O documento discute a ideia de que não existe uma "verdade política" em democracia. Argumenta-se que para haver democracia, nenhuma opinião pode ser desqualificada com base na alegação de que está em desacordo com alguma "verdade" revelada ou científica. Qualquer sistema que afirme possuir a verdade torna as outras opiniões ilegítimas, o que é incompatível com a democracia.
1. Verdade
Da série Pílulas Democráticas 2
NÃO EXISTE UMA VERDADE POLÍTICA
Augusto de Franco
Excertos do original sem-revisão do livro Alfabetização Democrática (Curitiba: Rede de
Participação Política: 2007) republicados em 2010.
A democracia tem a obrigação de aceitar todas as verdades, menos
aquelas que pretendam legitimar a ilegitimidade do outro
Para haver democracia é necessário que não exista uma verdade política
(pois se houver uma verdade, alguém poderá dela se apropriar).
A verdade do outro, ou seja, o que ele julga como verdade para si, pode
ser tão legítima quanto a nossa e o seu direito de propô-la ao debate é,
definitivamente, tão legítimo quanto o nosso. Essa idéia, em parte
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2. decorrente da idéia de que é possível aceitar a legitimidade do outro –
uma vez que aceitar que a verdade do outro seja exposta a nós significa
aceitar a legitimidade do outro –, abre a possibilidade para a convivência
continuada entre os diferentes, sendo, assim, a base da conversação sem
a qual não há possibilidade de democracia.
A democracia tem a obrigação de aceitar todas as verdades, menos
aquelas que pretendam legitimar a ilegitimidade do outro,
desqualificando em princípio sua opinião ou impedindo o seu
proferimento.
Por certo, sistemas de pensamento que trabalham com a categoria de
verdade, seja transcendente (como a verdade “revelada”), ou imanente
(como a verdade “descoberta”, por exemplo, pela ciência), podem existir
sem inviabilizar a democracia, a menos que queiram alterar seus
pressupostos e procedimentos com base nessa verdade. Assim, por
exemplo, a descoberta de uma lei científica certamente informará o
debate das opiniões que digam respeito a um determinado fenômeno que
esteja presente em uma discussão (por exemplo, se devemos ou não
realizar uma obra de transposição de um rio) e afirmar o contrário seria
obscurantismo. No entanto, não se pode alegar isso para restringir o
debate apenas aos que têm condições de acesso a tal “verdade” excluindo
os demais.
Ademais, é muito discutível a afirmação de que a ciência lida com a
verdade ou de que seja possível ao conhecimento científico alcançar uma
certeza absoluta e final ou fornecer uma compreensão completa e
definitiva da realidade (seja lá o que isso for). Todas as elaborações
teóricas que compõem as hipóteses científicas são provisórias e todos os
dados obtidos experimentalmente são aproximados e, portanto, não se
pode estabelecer uma correspondência exata entre as descrições e os
fenômenos descritos.
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3. Isso não quer dizer que as descrições fornecidas pela ciência não revelem
padrões de comportamento, teias de relações que não são apreensíveis
pelo olhar não-científico. Mas as descrições fornecidas pela ciência não
são puramente objetivas, i.e., independentes dos sujeitos que as
constroem. O processo de conhecimento implica uma interação entre
objeto e sujeito, entre fenômeno e observador, entre a coisa que está
sendo estudada e as elaborações construídas para descrever seu
comportamento. O conhecimento é o resultado dessa interação e,
portanto, a maneira como conhecemos condiciona o que conhecemos, se
mistura com o que conhecemos, de sorte que não se pode, a rigor,
separar o processo de conhecimento da descrição que resulta desse
processo. De certo modo todo conhecimento é criado pelo conhecedor e
o próprio objeto do conhecimento – supondo que tal objeto exista
independentemente do sujeito que conhece – é recriado como objeto
conhecível pela interação com o sujeito.
De qualquer modo, o estatuto da ciência é diferente do estatuto da
política. Se, mesmo para a ciência, o conceito de verdade já é de difícil
aplicação, para a política (democrática) ele é totalmente inaplicável. Se
alguém já detém a verdade, então para nada serve a opinião do outro. Em
certo sentido, a (suposta) posse da verdade torna o outro ilegítimo na
medida em que sua opinião, qualquer que seja ela, se for diferente, será
desqualificada em princípio como não-verdadeira e, portanto, considerada
inválida na discussão.
Todos os sistemas autocráticos são baseados, de diferentes maneiras e
com graus de intensidade diversos, na assumida ou alegada posse da
verdade por parte de um chefe ou de um grupo. Mais direta e
intensamente quando tal verdade (mítica) foi revelada a alguém que a
transmitiu (sacerdotalmente) a seus sucessores, como ocorre, por
exemplo, nos fundamentalismos religiosos (contra a verdade de um
ayatolá, de que valeria a opinião de alguém?).
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4. A democracia é laica, mesmo quando convive com deuses, como em
Atenas (1). Assim, a democracia pode, por certo, conviver com opiniões
míticas, como as de um aytolá ou as de um criacionista (que renega as
descobertas científicas da biologia da evolução). O que a democracia não
pode é desqualificar em princípio uma opinião com base na alegação de
que ela está contra uma verdade transcendente, revelada por qualquer
meio sobrenatural, em sonhos ou em virtude de interpretação inspirada
de uma escritura considerada sagrada (como a do Corão por um ayatolá
ou a da Bíblia por um criacionista). Outrossim, a democracia também não
pode desqualificar em princípio uma opinião com base na alegação de que
ela está contra uma verdade desvendada pelo pensamento analítico,
descoberta pela filosofia ou “provada” pela ciência.
Sim, porque pode haver também um fundamentalismo político baseado
na “verdade” científica. Por exemplo, a idéia de Kautski (1901), elogiada
por Lênin (1902), segundo a qual a consciência socialista moderna não
pode surgir senão na base de profundos conhecimentos científicos (2), foi
um atentado à democracia. Durante mais de oitenta anos os movimentos
da esquerda, no plano internacional, trabalharam com essa idéia
autocrática, que serviu para legitimar que sua política era mais científica
do que as outras, pois estava baseada em ‘leis da história’ supostamente
descobertas pelo chamado “socialismo científico”.
Mas qualquer idéia de que possa existir uma política mais verdadeira,
porquanto mais científica, do que outra, é autocratizante. Assim como a
idéia de que seja possível uma ciência política.
Indicações de leitura
Vale a pena ler dois artigos de Hannah Arendt; o primeiro intitulado “Verdade e
Política” (que foi publicado pela primeira vez em The New Yorker, em fevereiro de
1967) incluído na coletânea Entre o passado e o futuro (1968); e o segundo intitulado
“A mentira na política: considerações sobre os Documentos do Pentágono”, incluído
na coletânea Crises da República (1972).
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5. E também os seguintes textos de Humberto Maturana: “Biología del fenómeno social”
(1985), “Herencia y medio ambiente” (com Jorge Luzoro, 1985), “Ontología del
Conversar” (1988), “Lenguaje y realidad: el origen de lo humano” (1988), “Una mirada
a la educacion actual desde la perspectiva de la biologia del conocimiento” (1988),
“Lenguaje, emociones y etica en el quehacer politico” (1988) e El sentido de lo humano
(1991).
Notas
(1) Mas depende muito dos deuses em questão. Inanna e Marduk dos sumérios e a
maioria dos panteões derivados dos antigos mesopotâmios são compostos por deuses
feitos à imagem e semelhança dos poderosos, adequados à reprodução dos sistemas
autocráticos. Na Grécia democrática dos séculos século 6 e 5 antes da Era Comum, as
coisas eram um pouco diferentes. Quando Sócrates foi acusado de afrontar “os deuses
da cidade” de Atenas, os deuses que ele ofendeu foram, provavelmente, a deusa cívica
da democracia, Peito – a persuasão deificada – e o Zeus Agoraios, quer dizer, o deus da
assembléia, divindade tutelar dos livres debates. Em “O julgamento de Sócrates”,
Isidor Feinstein Stone (1988) observa, com razão, que “esses deuses encarnavam as
instituições democráticas de Atenas”. Não cabe discutir aqui por que existiam deuses
em todas as cidades da Antiguidade. Na Grécia antiga, pelo menos, a religião tinha
uma função cívica, refletia os costumes locais e continha o “nómos” contra o qual
Sócrates se insurgiu. Sócrates não foi acusado de ateísmo: não havia nenhuma lei em
Atenas que proibisse o ateísmo. Mas Atenas fez um esforço notável para adaptar sua
mitologia e sua história às suas concepções de democracia. E o fato de Sócrates ter
ofendido “os deuses da cidade”, significa, muito provavelmente, que ele rejeitou – não
apenas por palavras, mas por ações – os costumes (“nómos”) democráticos. Entre os
gregos, porém, nem mesmo a deificação de procedimentos e instâncias, como a
persuasão (como Peito) e a praça (agora) onde ocorria a livre troca de opiniões (como
Zeus Agoraios), evitou a corrupção da política (e. g., entre Sócrates e seus discípulos) e
o uso da democracia contra a democracia (inclusive pelos discípulos de Sócrates),
como veremos adiante. Cf. Stone, I, F. (1988). O julgamento de Sócrates. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
(2) Lênin, V. I. (1902). “O que fazer?” (incontáveis edições).
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