1. SALVADOR QUARTA-FEIRA 20/11/2013
FIM DE JO GO
PARA O RACISMO
ESPECIAL CONS CI ÊNCIA N EGRA
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Do pó de arroz
ao quase silêncio
HISTÓRIA Em pouco mais de um século, racismo no futebol
brasileiro vai do explícito e oficial ao disfarçado e dissimulado
LUIZ TELES
A história do racismo no futebol
brasileiro nasce junto com a chegada do primeiro par de chuteiras, bola e livro de regras trazidos da Inglaterra pelo paulista
Charles Miller, em 18 de fevereiro de 1894.
Há 119 anos convive-se com o
preconceito étnico em suas mais
perversas formas: do explícito e
muitas vezes oficializado – em
meados do século passado – até
o naturalizado, velado ou camuflado, vigente, sobretudo, após a
década de 1970 e a conquista do
tricampeonatodaCopadoMundo
que fez de Pelé o maior jogador do
planeta.
O historiador Joel Rufino dos
Santos, em seu livro História Política do Futebol no Brasil, coloca
que o futebol desenvolve-se no
início do século passado, praticado como alta cultura por brancos, em clubes sociais. Aos ex-escravos e seus descendentes era
proibida a entrada nesses locais,
por exclusão financeira ou discriminada nos estatutos das
agremiações.
Mas futebol se joga em qualquer lugar, com qualquer tipo de
bola, e não demorou muito para
que aqueles que só podiam de
longe assistir ao jogo de grã-finos começassem a praticar o esporte com balões de bexiga de
boi ou bolas feitas com meias.
A partir da década de 1910 começaram a aparecer por todo o
Brasil times populares e seus jogadores já chamavam a atenção
de muitos. Em 1912, num dos
episódios mais emblemáticos de
conflito étnico no esporte, Carlos
Alberto, que jogava no Fluminense, ganhou o apelido de “Pó de
Arroz” (mais tarde herdado pelo
clube e que sobrevive hoje) porque o usava para clarear a pele.
Pobre e varzeano, o atleta também usava uma touca para disfarçar os cachos do cabelo.
Na década de 1920, o Vasco foi
campeão carioca com um time formado majoritariamente por negros, causando uma crise no futebol do Rio de Janeiro porque os
outros clubes “não se misturavam”. Em São Paulo, o mesmo
aconteceu com o Corinthians. Na
Bahia, nesse mesmo período, o
embate racial se repetia.
“Em Salvador, o Esporte Clube
Ypiranga acolhe artesãos, soldados, comerciários e estivadores negros, e escandaliza a alta sociedade
baiana do Corredor da Vitória, reduto dos primórdios do futebol
baiano. O resultado é uma crise
com a saída do Vitória, representante da alta burguesia, e o fim da
primeira Liga de Futebol, chamada
“Liga dos Brancos” por alusão à cor
da pele dos atletas pioneiros”, explica Paulo Leandro, doutor em comunicação e jornalista.
Nãoàtoa,osprimeirosídolosdo
futebol foram negros. Em São Paulo foi “El Tigre” Friedenreich, filho
de uma cozinheira negra com um
alemão, e que atuou por vários
times, inclusive na Seleção Brasileira. Na Bahia, a fama ficou com
Apolinário Santana, ou Popó, seu
apelido. Ele ajudou a fazer do Ypiranga o time mais popular do Estado à época.
A partir de 1930, o futebol se
profissionaliza e com isso minimizam-se as barreiras para a participação de negros no esporte,
já que agora poderiam começar
a receber para jogar, o que antes
era proibido em nome do “amadorismo do espírito olímpico”. Já
populares, grandes clubes têm
muitos pobres e negros nas arquibancadas e em seus elencos,
além de craques, como Fausto e
Leônidas da Silva, que torna-se
líder dos jogadores na luta pela
afirmação do profissionalismo
no futebol.
É inevitável que, ao falar sobre
a questão racial no futebol, seja
citado o livro clássico do jornalista
Mário Filho, O negro no futebol
brasileiro, publicado pela primeira vez em 1947, na carona de
autores como Gilberto Freyre e
Sérgio Buarque de Holanda, em
busca de encontrar uma identidade nacional à época.
Foi a primeira obra relevante a
levantar questões sobre a participação do negro na cultura e formação do esporte, abordando não
apenas suas contribuições, mas
também o racismo jamais dissociado daqueles primeiros 50 anos
de história do futebol no País.
Interessante notar que “a sequência dos capítulos sugere o longo e penoso processo de democratização do futebol brasileiro, cuja fixação era o objetivo do jornalistaaoescreverseuensaio”,afirma o pesquisador Marcel Diego
Tonini, autor da dissertação de
mestrado História oral de vida de
negros no futebol do Brasil.
O livro de Mário Filho apresentava quatro capítulos em
1947: “Raízes do saudosismo”;
“O campo e a pelada”; “A revolta
do preto” e “A ascensão social do
negro”, acrescidos, em 1964,
pós-derrota e condenação pública do goleiro negro Barbosa na
Copa de 1950, e com o Brasil já
bicampeão mundial graças a Pelé, Garrincha e Didi, de outras
duas seções: “A provação do preto” e “A vez do preto”.
Assunto preterido
A verdade é que o duo racismo/futebol foi por muito tempo preterido pela sociedade e por acadêmicos. Enquanto em campo (e fora
dele) o preconceito rolava forte,
sociólogos, antropólogos, comunicólogos, jornalistas e historiadores
viam o futebol e qualquer tema
relacionado ao esporte como menores. Vozes como a de Joel Rufino
dos Santos ou da pesquisadora Lú-
cia Helena Corrêa eram raras no
meio, mas essenciais para não deixar o assunto morrer.
“O racismo no Brasil continua o
mesmo, dos camarotes às gerais,
entrecartolasetorcedores.Eleapenas apurou o próprio estilo, abandonando expressões explícitas, como “negro sujo” ou “crioulo nojento”, para abrigar-se em conceitos mais modernos e menos vulgares. Mas nem por isso menos
cruéis”, destaca Corrêa em seu ensaio Racismo no futebol brasileiro,
de 1985.
Hoje, ainda que a sociedade, de
umamaneirageneralizada,nãodê
conta do grave problema enfrentado por negros no futebol (não
apenas no Brasil, mas mundialmente), é notável que a academia
eaimprensatêmoutrosolhospara
a questão. São cada vez mais frequentes textos sobre o tema.
As obras vão desde aquelas que
tratam da complexidade do futebol como um instrumento democratizador das relações entre raças,
como com José Miguel Wisnik, em
Veneno remédio: o futebol e o Brasil, ou com o antropólogo baiano
Jeferson Bacelar, em Ginga e nós:
o Jogo do lazer na Bahia, no qual
estuda o futebol de bairro e os
“babas” na vida social urbana como traço da identidade brasileira/baiana contemporânea, até
abordagens que discutem a (pouca) presença e a atuação de negros
em funções outras no futebol que
não a de jogador profissional, tais
como treinadores, árbitros, dirigentes, médicos e jornalistas.
Tentar disfarçar a
cor negra com pó
de arroz foi
estratégia usada
contra racismo
no futebol
Raul Spinassé / Ag. A TARDE