tragédia nos liberta do encantamento da “coisa má”. Nada é definitivo. Quem alimenta a “coisa má” somos nós. Esconde-se no seio de um lugar obscuro e esquivo que não conseguimos alcançar. Não há como nos rebelarmos. 15 É certo que Abel nunca foi o que se pode chamar de homem religioso, mas tal não impediu que toda a vida se sentisse acossado por uma indistinta suspeita de culpa – ubíqua, a bambolear-se por entre toda a sorte de pensamentos triviais, antevendo e questionando e julgando. Abstracta ao ponto de ser mais intuição do que consciência, um tipo de culpa ambígua e inata, pressentida. Esta culpa deambuladora, ao conspurcar com dubiedade o infinito caudal de informação por processar, criou no espírito de Abel uma desordem que nunca foi resolvida. Nos dias bons era como um espanador que se limita a espalhar o pó. Nos dias maus era como se o espanador nunca concedesse tréguas ao pó, jamais permitisse-lhe assentar sobre outro lugar. Sem um guia moral, incapaz de sentir paz na bênção, Abel desenvolveu uma concepção mágica de culpa. É delicado definir quando começou. Pouco mais simples se torna explicar o que fez Abel criar a penitência. Entre os seus 12 e 14 anos – e isto é certo para Abel - viu-se de um dia para o outro fisicamente incapaz de resistir ao cumprimento de rituais. Inicialmente antes de se deitar; de seguida antes de se permitir adormecer; em breve também ao acordar. Os rituais cresceram gulosos e em pouco anos todo o decurso dos 9
  • 10. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- dias era susceptível de envolver compulsões. Abel aceitou viver com elas. Considerava as obsessões estavam sob controlo porque só em casa as compulsões assumiam contornos extravagantes. No fundo, Abel criou um deus de que era discípulo único, intuiu ritos, formou a sua própria concepção de Graça; criou uma doutrina igual a tantas outras, é certo, os mesmos desígnios vagos e os mesmos pressupostos dúbios, mas ainda assim reconfortante, uma origem para a culpa com expiação a condizer. A sua magia tornou-se na única crença que Abel aceitava como imperfeita. Uma magia que nos carrega sempre consigo, faz de nós seus bastardos, torna-nos seus. O TOC surgiu do nada, mas logo se fez imenso e converteu Abel num recém-nascido ao seu colo; permitiu a Abel crescer também, mas nunca fora do seu alcance. A seu tempo, Abel atreveu-se a questioná-lo, desafiá-lo, até a advogar-se dono e senhor do TOC. Em desespero contestou a sua própria existência. Um dia rebelou-se apenas para se provar insuficiente. 16 Junho, 2008 «Como anda a tua mãe?» «Bem, pai. Normal.» «E a Laura?» «Não sei.» «Passou-se alguma coisa?» «Diga o que pretende, pai.» «É possível que eu tenha de sair da cidade.» «Onde vai?» «Só estou a dizer que é possível que eu venha a sair da cidade. Não é certo.» «Para onde pensa ir?» «Eu…» «Pai… está aí?» «Só estou a dizer que é possível.» «E a loja?» 10
  • 11. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- «Só estou--» «Ok, pai.» 17 Ao início da tarde o telefone de Rita tocou. Abel ouviu-a retribuir ao que lhe diziam com uma parafernália de assentimentos. O seu coração dobrou de velocidade quando Rita indagou o interlocutor – que entretanto Abel percebera ser o Eng.º Paulo – sobre a necessidade de levar determinados documentos para a reunião com o Dr. Ribeiro Lopes. A presença do presidente da direcção da Associação no escritório era rara. Esporadicamente, em dias de reuniões da direcção, cumpria um périplo pelos escritórios da Associação para observar a labuta; em conversas com funcionários aparentava tentear o encalço de algo escondido da vista, algo omisso. Mas regra geral só se deslocava à Associação para resolver assuntos pendentes, assinar cheques e documentos importantes, tomar decisões urgentes. Rita levantou-se, pegou em dois dossiers e apressou-se a sair do escritório. Com o foco da visão imediatamente distanciado para a porta, avançou ligeira. 18 Janeiro, 2009 «Desculpa, Abel. Fala. Diz o que tens a dizer.» «Eu não sei o que tenho a dizer, Laura. Sei o que quero que resulte daquilo que eu diga.» «Abel, por favor, não--» «Não adianta. Bem sei.» «Não voltemos a discutir tudo de novo. É desgastante, circular, um deserto. Não somos dois garotos.» «O meu pai telefonou-me a dizer que vai pôr-se a andar daqui para fora.» «Para onde vai?» 11
  • 12. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- «Talvez eu também devesse fazer o mesmo.» «Mas não o vais fazer.» «Eu podia. Lisboa, talvez. Ainda sou novo.» «Não o vais fazer.» 19 Um braço de luz cobria em tons saturados de amarelo-torrado o cinzento da mesa de Abel quando foi acesa a iluminação do escritório. Os candeeiros suspensos no tecto dispararam luz com um espasmo, uma breve convulsão de luz amarela e límpida, que quando assentou reduziu as sombras a nada, nenhum contraste, tudo iluminado por igual. A tarde ia a meio quando Rita regressou ao escritório e pediu a Abel que não se fosse embora sem falar com o secretário-geral. Fez por disfarçar o esforço. Aproximou-se com aparente tranquilidade da secretária, pareceu a Abel até um pouco absorta – como se estivesse ausente daquele momento e apenas Abel o estivesse a viver – e entregou-lhe o recado. Abel deveria aguardar o telefonema a convocá-lo para se dirigir ao gabinete do secretário-geral. «Passa-se alguma coisa, Rita?» «Não sei dizer. O engenheiro pediu-me que esperasses pelo seu telefonema.» «O Dr. Ribeiro Lopes já se foi?» Ainda que expectante na cadeira, Abel não insistira, mas Rita contornou a secretária para se debruçar sobre si; os dois corpos flectiram como uma concha que abertamente se fecha sobre um segredo. 20 As janelas do escritório de Abel davam para um pequeno quintal nas traseiras do edifício, um exíguo espaço habitado por um pomar de laranjeiras, com ramos extensos e 12
  • 13. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- esguios, folhagem basta e muito verde, mas laranjas escassas. Ao cair da tarde, as bolas cor-de-laranja redondas e acanhadas pareciam assomar entre o verde como aparições. Dias de vento como aquele exigiam dos funcionários uma certa habituação para ignorar o ruído do revolver dos ramos das laranjeiras, um apego extra às tarefas em mão para não aquiescer ao encantamento proporcionado pelo motim das árvores. Abel, mais do que pelo estrépito no quintal, apercebia-se do tumulto através do recorte de janela que invadia o canto do seu olho esquerdo, insurgindo-se no seu ângulo de visão; nessas ocasiões afastava o olhar do ecrã do computador e esticava a vista através da janela. Raramente demorava os olhos mais do que cinco segundos na cadência inebriada das laranjeiras, nunca chegava a contemplá-la. Era-lhe suficiente comprazer-se com o distinto conforto que resultava de descobrir pontos laranja na copa verde. Naquela tarde, porém, Abel concedeu mais de dois minutos ao embriagado conturbar das laranjeiras. Assistiu impávido, absorto. Perguntou-se até que ponto os vislumbres diários do pomar – a ramagem soava o ar ao ritmo do vento – influiriam para o seu temperamento quotidiano. Esta presença incessante de uma convulsão apercebida mas jamais observada. Seriam dias de vento os dias em que mais periclitante se sentia? O dia era de vento e Abel tremia. 21 É quando se entende o TOC que principiam os compromissos. Uma espécie de maturidade na relação com a magia. Consentimos que as compulsões nos aliviem da ansiedade atiçada pelas obsessões – seja por instantes, dias ou semanas –, que suprimam o desconforto de resistir. Subsiste sempre o apego à lógica, uma demanda por coerência, mas esvazia-se como quaisquer outros princípios e valores. Perpetuam-se algumas compulsões, outras extinguem-se à primeira lacuna. Não se criam mártires nos braços assoberbantes do TOC. Quanto mais Abel reflectia sobre o TOC, mais se convencia de que não lhe cabia a culpa do “incidente”. Fora mero soldado numa missão, um funcionário no labor. Mas afligia-o a evidente impossibilidade de tentar sequer fazer-se entender. Pela primeira vez em muitos anos ofendia-o a ponto de choro que o mundo inteiro fosse alheio às suas 13
  • 14. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- regras. O seu fardo, tão cáustico, colava-se-lhe ao corpo como uma iniquidade que frustrava à partida qualquer intento de a combater. Se alguém o denunciara, restava a Abel receber a culpa como sua, amaldiçoar-se por receber a culpa como sua, fazer-se à estrada e procurar outros lugares. 22 Maio, 2009 «Abel.» «Pai? De onde está a ligar?» «Eu só te queria dizer que estou bem.» «Pai, que número é este? Brasil?» «Alguém falou contigo?» «Sobre o quê? Pai…» «Abel. A polícia falou contigo?» «Onde está pai?» «Não interessa onde estou, Abel. Eu estou bem.» «Não, pai. Ninguém falou comigo.» «Tudo o que te contarem é verdade.» «A loja. Já declarou falência?» «Filho, ouve, eles provavelmente vão apresentar queixa.» «Quem vai apresentar queixa? Pai… o que aconteceu? Este indicativo é do Brasil?» «Os funcionários vão apresentar queixa. Depois digo-te onde estou.» «Quando? Tem dinheiro consigo?» «Eu estou bem. Não tentes ligar para este número, não é meu.» 23 As mãos absortas sobre o teclado; o olhar bem para lá do ecrã do monitor; dois rectângulos de papelada perfeitamente alinhados. No quintal, o negro cerrado, recortado apenas por um farrapo sujo azul-escuro no céu. Mas ainda assim chegou como uma vertigem. Abel ensaiara o susto, o bramir do alarme, mas jamais o furor da urgência: o 14
  • 15. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- assombro. É escusado subjugar o susto sem domar o assombro, domesticar o coração sem lhe prestar satisfações. 24 2 de Dezembro de 2010 «Também são coisas destas que nos fazem mexer, Abel, pôr pé na estrada, descobrir o que nos aguarda mais à frente, crescer. Não é um drama, tu sabes que não é o fim do mundo, caramba. Cartas sobre a mesa, Abel. Creio que tu próprio não estás certo de querer estar aqui – andas à deriva, pá, sem rota, aos soluços –, as pessoas notam Abel. Pessoalmente acredito que vês neste emprego, no teu escritório, tua secretária, um cantinho que existe e que está sempre aqui para ti. E tem sido sempre assim até agora. Mas a Associação está com problemas, temos de mudar de rumo, procurar -- Ouve, Abel, empresas que sobrevivem a tempos difíceis não se prendem a lugares. Não são como nós: como eu, tu… sei lá. O certo é que empresas que sobrevivem vêem sempre novos caminhos. Digo empresas, associações, o que quiseres chamar. Todas têm responsabilidades maiores.» «Entendo.» «Entendes mesmo, Abel?» «Posso levantar-me?» «Por curiosidade, Abel, tu sabes há quantos anos estás empregado na Associação?» «Não.» «Há 10 anos. Como vês, isto também não é fácil para nós, amigo Abel. Repito que nada tem a ver com o teu desempenho profissional, a tua competên --» «O Eng.º precisa de mais alguma coisa?» «Assina só esta cópia do ofício em como recebeste o original.» 15
  • 16. ---------------------- O Homem Que Via Lugares ---------------------- 25 Nesse mesmo dia três outros funcionários da Associação receberam cartas de despedimento, nenhum do escritório de Abel. À noite, já em casa, Abel ainda hesitou, mas decidiu-se por aceitar o convite de Rita. Telefonou-lhe conforme combinado e os dois encontraram-se num café e falaram largos minutos sobre pequenos nadas, lugares- comuns, confortos e tempos melhores. Abel gostava realmente de Rita. O seu comportamento arrebatado, benigno ensejo de empatia por o lugar do outro, lembrava a Abel tardes de Verão em que uma só nuvem, desgarrada e distante, peregrinava pelos céus, o branco anódino no azul imenso, vestígios de vida em movimento. Abel manteve-se na Associação durante várias semanas, aguardando a saída efectiva. Semanas em que o apego ao escritório, à sua secretária e aos documentos do computador se reduziram a nada. Semanas em que o TOC deu tréguas momentâneas, permitiu o desleixo, não contestou a incúria. Quando Abel finalmente saiu, sentia-se já deslocado, fora do lugar. Na Associação moveu-se durante anos como um carrossel num giro eterno em rodo de um eixo, desenhando anéis ora maiores ora menores, mas sempre alheios aos lugares que ocupam ou vazam. Circular parecia-lhe subitamente terapêutico. Divagar tornou-se essencial. Um homem em trânsito nunca se conclui a si próprio enquanto divaga. O escritório estava vazio quando Abel desligou pela última vez o computador. A sua secretária, despida de papéis e post-its, declarava-se enfim inteiramente anónima. Encerrava uma espécie de leveza de espectro à espera de ser reencarnado. Abel pousou por uma última vez a vista no seu antigo espaço e o mesmo fio de olhar resvalou para a secretária de Rita e deslizou pelas secretárias dos outros três colegas; pareciam em repouso, num sono ligeiro, um olho fechado e o outro aberto. Nesse final de tarde, sem qualquer esforço, Abel viu uma continuidade de lugares. Não eram ninhos ou tocas. Não eram fotografias. Toda aquela sucessão de lugares formava claramente um caminho. Um a seguir ao outro a seguir-- Abel bocejou. FIM 16