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FIM DE JO GO

PARA O RACISMO

ESPECIAL CONS CI ÊNCIA N EGRA

SALVADOR QUARTA-FEIRA 20/11/2013

Apelido
traduz o
tom do
racismo

DISFARCE Apesar de incisiva, a agressão
aparenta ser mais branda quando soa
encoberta por aura jocosa

ANDRÉ UZÊDA

Na Bahia, um jogador negro
recebeu o controverso apelido
de Branca de Neve. O caso, conta o antropólogo Roberto Albergaria, aconteceu no bairro
de São Caetano.
“Branca” não era profissional. Jogava sua bola, vez ou
outra, nos dias de folga. Não se
sabe ao certo se bem ou
mal.
Diante das gozações repetidas dos companheiros de time,
resolveu o imbróglio repudiando o racismo escondido numa
brincadeira. Mas no lugar de
fazer um discurso inspirado em
Martin Luther King ou Malcom
X preferiu uma forma muito
própria e baiana.
“Ao que parece, ele mandou
todo mundo ir para um certo
lugar e salvou sua honra”, conta o professor Albergaria.
O caso real com ares de anedota ilustra um tipo de comportamento próprio da cultura
oral e da informalidade dos
brasileiros.
Os apelidos substituem nomes, ressaltando pontos negativos ou apreciando qualidades
físicas. No campo de jogo, é
possível montar um time com-

pleto (do goleiro ao ponta esquerda) a partir de apelidos
populares com raízes fincadas
em uma fronteira tênue entre o
humor e a indissociável herança racial à brasileira.

Camuflagem
Eis exemplos da fera que é o
racismo, capaz de rugir bem
alto, mas camuflado pela relva
de um pretenso tom jocoso.
No time do Internacional,
nos anos 1970, tinha um atacante chamado Escurinho– que
veio a jogar no Vitória, na década seguinte.
Na Copa da África do Sul, em
2010, um dos jogadores brasileiros carregava a alcunha de
Grafite. E nas Olimpíadas de
1996, em Atlanta, nos Estados
Unidos, o time feminino verde-amarelo tinha a jogadora
Michael Jackson figurando no
ataque titular.
“Os apelidos aqui oscilam
entre a malícia e a maldade. É
um racismo residual, diferente
do racismo europeu, odioso,
que faz torcedores chamarem
adversários de ‘macaco’. Aqui a
coisa é mais sutil, própria da
nossa sociedade”, destaca Roberto Albergaria.
Ele evoca uma frase de Millôr

Fernandes para ilustrar o modelo do preconceito racial no
Brasil, bem nesse formato ambivalente. “No nosso País não
tem racismo, porque o preto
sabe bem onde é seu lugar”,
diz, em tom irônico, Albergaria
ressaltando que o estilo do racismo brasileiro aparece “encapotado”, embora com o rabo
sempre de fora.

Drible
O jogador Antônio Filipe coça a
cabeça e desata a falar, franzindo ligeiramente suas sobrancelhas.
“É claro que meu apelido
tem a ver com minha cor. Foi
um goleiro do time da base que
começou a me chamar assim.
‘Ah, você parece com um feijão’. Eu, no início, me retei” ,
relata apelando para o bom
baianês.
“Minha mãe, quando soube,
ficou pirada. Mas todo mundo
começou a me chamar assim e
o negócio pegou. Hoje, eu até
gosto dessa coisa toda. Foi com
esse nome que me tornei jogador profissional”.
Antônio Filipe, que agora virou Feijão, tem 19 anos. Era
atleta das divisões de base do
Bahia e este ano ganhou a vaga

no time profissional.
Apesar do pouco tempo no
time principal, o volante Feijão
tem desfrutado de uma popularidade precoce junto a torcida
tricolor. Ele avalia que o apelido
com raízes jocosas por conta da
sua cor acabou por ajudar um
pouco na popularidade, embora o talento seja o motivo principal do reconhecimento.
“Acho que, de alguma forma, ajudou mesmo. É um nome diferente. O torcedor pode
ter gravado mais rápido por
conta disso”, diz o volante
De acordo com o historiador
e professor Jaime Sodré, os
apelidos dos jogadores de futebol remontam aos batismos
dos capoeiras, nas rodas mon-

ORIGEM NA
GINGA
Há apelidos
para jogadores
de futebol que
remontam aos
batismos dos
capoeiristas

tadas nos largos da antiga Cidade da Bahia.
“Na capoeira, o sujeito que
tem as pernas compridas tem
um nome. O que joga bem tem
outro. As qualidades vão se
transformando em formas de
nominar cada um. O futebol
traz um pouco dessa herança
para certos tipos de apelidos”,
diz o professor.
O pesquisador do futebol
baiano, Galdinho Silva, apresenta uma relação de apelidos
com características próprias
das peculiaridades técnicas de
alguns jogadores.
Na década de 1910, o Ypiranga tinha um jogador chamado Dois Lados, que era soldado da cavalaria da Polícia Militar. Seu apelido derivava da
sua habilidade de jogar com
ambas as pernas.
Já o Leônico teve um atleta
de codinome Ventilador, pois
girava muito pela direita antes
de arrematar em gol. E havia
ainda Bacamarte, zagueiro de
estilo viril na zaga do Bahia,
que participou da conquista do
título brasileiro de 1959.
Em outro polo da pesquisa
de Galdino há indícios de outros
apelidos que caminham na tênue liminaridade entre a “mal-

dade” e a “malícia”, citadas pelo antropólogo Albergaria.
O Vitória tinha um zagueiro
chamado Zé Preta, entre 1977
e 1979. Tinteiro vestia a camisa
6 do Leônico na década de
1970. Bronzeado foi lateral do
Bahia nos anos 1960.
Tinha ainda Exu (ponta do
Amarantim de Santo Amaro);
Fumaça (da Catuense) e Macaquinho (do Botafogo da Bahia, na década de 1930). Todos
negros.
Para o jornalista e doutor em
comunicação, Paulo Leandro, a
relação dos epítetos de cunho
racista refletem uma herança
pós-colonialista. “Ela tem apelo na diminuição do papel do
negro, herdada da relação com
a escravidão no País”.
Leandro, porém, ressalta a
existência de apelidos positivos
que vangloriam a condição do
negro. “O Bahia foi campeão
brasileiro com um jogador chamado Biriba, que é a madeira
que origina o berimbau. A biriba enverga, mas não quebra.
É um símbolo de resistência”.
Na terra da contradição, chamada de Bahia, há um negro
apelidado de Branca de Neve.
E outro, Biriba. É o Brasil levado
às últimas consequências.

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  • 1. 10 FIM DE JO GO PARA O RACISMO ESPECIAL CONS CI ÊNCIA N EGRA SALVADOR QUARTA-FEIRA 20/11/2013 Apelido traduz o tom do racismo DISFARCE Apesar de incisiva, a agressão aparenta ser mais branda quando soa encoberta por aura jocosa ANDRÉ UZÊDA Na Bahia, um jogador negro recebeu o controverso apelido de Branca de Neve. O caso, conta o antropólogo Roberto Albergaria, aconteceu no bairro de São Caetano. “Branca” não era profissional. Jogava sua bola, vez ou outra, nos dias de folga. Não se sabe ao certo se bem ou mal. Diante das gozações repetidas dos companheiros de time, resolveu o imbróglio repudiando o racismo escondido numa brincadeira. Mas no lugar de fazer um discurso inspirado em Martin Luther King ou Malcom X preferiu uma forma muito própria e baiana. “Ao que parece, ele mandou todo mundo ir para um certo lugar e salvou sua honra”, conta o professor Albergaria. O caso real com ares de anedota ilustra um tipo de comportamento próprio da cultura oral e da informalidade dos brasileiros. Os apelidos substituem nomes, ressaltando pontos negativos ou apreciando qualidades físicas. No campo de jogo, é possível montar um time com- pleto (do goleiro ao ponta esquerda) a partir de apelidos populares com raízes fincadas em uma fronteira tênue entre o humor e a indissociável herança racial à brasileira. Camuflagem Eis exemplos da fera que é o racismo, capaz de rugir bem alto, mas camuflado pela relva de um pretenso tom jocoso. No time do Internacional, nos anos 1970, tinha um atacante chamado Escurinho– que veio a jogar no Vitória, na década seguinte. Na Copa da África do Sul, em 2010, um dos jogadores brasileiros carregava a alcunha de Grafite. E nas Olimpíadas de 1996, em Atlanta, nos Estados Unidos, o time feminino verde-amarelo tinha a jogadora Michael Jackson figurando no ataque titular. “Os apelidos aqui oscilam entre a malícia e a maldade. É um racismo residual, diferente do racismo europeu, odioso, que faz torcedores chamarem adversários de ‘macaco’. Aqui a coisa é mais sutil, própria da nossa sociedade”, destaca Roberto Albergaria. Ele evoca uma frase de Millôr Fernandes para ilustrar o modelo do preconceito racial no Brasil, bem nesse formato ambivalente. “No nosso País não tem racismo, porque o preto sabe bem onde é seu lugar”, diz, em tom irônico, Albergaria ressaltando que o estilo do racismo brasileiro aparece “encapotado”, embora com o rabo sempre de fora. Drible O jogador Antônio Filipe coça a cabeça e desata a falar, franzindo ligeiramente suas sobrancelhas. “É claro que meu apelido tem a ver com minha cor. Foi um goleiro do time da base que começou a me chamar assim. ‘Ah, você parece com um feijão’. Eu, no início, me retei” , relata apelando para o bom baianês. “Minha mãe, quando soube, ficou pirada. Mas todo mundo começou a me chamar assim e o negócio pegou. Hoje, eu até gosto dessa coisa toda. Foi com esse nome que me tornei jogador profissional”. Antônio Filipe, que agora virou Feijão, tem 19 anos. Era atleta das divisões de base do Bahia e este ano ganhou a vaga no time profissional. Apesar do pouco tempo no time principal, o volante Feijão tem desfrutado de uma popularidade precoce junto a torcida tricolor. Ele avalia que o apelido com raízes jocosas por conta da sua cor acabou por ajudar um pouco na popularidade, embora o talento seja o motivo principal do reconhecimento. “Acho que, de alguma forma, ajudou mesmo. É um nome diferente. O torcedor pode ter gravado mais rápido por conta disso”, diz o volante De acordo com o historiador e professor Jaime Sodré, os apelidos dos jogadores de futebol remontam aos batismos dos capoeiras, nas rodas mon- ORIGEM NA GINGA Há apelidos para jogadores de futebol que remontam aos batismos dos capoeiristas tadas nos largos da antiga Cidade da Bahia. “Na capoeira, o sujeito que tem as pernas compridas tem um nome. O que joga bem tem outro. As qualidades vão se transformando em formas de nominar cada um. O futebol traz um pouco dessa herança para certos tipos de apelidos”, diz o professor. O pesquisador do futebol baiano, Galdinho Silva, apresenta uma relação de apelidos com características próprias das peculiaridades técnicas de alguns jogadores. Na década de 1910, o Ypiranga tinha um jogador chamado Dois Lados, que era soldado da cavalaria da Polícia Militar. Seu apelido derivava da sua habilidade de jogar com ambas as pernas. Já o Leônico teve um atleta de codinome Ventilador, pois girava muito pela direita antes de arrematar em gol. E havia ainda Bacamarte, zagueiro de estilo viril na zaga do Bahia, que participou da conquista do título brasileiro de 1959. Em outro polo da pesquisa de Galdino há indícios de outros apelidos que caminham na tênue liminaridade entre a “mal- dade” e a “malícia”, citadas pelo antropólogo Albergaria. O Vitória tinha um zagueiro chamado Zé Preta, entre 1977 e 1979. Tinteiro vestia a camisa 6 do Leônico na década de 1970. Bronzeado foi lateral do Bahia nos anos 1960. Tinha ainda Exu (ponta do Amarantim de Santo Amaro); Fumaça (da Catuense) e Macaquinho (do Botafogo da Bahia, na década de 1930). Todos negros. Para o jornalista e doutor em comunicação, Paulo Leandro, a relação dos epítetos de cunho racista refletem uma herança pós-colonialista. “Ela tem apelo na diminuição do papel do negro, herdada da relação com a escravidão no País”. Leandro, porém, ressalta a existência de apelidos positivos que vangloriam a condição do negro. “O Bahia foi campeão brasileiro com um jogador chamado Biriba, que é a madeira que origina o berimbau. A biriba enverga, mas não quebra. É um símbolo de resistência”. Na terra da contradição, chamada de Bahia, há um negro apelidado de Branca de Neve. E outro, Biriba. É o Brasil levado às últimas consequências.