O documento descreve uma dissertação de mestrado sobre o vestuário como elemento constitutinte da identidade das mulheres de elite na Bahia entre 1890-1920, analisando a coleção do Museu Henriqueta Catharino em Salvador. A dissertação contém introdução, três capítulos sobre definições de moda, representações vestimentais no século XIX e vestuário, cultura e identidade no século XX, conclusões e referências bibliográficas.
O vestuário como elemento constituinte da identidade das mulheres de elite na bahia 1890 1920
1. I
UNIVERSIDADE ESTADUAL FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
O VESTUÁRIO COMO ELEMENTO CONSTITUINTE DA
IDENTIDADE DAS MULHERES DE ELITE NA BAHIA
(1890-1920) – A partir da análise da Coleção do Museu Henriqueta Catharino
em Salvador-Ba.
Ana Cristiane da Silva
FEIRA DE SANTANA-BA
2009
2. II
UNIVERSIDADE ESTADUAL FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
O VESTUÁRIO COMO ELEMENTO CONSTITUINTE DA
IDENTIDADE DAS MULHERES DE ELITE NA BAHIA
(1890-1920) - A partir da análise da Coleção do Museu Henriqueta
Catharino em Salvador-Ba.
Ana Cristiane da Silva
FEIRA DE SANTANA
2009
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado
em História, da Universidade Estadual de Feira de
Santana para obtenção de grau em Mestre em
História. Sob orientação da professora Drª. Márcia
Maria da Silva Barreiros Leite.
3. III
UNIVERSIDADE ESTADUAL FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
O VESTUÁRIO COMO ELEMENTO CONSTITUINTE DA IDENTIDADE DAS
MULHERES DE ELITE NA BAHIA (1890-1920) - A partir da análise da Coleção
do Museu Henriqueta Catharino em Salvador-Ba.
Ana Cristiane da Silva
Dissertação defendida e aprovada em ______ de ____________de ___________.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________________________
Profª. Drª. Márcia S. Barreiros Leite
Orientadora e Presidente da Banca
________________________________________________________________________
Profª. Drª. Neivalda Freitas de Oliveira
Membro Externo
________________________________________________________________________
Profª. Drª. Cecília C. Moreira Soares
Membro Externo
4. IV
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, José Neris da Silva, Valdith Santos da Silva, pelo apoio insubstituível,
obrigada por toda dedicação e orações.
À mimha irmã Ana Claudia da Silva pelo carinho, companheirismo, mesmo longe sempre
se fez presente.
Ao meu irmão Aldo Clecius, meu carinho e gratidão especial, pela influência inspiradora e
paixão pela Moda, pelo imprescindível apoio em todos os momentos desta pesquisa.
Ao meu fillho Vinicius Neris da Silva, pela preciosa colaboração técnica neste trabalho, e
pela compreensão nos momentos de ausência.
À Profª Márcia Maria Barreiros Leite, minha orientadora, agradeço especialmente pela
confiança em meu trabalho, incentivo, compreensão, orientação, e exímio exemplo de
historiadora.
À Coordenação do Mestrado de História em especial, Profº Eurelino Coelho e Profª
Elizete Silva, pelo acolhimento, compreensão e apoio que sempre demonstrou desde o
meu ingresso no Programa de Mestrado.
À Banca Examinadora pela disponibilidade e contribuição.
Ao Profº Itamar Pereira, pela disponibilidade, sabedoria e colaboração nos momentos
precisos.
Ao amigo Luis Claudio Rebello Pontes, pelo carinho, companheirismo, experiências e
agradáveis momentos vividos durante toda trajetória desta pesquisa.
À Isabel Cristina de Jesus Brandão, pelo incentivo e influência exemplar, pela colaboração
fundamental ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Moda (NIEM – Vitória da
Conquista - BA).
À Juscelina Barbara Matos, igualmente pesquisadora da área de Moda, pelas experiências
compartilhadas durante o período de pesquisa.
Aos amigos e colegas de trabalho que me incentivaram.
À Diretora do Museu Henriqueta Catharino, Ana Lúcia Uchoa, pela atenção,
disponibilidade e preciosas informações. Sua colaboração foi fundamental para
concretização deste projeto de pesquisa.
Aos funcionários do Museu Henriqueta Catharino, em especial a bibliotecária, museóloga,
Marijara Queiroz, pela colaboração indispensável para realização desta pesquisa.
5. V
Aos meus pais, José Neris e Valdith, que
em todos os momentos me incentivaram e
apoiaram em minha trajetória na busca de
novos conhecimentos.
6. VI
“As roupas revelam ser arquios culturais
privilegiados: guardam a memória dos receios,
pudores e sonhos do seu tempo, mas, igualmente,
servem como instrumentos para modificá-los,
ocultá-los e, ainda, como um expressivo
prolongamento da vontade de ostentar distinções
econômicas e políticas de peso.”
(Denise Bernuzzi de Sant Anna apud ROCHE, 2007, p. 9).
7. VII
RESUMO
O presente trabalho aborda o cotidiano, contextos sociais e as reminiscências das mulheres
de elite baiana, a partir das coleções de vestuário, disponíveis no Museu Henriqueta
Catharino em Salvador-BA, no final do século XIX e início do século XX, nas décadas de
1890-1920. Para reconstituir as práticas das mulheres baianas, desempenhadas nestes
períodos, foram analisados os conjuntos documentais, arquivos, acervos materiais (roupas
e acessórios) organizados pelo Instituto Feminino da Bahia, feitas consultas aos arquivos
da Fundação Clemente Mariani e ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Moda (NIEM
– Vitória da Conquista - BA). Sendo o vestuário portador de uma ampla gama de
significados ideológicos, foram analisadas e adaptadas referências dos modelos teóricos e
metodológicos das áreas do conhecimento: Moda, Antropologia, Semiótica, Sociologia e,
principalmente, da História: Social, Cultural, Estudos Femininos e de Gênero. A partir da
observação e estudo das fontes consultadas, tornou-se possível apontar que em muitas
ocasiões as representações dos vestígios femininos, foram reproduzidas e conservadas
conforme as estruturas dominantes, mas por outro lado, mesmo referindo-se às “mulheres
de elites”, tais práticas vestimentares, foram reveladoras de expressões de individualidade,
de mudanças, redefinições, evidenciando-as, de modo a constituírem “sujeitos” produtores
de suas historicidades.
Palavras- chaves: Moda, Vestuário, Gênero, História, Bahia, Séculos XIX e XX.
8. VIII
ABSTRACT
The present work approaches the daily one, social contexts and the reminiscências of the
women of the bahian elite, from the clothes collections, available in the Museum
Henriqueta Catharino – Salvador-BA, in the end of century XIX and beginning of century
XX. In the decades of 1890-1920. To reconstitute the practical ones of the bahian women,
played in these periods, the documentary sets, archives, material quantities (clothes and
accessories) organized by the Feminine Institute of the Bahia had been analyzed, made
consultations to the archives of the Clement Foundation Mariani and to the Nucleus
Interdisciplinar de Estudos fashionable (NIEM _Vitória da Conquista - BA). Being the
carrying clothes of an ample gamma of ideological meanings, they had been analyzed and
adapted references of the theoretical and metodológicos models of the areas of the
knowledge: Fashion, Anthropology, Semiotics, Sociology and, mainly, of History: Social,
Cultural, Feminine Studies and of Sort. From the comment and study of the consulted
sources, one became possible to point that in many occasions the representations of the
feminine vestiges, had been reproduced and conserved as the dominant structures, but on
the other hand, exactly mentioning the “women of the elites”, such practical vestimentares,
had been revealing of individuality expressions, of changes, redefinitions, evidencing
them, in order to constitute “producing citizens” of its historicidades.
Words keys: Fashion, Clothes, Sort, History, Bahia, Centuries XIX and XX.
9. IX
SUMÁRIO
ÍNDICE DE FIGURAS XI
INTRODUÇÃO 1
Breve histórico do Museu Henriqueta Catharino 1
O vestuário como objeto de investigação 4
CAPÍTULO 1 10
1. DEFINIÇÕES DE MODA 10
1.1 Moda, Indumentária e Significados: repercussão dos estudos da Moda
na academia 10
1.1.1 A moda como objeto de estudo na história 15
1.2. Contribuições da Historia Social, Cultural e das Mulheres para a reflexão sobre o
vestuário 16
CAPÍTULO 2 24
2. REPRESENTAÇÕES VESTIMENTAIS NA BAHIA NO FINAL DO
SÉCULO XIX 24
2.1. A questão da representação: as roupas/ códigos transmissores de intenções que
constituem as práticas e instituições sociais 24
2.2. As transformações sociais, políticas e econômicas no Brasil do século XIX, e suas
configurações na moda. Práticas de vestuário das mulheres baianas de elite no século
XIX. 29
2.3. As funções da Indumentária sob o ponto de vista das classes sociais em especial das
mulheres de elite. 47
2.4. As novas configurações do público no espaço privado e suas constantes preocupações
com o vestuário. 57
CAPÍTULO 3 73
3. VESTUÁRIO, CULTURA E IDENTIDADE NA BAHIA DO SÉCULO XX 73
3.1. Contexto e configurações do vestuário no Brasil e na Bahia do século XX 73
10. X
3.2. Nos anos do estilo Art Nouveau e da Bélle Époque: o luxo e a extravagância das
modas no Brasil.
3.3. O vestuário no Brasil durante a Primeira Guerra e no Pós-guerra: repercussão na
Bahia /a moda mais funcional. 96
3.3.1. O Pós-guerra: a moda mais funcional. 104
3.4. A redefinição da imagem feminina na Bahia, através do vestuário: influências
permanências e transgressões. 111
CONSIDERAÇÕES FINAIS 114
BIBLIOGRAFIA 116
11. XI
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 01 - Instituto Feminino da Bahia/ Museu Henriqueta Catharino 01
Figura 02 - Retrato de Henriqueta Martins Catharino 04
Figura 03 - Declaração de Henriqueta Martins Catharino 31
Figura 04 - Testamento de doação de Mariana Cerqueira de Magalhães 31
Figura 05 - Retrato da Sra. Simões Filho 32
Figura 06 - Retrato de Maria Amélia Góes e Mª Constança Góes Calmon 32
Figura 07 - Estabelecimento Comercial Importadores de Miudezas S.A 36
Figura 08 - Casa Royal Palace em Salvador-ba, século XIX 36
Figura 09 - Propaganda Casa Royal Palace 37
Figura 10 - Anquinha 38
Figura 11 - Conjunto de roupas íntimas, blusa e ceroula 38
Figura 12 – Espartiho 39
Figura 13 - Propaganda de vendas de corselets 39
Figura 14 - Mulheres baianas vestidas em trajes de ir à missa 40
Figura 15 - Ilustrações de modas século XIX 41
Figura 16 - Spencer e saia, 1890 41
Figura 17 - Ilustração de modas, trajes de meninas e de 1ª comunhão 42
Figura 18 - Ilustração de acessórios final século XIX 43
Figura 19 – Xale 44
Figura 20 - Leques 44
Figura 21 - Broches e correntes de ouro 44
Figura 22 – Pentes 45
Figura 23 - Chapéu ‘casulo’, 1890 45
Figura 24 - Chapéu ‘casulo’, 1890 45
12. XII
Figura 25 - Bota de cetim, século XIX 46
Figura 26 - Bota século XIX 46
Figura 27 - Sapato cetim, século XIX 46
Figura 28- Sapato de veludo ‘grenat’, 1891 46
Figura 29 - Jornal La Mode Illustree 48
Figura 30 - Almanaque Eu Sei Tudo 48
Figura 31 - Jornal A Moda Illustrada. O Jornal das Famílias 49
Figura 32 - Jornal A Moda Illustrada. O Jornal das Famílias 49
Figura 33 - Conjunto de roupas de crioula 53
Figura 34 - Traje de passeio, 1895 55
Figura 35 - Ilustração de modas. Traje de visitas mulheres de elite 56
Figura 36 - Saia e casaco, 1890 56
Figura 37 - Retrato de baile na Bahia, 1885 62
Figura 38 - Vestido de baile, 1880 62
Figura 39 - Ilustração de ‘crinolina’ 65
Figura 40 - Ilustração de vestido princesa 65
Figura 41 - Figurino de modas. Suplemento ‘O Mundo Elegante’ 66
Figura 42 - Figurino de vestido. Suplemento ‘O Mundo Elegante’ 67
Figura 43 - Figurino de vestidos. Suplemento ‘Chic Parisien’ 68
Figura 44 - Figurino de modas. Suplemento ‘Chic Parisien 68
Figura 45 - Suplemento de moda ‘Grande Mode Parisienne’ 69
Figura 46 - Molde de roupa 69
Figura 47 - Mode de roupa 69
Figura 48 - Revista ‘La feme Chic’ 70
Figura 49 - Suplemento de moda ‘O mundo Elegante’ 70
13. XIII
Figura 50 - Vestido de passeio, 1870; saia e blusa, 1890 71
Figura 51 - Saia e casaco bordados 1870 71
Figura 52 - Retrato da Sra. Miguel Calmon 72
Figura 53 – Retrato da Baronesa de Cotejipe 72
Figura 54 - Jornal ‘Correio da Bahia’ 75
Figura 55 - Reportagem sobre Henriqueta Catharino 75
Figura 56 - Reportagem sobre o crescimento industrial na Bahia, séc. XX 77
Figura 57 - Conjunto de roupas íntimas, 1915 78
Figura 58 - Ficha de registro (doação de roupa) 79
Figura 59 - Figurino de vestido (jantar) 83
Figura 60 - Figurino de vestido (passeio) 84
Figura 61 - Figurino de vestido (visita) 84
Figura 62 - Retrato da Sra. Pompilho de Carvalho 85
Figura 63 - Retrato de Stella Maia de Góes Calmon 85
Figura 64 - Vestida de preto, estilo Art Nouveau 85
Figura 65 - Presilhas estilo Art Nouveau 86
Figura 66 - Broches e fivelas estilo Art Nouveau 86
Figura 67 - Fivela com desenhos florais, estilo Art Nouveau 87
Figura 68 - Fivelas em estilo Art Nouveau 87
Figura 69 - Botões em estilo Oriental 87
Figura 70 - Porta-batom, estilo Art Nouveau 87
Figura 71 - Broche de Pérolas 88
Figura 72 - Bolsa de mão, estilo Oriental 88
Figura 73 - Bolsa anos 20, estilo Art Nouveau 88
Figura 74 - Bolsa anos 20, estilo Art Nouveau 88
14. XIV
Figura 75 - Chapéu plissado, 1895 89
Figura 76 - Chapéu estilo masculino 89
Figura 77 - Chapéu decorado, estilo Art Nouveau 89
Figura 78 - Chapéu em organza, estilo Art Nouveau 89
Figura 79 - Echarpe de tapeçaria 90
Figura 80 - Alfinetes de chapéu 90
Figura 81 - Sapato de pelica, estilo oriental 90
Figura 82 - Sapato bordado em tapeçaria 90
Figura 83 - Sapato de cetim 90
Figura 84 - Sapato garçonne, século XX 90
Figura 85 - Vestido Império Paul Poiret 93
Figura 86 - Vestido túnica 93
Figura 87 - Vestido quimono e império 93
Figura 88 - Vestido em renda Renascença 94
Figura 89 - Vestido de seda, estilo Império 94
Figura 90 - Ilustração do moldelo ‘costume’ 95
Figura 91 - Figurino Tailleurs de Voyages 95
Figura 92 - Figurino Jolis Tailleurs 95
Figura 93 - Figurino de traje (escuro) usado em 1914 99
Figura 94 - Figurino de traje (claro) usado em 1914 99
Figura 95 - Casaco ‘sobretudo’, 1914 99
Figura 96 - Conjunto de saia e blusa, 1914 99
Figura 97 - Casaco ‘sobretudo’(corte masculino), 1914 100
Figura 98 - Casaco ‘costume’, estilo montaria, 1914 100
Figura 99 - Capa de veludo, 1919 101
15. XV
Figura 100 - Figurino de saias e blusas (cintura marcada) 101
Figura 101 - figurino de vestidos, estilo década de 20 101
Figura 102 - Bolsa de mão, 1892 102
Figura 103 - Bolsa de mão, 1910 102
Figura 104 - Chapéu decorado com plumas, 1918 102
Figura 105 - Chapéu estilo kepe, 1916 102
Figura 106 - Chapéu estilo panamá, século XX 103
Figura 107 - Chapéu kepe, década de 20 103
Figura 108 - Figurino costume chic 106
Figura 109 - Figurino costume Jolis Tailleurs 106
Figura 110 - Ilustrações de chapéus, usados na Bahia, séc. XX 106
Figura 111 - Ilustrações de mulheres baianas usando acessórios da década de 20 106
Figura 112 - Chapéu cloche, década de 20 107
Figura 113 - Chapéu cloche, década de 20 107
Figura 114 - Ilustração de figurino, estilo Vionnet 108
Figura 115 - Ilustração de figurino, estilo Vionnet 108
Figura 116 - Suplemento de modas, ‘Grande Mode Parisienne’ 108
Figura 117 - Figurino de vestido, estilo Vionnet 108
Figura 118 - Figurino de traje, estilo melindrosa, década de 20 109
Figura 119 - Figurino de vestido, estilo Vionnet 109
Figura 120 - Figurino de vestido seda, estilo Vionnet 109
Figura 121 - Figurino ‘Les Jolis Tailleurs’ 109
Figura 122 - Vestido (noite) cintura baixa, década de 20 110
Figura 123 - Vestido de algodão, 1928 110
Figura 124 - Vestido de renda 1924 110
16. 1
INTRODUÇÃO
Breve histórico do Museu Henriqueta Catharino
Fig. 01 - Instituto Feminino da Bahia
Fonte: Museu Henriqueta Catharino. SSA-BA. Fotografia: Sérgio Benutti
O Museu Henriqueta Catharino, Fundação Instituto Feminino da Bahia, situado
na cidade de Salvador-Ba, foi idealizado por Henriqueta Martins Catharino e Mons.
Flaviano Osório Pimentel. Sua história remonta o ano de1923, com a inauguração da
Casa São Vicente logo transformada em associação civil e declarada de utilidade
pública, passando a denominar-se Instituto Feminino. Tornou-se Fundação em 1950 e
seu patrimônio passou a guarda da Arquidiocese de São Salvador da Bahia em 1967.
Henriqueta Martins Catharino, fundadora e presidente do Instituto feminino da
Bahia, nasceu em 12 de dezembro de 1886, na cidade de Feira de Santana, sendo seus
pais o Sr. Bernardo Martins Catharino, natural de Santo André de Poiares, Portugal, e
Ursula da Costa Martins Catharino, de tradicional família feirense. Já morando em
Salvador, D.Henriqueta recebeu uma educação primorosa, de preceptoras fancesas e
alemãs, o que explica a polidez no seu trato social, consolidado e aperfeiçoado em
viagens que fez a Europa. Além disso, recebeu rigorosa educação cristã, o que a tornou
conhecedora das doutrinas e fiel seguidora da Igreja Católica.
17. 2
Segundo a historiadora Júlia Maria Alves (1970, p. 22), Henriqueta iniciou seu
envolvimento na sociedade com a propaganda de boas leituras, pondo em circulação os
livros de sua pequena biblioteca, a partir daí realizou vários encontros com senhoras e
senhorinhas baianas em sua residência, para tardes de costuras, transformando sua
biblioteca numa verdadeira colméia, onde se executava variados e primorosos trabalhos
de agulha e outros.
Por volta de 1919, após marcantes acontecimentos pessoais (como a morte de
seu pai e de seu noivo). Henriqueta enveredou-se pelo apostolado de ação social:
começou a sua luta em prol da sociedade baiana, ajudou os desfavorecidos em lugares
de difícil acesso, promoveu grandes bazares de caridade, o que mais tarde levou-a
fundação da Casa São Vicente, uma pensão para moças, onde funcionou também uma
biblioteca, uma sala de leitura, uma Agência de Colocações e um restaurante para
senhoras e jovens. E mais tarde, em 1923, a primeira Escola Comercial Feminina. Por
exigência mesma do crescimento da Casa São Vicente, sob a direção de Monsenhor
Flaviano Osório Pimentel, foi elaborado, em 1929, o primeiro Estatuto da obra, que
passou a denominar-se então, Instituto Feminino da Bahia, que continuou a realizar
inúmeros benefícios à comunidade baiana.
Sobre o comprometimento social de Henriqueta Martins Catharino e sua
preocupação com desenvolvimento da cidade de Salvador, a Historiadora Júlia Maria
Alves (1970, p. 23), ressalta: amando sua terra com desvelo, mas sem sentimentalismo,
Henriqueta provou que a amava de fato, e que era sincera aquela sua frase, tantas vezes
repetida: “eu não entravo o progresso da Bahia”.
A coleção de têxteis foi iniciada em 1933, após realização do I Congresso
Eucarístico Nacional, quando foi organizada uma exposição “Artes e Lavores” nas
dependências da Instituição, com o intuito de mostrar a arte baiana e o cotidiano da
sociedade no século XIX. Desde então, o êxito alcançado por esta primeira exposição
serviu de estímulo para outras iniciativas culturais e exposições de arte antiga, nascendo
assim na Bahia, um museu de artes decorativas e indumentárias. Constituíram o acervo,
inicialmente, várias peças antigas de vestuário, leques, lenços, terços, livros de missa e
outros objetos do cotidiano feminino que a moda consagrou em várias épocas.
Em 1937 a presidente do Instituto Feminino, Henriqueta Catharino, enviou carta
à sociedade, fazendo um apelo especial para que o Instituto colecionasse modelos de
vestidos e adornos de várias regiões próximas à Salvador. A partir desta carta começou
a se formar a coleção de indumentária e de têxteis do Instituto Feminino da Bahia. No
18. 3
mesmo ano, em 1937, foi dado início às obras de construção da atual sede, inaugurada
em 1939.
No prédio funcionava o Museu de Arte Popular, restaurante, salão de recepção,
salas de aula, capela e uma sala especial denominada por Henriqueta M. Catharino, de
“Sala do Museu”, embora todo espaço da Instituição fosse decorado com móveis,
porcelanas, lustres, opalinas e uma diversidade de peças de arte decorativas. A partir de
1940 várias exposições se sucederam, e na sua maioria, foram de vestuários e acessórios
femininos. Através de leilões, D. Henriqueta adquiriu coleções de roupas de crioulas e
negras, mantos sagrados e outras preciosidades de enxovais e bordados de famílias que
viviam em Salvador e proximidades.
Segundo a museológa Ana Lúcia Uchoa Peixoto (2003, P.12), Henriqueta
Catharino tinha uma maneira muito especial de ver o objeto de arte: “não o compreendia
de uma forma restrita, mas de um modo divino”. A preocupação com a preservação da
memória cultural, com a divulgação dos bens culturais brasileiros, foi uma constante em
toda a sua vida. Graças a essa atitude rara, naquela época, temos hoje o reconhecimento
por parte da cultura nacional, haja vista, o imenso acervo reunido no Museu da
Indumentária e do Têxtil.
Atualmente, a diretoria do museu está sob os cuidados da museóloga e
professora de artes Ana Lúcia Uchoa Peixoto, que desde os primeiros contatos com a
instituição, em 1996, tem desenvolvido projetos e iniciativas que tem alimentado o
sonho de Henriqueta Catharino: manter “viva” a tradição através do vestuário.
As coleções de vestuário, dispostas no Museu Henriqueta Catharino, também
conhecido como Museu do Traje e do Têxtil, constituem importantes documentos para
apreensão das práticas sócio-culturais. Para o historiador Daniel Roche, (2007, p. 23),
de certo, “sendo fonte original e direta as roupas antigas precisam ser vistas. Como
poderíamos apreciar os efeitos evocados ou descritos nas fontes escritas, sem tentar vê-
las na carne?” Tais “indícios”, conforme observa Peter Burke (2004), quando analisados
criticamente, emergem como mais um recurso na busca pela sensibilidade muitas vezes
inatingível pela via da palavra escrita.
19. 4
Fig.02 – Henriqueta Catharino 1907 – SSA
Fonte: Museu Henriqueta Catharino
Fotografia: Sérgio Benutti
O vestuário como objeto de investigação
A escolha de um tema de pesquisa, na maioria das vezes, inicia-se por
motivações pessoais e profissionais. Ao visitar o acervo do Instituto Feminino da
Bahia/Museu Henriqueta Catharino, instigada pelo interesse e envolvimento nas áreas
de pesquisa História e Moda vislumbrei através das representações materiais, em
especial os trajes femininos e seus acessórios, valores culturais, econômicos e políticos
de algumas mulheres baianas, bem como, seus comportamentos, gostos, estilos, que
poderiam ser reconstituídos a partir de cuidadosas reflexões críticas das fontes ali
expostas.
20. 5
No entanto, além da possibilidade destas fontes permitirem percorrer ou
desbravar novos caminhos, alguns fatores foram determinantes para constituição deste
objeto de investigação: um deles foi perceber o quanto à indumentária funciona como
parte essencial da existência humana, representando uma maneira de perceber meandros
da sociabilidade e possibilidade de apreensão de memórias da vida de muitas mulheres
baianas na passagem entre os séculos XIX e XX.
O outro fator relevante foi ter constatado que o estudo de caso deste acervo até
então, nunca fora relacionado sistematicamente à História e a Moda, a julgar pela
ausência de uma pesquisa cientifica neste setor (nas Universidades de Moda em
Salvador), inclusive pela escassez de pesquisas históricas em fontes primárias
relacionadas a trajes e costumes no Brasil. Igualmente importante é a análise das
práticas ditas museológicas e/ou patrimoniais, na sua relação com as práticas sociais e
com os sistemas de valores das diferentes sociedades.
Havia muitas perspectivas a serem analisadas: qual seria o propósito de.
Henriqueta Catharino ao conservar as doações daquelas roupas? Que mulheres as
vestiram? Em qual ocasião era usado determinado traje? Como estavam situadas as
mulheres soteropolitanas (ou que viviam nas proximidades de Salvador) no tempo, no
espaço, nas relações de poder, diante das imposições que teciam suas vidas cotidianas?
Considerando as concepções de gênero concebidas no final do século XIX e início do
século XX, de que forma a moda possibilitou, contribuiu ou interferiu na constituição de
imagens e identidades femininas?
Neste caso, uma preocupação central consistia não apenas nas “roupas” que
cobriam o corpo das mulheres daquela época, mas, como as representações da moda
(vestuário / acessório) se construíram de acordo com os seus mutantes ideais, ou até
mesmo, propiciaram a reconstrução das imagens femininas no Brasil e Bahia no final do
Segundo Império. Todas essas indagações formaram o objetivo geral desta pesquisa,
qual seja analisar as regras de disposição de uso, permanências, rupturas e relações de
valores do vestuário feminino na Bahia (Salvador), do século XIX e XX, sob uma
perspectiva da análise histórica relacionada aos estudos da Moda.
Para reconstituir as práticas desempenhadas pelas mulheres baianas,
representadas através de seus pertences doados ao Museu do Traje e do Têxtil, optamos
pelo recorte temporal 1890-1920. Por considerar que as últimas décadas do século XIX
e as primeiras décadas do século XX, foram as mais relevantes em acontecimentos
sociais no Brasil: abolição da escravidão, proclamação da República e outros processos
21. 6
de modernização dos centros urbanos. Fatores que certamente influenciaram a vida das
mulheres, como também, interferiram nas maneiras de vestirem-se.
Deste modo, foram analisados os conjuntos documentais, arquivos, acervos
materiais (roupas e acessórios) organizados pelo Instituto Feminino da Bahia, feitas
consultas aos arquivos da Fundação Clemente Mariani e ao Núcleo Interdisciplinar de
Estudos em Moda (NIEM – Vitória da Conquista - BA). Os métodos de pesquisa
adotados foram: leitura crítica e significativa das fontes, para compreensão das práticas
sociais dos séculos XIX e XX; leitura analítico-comparativa, para confrontação entre o
vestuário do acervo com representações similares, rastreadas de outras fontes como:
periódicos, revistas, pranchas, almanaques e jornais da época, entre outros.
Sendo o vestuário portador de uma ampla gama de significados ideológicos,
foram escolhidos alguns modelos teóricos. Para compreender tais interlocuções,
tornaram-se necessárias análises interdisciplinares e teórico-metodológicas nas áreas do
conhecimento: antropologia, semiótica, sociologia e, principalmente, da história. Nesta
última, optamos pelas abordagens inovadoras dos campos da História social, cultural,
história das mulheres e gênero.
Os estudos antropológicos referenciaram a análise do sistema indumentário, isto
é, a maneira própria de vestir dos grupos sociais num dado momento e numa dada
cultura. Nesse sentido, em a “Interpretação das Culturas” Geertz (1989, p. 65), afirma:
“temos que descer aos detalhes além das etiquetas enganadoras, além dos tipos
metafísicos, além das similaridades vazias, para apreender corretamente o caráter
essencial não apenas das várias culturas, mas também dos vários tipos de indivíduos
dentro de cada cultura.
Correlacionando às análises da semiótica ao estudo do vestuário, neste projeto,
foi levada em consideração às contribuições da linha semiótica “gerativa” 1
, proposta
1
A semiótica Gerativa teve como criador o norte americano Charles Sanders Peirce (Cambridge-
Massachussets, 10/09/1839_Milford-Pensilvânia, 19/04/1914) Formado em química, ele foi antes de tudo
um Lógico e um filósofo. A sua classificação nas ciências foi realizada “com o propósito de buscar a
generalidade e compreender o mundo”. (SEBEOK, 1991, p. 4). A Semiótica é parte Central de sua imensa
obra, ”a espinha dorsal de uma arquitetura filosófica da qual ela é inseparável” (SANTAELLA, 1994, p.
154). Ele è considerado o mais importante dos fundadores da semiótica moderna (NOTH, 1995, p. 60).
Apesar de não ter finalizado ou publicado um livro, ele deixou alguns ensaios em periódicos e milhares
de manuscritos existentes na Universidade de Harvard. Grande parte desse material é inédito. As duas
mais importantes séries de publicações são Collected Papers of Charles Sanders Peirce (1931-58) e
Writings of Charles S. Peirce (1982-99). Para Peirce “qualquer coisa que esteja presente à mente seja ela
de uma natureza similar a frases verbais, a imagens, a diagramas de relações de quaisquer espécies, a
reações ou a sentimentos, isso deve ser considerado como pensamento” (SANTAELLA, 2001, p. 55).
22. 7
por Greimas, e reinterpretada pela pesquisadora Kátia Castilho2
, serviram como modelo
para entender o processo discursivo das roupas enquanto signos estéticos.
A semiótica, segundo Lúcia Santaella (1983, p.13). “é a ciência que tem por
objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, tem por objeto o exame
dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno de produção de significação e
sentido”. Fenômeno seria o que se apreende, “tudo aquilo, qualquer coisa, que aparece a
percepção e à mente” (idem, 2002, p. 7). Desta forma, a semiótica, serve como “um
mapa lógico que traça as linhas dos diferentes aspectos através do qual uma análise deve
ser conduzida”.
Considerando o vestuário como um signo social, em A linguagem das roupas,
Alison Lurie (1997, p.19) afirma: “a roupa constitui um sistema de signos que
comunica, fala mesmo quando estamos calados, evidenciando sexo, idade, classe social
e estilo. Através do vestuário somos identificados e informamos a respeito de nossa
origem geográfica, ocupação, opiniões, sexo, gostos e desejos”.
A sociologia disponibilizou um aporte teórico significativo. Estudos como os de:
George Simmel, Roland Barthes, Pierre Bourdieu e Diana Crane referenciaram a
pesquisa do vestuário em determinadas sociedades e nesta investigação. As
interpretações em torno do papel social da moda revelam a variação dos códigos que ela
veicula. Ora indicando, por exemplo, o status de seu usuário, ora informando sua
afiliação e valores de uma determinada época e grupo social.
A História é a linha mestra condutora deste trabalho. Com seus novos
paradigmas e abordagens do social e cultural, incluindo a perspectiva dos gêneros, a
partir do século XX, a historiografia permite reconhecer o vestuário como fonte/objeto
que nos dá acesso às subjetividades dos indivíduos. Nesse sentido a historiadora Sandra
Jatahy Pesavento (2005, p. 58), afirma: “sensibilidades se exprimem em atos, em ritos,
em imagens, em objetos da vida material, em materialidades do espaço construído.
Para Daniel Roche (2007: 21) “uma nova problemática que aborde a história da
roupa é uma maneira de ir direto ao coração da História Social. É uma maneira útil de
tentar observar como modelos ideológicos, que coexistem e disputam à regulamentação
2
Kátia Castilho é doutora e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC_SP. È pesquisadora
convidada do grupo ETHOS_ECO_UFRJ e do grupo de Design. Autora de artigos nacionais e
internacionais, e dos livros: Moda e Linguagem, a Moda do corpo o Corpo da Moda, Discursos da Moda:
semiótica, design e corpo.
23. 8
das condutas e dos hábitos, interagem na realidade que pretendemos oferecer”. O
historiador Roger Chartier propõe uma visão semelhante a Daniel Roche ao afirmar que:
Pensar as formas e as práticas cotidianas, à luz da nova história social,
constitui possibilidade de investigar um ‘novo objeto’. O objeto da
história, portanto, não são, ou não são mais as estruturas e os
mecanismos que regulam, fora de qualquer controle subjetivo, as
relações sociais, e sim as racionalidades e as estratégias acionadas
pelas comunidades, parentelas, as famílias, os indivíduos.
(CHARTIER, 1994, p. 97-113).
É importante ressaltar a contribuição dos Estudos feministas e de Gênero. Tais
abordagens colocaram em evidência questões até então consideradas não relevantes para
o conhecimento histórico: cotidiano, família, sensibilidade, sexualidade, entre outros.
Estes aspectos da vida humana, por tratarem dos espaços públicos e privados,
propiciaram condições para reflexão dos estudos do vestuário como forma de
representação social, presente em todos os aspectos da experiência dos sujeitos.
Desta forma, o estudo do acervo de vestuário do Museu Henriqueta Catharino
configura-se como objeto de pesquisa, discurso e prática. Revelando subjetividades e
sensibilidades das “histórias de vidas” das mulheres na cidade de Salvador e
proximidades, no final do Segundo Império e início da Repúplica.
Assim esta pesquisa foi dividida em três capítulos. O primeiro denominado
Definições de Moda e Indumentária pretende explicitar questões da Moda e
Indumentária seus valores e significados, pontuando a relevância dos estudos da Moda
na academia, bem como, pretende relacionar as contribuições da História Social e
Cultural, enfatizando a contribuíção dos estudos de gênero para reflexão do vestuário. O
segundo capítulo Representações vestimentais na Bahia do final do século XIX visa
explicitar a questão do vestuário feminino, enquanto práticas e representações sócio-
culturais contextualizadas em Salvador e proximidades, no final do século XIX.
Pretende ainda refletir sobre as funções da Indumentária sob o ponto de vista das classes
sociais, em especial, das mulheres de elite, colocando em pauta as novas formas de
sociabilidades no final do século XIX onde o espaço privado apresenta outra dimensão.
As novas configurações do “público no espaço privado” e suas constantes preocupações
com o vestuário.
Por fim, o terceiro capítulo, Vestuário, Cultura e Identidade, procura
contextualizar o objeto percorrendo os cenários do Brasil e da Bahia no início do século
24. 9
XX, com intenção de relacionar as transformações sociais, políticas e econômicas do
Brasil às novas configurações do vestuário feminino na Bahia. Analisa ainda as formas
vestimentais nos anos do Estilo Art Noveau e da Bélle Époque, redefinindo a imagem
feminina na Bahia, revelando influências, permanências e transgressões através do
vestuário.
25. 10
CAPÍTULO 1
1. DEFINIÇÕES DE MODA
1.1 Moda, Indumentária e Significados: repercussão dos estudos da moda na
academia.
“A moda que em muitos anos foi relegada à antecâmara das preocupações
intelectuais, está por toda parte: nos lares, na rua, na indústria, na mídia”
(LIPOVETSKY, 1986, p. 9). O estudo da Moda como fenômeno cultural constitui uma
vertente de pesquisa que vem despertando o interesse crescente tanto entre profissionais
do setor do vestuário, como entre as ciências sociais e humanas. Nos últimos anos, a
moda tem ganhado destaque na academia e vagarosamente ocupando espaços nas
preocupações intelectuais. Gilles Lipovetsky (1989) já observava o crescente interesse
da academia pelo tema. Segundo ele, a moda era sempre reduzida a mero fator de
distinção social de classes e nada mais, porém, a moda vem crescendo em importância e
ocupando cada vez mais espaços nas configurações das sociedades modernas:
A moda não é mais um enfeite estético, um acessório decorativo da
vida coletiva; É a sua pedra angular. A moda terminou
estruturalmente seu curso histórico, chegou ao topo de seu poder,
conseguiu remodelar a sociedade inteira a sua imagem: era periférica
agora é hegemônica (LIPOVETSKY, 1989, p. 12).
Mas afinal, o que é moda? Etimologicamente a palavra Moda vem do latim
modus significando modo, maneira (PALOMINO, 2002, p. 15). No inglês o termo
equivalente é fashion que significa fazendo ou fabricar Portanto, originalmente a
palavra remete a uma maneira de fazer. “O termo pode ser aplicado em diversos
sentidos, como por exemplo, quando se diz “a moda Luiz XV”, “prato à moda da casa”
ou ainda “a moda dos políticos é pousar de honesto”. Portanto, cabe especificar que
quando nos referimos à moda, estamos designando um termo especifico que trata de um
sistema próprio de apreensão. Moda pode ser nos sentido dos gostos, costumes, do que
está em voga ou ainda aquela manifestada através da indumentária, que também pode
ter várias definições.
Cabe aqui uma distinção entre indumentária e moda. A indumentária existe
desde o homem primitivo que fabricou os primeiros abrigos e agasalhos, a moda não.
26. 11
Ela é um fenômeno essencialmente moderno e seu começo é datado em um determinado
tempo histórico. Segundo o filósofo francês Lipovetsky,
a moda não pertence a todas as épocas nem a todas as civilizações...
ela é colocada aqui como tendo um começo localizável na história.
Contra a idéia de que moda e um fenômeno consubstancial à vida
humano-social, afirmamo-la como um processo excepcional,
inseparável do nascimento e do desenvolvimento do mundo moderno
ocidental... Só a partir da idade Média é possível conhecer a ordem
própria da moda, a moda como sistema como suas metamorfoses
incessantes, seus movimentos bruscos, suas extravagâncias. A
renovação das formas torna-se um valor mundano, a fantasia exibe
seus artifícios e seus exageros na alta sociedade, a inconstância em
matéria de formas ornamentais já não é exceção, mas, regra
permanente: a moda nasceu. (LIPOVETSKY, 1989, p. 23).
Para além dos motivos essenciais que sempre explicaram as funções da
vestimenta, como: pudor, proteção e adorno, entre outros, o estudo dos fenômenos da
moda é um componente fundamental na análise das transformações socioculturais da
nossa sociedade. Para Roland Barthes (1995, p. 344). “Vestir-se é fundamentalmente
um ato de significação, e, portanto, um ato profundamente social instalado no coração
mesmo da dialética das sociedades”. Assim sendo, conforme o sociológo Barnard
(2003, p. 24), a moda e a indumentária podem ser formas mais significativas pelas
quais, são construídas, experimentadas e compreendidas as relações sociais humanas.
Nesse sentido é importante ressaltar o papel simbólico que a moda exerce. Para
usar a expressão de Marx (1975, p. 79) as roupas são “hieróglifos sociais” que
escondem, mesmo quando comunicam a posição social daqueles que a vestem.
Comentando esse aspecto a socióloga americana Diane Crane afirma que:
o vestuário é sempre significativo e em suas interpretações
aproximamo-nos da organicidade da sociedade que o produziu.
Afinal, em seus cortes, cores, texturas, comprimentos,
exotismo, as roupas dão conta de imprimir sobre os corpos que
as transportam categorias sociais, ideais estéticos,
manifestações psicológicas, relações de gêneros e de poder.
(CRANE, 2006, p. 22).
Paralelo a dimensão distintiva de classe, gênero e etnia, a moda assume um
caráter simbólico de tecido das relações sociais. O vestuário pode ser portador de
significações em cada pequeno pormenor de sua composição, constituindo um sistema
27. 12
de códigos que os indivíduos usam como repertório distintivo, à semelhança dos demais
códigos culturais, morais ou institucionais.
De fato, o ato vestir é um fenômeno que diz respeito a todo ser humano e a todas
as suas relações com o mundo que o cerca. Umberto Eco afirma “a roupa é uma
comunicação”. E acrescenta ainda,
a linguagem do vestuário, tal como a linguagem verbal, não serve
apenas para transmitir certos significados, mediante certas formas
significativas. Serve também para indicar posições ideológicas
segundo os significados transmitidos e as formas significativas que
foram escolhidas pra transmitir. “A roupa é uma linguagem
articulada”. (ECO, 1989, p. 17).
Dialogando com esse pensamento, a socióloga Cidreira, em seus estudos os
“Sentidos da Moda” (2005, p. 29), aponta a necessidade de se “observar” a moda
considerando outros aspectos de sua articulação além da dimensão formal, aquela que
dá conta das determinações sociais, privilegiando duas descrições. Pois nessa
perspectiva a vestimenta seria considerada enquanto forma-signo, como um
significante, e enquanto tal seria um transmissor indiferente de um significado definido
previamente (conceito de classe social, entre outros).
Partindo do pressuposto de que existe algo para além de um significado definido
previamente e que, mesmo a peça vestimentar não pode ser concebida como um mero
transmissor de significado nos aproximamos da dimensão formante presente na
dinâmica da moda, e nos damos conta de que é preciso apreciar não apenas o sentido
vestimentar isoladamente, mas também a relação que ela estabelece entre individuo, a
sociedade e seu tempo histórico. Fazendo-se necessário, uma reflexão que auxilie na
compreensão da vestimenta e do jogo da constituição das aparências, considerando as
formas estética, simbólica e sua articulação plástica com o corpo, contextualizada num
determinado meio social.
Dessa forma deve-se buscar um entrelaçamento com outras áreas do
conhecimento, visto que o objeto moda enquanto estudo já nasceu interdisciplinar por
natureza, como atesta Castilho e Garcia:
A moda, um fenômeno ímpar em complexidade, referências sociais,
psicológicas e comportamentais, cujo estudo permite tão variadas
leituras, que possibilitam entender o crescimento e o comportamento
da humanidade, a partir da simples análise de sua evolução.
(CASTILHO E GARCIA, 2001, p. 10).
28. 13
Justamente por encerrar em si tantos significados, reflexões e simbologias, a
moda perpassa a discussão em campos tão diversos como estética, economia, história,
geografia, sociologia, psicologia, semiótica, artes aplicadas, filosofia, representações e
antropologia, entre tantos outros.
Contudo, mesmo sendo de natureza diversa e difusa, o fenômeno da moda
demorou a ser encarado como sério objeto de pesquisas acadêmicas, devido ao
pensamento de que a superficialidade da moda, por si só, já era o seu conteúdo e matriz.
Vista como um produto da sociedade de consumo, a moda foi, sistematicamente,
empurrada para terreno dos assuntos fúteis e alienantes, como muitas vezes a classificou
a Escola de Frankfurt. No Brasil, onde o pensamento frankfurtiano foi amplamente
difundido na academia, a moda demorou a chegar às instituições de ensino superior.
Somente no ano de 1988 em São Paulo surgiu a primeira graduação em moda no país.
(PIRES apud CASTILHO E ANDRADE, 2001, p. 79).
A partir de então surgem tentativas mais incisivas de apreensão da moda como
campo de saber complexo, como foi o caso das primeiras publicações em moda da
Universidade Anhembi Morumbi – SP com a revista científica Nexos, nº 9 especial
sobre “Comunicação, Moda e Educação” e a Publicação do Livro “Moda Brasil:
Fragmentos de um vestir tropicais” ambas em 2001. Também vale destacar a formação
do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Moda da Unip – Universidade Paulista em
2002 com publicação de uma série de reflexões e abordagens teóricas sobre o campo da
moda, patrocinado pela FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo no livro “Moda, Comunicação e Cultura: um olhar acadêmico”. Nesta mesma
publicação, no artigo intitulado “Moda e Campo do Saber”, de Solange Wajnman, a
autora observa:
Tema marginal nos estudos acadêmicos, relegada durante muito
tempo ao mundo das frivolidades por grande parte dos intelectuais, a
moda hoje adquire características e dimensões desconhecidas que
devem ser urgentes sistematizadas e compreendidas [...]. Apesar de
alguns autores trazerem a discussão da moda próxima ao estatuto do
signo, alguns deles ainda não são conscientes da dimensão
paroxística que a lógica da moda enquanto objeto sígnico e
emblemático vai adquirir da sociedade contemporânea. Não puderam
prever sue impacto e conseqüências.
Mais do que hegemônica, acreditamos que a moda contemporânea
chega mesmo a ser constitutiva do próprio tecido social. A julgar
pelas características atuais, ou seja, pela maneira que ela define a
29. 14
sociabilidade, pelos novos padrões éticos e estéticos, pela nova
definição do mercado empresarial, a moda hoje é um fenômeno
social.
Tal perplexidade diante deste objeto demanda não somente a revisão,
mas uma atualização do caráter teórico/metodológico da moda
enquanto campo do saber. O grande impacto da moda na vida social,
seu entrelaçamento com a sociedade exigem, sem dúvidas, a
institucionalização científica deste objeto. Ela deve migrar do campo
da frivolidade para receber o estatuto científico. (WAJNMAN, 2002,
p. 133-134).
Na atualidade verifica-se o crescente número de publicações científicas no Brasil
e no mundo, que utilizam a moda como objeto para desvendar os mais diversos
questionamentos de áreas tão diferentes que vão da psicologia a economia.
Vencido o primeiro obstáculo do pré-conceito sobre o estudo sistemático da
moda, o historiador italiano Paolo Sorcinelli observa:
Além dos puros critérios estilísticos, a moda baseia-se em precisos
parâmetros de gosto e consumos, em sofisticados procedimentos e
estratégias empresariais, comerciais e de imagem, em profundo
conhecimento das transformações e das tendências culturais e sociais
em curso. A moda, quando tratada desta forma, revela-se menos
fortuita, do que poderia parecer. Coloca-se, com efeito, uma séria de
problemas: o problema das matérias primas, o problema dos
procedimentos e das estruturas de transformação, a questão dos
custos e benefícios, que se inserem em uma perspectiva econômica,
social e antropológica, na qual o passado e suas culturas não são
repetidamente expulsos e apagados de maneira definitiva. De fato, o
suceder dessas dimensões interpretativas, como acontece em todo o
setor da atividade humana, estratifica traços e inquietações em um
substrato histórico-narrativo a partir do qual, é possível decodificar
mutatis mutantis novas fronteiras da expressividade criativa e
comportamental. (SORCINELLI, 2003, p. 11).
Deste modo, o objeto moda vai delineando seu percurso enquanto fenômeno a
ser analisado pelas diversas ciências e campos do saber, incluindo a área da história,
particularmente sendo referencial de fonte para a historiografia moderna.
30. 15
1.1.1 A moda como objeto de estudo na história
Despertado o recente interesse pela história social, a moda tem surgido, cada vez
mais, como suporte para pesquisa histórica por encerrar uma série de prerrogativas que
são úteis para entender uma época, as sociabilidades, as inter-relações sociais e o
contexto do período. Analisando este fenômeno, a historiadora italiana Maria
Guiseppina Muzzarelli, afirma:
A relevância da contribuição para história da sociedade e da vida
cotidiana que pode advir do estudo das roupas é evidente. Igualmente
evidente é a contribuição que a reconstituição dessa história pode
proporcionar aos interessados por economia e, em particular, pela
produção artesanal e pelo consumo [...].
A iconografia é útil, nesse como em outros casos, para identificar os
modelos seguir sua evolução e perceber a quais grupos, as quais fases
da vida e as quais ocasiões correspondia um determinado modo de
vestir. A combinação de fontes diferentes aumenta enormemente os
conhecimentos sobre a história da indumentária e da moda. Se, por
um lado, as fontes materiais são preciosas, porém muito raras, por
outro, as fontes iconográficas e documentais são abundantes, assim
como as fontes literárias que, apesar de numerosas, ainda são pouco
exploradas. (MUZZARELLI, 2003, p. 28).
Desta maneira, a moda vai se inserindo como um “novo” e farto campo a ser
explorado para reconstituição histórica de terminada época, período e modo de vida da
humanidade em determinado local e tempo. Se pensarmos em alguns produtos onde a
moda se materializa, o jornal de moda constitui-se uma fonte essencial para quem quer
pesquisar história através da moda, como considera o historiador italiano Alberto
Malfitano:
Em uma atividade historiográfica em ansiosa busca por novos
campos de estudos ainda não explorados, mas que nem sempre se
revelam apropriados para desvendar aspectos significativos do
passado, a história do jornalismo de moda pode ser útil para lançar
luz sobre setores pouco conhecidos, ou permitir novas perspectivas
de estudo. Até agora, esse campo de pesquisa foi de fato considerado
pouco merecedor da atenção da maioria dos historiadores, que o
subestimaram e o deixaram à margem dos seus interesses. Na
realidade, há considerações categóricas a favor deste gênero de
pesquisa, baseadas no fato de que os jornais de moda oferecem um
espelho no qual se pode ler a evolução social e de que, surgidos há
31. 16
mais de duzentos anos, seu público tem aumentado constantemente
ao longo das décadas. (MALFITANO in SORCINELLI, 2003, p. 57).
Contudo é preciso, como na utilização de outras fontes, manter apuro científico e rigor
técnico necessário para que esta fonte seja uma luz a mais, e não uma armadilha, na pesquisa
histórica, como adverte o próprio Malfitano:
Ao abordar o estudo da imprensa, deve-se ter presente, com tudo, que
seria ingênuo, considerar a possibilidade de reconstruir a realidade de
um país por meio da leitura de seus jornais. A imprensa é um
espelho, mais ou menos fiel, da realidade, mas não é a realidade; é a
sua narração fornecida no passado como hoje, pelo olhar e pela pena
de um intérprete, o jornalista. Torna-se, então, importante recolher o
maior número de informações possível sobre o sujeito que filtra a
realidade, porque isso pode ajudar-nos a entender quanto há de
verdade e, especialmente, quais as omissões existentes na versão que
ele nos apresenta. O passo seguinte é obrigatório: cruzar o maior
número de fontes possíveis. Para o estudante que quer ter segurança a
respeito de um determinado período, por exemplo, da história
contemporânea, será bom comparar a análise de um jornal da
situação com a de um jornal da oposição, e cruzar os dados
recolhidos dessas visões a fim de verificar não só a sua veracidade,
mas também os seus silêncios. (MALFITANO in SORCINELLI,
2003, p. 61).
Portanto, ao utilizar-se da moda enquanto objeto de pesquisa, o historiador deve
não só recorrer às fontes materiais e impressos de uma época, mas a todas às fontes
possíveis, através de investigação comparativa, fornecendo os extratos necessários à
compreensão da história. Assim a moda apresenta-se como um valioso recurso para
pesquisa histórica, constituindo-se, como já observou Ronaldo Fraga, no prefácio do
livro “Moda Contemporânea” de Cristiane Mesquita (2004), o documento mais eficiente
do nosso tempo.
1.2 Contribuições da Historia Social, Cultural e das Mulheres para a reflexão
sobre o vestuário.
As transformações ocorridas na historiografia dominante, a partir da década de
1960, até então, fundamentadas em teorias que se baseavam em paradigmas
provenientes do pensamento iluminista, tais como a crença na razão, na existência de
um sujeito estável e coerente, na neutralidade da ciência, na objetividade da linguagem,
32. 17
em leis gerais que regem os fenômenos, inclusive os históricos, deram lugar ao
surgimento de novos paradigmas comumente denominados de pós-estruturalistas ou
pós-modernos.
Os estudos pós-estruturalistas foram fundamentais na emergência da História das
Mulheres, principalmente, porque, entre muitas proposições: realçaram a subjetividade
dos sujeitos e da linguagem; descartaram a idéia da neutralidade científica; deram
importância aos estudos qualitativos e aos fenômenos particulares; negaram as leis
gerais de explicação dos fenômenos; apontaram para a instabilidade dos conceitos e
categorias, enfim, contribuíram para pensar a produção do conhecimento na área das
ciências humanas.
Faz-se necessário lembrar as contribuições da História Social e da História das
Mentalidades, incorporadas na História Cultural - articuladas ao crescimento da
antropologia-que tiveram papel decisivo nesse processo, onde as mulheres são alçadas à
condição de objeto e sujeito da História. Fator relevante, ao considerarmos que até então
estavam relegadas ao esquecimento ou ao domínio masculino, conforme tratamento
dado pela historiografia tradicional.
O surgimento do feminismo é citado pelo teórico da cultura, Stuart Hall (2004),
como um dos grandes cinco avanços na teoria social e nas ciências humanas ocorridos
no período denominado de modernidade tardia (segunda metade do século XX).
Segundo Hall, em seu estudo, ”A identidade cultural na pós-modernidade”, o feminismo
teve impacto tanto como crítica teórica, quanto no movimento social, questionando
noções que até então eram consideradas universais e intocáveis, como por exemplo, a
distinção entre público e privado, trazendo à tona assuntos nunca antes publicamente
discutidos, como a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, entre outros.
A “onda” dos movimentos feministas, ocorrida a partir dos anos de 1960,
contribuiu ainda mais para o surgimento da história das mulheres. Através de debates
que abordavam a marginalização da mulher, foram suscitados o interesse e o
envolvimento de algumas poucas historiadoras neste campo. Mais tarde, a teórica
francesa Simone de Beauvoir (1980) ao afirmar, "não se nasce mulher, torna-se
mulher", sintetiza toda a teoria da construção de gênero, contestando o pensamento
determinista do final do século XIX que usava a biologia para explicar a inferiorização
do sexo feminino. Sempre, na história da humanidade, coube à mulher desempenhar
uma infinidade de tarefas, como ser mãe, cuidar dos afazeres domésticos, provê o bem-
estar do marido, e mais, em nossos dias, sustentar a casa. Tudo isso partindo do
33. 18
princípio de que a mulher é naturalmente capacitada para tais tarefas, devendo servir aos
propósitos masculinos, com respeito e obediência. Afirmava-se categoricamente que
mulheres eram natural e biologicamente inferiores, fisicamente mais fracas e menos
capacitadas intelectualmente, servindo de contraponto ao masculino superior, mais forte
e mais capacitado.
O desenvolvimento de novos campos como a história das mentalidades e a
história cultural reforçaram o avanço na abordagem do feminino, fazendo emergir a
História das Mulheres com a pretensão de abarcar as diversas dimensões de suas
experiências históricas. Surge daí a importância de focalizar as relações entre os sexos e
a categoria de gênero. A maneira como esta nova história inclui a experiência das
mulheres depende muito do uso da categoria de gênero como recurso de análise. De
acordo com a historiadora Rachel Soihet, foi “a partir da década de 1970, que a palavra
"gênero" tornou-se o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual. Foi
inicialmente utilizado pelas feministas americanas que queriam insistir no caráter
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo” (SOIHET, 1997, p. 279). O
que indica uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso dos termos “sexo”
ou “diferença sexual”. O gênero se torna, inclusive, uma maneira de indicar as
construções sociais, criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos
homens e às mulheres.
A ênfase no caráter fundamentalmente social e cultural das distinções baseadas
no sexo afasta o fantasma da naturalização e revisa a idéia de assimetria e de hierarquia
nas relações entre homens e mulheres, incorporando a dimensão das relações de poder.
Neste sentido, o aspecto relacional das vidas de mulheres e homens, é compreendido
sem separação. Desde então, o estudo de gênero representou mudanças, que
ultrapassaram a fase de denúncia, opressão e descrição das experiências ou vivências
femininas, proporcionando à academia reformulações teóricas.
Uma das contribuições importante para os estudos do gênero enquanto categoria
em análise advém da historiadora Joan Scott, (1990) alinhada entre as pioneiras que
acentuam a necessidade de se ultrapassar os usos descritivos do termo, buscando a
utilização de formulações teóricas. Assim, a historiadora, inspirada pelas reflexões de
dois importantes filósofos pós-estruturalistas, Michel Foucault e Jacques Derrida, mais
do que uma mudança de perspectiva teórica no uso da categoria gênero, propõe uma
mudança radical na forma de se fazer história. A partir de suas idéias, podemos apontar
alguns aspectos que caracterizam os estudos de gênero: a análise em diversas sociedades
34. 19
e momentos, de um dado grupo ou indivíduo, discutindo como uma dada visão de
gênero construiu-se e impôs-se num determinado grupo num contexto particular. Em
certo momento, aponta para a sua historicidade desconstruindo-a. A observação do
particular, renunciando à busca de leis causais e gerais para a explicação das diferenças
sexuais, concebe o par homem-mulher ou feminino-masculino não como categorias
fixas, mas constantemente mutáveis, rejeitando o determinismo biológico e a idéia de
que a distinção sexual é natural, universal ou invariante, a despeito das diferenças
anatômicas entre machos e fêmeos - na espécie humana- sempre elaboradas
discursivamente de forma inter-relacional e pressupondo relações hierárquicas de
dominação. (SCOTT, 1990)
Além destes aspectos, os estudos de Scott sublinham uma necessidade de
analisar e buscar a compreensão das construções de gênero, que implicam na
configuração de instituições, de relações de dominação, símbolos e representações,
normas, papéis sociais, identidades subjetivas coletivas e práticas. Assim sendo, tal
proposta tem efetivamente transformado os estudos de gênero no campo da História.
Suas formulações, porém, não devem se limitar apenas às análises históricas, já que
possuem um caráter mais geral, ao propor, em última instância, uma quebra de
paradigma. Segundo a historiadora Scott, (1990, p. 5-16), “o gênero é uma forma
primária de relações significantes de poder”, portanto, está presente em todas as
dimensões da vida social, constituindo-as, ainda que parcialmente e podendo ser
adotada em diversos campos do conhecimento, inclusive no campo da moda e vestuário.
Algumas historiadoras das mulheres já assinalaram o papel da moda, enquanto
fonte econômica e mercadológica, geradora de oportunidade de inserção da mulher no
campo de trabalho- nas fábricas - no final do século XIX, dada a sua habilidade em
exercer atividades como a da costura e do bordado, aprendidas desde cedo e
consideradas propícias às mulheres. Além de tais considerações, estudos recentes nos
mostram a possibilidade de analisar as representações materiais da moda, enquanto
fontes reveladoras das representações de dominação física e simbólica, em determinada
época.
Nessa perspectiva, é importante salientar as contribuições de historiadoras que
propiciaram a reflexão sobre o vestuário como: Michelle Perrot, Maria Odila Leite da
Silva Dias, Mary Del Priore, Rachel Soichet, Maria Júlia Alves de Souza, entre outras.
Estas não se limitaram a abordar apenas os contextos de domínio público, mas
ressaltaram a necessidade de se buscar as mulheres nos domínios nos quais ocorriam
35. 20
maiores evidências de suas participações, explicando as esferas do privado e do
cotidiano. Maria Odila Dias (1992, p.50) afirma que “estudar o cotidiano na perspectiva
histórica, consiste em concentrar-se nos papéis informais e nas mediações sociais”. Para
tanto, os estudos feministas dão acesso para um campo multidisciplinar, fazendo surgir
uma perspectiva plural de métodos imprescindíveis para a reconstituição crítica da
experiência das mulheres, de modo a documentar toda a sua diversidade e explorar as
diferenças, pois, na medida em que acumulam novos conhecimentos e se expandem às
fronteiras do espírito crítico, somos colocados diante de novo desafio: a busca de uma
nova racionalidade.
A ênfase dada aos estudos sobre o cotidiano traz à tona as táticas de
sobrevivência e de resistências desenvolvidas pelas mulheres. Rastreando os “espaços
femininos”, as cenas de seu cotidiano, seus pertences, neste caso, as suas roupas, torna-
se possível reconstruir parte desta história. A vestimenta por muito tempo constituiu
uma profunda forma de expressão da individualidade feminina “para quem sempre foi
impedida de falar, escrever e criar, modos alternativos e sutis de expressão tornaram
arma de sobrevivência” , afirma a historiadora Maria Júlia Alves Souza (2003, p. 29).
O estudo de gênero, assim, apresenta-se para desconstruir a representação
tradicional do feminino, contraponto do masculino, entendendo que homens e mulheres
são socialmente produzidos pelo discurso patriarcal dominante e também por doutrinas,
por imagens e por símbolos presentes nas diferentes culturas (apud CONFORTIN,
2003, p. 109). Pois, em se tratando das roupas, não há como negar que os códigos do
vestuário aparecem como determinantes na vida dos grupos sociais, principalmente para
as mulheres, às quais, só lhes restam à memória do privado, ou seja, seu lugar na família
e seus devidos papéis pela sociedade designados (PERROT, 1971, p. 27).
As situações de domínio a que estas mulheres foram submetidas, abre um amplo
espaço ao estudo dos dispositivos da violência simbólica, a qual escreve Pierre Bordieu
“só tem êxito na medida em que aquele que a sofre contribui para sua eficácia: só o
constrange na medida em que ele esta disposto por uma aprendizagem prévia
reconhecê-la” (apud CHARTIER, 1994, p. 9). De maneira durável, a construção da
identidade feminina tem-se enraizado na interiorização pelas mulheres de normas
enunciadas pelos discursos masculinos. Um objeto importante da história das mulheres
é o estudo dos dispositivos, desdobrados em múltiplos registros, que garantem (ou
devem garantir) que as mulheres consintam nas representações dominantes da diferença
entre os dois sexos, por exemplo, a inculcar papéis sexuais, divisão de tarefas e de
36. 21
espaços, a exclusão da esfera pública, etc... Cabe aqui lembrar, que os códigos e
restrições quanto ao uso de determinados vestuários também fazem parte destas
imposições masculinas.
As roupas e acessórios são vestígios acerca do passado e do presente das
mulheres, produzidos por elas próprias, embora muitas vezes, tenham sido feitas sob
imposições que refletiam a concepção dominante,
Reconhecer esses mecanismos, os limites e até mesmo incorporar
essas formas de dominação, pela apropriação de modelos e normas
masculinas, é uma boa estratégia, que se transforma em instrumento de
resistência e em afirmação de identidade feminina. (CHARTIER,
1994, p. 9-10).
Considerando Moda, um sistema de representação significativo que relaciona
“sexo” a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais, é possível
ponderar que analisar a Moda e vestuário, constitui uma construção de gênero, como
argumenta a historiadora Teresa de Lauretis: "a construção de gênero é tanto o produto
quanto o processo de sua representação” (LAURETIS, 1994, p. 211).
Propondo elaborar a experiência feminina voltada para a construção da
subjetividade como processo social e histórico, Lauretis diz que “a construção de gênero
ocorre através dos discursos institucionais com o poder de controlar o campo de
significação social” (LAURETIS, 1984, p. 159). Sendo a moda uma instituição, como a
caracteriza Gilles Lipovetsky (1989) e o vestuário um meio de manipulação da
comunicação simbólica, é possível afirmar que a mesma tem o poder de controlar “tal
campo de significação social”. Para compreender como a moda pode ser considerada
uma construção de gênero no sentido em que Lauretis a define, é preciso que voltemos
os olhos para algumas transformações ocorridas na produção de moda no século XIX.
Quando a mulher passa a dispor de opções de vestimentas que são frutos do gosto do
criador (através da escolha da vestimenta criada por um costureiro) sendo a mesma uma
fabricação, um produto que carrega significações, que constrói e reconstrói a cada
estação o corpo da mulher. Desta forma é possível afirmar que a imagem feminina é
uma construção, uma representação do discurso vigente na sociedade, que o costureiro
pode quebrar, assimilar ou representar.
Sobre tal consideração, a historiadora Maria Claudia Bonádio (1996) em seus
estudos sobre “A imagem feminina (1910-1930)”, cita como exemplo dois importantes
casos dos costureiros Worth e Chanel, demonstrando que ao passo que, a moda
37. 22
representa os discursos vigentes de uma sociedade, ela pode também revelar algumas
desconstruções. Worth ganhou destaque no auge da Era Vitoriana. Seus modelos
reproduziam exatamente a moral vigente na época, com vestidos que escondiam o corpo
através das golas altas, das mangas, das saias compridas e armadas ao mesmo tempo em
que marcavam os papéis sociais e restritivos da mulher, ressaltando ancas e seios. A
mulher mãe-esposa era o resultado final dessa representação. E não somente: a mulher
era também inacessível, privada da vida social e, especialmente, do contato físico
através da vestimenta. Criando o ciclo da Alta Costura, Worth inovou onde a renovação
parecia impossível, em alguns casos, mudando cores, tecidos e rendas a cada estação.
Suas criações, no entanto, reafirmavam os valores propagados e seus vestidos eram
criados em cima dessas significações, nos modelos em forma de X, opondo
visivelmente a mulher ao homem, que por estes tempos já usava um traje sóbrio, prático
e funcional, ou seja, as duas peças” que lembrava um H.
Em oposição a tal contexto, a estilista Coco Chanel, em ocasião da Primeira
Guerra Mundial, aproxima o traje feminino do masculino, substituindo o X por duas
retas paralelas, lembrando o H, ainda em voga, da silhueta masculina. Tal mudança
pode ser justificada pela necessidade imposta de simplificação dos trajes, a partir de
1914, como conseqüência da necessidade da economia de tecidos e da maior praticidade
nas roupas, pois, com os homens no front de batalha, a mulher precisava assumir as
tarefas masculinas.
Coco Chanel apropriou-se das fardas masculinas e deu-lhes um corte mais
delicado: substituiu as calças pelas saias e criou o tailleur para o dia e o vestido de corte
reto e tecidos leves para noite, evidenciando a silhueta e ressaltando a associação beleza
e corpo. Chanel introduziu ainda o uso dos cabelos curtos, o que, acrescido aos trajes de
corte reto e da silhueta longilínea, tornaram-na a grande expressão da moda à La
Garçonne, que desconstruía a mãe-esposa, substituindo-a pela garçonne, uma mulher
sociável, moderna e ativa e não necessariamente mãe-esposa. Surgiu então, uma "nova
mulher" no momento em que esses papéis não podiam mais ser levados à risca, até por
falta de atores masculinos e, principalmente, por conta dos novos ideais que estavam
surgindo no cenário social. (MELLO E SOUZA, 1987, p. 59).
A identidade de gênero da mulher foi constituída, assinalada e reproduzida por
meio da moda, na medida em que as mulheres vestiram o que a sociedade julgava
apropriada. No entanto, ao refletir sobre as questões das relações de gênero, partindo em
38. 23
defesa da reformulação do papel feminino, e sobre as novas concepções de mulher,
Michelle Perrot apontou algumas especificidades:
Estas mulheres não são nem passivas nem submissas. A opressão, a
dominação, por mais reais que sejam não bastam para contar a sua
história. Afirmam-se por outras palavras, por outros gestos. Nas suas
casas, na cidade, até mesmo na fábrica, elas têm outras práticas
cotidianas, formas concretas de resistência – à hierarquia, à disciplina
– que frustram a racionalidade do poder e estão diretamente
enxertadas em seu uso próprio do espaço e do tempo” (PERROT,
1989).
39. 24
CAPÍTULO 2
2. REPRESENTAÇÕES VESTIMENTAIS NA BAHIA DO FINAL DO SÉCULO
XIX.
2.1. A questão da representação: as roupas/ códigos transmissores de intenções que
constituem as práticas e instituições sociais:
Partindo do pressuposto que moda, indumentária e traje são práticas
significantes, modos de gerar significados, que constituem as culturas de determinados
grupos sociais, nos damos conta de que é preciso apreciar não apenas o sentido
vestimentar isoladamente, mas também a relação que ela estabelece entre individuo, a
sociedade e seu tempo histórico.
Sendo o vestuário considerado um sistema de códigos socioculturais, morais ou
institucionais, cabe aqui algumas reflexões fundamentadas nos estudos da nova
História Cultural, que traz à tona conceitos e considerações reelaborados sobre cultura,
de modo a poder dizer que moda e vestuário são representações de fenômeno sócio-
cultural. Em keywords, Raymond Williams (1976, p. 76), sugere que “culture”
(cultura) é uma das palavras complicadas da língua inglesa. Em cultura ele distingue
três sentidos da palavra. O primeiro sentido é o relacionado a uma “pessoa culta” e
refere-se a um estágio desenvolvido do intelecto. O segundo é o sentido que se dá
quando se fala de atividades ou interesses culturais específicos. E o terceiro, refere-se
aos instrumentos desses processos, ou, o sentido em que se dão as artes e obras
intelectuais. A relação dos sentidos que se encontra em keywords é ligeiramente
diferente da que se encontra em cultura, e não necessariamente se sobrepõe a esta; um
fato que vem a corroborar a afirmação de Williams sobre a complexidade da palavra
cultura.
Em última instância “cultura” deriva da palavra latina colere que significa
habitar, cultivar, proteger e honrar com adoração. Dessa palavra desenvolveu-se a
palavra cultura. Cultura referia-se então, principalmente, a idéias de cultivo e de
cuidado. Os primitivos empregos da palavra cultura, em inglês, no princípio do século
XV, sublinhavam essa idéia de cuidar da colheita e dos animais. Parece que ela teve um
significado próximo ao que hoje entendemos por agricultura, ager e agri, sendo
palavras latinas para campo ou terra. As idéias que são centrais para esse conceito de
40. 25
cultura são as de processo, produção e refinamento da colheita. Esses significados
primitivos de cultura, no sentido mais familiar de agricultura, referem-se a um processo:
há um começo, quando as sementes são semeadas, um meio, quando se desenvolvem e
crescem, e um fim, quando a safra está madura e pronta para colheita. Referem-se
também á noção de produção, com ênfase quer no processo de produção, quer no
produto final desse processo. Tendo em mente outra advertência de Williams de que as
mudanças no significado da palavra cultura são além de complicadas, também
intricadas, parece que esse sentido de cultura se “estendeu a um processo de
desenvolvimento humano” (WILLIAMS, 1976, p. 77).
Williams declara (apud BARNARD, 2003, p. 58) que a palavra “cultura”
começou a fazer esse desvio metafórico de uma área da experiência humana para outra,
quando as pessoas já haviam se acostumado com a idéia de cultura como termo
relacionado ao cuidado com a lavoura e os animais, começaram então a se acostumar
com a idéia de cultura relacionada ao processo de desenvolvimento humano. E que esse
conceito específico de cultura humana foi dominante do século XVI até o século XIX.
Tal conceito de cultura contém elementos que Williams chama, em sua obra, de
conceito ideal e de conceito documentário de cultura. No modelo ideal em que a cultura
é concebida em termos de processo, de possuir formas mais ou menos maduras. Cultura,
aqui, é um estado ou processo de perfeição humana. É de tal maneira concebida que se
pode pensar num ponto de chegada, num ideal, nos termos dos quais todas as outras
culturas podem ser mensuradas e julgadas. No modelo documentário, a cultura é
concebida como um conjunto do que se poderia nomear de “destaques coligido” daquele
processo. Todas as melhores, mais interessantes e brilhantes obras de arte, literatura e
música são reunidas e selecionadas, tendo em vista esses critérios, e chamadas de
cultura. Nessa concepção cultura é o corpo do trabalho imaginativo e cultural em que
está registrada a experiência humana.
Nessa visão da cultura não é provável que a moda, vestimenta ou qualquer forma
de adorno fossem consideradas como cultura. Certamente, se a palavra ‘moda’ é
entendida no sentido de estar na moda, então há muito pouca chance de ser considerada
cultura, uma vez que, usa-se ‘cultura’ no sentido de um ponto de chegada num processo
de crescente refinamento ou cultivo. O argumento de que a moda e o adorno são obras
dificilmente consideradas intelectuais ou imaginativas confirma a dificuldade em
considerá-la cultura.
41. 26
Há, entretanto, outro conceito de cultura que Williams (1976) sugere ter sido
introduzido no final do século XVIII, mas que não se tornou plenamente estabelecido
até o princípio do século XX. É o conceito de cultura associado à Herder.
Herder argumentou que nada era mais enganador do que aplicar a palavra
cultura a todas as nações e períodos e inferir daí que cultura era o mesmo tipo de coisa,
consistindo no mesmo gênero de atividades, sendo julgada pelos mesmos padrões em
todas essas diferentes nações e períodos. Ele argumentava contra ao que Williams
chama de uma concepção linear de cultura, e colocava-se a favor de uma concepção
multilinear. Herder discutiu que era preciso falar de muitas linhas diferentes de
desenvolvimento cultural. Propunha um conceito multilinear de cultura, em que cada
linha seria tão válida e interessante em seus próprios termos como qualquer outra coisa.
Como diz Williams, Herder discutia ser necessário falar de culturas “no plural: as
específicas e as variáveis culturas de diferentes nações e períodos, mas também as
específicas e variáveis culturas de grupos sociais e econômicos dentro de uma nação”
(WILLIAMS, 1976, p. 79).
De acordo com esse conceito, cultura é “um modo de vida”. Pode ser um modo
de vida de diferentes nações ou períodos. Ou pode ser o modo de vida de grupos
existentes dentro de uma nação ou período. Segundo Barnard (2003, p. 61), esse
conceito conflita de alguma maneira com o anterior. Não é possível, por exemplo, usar
o conceito de cultura como modo de vida como sendo um padrão de excelência por
meio do qual se julgavam outras culturas. A pluralidade desse conceito significa que
cada cultura possui atividades e padrões que lhe são específicos, e os padrões de uma
não podem ser utilizados para julgar as atividades de outra. Isso abre possibilidade de
incluir muito mais práticas e atividades como práticas culturais do que seria possível no
conceito unilinear. A idéia é a de que todas essas culturas são relativas entre si: não
existe uma só cultura que supostamente fique fora dessas relações para atuar como
padrão ou medida para todas as outras. Há outro aspecto dessa concepção que deve ser
notado. É que de acordo com esse conceito pluralista cultura é “uma descrição de um
modo particular de vida que exprime certos significados e valores, não só na arte e no
saber, mas também nas instituições e no comportamento habitual” (WILLIAMS, 1961,
p. 57).
O conceito multilinear de cultura abrange linhas diferentes de desenvolvimento
cultural, mas inclui ainda como cultura uma série mais ampla de coisas. Nessa
concepção multilinear, por conseguinte, moda, vestuário e adorno, certamente, seria
42. 27
cultura. As idéias de mudança e de diferença que podem ser vistas como elementos de
qualquer definição de moda e vestuário são compatíveis com a definição de cultura
como um modo de vida que muda e difere tanto entre os grupos sociais e econômicos
como no interior dos mesmos. Da mesma maneira que a moda e o vestuário foram
vistos como expressando não apenas mensagens, mas constituindo parte das relações
sociais, assim também a cultura e as práticas culturais não exprimem simplesmente
significados e valores, mas, como diz Williams, são, antes constitutivas de uma ordem
social. Essas práticas e produtos não são “derivados”, segundo Williams, de uma ordem
social que já se encontra lá. Ao contrário, essas práticas e produtos são “elementos
importantes na sua constituição” (WILLIAMS, 1981, p. 12-13). Não se trata de grupos
sociais já existentes e em posições de relativo poder que então passam a usar as práticas
e produção cultural para refletir aquelas posições. Aquelas práticas e produções os
constituem como grupos sociais e os colocam naquelas posições de relativo poder.
Sob esse ponto de vista, a cultura é “o sistema significante através do qual uma
ordem social é comunicada, reproduzida, experimentada e explorada”. Moda, vestuário
e adorno devem ser então considerados como algumas das práticas significantes da vida
quotidiana (juntamente com as artes, a filosofia, o jornalismo, a publicidade, por
exemplo), que irão fazer da cultura um sistema geral de significados. A moda e
vestuário são, portanto, artefatos, práticas e instituições que constituem as crenças os
valores, as idéias e as experiências de uma sociedade.
Vale a pena ressaltar que moda e vestuário não são usados apenas para indicar
ou fazer referência a posições sociais e culturais, mas para construir e marcar, em
primeiro lugar, aquela realidade social e cultural.
Nesse sentido, Roger Chartier corrobora com importante reflexão a partir da
abordagem culturalista: “a história cultural, tal como a entendemos, tem por principal
objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 17).
A cultura é considerada por Chartier, como um conjunto de significados
partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo. Assim, entende-se como
principal objeto de estudo “as representações” nas suas mais variadas formas, sejam elas
literárias, icnográficas, materiais, etc.
Nas definições antigas (por exemplo, aquela do Dictionnaire Universel de
Furetière, em sua edição de 1727), as entradas da palavra “representação” atestam duas
famílias de sentido: de um lado, a representação manifesta uma ausência, o que supõe
43. 28
uma clara distinção entre o que representa e o que é representado; de outro, a
representação é a exibição de uma presença, a apresentação pública de uma coisa ou
pessoa.
Na primeira acepção, a representação é o instrumento de um conhecimento
imediato que revela o objeto ausente, substituindo-o por uma imagem capaz de trazê-lo
à memória e pintá-lo tal como é. A relação de representação, assim, é entendida como
correlação de uma imagem presente e de um objeto ausente, uma valendo pelo outro. Na
segunda acepção, a representação determina as distâncias mais socialmente enraizadas
nas diferenças mais formais.
A noção de “representação” é vista por Chartier como a pedra angular, e o
conceito de apropriação é o seu “centro”. O conceito de apropriação é uma história
social das representações: do social, institucional e cultural. Nele o social só faz sentido
nas práticas culturais e as classes sociais e grupos adquirem identidades nas
configurações sociais que constroem. Seus estudos valorizam, sobretudo, três níveis da
realidade:
- O nível das representações coletivas e as divisões do mundo social organizam
esquemas de percepção;
- Os níveis das formas de expressão e de estilo de identidade que os indivíduos e os
grupos esperam sejam reconhecidos;
- O nível de delegação a representantes indivíduos singulares, instituição ou instâncias
abstratas.
Na realidade trata-se de prestar atenção às condições e aos processos concretos
determinantes de produção de sentido. Ou seja, tal pensamento instiga o historiador a
centrar-se na análise cuidadosa das práticas pelas quais homens e mulheres do passado
apropriaram-se cada um a sua maneira, dos códigos e lugares sociais a eles impostos, ou
subverteram-se a eles para criar novas formalizações.
Para Chartier (1990, p. 17), a tarefa de identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma determinada realidade social, é construída, supõe vários
caminhos. O primeiro diz respeito às classificações, divisões e delimitações que
organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e
de apreciação do real. São variáveis consoantes as classes sociais ou os meios
intelectuais. São produzidas pelas disposições estáveis partilhadas, próprias do grupo.
São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças às quais o
presente pode adquirir sentido, o outro se torna inteligível e o espaço a ser decifrado.
44. 29
Ao considerar a história das práticas culturais, a perspectiva de Chartier propicia
à discussão do vestuário, enquanto constituinte das práticas e representação dos
indivíduos e grupos. Ao revistar os usos e costumes, sociabilidades, memórias
particulares, de um determinado grupo social, tentamos resgatar quais eram as intenções
dos homens ou mulheres que construíram essas significações através das quais
expressavam a si próprios e o mundo.
2.2. As transformações sociais, políticas e econômicas no Brasil do século XIX, e
suas configurações na moda. Práticas de vestuário das mulheres baianas de elite no
século XIX.
O século XIX foi pródigo em transformações de toda ordem: políticas,
econômicas, sócias, filosóficas, e, sobretudo, científicas. O Brasil vive num momento
bastante peculiar: O tráfico negreiro havia sido extinto, a abolição era iminente, havia
crise na mão-de-obra, os imigrantes começavam a chegar, a decadência da economia
açucareira era inexorável, o eixo do país deslocava-se para o Sul, havia divergências do
Segundo Império com a Igreja e com o Exercito. Era um clima propício para
proliferação da idéias liberais, abolicionistas e republicanas, alicerçadas pelo
Positivismo e pelo Determinismo. O capitalismo industrial já estava em curso, criando
uma nova elite e uma nova burguesia.
Sendo o século XIX cheio de contradições, retratou isso naturalmente em sua
maneira de vestir. Segundo a Historiadora Miriam Mendonça (2006, p. 218) “esse
século em matéria de roupas, como aconteceu na arte, pode ser definido como o século
de imitação de estilos”. Para a historiadora nenhum momento foi tão desprovido de
características próprias de expressão e de estilo arquitetônico quanto o século XIX, e a
explicação disso pode estar no fato de as cortes e a Igreja, elites que tradicionalmente
promoviam a construção de monumentos, pouco representarem para arte após
Revolução Francesa. O desenvolvimento da moda, nesse período, pode ser tratado
apenas em linhas gerais, pois os detalhes sofriam cada vez maiores e rápidas variações
expressas em acessórios dos trajes, luvas e chapéus das mulheres, assim como em
paletós, calças, coletes e gravatas dos homens.
Em relação às mulheres baianas, relatos de alguns escritores, entre eles os
viajantes, não obstante, seus olhares estrangeiros deixaram transparecer inúmeras
observações sobre suas vidas e como se apresentavam nos meios femininos mais
abastados, bem como, ambientes rurais e urbanos. Por trás de um comportamento
45. 30
aparentemente trivial, como o ato de se vestir, estavam implícitos, as suas formas de
expressão, suas habilidades e conhecimentos transmitidos entre gerações, que
registravam uma época com aspectos da vida social e política a serem rigidamente
respeitados.
Os usos vestimentares que predominavam na Bahia, atestados em investigações
feitas no Museu Henriqueta Catharino, representados pelas coleções de roupas e
adornos doados pelas mulheres consideradas da elite, ou adquiridas (em leilões, bazares
de caridade) por Henriqueta Martins Catharino para as coleções do Museu Traje e do
Têxtil, mostraram a possibilidade de vislumbrar aspectos da cultura baiana no final do
segundo Império (1890) e início do século XX.
Os registros biográficos analisados no Museu Henriqueta Catharino, nos levaram
aos nomes de algumas doadoras das roupas, conforme o período de uso entre 1890 a
1920: Ana Maria do Nascimento, Isaura Ribeiro dos Santos Diniz Borges, Maria da
Conceição Pinho, Mariana Cerqueira de Magalhães, Maria Ana Pinto Rodrigues da
Costa, Hercília Lustosa Teixeira de Freitas, Almerinda Martins Catharino da Silva,
Isaura Aguiar Rodrigues Torres, Annie Costa Pinto Gomes Wildberger, Basília Ferreira
de Novais e Silva, Alcina Pinho Perreira, Leocádia de Sá Catharino, Antonia Sampaio,
Laurentina Pinto Paraíso, Sra.Simões Filho, Maria Amélia Goes Calmon, entre muitas
outras.
Algumas anotações e lembretes encontrados junto aos pertences destas doadoras
nos evidenciaram que o envolvimento das mulheres baianas de elite em trabalhos
assistencialistas, como doações e organização de bazares beneficentes, era uma prática
tradicional naquele período, fazia parte das convicções e obrigações cristãs. Ao fazer o
bem ajudando os mais necessitados, suas existências seriam lembradas e associadas aos
atos de bondade, conforme consta nesta declaração feita por Henriqueta M. Catharino
em Memória de Laurentina Pinto Paraíso, uma assídua cooperadora das obras
assistenciais em Salvador e região:
Não são muitos os que logram conseguir que a ressonância de seus
passos suscite despertar uma lembrança boa e suave, quando o
calendário marca a passagem de um século da chegada ao mundo
trepidante dos nossos dias. Mas a memória dos homens é fraca e
esquecida. Alguma coisa de incumbe em ativá-la - a recordação da
bondade, da dedicação até ao sacrifício, da prestimosidade sem
46. 31
interesse, da coragem em aceitação dos sofrimentos suportados com
serenidade através de uma longa existência vivida num lar - o
pequenino mundo da mulher (HENRIQUETA CATHARINO, 1934, in
pasta de Registros Biográficos. Acervo: Museu Henriqueta Catharino).
Sobre esse aspecto, a historiadora Kátia Mattoso (1992) acentua que “os
membros femininos das elites baianas foram utilizadas como instrumentos de catequese
dada as suas influências na família”, daí então, a participação assídua das mesmas em
atividades filantrópicas. Os documentos abaixo ratificam essa prática das mulheres
baianas em atividades assitencialistas, vejamos;
Fig. 03- Carta de D. Henriqueta
Catharino em Memória a Laurentina
Pinto Paraíso. Acervo: Museu Henriqueta
Catharino
Fig. 04 - Testamento de doação, feito por
Mariana Cerqueira de Magalhães em prol
das obras assistenciais em 1940. Acervo:
Museu Henriqueta Catharino
47. 32
A partir das entrelinhas do vestuário buscamos evidenciar os costumes,
comportamentos e mudanças que ocorreram nas elites femininas da Bahia. A moda é em
última instância, uma forma de expressão artística, representando, como tal, o espírito
de sua época. E, sendo moda uma arte, para compreendê-la em toda sua riqueza, torna-
se necessário não apenas focalizarmos os seus elementos estéticos, mas, principalmente,
devemos inseri-la no seu tempo e lugar, no sentido de descobrir as profundas ligações
que mantém com a sociedade que a produziu.
O século XIX apresenta um período de grandes transformações na história do
Ocidente. A Revolução Francesa é o marco símbolo da queda definitiva do Antigo
Regime e da afirmação do mundo moderno na Europa. No Brasil, as últimas décadas do
século XIX (1970-1990), correspondem a um período de transição do Império para
República. Época considerada de importantes processos sociais como: abolição da
escravidão, Proclamação da República, projetos de modernização dos centros urbanos,
etc. Salvador acelerou o seu processo de urbanização somente no século XIX e a partir
de uma série de intervenções que se estenderam de modo iminente até as primeiras
décadas do século XX, modificando estruturalmente a feição rural da antiga Colônia
portuguesa. (LEITE, 2005, p. 121).
Fig. 05- Sra. Simões Filho. Baiana
doadora de coleção do Museu Henriqueta
Catharino.
Fonte: Revista Bahia Illustrada, nº 74,
1882.
Acervo: Museu Henriqueta Catharino
Fig. 06- Maria Amélia Góes Calmon,
Maria Constança de Goés Calmon.
Baianas doadoras de coleções do Museu
Henriqueta Catharino.
Fonte: Revista Bahia Illustrada, 1882.
Acervo: Museu Henriqueta Catharino
48. 33
No Brasil até o início século XIX, o estilo de vida da elite era espelhado na
mentalidade aristocrática portuguesa e as relações sociais definidas pelo sistema
escravista. A família baiana, rigidamente patriarcal, habitava a casa-grande, dominava a
senzala e mantinha a si própria e ao seu luxo através da produção de bens primários para
exportação, com o absoluto predomínio das produções de açúcar e fumo. As cidades
eram definidas pelo campo e dependiam totalmente da vida rural, não havia atividades
industriais e o comércio era fraquíssimo, circulando apenas produtos de primeira
necessidade e de baixa qualidade. A cidade era habitada por uma população
aparentemente homogênea, pois a fraca diferenciação social era anulada pela total falta
de refinamento e sofisticação das pessoas mais ricas. (MATTOSO, 1992, p. 25).
De modo que, até as primeiras décadas do século XIX, a preocupação e esmero
com os trajes de baile e passeio por parte das senhoras baianas ricas não eram
especialmente observados em relação aos trajes domésticos, e a vida urbana era
praticamente inexistente no Brasil. Em casa as mulheres, ricas ou pobres, descuidavam-
se do rigor com a aparência impecável e da posição de cobrir cuidadosamente o corpo,
permitindo-se uma languidez sensual através da transparência de finas cambraias de
linho e de largos e soltos decotes em vestidos que mais pareciam camisolas, deixando o
corpo à mostra. Alguns relatos de viajantes expressavam o horror dos estrangeiros para
com os trajes usados em casa pelas senhoras da sociedade.
Mary Graham, viajante inglesa que esteve em Salvador em 1821, nos legou suas
impressões femininas:
dificilmente poder-se-ia acreditar que a metade delas era senhoras da
sociedade. Como não usam nem coletes nem espartilhos, o corpo
torna-se quase indecentemente desalinhado logo após a primeira
juventude; e isto é tanto mais repugnante quando elas se vestem de
modo muito ligeiro, não usam lenços no pescoço e raramente os
vestidos têm manga. (GRAHAM apud PRIORE, 1997, p. 57).
Segundo Adriana Reis (2000, p. 23) as senhoras baianas tinham costumes muito
próprios: ficavam descalças dentro de casa, hábito que pensávamos ser exclusivo das
escravas e que parecem terem sido usados também entre as senhoras aristocratas. Além
disso, a identidade construída por essas senhoras era distinta dos padrões europeus de
civilidade, pois as baianas eram pouco afeiçoadas às européias, por possuírem uma
‘emulsão no vestir, pregar, e pisar’, podendo ser consideradas ‘muito adiantadas’. Isso
49. 34
significava que a identificação com os modelos europeus de moda, hábitos e etiquetas,
ou seja, regras de comportamento, tanto em público como dentro de casa, não eram
dominantes na Bahia naquele período.
Segundo a Historiadora Júlia Alves Souza (2003, p. 29-30), é importante
ressaltar que há uma diferença profunda nos costumes baianos entre a primeira e a
segunda metade do século XIX. A partir de 1850, o contato com a Corte do Rio de
Janeiro foi determinante para a mudança dos costumes na Bahia.
Esses contrastes entre padrões de comportamento da alta sociedade baiana e os
padrões de civilidade e higiene europeus são significativos até meados do século,
quando a imprensa, impondo-se como importante veículo na divulgação dos padrões
europeus modernos, passa a diminuir significativamente as discrepâncias de
comportamentos entre o centro europeu, especialmente França e Inglaterra, e as grandes
cidades brasileiras.
A disseminação das modas femininas dominantes na sociedade brasileira, pelas
modas inglesas e, principalmente, pelas francesas, foi em parte subproduto da influência
de rapazes brasileiros que iam estudar leis, medicina e filosofia nos centros europeus.
Voltavam cheios de novidades, algumas das quais comunicavam as mulheres, além
deles, viajantes, mascates e alfaiates que vieram morar no Brasil, assinala Freire no seu
estudo Modos de homem e modas de mulheres (1997, p. 31). Além disso, no período
entre 1890 e 1920, era grande o número de publicações (periódicos e revistas)
estrangeiras e nacionais que abordavam a moda e o comportamento e se tornavam
acessíveis às famílias baianas abastardas.
No Rio de Janeiro, as idéias européias de civilidade já estavam disseminadas e
eram divulgadas em Salvador por jornalistas. Próspero Diniz, jornalista baiano,
publicou em 1850, no periódico literário dedicado às mulheres, A Verdadeira Marmota,
o seguinte trecho:
a minha cabeça está mais recheada de pensamentos, porque fui ao
coração do Brasil, fui à Corte civilizei os olhos ali, e tudo quanto olhei
quero oferecer o suco à minha província para que possa ela utilizar ao
menos algumas idéias de melhoramento, aproximando- se da mais
pura perfeição “(...) Não direi que em todos os pontos podíamos estar
já com uma civilização igual à do rio de Janeiro, porque ali existe a
corte que é um incentivo para promover a civilização, e grandeza, pela
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influência da presença Monarca. (...) fiquei encantado da polidez e
agrado com que as moças e as famílias em geral me receberam nas
casas; ali se vê verdadeira civilização, que procurando-se um homem
casado para se falar, e não estando em casa, aparece sua senhora e fala
na sua sala toda política (...) e muito mais atraído quando vi de dia por
aquela rua do Ouvidor moças passeando e confundindo os ricos
vestidos com sedas apuradas e rendas de taboletas das lojas; (...)
muito mais apuradas estão no vestuário, porque se cuidam em pôr-se
logo pela manhã bem pregadas e vestidas.
(SOUZA apud REIS, 2000, p. 42-43).
Assim as noções de civilidade, polidez e boas maneiras foram finalmente
difundidas na sociedade baiana. Para a Bahia, Wanderley Pinho já tinha traçado no livro
clássico Salões & Damas, o contexto cultural da antiga e opulenta Província do Brasil,
no período do Segundo Reinado. Em sua descrição, os costumes e a cultura dos grupos
sociais dominantes se mostravam cada vez mais refinados e entrosados com o contato e
as influências da vida do Velho Mundo. (PINHO apud LEITE, 2005, p.162).
Para Freire, em Sobrados e Mucambos, (2004, p. 304) à medida que outras
instituições cresceram em torno da casa-grande, esta foi diminuindo o seu prestígio e
opondo-se, em parte, à influência da igreja, do governo, dos bancos, do colégio, da
fábrica, da oficina, da loja. Com a ascendência dessas instituições, a figura da mulher
foi por sua vez, se libertando aos poucos da excessiva autoridade patriarcal, que
demonstrava ter mais dificuldade em romper os tabus do sexo, a outros preconceitos de
raça.
Mary Graham observa que, na segunda metade do século XIX, durante uma
reunião social à noite, teve dificuldades em reconhecer as ‘desmazeladas’ que vira
durante o dia, pois tais senhoras estavam ‘vestidas à moda francesa’: corpetes, fecho,
enfeites, tudo estava bem mesmo elegante, e havia grande exibição de jóias (SOUZA
apud REIS, 2000, p. 27).
A modernização das cidades significou uma redefinição dos espaços públicos e
privados, e uma nova interação entre eles. Na Bahia, houve uma grande modificação
cultural: “a cidade de Salvador tornou-se o centro cultural, nessa capital a elite
encontrava no Teatro São João, nos bailes realizados na Associação Comercial ou no
Passeio Público, nos salões, além dos festejos religiosos”. (SOUZA apud REIS, 2000, p.
42). Para atender as necessidades relacionadas ao vestuário surgiram várias casas
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comerciais, com lojas que vendiam modernos artigos para homens, artigos femininos,
perfumaria, joalherias, roupas, entre outros. Como a exemplo, o edifício Importadores
de Miudezas, onde também estavam localizadas as lojas Royal Palace, Casa Souza
Teixeira & Cia, fundada em 1860.
Fig. 07- Estabelecimento comercial Importadores
de Miudezas, em Salvador-Ba.
Fonte: Revista Bahia Ilustrada. 1823.
Acervo: Biblioteca do Museu Henriqueta
Catharino.
Fig. 08- Casa Royal Palace. Uma das casas preferidas da elite baiana, com sortidos artigos e vestuários da
moda em Salvador. Fonte: Revista Bahia Illustrada. 1823.
Acervo: Biblioteca do Museu Henriqueta Catharino.
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Com relação ao desenvolvimento da moda, neste período, houve algumas
modificações, iniciadas por elegantes ou incentivadas por profissionais interessados,
como “modistas francesas”, que se concentravam no Rio de Janeiro e, posteriormente,
em Recife e Salvador, transformando essas regiões no Império da Moda.
A moda para os homens sempre ocupados, não tinham excessos. Os monarcas
trocaram seus uniformes de luxo por um traje sóbrio, a cartola e o guarda-chuva, como
qualquer cidadão. Dominou o gênero de moda usado pelo homem de negócios
respeitável não extravagante. Conservadora e formal, somente a qualidade da confecção
diferenciava as classes. Começou-se então dar muita importância aos detalhes da roupa
masculina bem cortada e confeccionada em bons tecidos.
Desse modo, toda suntuosidade do vestuário foi transferido para a mulher. A
pesquisadora de História e Moda Miriam da Costa (2006, p. 226) ressalta: “o ideal da
época exigia que a mulher fosse gentil e refinada, com um toque de anjo, inculta e
excessivamente doce. Os homens do século XIX colocaram esse tipo de damas em
escrínios e lá as deixaram incomodamente tolhidas e abafadas, sem outra ocupação a
não ser servir de enfeite para a vida social”. A moda refletiu o romântico e improdutivo
papel ao qual o sexo feminino era destinado. As saias adquiriram amplidão, a tendência
de enfatizar as dimensões da saia fazia que a mulher usasse, sob elas, até sete ou oito
anáguas. As blusas procuravam a alargar as espáduas, até o exagero, em uma linha
caída, sublinhada por grandes babados. As enormes mangas, desmesuradamente cheias,
conjugadas às imensas saias e às cinturas de vespa, davam à mulher um aspecto de
Fig. 09- Clichê/propaganda de moda da casa Royal Palace.
Fonte: Revista Bahia Ilustrada. 1823.
Acervo: Biblioteca do Museu Henriqueta Catharino
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ampulheta, moldadas pelos torturantes espartilhos. Aqui é importante lembrar, que
como ideal estético para usar os vestidos franceses, as senhoras e senhorinhas baianas
precisaram recorrer aos espartilhos, corseletes, crinolinas e mais tarde as anquinhas. Ao
mesmo tempo foram lançadas as ceroulas de algodão e renda como novidade para
prevenir conta o vento que poderia levantar as saias. Alguns modelos de trajes usados
por baixo das roupas aquela época:
Fig. 10- Anquinha usada por baixo de
vestidos e saias, no século XIX. Acervo:
Museu do Traje e do Têxtil.
Fotografia: Ana Cristiane
Fig. 11- Conjunto blusa e
ceroulas de algodão usadas por
baixo de vestidos e saias.
Acervo: Museu do Traje e Têxtil.
Fotografia: Sérgio Benutti.