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O USO DO LIVRO DE
JOSUÉ NO
NOVO TESTAMENTO.
WILLIAN ORLANDI
2
RESUMO
Esse estudo trata sobre como o livro de Josué é usado, interpretado e entendido pelos
autores do Novo Testamento. Valendo-me da exegese histórico-gramatical dos textos
neotestamentários, mostrarei como naturalmente as narrativas de Josué eram entendidas
algumas vezes “tipologicamente” sem negar sua historicidade. Eventos que realmente
aconteceram no tempo e no espaço, mas que não eram um fim em si mesmos, antes,
dentro do contexto maior da história da Salvação, apontavam para um futuro
escatológico.
3
ABSTRACT
This study deals with how the book of Joshua is used, interpreted and understood by the
authors of the New Testament. Drawing upon the historical-grammatical exegesis of the
New Testament texts, I will show how naturally the narratives of Joshua were
understood sometimes "typologically" without denying its historicity. Events that really
happened in time and space, but they were not an end in themselves, rather, within the
larger context of history of salvation, pointed to an eschatological future.
4
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..............................................................................................................5
1. O uso histórico............................................................................................................6
2. O uso doutrinal/moral.................................................................................................7
3. O uso Cristológico/escatológico.................................................................................8
CONCLUSÃO..............................................................................................................12
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .........................................................................14
5
INTRODUÇÃO
Este é um breve estudo exegético-teológico das passagens neotestamentárias onde
encontramos uma citação, alusão ou eco do livro de Josué. Em nossos conturbados dias,
o método histórico-crítico na hermenêutica acaba negando a inspiração, autoridade,
veracidade, confiabilidade histórica e harmonia das Sagradas Escrituras o que é
diametralmente oposto aos pressupostos da mentalidade apostólica cristã do primeiro
século. A crítica das fontes, que procura reconstruir a história religiosa de Israel através
de várias fontes diferentes, acaba retalhando os documentos canônicos como Josué, se
distanciando, como o ocidente do oriente, da leitura dos apóstolos (e cristãos em geral),
que liam Josué (e os demais livros do A.T.) “canonicamente” como uma unidade
literária. A crítica da forma, especialmente o método diacrônico proposto por Gerhard
Von Rad, defende que não se pode falar de uma teologia do Antigo Testamento como
um sistema unificado de pensamento, o que também difere do pensamento apostólico,
que entendia cada livro do A.T. como parte do escopo maior do Cânon e da história da
salvação que culminou na plenitude dos tempos, i.e., a encarnação do Verbo Divino, a
vinda do Messias.
Neste estudo primeiramente demonstrarei que os autores do Novo Testamento liam
Josué como um livro “histórico” fidedigno, ou seja, os acontecimentos descritos em
Josué (e todo o texto desse livro em geral) são dignos de confiança, pois realmente
aconteceram no passado. É um relato fiel do que Deus fez ao Seu povo naquele
momento da história. Em segundo lugar, veremos que os escritores do N.T. também se
valiam do texto de Josué para ensinar a seus leitores/comunidades doutrinas e também
para a exortação, pois “toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar,
para repreender, para corrigir, para instruir em justiça” (2 Tm 3.16).
Em terceiro e último lugar, analisaremos como Josué tipificava Cristo na visão
apostólica e como sua mensagem não se detinha ao tempo de Josué, mas transcende
para um futuro escatológico.
Não irei expor cada tema de Josué que aparece no N.T. (e também no A.T.), como por
exemplo, a Soberania de Deus, a guerra santa, aliança, etc. Irei deter-me apenas aos
textos do N.T. que citam, aludem ou ecoam Josué. Concluirei com uma aplicação
prática do quadro geral desse sucinto estudo.
Soli Deo Glória
6
1. O USO HISTÓRICO.
Certamente não havia liberalismo teológico entre os judeus ortodoxos do primeiro
século. Eles levavam a sério as Sagradas Escrituras e tinham suas histórias como verum
eventus. Seguiu-se logicamente a mesma mentalidade na igreja cristã do primeiro
século. Os cristãos primitivos criam que os acontecimentos no livro de Josué (e nos
demais livros do A.T.) realmente aconteceram no tempo e no espaço no contexto do
desenvolvimento da Heilsgeschichte (o que difere da era patrística onde a leitura de
Josué tinha uma enfase alegórica, o que continuou na era Medieval, tendo seu “fim” na
reforma protestantei
).
Dois discursos em Atos apresentam um caráter de uma revisão em público da história de
Israelii
.
O primeiro deles é o grande discurso (o maior no livro de Atos) do proto-mártire cristão,
Estevão. Em atos 7. 45 lemos: “...o qual nossos pais, tendo-o por sua vez recebido, o
levaram sob a direção de Josué, quando entraram na posse da terra das nações que Deus
expulsou da presença dos nossos pais, até os dias de Davi”. (enfase minha).
No contexto, a perseguição contra a comunidade cristã estava crescendo o que acarretou
na prisão dos apóstolos (At 5. 17-42). Para resolver um problema interno, a igreja
escolhe sete homens os quais eram “.... de boa reputação, cheios do Espírito e de
sabedoria” (At 6.3) entre os quais se encontrava Estevão. Alguns homens maliciosos e
invejosos vieram para debater contra ele mas não resistiram a sabedoria e ao Espírito,
pelo qual ele falava (At 6. 10). Através de subornos e falsas testemunhas, o levaram
perante o sinédrio, onde fez uma magistral defesa, expondo a história do povo de Deus,
começando por Abraão indo até Salomão.
“...o levaram sob a direção de Josué...”. A geração de Israelitas que entrou na terra
prometida naturalmente levou consigo os acessórios de sua adoração. A passagem de
Josué 3. 14, que estava na mente de Estevão em At 7. 45, descreve os sacerdotes
levando a arca da aliança quando cruzaram o Jordão, e Josué 18.1 registra que a “tenda
da revelação” foi estabelecida em Silóiii
.
“...quando tomaram posse da terra das nações que Deus expulsou da presença dos
nossos pais, até os dias de Davi.” O substantivo κατασχεσει (kataskhesei) geralmente
se refere a tomada de posse da terra de Canaã (Gn 17. 8; 48.4; Lv 24. 25; Nm 13. 2)iv
.
“Tomar posse das nações aqui”, comenta I. Howard Marshall, parece referir se a tomar
7
posse da terra que eles habitavam quando os expulsaram de láv
. O verbo expulsar
(exotheo) ocorre em Deuteronômio 13.6 (LXX) num contexto diferente. A fraseologia
aqui é baseada em Josué 23. 9 e 24. 18, textos que descrevem o modo pelo qual O
Senhor expulsou e destruiu as nações diante dos Israelistas. A ideia principal, portanto,
é o desalojamento das nações que antes habitavam a terravi
.
Não se vê aqui nenhuma tipologia entre Josué e Jesusvii
, e nenhuma alusão tipológica à
igreja que inclua as nações. Estevão está fazendo um discurso histórico aos judeus do
sinédrio.
O outro discurso histórico é de Paulo na sinagoga de Antioquia (At 13. 16-41), onde ele
oferece um rápido esboço dos eventos de Êxodo a Davi (At 13. 17-22) dando um salto
até os tempos de Jesus.
No verso 19 ele diz: “Havendo destruído as sete nações na terra de Canaã, deu-lhes o
território delas por herança”. A referência à expulsão das sete nações apoia-se em
Deuteronômio 7.1, enquanto o segmento “deu-lhes o território (em Canaã) por herança”
vem de Josué 14. 1viii
.
O escritor de Hebreus e Tiago irmão de Jesus também demonstram em suas epístolas a
historicidade do livro de Josué (Hb 4; 11 e Tg 2) e também Mateus ao incluir Raabe na
genealogia de Cristo (Mt 1.5).
2. O USO DOUTRINAL/MORAL
Um secundus usus do livro de Josué no Novo Testamento é a apropriação da narrativa
de Josué para ensinar alguma doutrina, exortar e demonstrar algum exemplo moral.
Tiago faz isso em sua epístola, usando a narrativa de Raabe, ele diz: “E de igual modo
não foi a meretriz Raabe também justificada pelas obras, quando acolheu os espias, e os
fez sair por outro caminho?” (Tg 2. 25).
O termo ομοιως (omoiōs – de igual modo) faz a ligação não entre 2. 25 e 2. 24 mas sim
ao exemplo de Abraão em 2. 20-23 colocando a fé da prostituta de Jericó na mesma
essência com a fé de Abraão. O episódio de Raabe (Js 2) não menciona explicitamente a
sua fé (como Genesis 15 menciona a fé de Abraão) embora o fluxo narrativo deixe
poucas dúvidas; ela ouvira as histórias dos atos poderosos do Deus de Israel e sua
confiança nele a levou a ações concretas assim como a fé que Abraão depositou em
Deus o levou a agir por meio de atos concretos.ix
Em 1 Clemente 12 nós descobrimos um tipo profético de expiação no cordão vermelho
usado por Raabe para descer os espias (Js 2.18) e no Judaísmo posterior Raabe é
identificada como um brilhante exemplo de um clássico prosélito, isto é, um gentio que
se identifica com o povo de Israel, mas nenhuma dessas categorias é o ponto de Tiago.
8
A sua intenção é demonstrar a inseparabilidade entre fé e obras e desconstruir os
argumentos daqueles que pensam que alguém pode ter fé e não obrasx
. D. A. Carson
conclui: O mais conceituado ancestral de Israel e uma obscura prostituta gentia
exemplificam a importância da verdade de que a fé genuína mostra-se em ações. De
qualquer modo, Tiago usa a narrativa de Raabe com propósito moral de exemploxi
.
O escritor de Hebreus também entende Raabe como um exemplo de fé e por isso ela não
foi destruída com os outros desobedientes de Jericó, pela sua corajosa e pacífica
hospitalidade para com os espias israelitas (Hb 11. 31).
3. O USO CRISTOLÓGICO/ESCATOLÓGICO.
Hebreus 4. 1-11 diz:
“Temamos, portanto, que, sendo-nos deixada a promessa de entrar no seu descanso,
suceda parecer que algum de vós tenha falhado. 2 Porque também a nós foi pregado o
evangelho, assim como a eles; mas a palavra pregada nada lhes aproveitou, visto não ter
sido acompanhada pela fé naqueles que a ouviram. 3 Porque nós, os que temos crido, é
que entramos no descanso, tal como disse: Assim jurei na minha ira: Não entrarão no
meu descanso; embora as suas obras estivessem acabadas desde a fundação do mundo;
4 pois em certo lugar disse ele assim do sétimo dia: E descansou Deus, no sétimo dia,
de todas as suas obras; 5 e outra vez, neste lugar: Não entrarão no meu descanso. 6
Visto, pois, restar que alguns entrem nele, e que aqueles a quem anteriormente foram
pregadas as boas novas não entraram por causa da desobediência, 7 determina outra vez
um certo dia, Hoje, dizendo por Davi, depois de tanto tempo, como antes fora dito:
Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações. 8 Porque, se Josué lhes
houvesse dado descanso, não teria falado, posteriormente, a respeito de outro dia. 9
Portanto resta ainda um repouso sabático para o povo de Deus. 10 Pois aquele que
entrou no descanso de Deus, esse também descansou de suas obras, assim como Deus
das suas. 11 Ora, à vista disso, procuremos diligentemente entrar naquele descanso,
para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência.”
A unidade de 4. 1-11 desempenha um papel significativo na extensa exortação de 3. 1 –
4. 16 e oferece um contraponto ao exemplo negativo do período do deserto, pela
proclamação de uma promessa de descanso aos que creem na palavra de Deusxii
. A
questão principal do autor nessa transição é que há um descanso para o povo da nova
aliança de Deusxiii
. George H. Guthire, comentando essa passagem diz: Em 4. 3-5, o
autor diz que é o crente que entra no descanso mencionado em Salmos 95. 11 (94. 11
LXX), e esse descanso existe desde que Deus concluiu a criação. Assim o autor associa
o descanso de Salmos 95. 11 com o descanso de Deus no sétimo dia da criação (Gn 2.2).
9
O autor reúne as duas passagens com base na analogia verbal e introduz o versículo de
Gênesis para definir o descanso de maneira mais clara. O fato de Davi ter falado de um
descanso que pode ser adquirido (ou perdido) hoje, muito depois dos israelitas terem
entrado na terra prometida, sob a liderança de Josué, demonstra que Deus tinha em
mente mais do que uma entrada física na terra (4. 6-8). O autor conclui, portanto, que
um descanso sabático ainda está disponível para o povo de Deusxiv
.
Portanto, o descanso do povo Israelita em Canaã era uma sombra de um futuro descanso
mais glorioso. João Calvino disse: O autor não pretende negar que pelo termo descanso
Davi entendesse a terra de Canaã, na qual Josué introduziu o povo. Senão que tem em
vista que este não é o descanso final a que os fiéis aspiram, o qual é a nossa possessão
comum com os fiéis daquele tempo. Certamente que olhavam para além daquela
possessão terrena. Aliás, a terra de Canaã só era considerada de muito valor pelo fato de
ser ela o tipo e o símbolo de nossa herança espiritual. Portanto, quando tomaram posse
dela, não atingiram o descanso como se tivessem alcançado a resposta a todas as suas
orações, ao contrário, entenderam que tomaram posse do significado espiritual contido
nela. Aqueles a quem Davi dirigiu o Salmo desfrutavam da posse da terra, porém
estavam sendo encorajados a buscarem um descanso superior. Vemos, pois, que a terra
de Canaã foi um descanso, mas em forma de sombra para além da qual os crentes tem
que prosseguir. É nesse sentido que o apóstolo afirma que Josué não lhes deu descanso,
porque sob sua liderança o povo entrou na terra prometida a fim de empenhar se por
alcançar o céu ainda com maior zeloxv
.
Da mesma maneira, John Owen, na sua massiva exposição de Hebreus, diz que o autor
“... ensina os hebreus que todas aquelas coisas que foram ditas sobre o “descanso de
Deus” na terra de Canaã, e nas instituições mosaicas, não contém a realidade ou a
própria substância nelas... Josué não deu a eles o descanso real, mas apenas aquele que
foi tipicamente instrutivo para a ocasião que haveria de virxvi
”.
Muitos teólogos encontram dificuldades em entender o que o autor de Hebreus quer
dizer com descanso. Em 4. 10 ele o define como uma interrupção das obras de alguém,
mas não especifica onde ou quando isso acontece. Alguns estudiosos entendem somente
como um destino escatológico, talvez o santo dos santos celestial, introduzido no fim
dos tempos (Hofius 1970). Outros entendem como um estado espiritual experimentado
no tempo presente pelos fiéis (Theissen 1969).
O relato de Gênesis 1 e 2 demonstra que todos os seis primeiros dias tiveram “começo e
fim” com exceção do sétimo dia (que talvez indique um dia “sem fim”). Isso nos ensina
que o descanso não está preso a categorias de espaço/tempo e que também é uma
realidade empírica presente. Não precisamos cair nos extremos de presente/futuro. O
escritor de Hebreus mostra uma realidade “já / ainda não”. O crente entra no descanso e
assim o experimenta no presente, mas a sua plenitude continua a ser uma promessa a se
consumar no futuroxvii
.
Nesse sentido, Attridge (1989, p. 128) escreve: Assim, a imagem do descanso é mais
bem entendida como símbolo de todo o processo soteriológico que Hebreus nunca
articula plenamente, mas que envolve as dimensões pessoais e coletiva. É o processo de
entrada na presença de Deus, a pátria celestial (11.16), o reino inabalável (12.28),
10
iniciado no batismo (10.22) e consumado escatologicamente como um todoxviii
.
O descanso mencionado em Gn 2.2, nas palavras de Von Rad (1966, p. 102), é “uma
expectativa escatológica, um cumprimento das profecias da redenção”.
A. T. Lincon (1982, p. 212) entende que o descanso de Gn 2.2 mostra “a consumação
dos propósitos de Deus para a criação”. E quais são esses propósitos? A redenção de
Seu povo e um descanso consumado num ambiente celestial. Assim Lincon interpretada
esse descanso a luz de uma escatologia inaugurada.
Ainda que esta visão esteja correta, precisamos estreitar um pouco mais seu significado.
O descanso deve ser interpretado como a entrada na Nova Aliança, por meio do grande
Dia do Sacrifício da Expiação pelo grande sumo sacerdote, Jesusxix
.
Em primeiro lugar, Levítico 16. 29-31 e 23. 26-32 apresentam o Dia da Expiação como
um “sábado de descanso” durante o qual as pessoas não poderiam faze obra alguma e
era purificada de seus pecados. Nas duas passagens, a ordenança do sábado está em
associação direta com a oferta do sumo sacerdote no Dia da Expiação, e essa oferta
recebe atenção especial do autor de Hebreus (2. 17-18; 4. 14-5.4; 7. 26-28; 8.3-10.
18)xx
.
Em segundo lugar, os pesquisadores em geral não conseguem perceber essas profundas
conexões lexicais existentes entre 3.1 – 4.3 e os dois resumos mais importantes sobre a
obra sacerdotal de Cristo na epístola, a saber, 4. 14-16 e 10. 19-25, passagens que
formam uma inclusio em torno do discurso do autor sobre a designação do sumo
sacerdote celestial e sua oferta superiorxxi
.
Analisando cuidadosamente, o resumo de 10. 19-25 volta atrás e se conecta com a seção
de exortação (3.1 – 4.13), por meio de termos relacionados: “irmãos” (3.1; 10.19); o
nome Iesôus – “Jesus” ou “Josué” (3,1; 4.8; 10.19); “considerai” (3.1; 10.24); Cristo
como o grande sumo sacerdote (3.1; 10.19,21); “entrando em” (4.1.3,5,6,10,11; 10.
19,20); “confiança” (3.6; 10.19); “sua casa” (3.6; 10.21); “Deus” (3.4,12; 4. 4,10,12);
etc. Assim há pelo menos 21 paralelos entre o resumo da obra de Cristo no tabernáculo
celestial, em 10. 19-25 (apenas sete versículos), e 3.1 – 4.13. Isso demonstra que o autor
conduz com habilidade o tema do livro para 10. 19-25, que vem a ser o resumo da obra
sacerdotal de Cristo e o ápice do texto que começa em 3.1 – 4. 11 e inclui a passagem
sobre o descansoxxii
.
Portanto, podemos concluir que o descanso mencionado pelo autor de Hebreus é a
entrada pessoal na Nova Aliança. Alguns membros da comunidade o rejeitaram porque
não uniram a fé com o ouvir o evangelho (4. 1-2). Todos devem se esforçar para entrar
nesse descanso (4. 11). A entrada na Nova aliança envolve uma postura corajosa ao lado
de Cristo e de Seu povo, porém ao mesmo tempo, implica o descanso das próprias obras
(4.10). No contexto, isso aponta para uma vida de fé e obediência a Deus, na qual uma
pessoa se afasta de um estilo de vida “errante” e abraça a palavra proclamada de Deus.
Por fim, é um descanso no qual se pode entrar agora pela fé (4.3) e que será consumado
no final dos temposxxiii
.
Uma última passagem a ser examinada nesse estudo está no primeiro capítulo da
epístola de Paulo aos colossenses, verso 12 que diz: “Dando graças ao Pai, que vos fez
idôneos à parte que vos cabe da herança dos santos na luz.
11
Este segmento do capítulo é parte da oração intercessora paulina iniciada em 1.9. Paulo
ora para que seus leitores sejam cheios da sabedoria de Deus para viverem de um modo
digno do Senhor, agradando-lhe em tudo. Em 12.b-14 Paulo apresenta a razão da ação
de graças, a qual está arraigada na linguagem do êxodo de Israel e na subsequente
herança da terra prometida.
Ao escrever esses versos, Paulo não tem nenhuma passagem específica do Antigo
Testamento em mente, mas com certeza o êxodo de Israel teve uma grande influência na
linguagem aqui. “Em Cristo” os crentes tem a redenção, “απολυτρωσιν” (apolutrōsin –
1.14) e eles foram libertos do domínio das trevas, “ὃς ἐρύσατο ἡμᾶς ἐκ τῆς ἐξουσίας
τοῦ σκότους” (hos erusato hēmas ek tēs exousias tou skotous – 1.13). Da mesma
maneira, Israel foi “liberto” da escravidão do Egito”. A septuaginta trata amplamente a
libertação israelita dos egípcios como redenção (απολυτρωσιν). Igualmente, as profecias
que tratam do segundo êxodo – a libertação de Israel do exílio – empregam a linguagem
de redençãoxxiv
.
A frase “participar da herança” (Lit. Trad.) foi originalmente identificada com a porção
da terra para cada tribo após a conquista (Js 13.1 – 19. 51)xxv
.
Quando Paula fala sobre a “herança dos santos” parece estar desenvolvendo uma
exegese tipológica judaica que aplicava a promessa a respeito de Israel “participar da
herança” em Canaã, a uma recompensa eterna no final dos tempos. Particularmente
notável é a forma como a linguagem poderia ser transferida para a esperança
escatológica de participação na ressurreição e/ou na vida após a morte na vida eterna do
céu (Dn 12.13; Sab 5.5; 1En 48.7)xxvi
.
Os Documentos do Mar Morto nos apresentam uma relação mais estreita: IQS 11:7-8
“Deus tem dado a eles (sabedoria, conhecimento, justiça, poder e glória) aos Seus
escolhidos como uma eterna possessão e fez com que eles possuíssem a porção da
herança dos santos”. E também IQH 11:10-12 “Pela causa da Sua glória tens purificado
os homens do pecado para eles serem santos para Ti... para que eles sejam um [com] os
filhos da Tua verdade e participantes da porção dos Teus santos”.
O pensamento é tão próximo que ele deve ajudar a esclarecer o significado aqui. "Luz"
aqui presumivelmente denota a luz do céu, aquela iluminação transcendente que por si
só dá clareza de visão, incluindo a clareza de auto percepção (por exemplo João 1. 4-5;
3. 19-21; 2 Coríntios 4. 6; Ef 5. 13-14, 1 João 1.5,7; 2.8). Aqueles que recebem essa
herança na luz e vivem de acordo podem ser chamados de “filhos da luz” (como em Lc
16.8; Jo 12. 36; 1Ts 5.5). Os aliancistas Qunranitas entendiam a si mesmos da mesma
maneiraxxvii
.
Eo ipso, percebemos que os motifs de descanso e herança em Josué são usados numa
perspectiva histórico-redentiva pelos autores neotestamentários que possuíam uma visão
tipológica/escatológica tanto da pessoa como do livro de Josué.
É fácil entendermos como a comunidade cristã primitiva logo associou Josué com
Cristo. Quando os espiões são enviados a explorarem a terra de Canaã, ficamos sabendo
pela primeira vez que Moisés mudou o nome de Oséias da tribo de Efraim para Josué
(Nm 13. 16; Cf. Dt 32.44)xxviii
. Oséias significa “salvação” e Josué, mais específico,
significa “YWHW salva” e no grego é idêntico ao nome de Jesus (Iesous). Uma outra
12
base seria o ofício profético de Cristo. Bastard identificou o “profeta semelhante a
Moisés” de Deuteronômio 18. 15-19 com Josuéxxix
. Um claro tipo de Cristo que é O
Profeta Escatológico Divino, superior a Moisés. O livro de Josué termina com o
falecimento do mesmo, identificado como “servo do Senhor” (Ebed Iahweh). Esse título
posteriormente foi usado para descrever o futuro Messiasxxx
. Para Oscar Cullman, o
título Ebed Iahweh é “o centro da cristologia do novo testamento”xxxi
. Assim como
Josué era o líder do povo de Deus e os conduziu à possessão da terra prometida, sendo o
agente/servo de Deus na destruição de Seus inimigos, assim também Cristo é O
supremo líder do povo de Deus que conquistou para nós a eterna “Canaã celestial”,
trunfando sobre o pecado, o diabo e a morte.
CONCLUSÃO
Infelizmente, a tendência das inclinações humanas sempre polariza para algum extremo
devido aos efeitos noéticos da queda adâmica no pecado. A moderação é estranha a nós
e sem a graça de Deus sempre tomamos o rumo de algum extremismo desnecessário. Se
isso é verdade no que diz respeito as questões naturais, quanto mais nas questões
espirituais.
Alguns se aproximam das Escrituras (para ler, meditar, ensinar) como se ela fosse
meramente um livro histórico. Leem as narrativas que tratam da vida de Abraão, Isaque,
Jacó, Josué, Davi como se fossem exclusivamente eventos passados. As Escrituras
passam a não ter outra finalidade a não ser satisfazer a curiosidade alheia, ou se rebaixa
a um livro de pesquisa dos povos/nações do passado.
Outros usam o Antigo Testamento apenas para ensinar princípios morais e éticos através
de bons e maus exemplos que ali encontram. Pregadores exortam com veemência a seus
ouvintes para serem “corajosos e perseverantes” como Josué (os exemplos nessa área
são ilimitados). E realmente não há problema nisso, mas quando se faz apenas isso,
acabamos por destronizar Cristo de Seu lugar preeminente nas Escrituras. Quase que
inevitavelmente iremos cair no extremismo do legalismo numa religião de “boas obras”
isenta da graça redentora de Cristo.
Por fim, ao vermos esse perigo, tendemos a correr para um outro extremo e tentar
“achar” Cristo em cada trecho, frase ou palavra das Escrituras. O problema disso é que
13
iremos desenfreadamente alegorizar várias passagens das Escrituras entrando no campo
da especulação/imaginação nos distanciando de uma exegese séria do texto Sagrado.
Nós devemos humildemente ir até os pés de Cristo e Seus apóstolos para aprendermos
com eles a maneira correta de se interpretar e aplicar o Antigo Testamento. Aprendemos
que as histórias do Antigo Testamento são verdadeiras e confiáveis pois são as próprias
palavras do Deus vivo. Também aprendemos que O Espírito Santo registrou o que
registrou para nos ensinar e exortar a não cometermos os mesmos erros cometidos pelo
povo de Deus no passado e também para nos ensinar verdades eternas. O apóstolo Paulo
usa os exemplos do povo de Israel para exortar a igreja de Corinto e ele diz: “Estas
coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência vossa, de nós
outros sobre quem os fins dos séculos tem chegado” (1 Co 10. 11). E nunca podemos
perder de vista a revelação Messiânica no Antigo Testamento. O próprio Cristo
ressurreto disse aos Seus discípulos antes de Sua ascensão: “São essas as palavras que
eu vos falei, estando ainda convosco: importava se cumprisse tudo o que de Mim está
escrito na lei de Moisés, nos profetas e nos Salmos; então, lhes abriu o entendimento
para compreenderem as Escrituras” (Lc 24. 44-45).
Em suma, jamais entenderemos apropriadamente as Escrituras se Deus não abrir o
nosso entendimento e nos dar fé para cremos que ela é a infalível, suficiente e inerrante
Palavra de Deus, e que nós que estamos em Cristo experimentamos o poder da era
escatológica para vivermos essa palavra e também para vermos Cristo Jesus, nosso
Senhor em suas páginas...
14
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
i
Cf. Kevin Vanhoozer “Dictionary for theological interpretation of the Bible”, p. 736.
ii
Luke Timothy Johnson “Septuagintal Midrash in the Speeches of Acts “, p. 24.
iii
G. K. Beale e D. A. Carson “Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”, p. 709.
iv
Ibid.
v
Ibid.
vi
Ibid.
vii
Em grego, os nomes Josué e Jesus são o mesmo (ιησου, como no texto de At 7. 45).
viii
Ibid. p. 728.
ix
G. K. Beale e D. A. Carson “Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”, p. 1233.
x
Scot McKnight “The new international commentary on the new testament – The letter of James”
p.256.
xi
Ibid.
xii
G. K. Beale e D. A. Carson “Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”, p. 1174.
xiii
Ibid.
xiv
Ibid. p. 1175.
xv
João Calvino “Comentário de Hebreus” pp. 100-101.
xvi
John Owen “An exposition of the epistle to the Hebrews with preliminary exercitations“, Vol IV, p. 320
xvii
G. K. Beale e D. A. Carson “Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”, p. 1178.
xviii
Ibid.
xix
Ibid.
xx
Ibid.
xxi
Ibid.
xxii
Ibid.
xxiii
Ibid. p. 1179.
xxiv
Cf. Is 44. 22-24; 51.11; 52.3; 62.12; etc.
xxv
David E. Garland “The NVI application commentary – from biblical text to contemporary life –
Colossians / philemon”, p. 66.
xxvi
James Dunn “The new international greek testament commentary (NIGTC) – The epistles to the
Colossians and to philemon“ p. 76.
xxvii
Ibid.
xxviii
Richard Hess “Josué, introdução e comentário”, p. 23.
xxix
H. M. Bastard “The understanding of the prophets in Deuteronomy”, SJOT, 8, p. 236-251.
xxx
Cf. Is 42. 1-4; 49. 1-7; 50. 4-11; 52.13 – 53.12; etc.
xxxi
Oscar Cullman “Cristologia do Novo Testamento”, p. 75.

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O uso do livro de Josué no Novo Testamento

  • 1. O USO DO LIVRO DE JOSUÉ NO NOVO TESTAMENTO. WILLIAN ORLANDI
  • 2. 2 RESUMO Esse estudo trata sobre como o livro de Josué é usado, interpretado e entendido pelos autores do Novo Testamento. Valendo-me da exegese histórico-gramatical dos textos neotestamentários, mostrarei como naturalmente as narrativas de Josué eram entendidas algumas vezes “tipologicamente” sem negar sua historicidade. Eventos que realmente aconteceram no tempo e no espaço, mas que não eram um fim em si mesmos, antes, dentro do contexto maior da história da Salvação, apontavam para um futuro escatológico.
  • 3. 3 ABSTRACT This study deals with how the book of Joshua is used, interpreted and understood by the authors of the New Testament. Drawing upon the historical-grammatical exegesis of the New Testament texts, I will show how naturally the narratives of Joshua were understood sometimes "typologically" without denying its historicity. Events that really happened in time and space, but they were not an end in themselves, rather, within the larger context of history of salvation, pointed to an eschatological future.
  • 4. 4 SUMÁRIO INTRODUÇÃO..............................................................................................................5 1. O uso histórico............................................................................................................6 2. O uso doutrinal/moral.................................................................................................7 3. O uso Cristológico/escatológico.................................................................................8 CONCLUSÃO..............................................................................................................12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .........................................................................14
  • 5. 5 INTRODUÇÃO Este é um breve estudo exegético-teológico das passagens neotestamentárias onde encontramos uma citação, alusão ou eco do livro de Josué. Em nossos conturbados dias, o método histórico-crítico na hermenêutica acaba negando a inspiração, autoridade, veracidade, confiabilidade histórica e harmonia das Sagradas Escrituras o que é diametralmente oposto aos pressupostos da mentalidade apostólica cristã do primeiro século. A crítica das fontes, que procura reconstruir a história religiosa de Israel através de várias fontes diferentes, acaba retalhando os documentos canônicos como Josué, se distanciando, como o ocidente do oriente, da leitura dos apóstolos (e cristãos em geral), que liam Josué (e os demais livros do A.T.) “canonicamente” como uma unidade literária. A crítica da forma, especialmente o método diacrônico proposto por Gerhard Von Rad, defende que não se pode falar de uma teologia do Antigo Testamento como um sistema unificado de pensamento, o que também difere do pensamento apostólico, que entendia cada livro do A.T. como parte do escopo maior do Cânon e da história da salvação que culminou na plenitude dos tempos, i.e., a encarnação do Verbo Divino, a vinda do Messias. Neste estudo primeiramente demonstrarei que os autores do Novo Testamento liam Josué como um livro “histórico” fidedigno, ou seja, os acontecimentos descritos em Josué (e todo o texto desse livro em geral) são dignos de confiança, pois realmente aconteceram no passado. É um relato fiel do que Deus fez ao Seu povo naquele momento da história. Em segundo lugar, veremos que os escritores do N.T. também se valiam do texto de Josué para ensinar a seus leitores/comunidades doutrinas e também para a exortação, pois “toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça” (2 Tm 3.16). Em terceiro e último lugar, analisaremos como Josué tipificava Cristo na visão apostólica e como sua mensagem não se detinha ao tempo de Josué, mas transcende para um futuro escatológico. Não irei expor cada tema de Josué que aparece no N.T. (e também no A.T.), como por exemplo, a Soberania de Deus, a guerra santa, aliança, etc. Irei deter-me apenas aos textos do N.T. que citam, aludem ou ecoam Josué. Concluirei com uma aplicação prática do quadro geral desse sucinto estudo. Soli Deo Glória
  • 6. 6 1. O USO HISTÓRICO. Certamente não havia liberalismo teológico entre os judeus ortodoxos do primeiro século. Eles levavam a sério as Sagradas Escrituras e tinham suas histórias como verum eventus. Seguiu-se logicamente a mesma mentalidade na igreja cristã do primeiro século. Os cristãos primitivos criam que os acontecimentos no livro de Josué (e nos demais livros do A.T.) realmente aconteceram no tempo e no espaço no contexto do desenvolvimento da Heilsgeschichte (o que difere da era patrística onde a leitura de Josué tinha uma enfase alegórica, o que continuou na era Medieval, tendo seu “fim” na reforma protestantei ). Dois discursos em Atos apresentam um caráter de uma revisão em público da história de Israelii . O primeiro deles é o grande discurso (o maior no livro de Atos) do proto-mártire cristão, Estevão. Em atos 7. 45 lemos: “...o qual nossos pais, tendo-o por sua vez recebido, o levaram sob a direção de Josué, quando entraram na posse da terra das nações que Deus expulsou da presença dos nossos pais, até os dias de Davi”. (enfase minha). No contexto, a perseguição contra a comunidade cristã estava crescendo o que acarretou na prisão dos apóstolos (At 5. 17-42). Para resolver um problema interno, a igreja escolhe sete homens os quais eram “.... de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria” (At 6.3) entre os quais se encontrava Estevão. Alguns homens maliciosos e invejosos vieram para debater contra ele mas não resistiram a sabedoria e ao Espírito, pelo qual ele falava (At 6. 10). Através de subornos e falsas testemunhas, o levaram perante o sinédrio, onde fez uma magistral defesa, expondo a história do povo de Deus, começando por Abraão indo até Salomão. “...o levaram sob a direção de Josué...”. A geração de Israelitas que entrou na terra prometida naturalmente levou consigo os acessórios de sua adoração. A passagem de Josué 3. 14, que estava na mente de Estevão em At 7. 45, descreve os sacerdotes levando a arca da aliança quando cruzaram o Jordão, e Josué 18.1 registra que a “tenda da revelação” foi estabelecida em Silóiii . “...quando tomaram posse da terra das nações que Deus expulsou da presença dos nossos pais, até os dias de Davi.” O substantivo κατασχεσει (kataskhesei) geralmente se refere a tomada de posse da terra de Canaã (Gn 17. 8; 48.4; Lv 24. 25; Nm 13. 2)iv . “Tomar posse das nações aqui”, comenta I. Howard Marshall, parece referir se a tomar
  • 7. 7 posse da terra que eles habitavam quando os expulsaram de láv . O verbo expulsar (exotheo) ocorre em Deuteronômio 13.6 (LXX) num contexto diferente. A fraseologia aqui é baseada em Josué 23. 9 e 24. 18, textos que descrevem o modo pelo qual O Senhor expulsou e destruiu as nações diante dos Israelistas. A ideia principal, portanto, é o desalojamento das nações que antes habitavam a terravi . Não se vê aqui nenhuma tipologia entre Josué e Jesusvii , e nenhuma alusão tipológica à igreja que inclua as nações. Estevão está fazendo um discurso histórico aos judeus do sinédrio. O outro discurso histórico é de Paulo na sinagoga de Antioquia (At 13. 16-41), onde ele oferece um rápido esboço dos eventos de Êxodo a Davi (At 13. 17-22) dando um salto até os tempos de Jesus. No verso 19 ele diz: “Havendo destruído as sete nações na terra de Canaã, deu-lhes o território delas por herança”. A referência à expulsão das sete nações apoia-se em Deuteronômio 7.1, enquanto o segmento “deu-lhes o território (em Canaã) por herança” vem de Josué 14. 1viii . O escritor de Hebreus e Tiago irmão de Jesus também demonstram em suas epístolas a historicidade do livro de Josué (Hb 4; 11 e Tg 2) e também Mateus ao incluir Raabe na genealogia de Cristo (Mt 1.5). 2. O USO DOUTRINAL/MORAL Um secundus usus do livro de Josué no Novo Testamento é a apropriação da narrativa de Josué para ensinar alguma doutrina, exortar e demonstrar algum exemplo moral. Tiago faz isso em sua epístola, usando a narrativa de Raabe, ele diz: “E de igual modo não foi a meretriz Raabe também justificada pelas obras, quando acolheu os espias, e os fez sair por outro caminho?” (Tg 2. 25). O termo ομοιως (omoiōs – de igual modo) faz a ligação não entre 2. 25 e 2. 24 mas sim ao exemplo de Abraão em 2. 20-23 colocando a fé da prostituta de Jericó na mesma essência com a fé de Abraão. O episódio de Raabe (Js 2) não menciona explicitamente a sua fé (como Genesis 15 menciona a fé de Abraão) embora o fluxo narrativo deixe poucas dúvidas; ela ouvira as histórias dos atos poderosos do Deus de Israel e sua confiança nele a levou a ações concretas assim como a fé que Abraão depositou em Deus o levou a agir por meio de atos concretos.ix Em 1 Clemente 12 nós descobrimos um tipo profético de expiação no cordão vermelho usado por Raabe para descer os espias (Js 2.18) e no Judaísmo posterior Raabe é identificada como um brilhante exemplo de um clássico prosélito, isto é, um gentio que se identifica com o povo de Israel, mas nenhuma dessas categorias é o ponto de Tiago.
  • 8. 8 A sua intenção é demonstrar a inseparabilidade entre fé e obras e desconstruir os argumentos daqueles que pensam que alguém pode ter fé e não obrasx . D. A. Carson conclui: O mais conceituado ancestral de Israel e uma obscura prostituta gentia exemplificam a importância da verdade de que a fé genuína mostra-se em ações. De qualquer modo, Tiago usa a narrativa de Raabe com propósito moral de exemploxi . O escritor de Hebreus também entende Raabe como um exemplo de fé e por isso ela não foi destruída com os outros desobedientes de Jericó, pela sua corajosa e pacífica hospitalidade para com os espias israelitas (Hb 11. 31). 3. O USO CRISTOLÓGICO/ESCATOLÓGICO. Hebreus 4. 1-11 diz: “Temamos, portanto, que, sendo-nos deixada a promessa de entrar no seu descanso, suceda parecer que algum de vós tenha falhado. 2 Porque também a nós foi pregado o evangelho, assim como a eles; mas a palavra pregada nada lhes aproveitou, visto não ter sido acompanhada pela fé naqueles que a ouviram. 3 Porque nós, os que temos crido, é que entramos no descanso, tal como disse: Assim jurei na minha ira: Não entrarão no meu descanso; embora as suas obras estivessem acabadas desde a fundação do mundo; 4 pois em certo lugar disse ele assim do sétimo dia: E descansou Deus, no sétimo dia, de todas as suas obras; 5 e outra vez, neste lugar: Não entrarão no meu descanso. 6 Visto, pois, restar que alguns entrem nele, e que aqueles a quem anteriormente foram pregadas as boas novas não entraram por causa da desobediência, 7 determina outra vez um certo dia, Hoje, dizendo por Davi, depois de tanto tempo, como antes fora dito: Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações. 8 Porque, se Josué lhes houvesse dado descanso, não teria falado, posteriormente, a respeito de outro dia. 9 Portanto resta ainda um repouso sabático para o povo de Deus. 10 Pois aquele que entrou no descanso de Deus, esse também descansou de suas obras, assim como Deus das suas. 11 Ora, à vista disso, procuremos diligentemente entrar naquele descanso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência.” A unidade de 4. 1-11 desempenha um papel significativo na extensa exortação de 3. 1 – 4. 16 e oferece um contraponto ao exemplo negativo do período do deserto, pela proclamação de uma promessa de descanso aos que creem na palavra de Deusxii . A questão principal do autor nessa transição é que há um descanso para o povo da nova aliança de Deusxiii . George H. Guthire, comentando essa passagem diz: Em 4. 3-5, o autor diz que é o crente que entra no descanso mencionado em Salmos 95. 11 (94. 11 LXX), e esse descanso existe desde que Deus concluiu a criação. Assim o autor associa o descanso de Salmos 95. 11 com o descanso de Deus no sétimo dia da criação (Gn 2.2).
  • 9. 9 O autor reúne as duas passagens com base na analogia verbal e introduz o versículo de Gênesis para definir o descanso de maneira mais clara. O fato de Davi ter falado de um descanso que pode ser adquirido (ou perdido) hoje, muito depois dos israelitas terem entrado na terra prometida, sob a liderança de Josué, demonstra que Deus tinha em mente mais do que uma entrada física na terra (4. 6-8). O autor conclui, portanto, que um descanso sabático ainda está disponível para o povo de Deusxiv . Portanto, o descanso do povo Israelita em Canaã era uma sombra de um futuro descanso mais glorioso. João Calvino disse: O autor não pretende negar que pelo termo descanso Davi entendesse a terra de Canaã, na qual Josué introduziu o povo. Senão que tem em vista que este não é o descanso final a que os fiéis aspiram, o qual é a nossa possessão comum com os fiéis daquele tempo. Certamente que olhavam para além daquela possessão terrena. Aliás, a terra de Canaã só era considerada de muito valor pelo fato de ser ela o tipo e o símbolo de nossa herança espiritual. Portanto, quando tomaram posse dela, não atingiram o descanso como se tivessem alcançado a resposta a todas as suas orações, ao contrário, entenderam que tomaram posse do significado espiritual contido nela. Aqueles a quem Davi dirigiu o Salmo desfrutavam da posse da terra, porém estavam sendo encorajados a buscarem um descanso superior. Vemos, pois, que a terra de Canaã foi um descanso, mas em forma de sombra para além da qual os crentes tem que prosseguir. É nesse sentido que o apóstolo afirma que Josué não lhes deu descanso, porque sob sua liderança o povo entrou na terra prometida a fim de empenhar se por alcançar o céu ainda com maior zeloxv . Da mesma maneira, John Owen, na sua massiva exposição de Hebreus, diz que o autor “... ensina os hebreus que todas aquelas coisas que foram ditas sobre o “descanso de Deus” na terra de Canaã, e nas instituições mosaicas, não contém a realidade ou a própria substância nelas... Josué não deu a eles o descanso real, mas apenas aquele que foi tipicamente instrutivo para a ocasião que haveria de virxvi ”. Muitos teólogos encontram dificuldades em entender o que o autor de Hebreus quer dizer com descanso. Em 4. 10 ele o define como uma interrupção das obras de alguém, mas não especifica onde ou quando isso acontece. Alguns estudiosos entendem somente como um destino escatológico, talvez o santo dos santos celestial, introduzido no fim dos tempos (Hofius 1970). Outros entendem como um estado espiritual experimentado no tempo presente pelos fiéis (Theissen 1969). O relato de Gênesis 1 e 2 demonstra que todos os seis primeiros dias tiveram “começo e fim” com exceção do sétimo dia (que talvez indique um dia “sem fim”). Isso nos ensina que o descanso não está preso a categorias de espaço/tempo e que também é uma realidade empírica presente. Não precisamos cair nos extremos de presente/futuro. O escritor de Hebreus mostra uma realidade “já / ainda não”. O crente entra no descanso e assim o experimenta no presente, mas a sua plenitude continua a ser uma promessa a se consumar no futuroxvii . Nesse sentido, Attridge (1989, p. 128) escreve: Assim, a imagem do descanso é mais bem entendida como símbolo de todo o processo soteriológico que Hebreus nunca articula plenamente, mas que envolve as dimensões pessoais e coletiva. É o processo de entrada na presença de Deus, a pátria celestial (11.16), o reino inabalável (12.28),
  • 10. 10 iniciado no batismo (10.22) e consumado escatologicamente como um todoxviii . O descanso mencionado em Gn 2.2, nas palavras de Von Rad (1966, p. 102), é “uma expectativa escatológica, um cumprimento das profecias da redenção”. A. T. Lincon (1982, p. 212) entende que o descanso de Gn 2.2 mostra “a consumação dos propósitos de Deus para a criação”. E quais são esses propósitos? A redenção de Seu povo e um descanso consumado num ambiente celestial. Assim Lincon interpretada esse descanso a luz de uma escatologia inaugurada. Ainda que esta visão esteja correta, precisamos estreitar um pouco mais seu significado. O descanso deve ser interpretado como a entrada na Nova Aliança, por meio do grande Dia do Sacrifício da Expiação pelo grande sumo sacerdote, Jesusxix . Em primeiro lugar, Levítico 16. 29-31 e 23. 26-32 apresentam o Dia da Expiação como um “sábado de descanso” durante o qual as pessoas não poderiam faze obra alguma e era purificada de seus pecados. Nas duas passagens, a ordenança do sábado está em associação direta com a oferta do sumo sacerdote no Dia da Expiação, e essa oferta recebe atenção especial do autor de Hebreus (2. 17-18; 4. 14-5.4; 7. 26-28; 8.3-10. 18)xx . Em segundo lugar, os pesquisadores em geral não conseguem perceber essas profundas conexões lexicais existentes entre 3.1 – 4.3 e os dois resumos mais importantes sobre a obra sacerdotal de Cristo na epístola, a saber, 4. 14-16 e 10. 19-25, passagens que formam uma inclusio em torno do discurso do autor sobre a designação do sumo sacerdote celestial e sua oferta superiorxxi . Analisando cuidadosamente, o resumo de 10. 19-25 volta atrás e se conecta com a seção de exortação (3.1 – 4.13), por meio de termos relacionados: “irmãos” (3.1; 10.19); o nome Iesôus – “Jesus” ou “Josué” (3,1; 4.8; 10.19); “considerai” (3.1; 10.24); Cristo como o grande sumo sacerdote (3.1; 10.19,21); “entrando em” (4.1.3,5,6,10,11; 10. 19,20); “confiança” (3.6; 10.19); “sua casa” (3.6; 10.21); “Deus” (3.4,12; 4. 4,10,12); etc. Assim há pelo menos 21 paralelos entre o resumo da obra de Cristo no tabernáculo celestial, em 10. 19-25 (apenas sete versículos), e 3.1 – 4.13. Isso demonstra que o autor conduz com habilidade o tema do livro para 10. 19-25, que vem a ser o resumo da obra sacerdotal de Cristo e o ápice do texto que começa em 3.1 – 4. 11 e inclui a passagem sobre o descansoxxii . Portanto, podemos concluir que o descanso mencionado pelo autor de Hebreus é a entrada pessoal na Nova Aliança. Alguns membros da comunidade o rejeitaram porque não uniram a fé com o ouvir o evangelho (4. 1-2). Todos devem se esforçar para entrar nesse descanso (4. 11). A entrada na Nova aliança envolve uma postura corajosa ao lado de Cristo e de Seu povo, porém ao mesmo tempo, implica o descanso das próprias obras (4.10). No contexto, isso aponta para uma vida de fé e obediência a Deus, na qual uma pessoa se afasta de um estilo de vida “errante” e abraça a palavra proclamada de Deus. Por fim, é um descanso no qual se pode entrar agora pela fé (4.3) e que será consumado no final dos temposxxiii . Uma última passagem a ser examinada nesse estudo está no primeiro capítulo da epístola de Paulo aos colossenses, verso 12 que diz: “Dando graças ao Pai, que vos fez idôneos à parte que vos cabe da herança dos santos na luz.
  • 11. 11 Este segmento do capítulo é parte da oração intercessora paulina iniciada em 1.9. Paulo ora para que seus leitores sejam cheios da sabedoria de Deus para viverem de um modo digno do Senhor, agradando-lhe em tudo. Em 12.b-14 Paulo apresenta a razão da ação de graças, a qual está arraigada na linguagem do êxodo de Israel e na subsequente herança da terra prometida. Ao escrever esses versos, Paulo não tem nenhuma passagem específica do Antigo Testamento em mente, mas com certeza o êxodo de Israel teve uma grande influência na linguagem aqui. “Em Cristo” os crentes tem a redenção, “απολυτρωσιν” (apolutrōsin – 1.14) e eles foram libertos do domínio das trevas, “ὃς ἐρύσατο ἡμᾶς ἐκ τῆς ἐξουσίας τοῦ σκότους” (hos erusato hēmas ek tēs exousias tou skotous – 1.13). Da mesma maneira, Israel foi “liberto” da escravidão do Egito”. A septuaginta trata amplamente a libertação israelita dos egípcios como redenção (απολυτρωσιν). Igualmente, as profecias que tratam do segundo êxodo – a libertação de Israel do exílio – empregam a linguagem de redençãoxxiv . A frase “participar da herança” (Lit. Trad.) foi originalmente identificada com a porção da terra para cada tribo após a conquista (Js 13.1 – 19. 51)xxv . Quando Paula fala sobre a “herança dos santos” parece estar desenvolvendo uma exegese tipológica judaica que aplicava a promessa a respeito de Israel “participar da herança” em Canaã, a uma recompensa eterna no final dos tempos. Particularmente notável é a forma como a linguagem poderia ser transferida para a esperança escatológica de participação na ressurreição e/ou na vida após a morte na vida eterna do céu (Dn 12.13; Sab 5.5; 1En 48.7)xxvi . Os Documentos do Mar Morto nos apresentam uma relação mais estreita: IQS 11:7-8 “Deus tem dado a eles (sabedoria, conhecimento, justiça, poder e glória) aos Seus escolhidos como uma eterna possessão e fez com que eles possuíssem a porção da herança dos santos”. E também IQH 11:10-12 “Pela causa da Sua glória tens purificado os homens do pecado para eles serem santos para Ti... para que eles sejam um [com] os filhos da Tua verdade e participantes da porção dos Teus santos”. O pensamento é tão próximo que ele deve ajudar a esclarecer o significado aqui. "Luz" aqui presumivelmente denota a luz do céu, aquela iluminação transcendente que por si só dá clareza de visão, incluindo a clareza de auto percepção (por exemplo João 1. 4-5; 3. 19-21; 2 Coríntios 4. 6; Ef 5. 13-14, 1 João 1.5,7; 2.8). Aqueles que recebem essa herança na luz e vivem de acordo podem ser chamados de “filhos da luz” (como em Lc 16.8; Jo 12. 36; 1Ts 5.5). Os aliancistas Qunranitas entendiam a si mesmos da mesma maneiraxxvii . Eo ipso, percebemos que os motifs de descanso e herança em Josué são usados numa perspectiva histórico-redentiva pelos autores neotestamentários que possuíam uma visão tipológica/escatológica tanto da pessoa como do livro de Josué. É fácil entendermos como a comunidade cristã primitiva logo associou Josué com Cristo. Quando os espiões são enviados a explorarem a terra de Canaã, ficamos sabendo pela primeira vez que Moisés mudou o nome de Oséias da tribo de Efraim para Josué (Nm 13. 16; Cf. Dt 32.44)xxviii . Oséias significa “salvação” e Josué, mais específico, significa “YWHW salva” e no grego é idêntico ao nome de Jesus (Iesous). Uma outra
  • 12. 12 base seria o ofício profético de Cristo. Bastard identificou o “profeta semelhante a Moisés” de Deuteronômio 18. 15-19 com Josuéxxix . Um claro tipo de Cristo que é O Profeta Escatológico Divino, superior a Moisés. O livro de Josué termina com o falecimento do mesmo, identificado como “servo do Senhor” (Ebed Iahweh). Esse título posteriormente foi usado para descrever o futuro Messiasxxx . Para Oscar Cullman, o título Ebed Iahweh é “o centro da cristologia do novo testamento”xxxi . Assim como Josué era o líder do povo de Deus e os conduziu à possessão da terra prometida, sendo o agente/servo de Deus na destruição de Seus inimigos, assim também Cristo é O supremo líder do povo de Deus que conquistou para nós a eterna “Canaã celestial”, trunfando sobre o pecado, o diabo e a morte. CONCLUSÃO Infelizmente, a tendência das inclinações humanas sempre polariza para algum extremo devido aos efeitos noéticos da queda adâmica no pecado. A moderação é estranha a nós e sem a graça de Deus sempre tomamos o rumo de algum extremismo desnecessário. Se isso é verdade no que diz respeito as questões naturais, quanto mais nas questões espirituais. Alguns se aproximam das Escrituras (para ler, meditar, ensinar) como se ela fosse meramente um livro histórico. Leem as narrativas que tratam da vida de Abraão, Isaque, Jacó, Josué, Davi como se fossem exclusivamente eventos passados. As Escrituras passam a não ter outra finalidade a não ser satisfazer a curiosidade alheia, ou se rebaixa a um livro de pesquisa dos povos/nações do passado. Outros usam o Antigo Testamento apenas para ensinar princípios morais e éticos através de bons e maus exemplos que ali encontram. Pregadores exortam com veemência a seus ouvintes para serem “corajosos e perseverantes” como Josué (os exemplos nessa área são ilimitados). E realmente não há problema nisso, mas quando se faz apenas isso, acabamos por destronizar Cristo de Seu lugar preeminente nas Escrituras. Quase que inevitavelmente iremos cair no extremismo do legalismo numa religião de “boas obras” isenta da graça redentora de Cristo. Por fim, ao vermos esse perigo, tendemos a correr para um outro extremo e tentar “achar” Cristo em cada trecho, frase ou palavra das Escrituras. O problema disso é que
  • 13. 13 iremos desenfreadamente alegorizar várias passagens das Escrituras entrando no campo da especulação/imaginação nos distanciando de uma exegese séria do texto Sagrado. Nós devemos humildemente ir até os pés de Cristo e Seus apóstolos para aprendermos com eles a maneira correta de se interpretar e aplicar o Antigo Testamento. Aprendemos que as histórias do Antigo Testamento são verdadeiras e confiáveis pois são as próprias palavras do Deus vivo. Também aprendemos que O Espírito Santo registrou o que registrou para nos ensinar e exortar a não cometermos os mesmos erros cometidos pelo povo de Deus no passado e também para nos ensinar verdades eternas. O apóstolo Paulo usa os exemplos do povo de Israel para exortar a igreja de Corinto e ele diz: “Estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência vossa, de nós outros sobre quem os fins dos séculos tem chegado” (1 Co 10. 11). E nunca podemos perder de vista a revelação Messiânica no Antigo Testamento. O próprio Cristo ressurreto disse aos Seus discípulos antes de Sua ascensão: “São essas as palavras que eu vos falei, estando ainda convosco: importava se cumprisse tudo o que de Mim está escrito na lei de Moisés, nos profetas e nos Salmos; então, lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras” (Lc 24. 44-45). Em suma, jamais entenderemos apropriadamente as Escrituras se Deus não abrir o nosso entendimento e nos dar fé para cremos que ela é a infalível, suficiente e inerrante Palavra de Deus, e que nós que estamos em Cristo experimentamos o poder da era escatológica para vivermos essa palavra e também para vermos Cristo Jesus, nosso Senhor em suas páginas...
  • 14. 14 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS i Cf. Kevin Vanhoozer “Dictionary for theological interpretation of the Bible”, p. 736. ii Luke Timothy Johnson “Septuagintal Midrash in the Speeches of Acts “, p. 24. iii G. K. Beale e D. A. Carson “Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”, p. 709. iv Ibid. v Ibid. vi Ibid. vii Em grego, os nomes Josué e Jesus são o mesmo (ιησου, como no texto de At 7. 45). viii Ibid. p. 728. ix G. K. Beale e D. A. Carson “Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”, p. 1233. x Scot McKnight “The new international commentary on the new testament – The letter of James” p.256. xi Ibid. xii G. K. Beale e D. A. Carson “Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”, p. 1174. xiii Ibid. xiv Ibid. p. 1175. xv João Calvino “Comentário de Hebreus” pp. 100-101. xvi John Owen “An exposition of the epistle to the Hebrews with preliminary exercitations“, Vol IV, p. 320 xvii G. K. Beale e D. A. Carson “Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”, p. 1178. xviii Ibid. xix Ibid. xx Ibid. xxi Ibid. xxii Ibid. xxiii Ibid. p. 1179. xxiv Cf. Is 44. 22-24; 51.11; 52.3; 62.12; etc. xxv David E. Garland “The NVI application commentary – from biblical text to contemporary life – Colossians / philemon”, p. 66. xxvi James Dunn “The new international greek testament commentary (NIGTC) – The epistles to the Colossians and to philemon“ p. 76. xxvii Ibid. xxviii Richard Hess “Josué, introdução e comentário”, p. 23. xxix H. M. Bastard “The understanding of the prophets in Deuteronomy”, SJOT, 8, p. 236-251. xxx Cf. Is 42. 1-4; 49. 1-7; 50. 4-11; 52.13 – 53.12; etc. xxxi Oscar Cullman “Cristologia do Novo Testamento”, p. 75.