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O PAPEL DOS PAIS EM TEMPOS DE CRISE 
1 
Júlio Furtado 
Estamos vivendo tempos de crise. Não estamos falando especificamente de crise financeira ou de 
crise política. Estamos falando, principalmente, de crise de verdades e de valores. O que sempre foi 
considerado certo, de repente nos deixa em dúvida. As atitudes que sempre foram recomendadas para 
certas situações com nossos filhos, hoje nos deixam inseguros, pois não estamos convictos de seus efeitos. 
Somos uma geração de pais, marcada pela dúvida e pela culpa. Dúvida sobre o que fazer e culpa por colocar 
limites. Podemos resumir nosso momento como uma transição entre a disciplina do medo e o medo da 
disciplina. Já sabemos das conseqüências desses dois extremos. 
Crianças que são criadas sob a disciplina do medo tornam-se, geralmente, adultos com baixa 
autoestima, com grande sentimento de culpa e que tendem a fugir dos desafios, além de agirem com grande 
instabilidade emocional. Crianças que, opostamente, são criadas num contexto de falta de disciplina tendem 
a tornarem-se adultos indecisos e inseguros, com pouca capacidade de persistência e baixa resistência à 
frustração. Geralmente aprendem a manipular e a mentir como forma de conseguirem o que querem. Esses 
extremos estão no centro da crise que vivemos enquanto educadores. Não temos sabido direito a hora de 
diminuir a proteção e aumentar o cuidado. Talvez tenhamos esquecido até mesmo o real sentido de 
proteger e de cuidar. 
Proteger envolve decidir pelo outro. Quem protege escolhe o que é melhor para o outro, excluindo-o 
da escolha e da decisão. “Você vai ficar em casa, pois na rua está muito tumultuado e você pode se 
perder!”. Eis uma situação típica de proteção. A decisão é unilateral e não pressupõe diálogo. Cuidar 
envolve oferecer escolhas, explicar suas conseqüências e disponibilizar-se para ajudar, caso seja necessário. 
Envolve análise de conseqüências e uma escolha por parte do outro. “Na rua tem muita gente e você pode se 
perder. Se isso acontecer, você vai ficar nervoso e começar a chorar por não saber voltar pra casa. Se você 
quiser ir, assim mesmo, não vá muito longe! Leve o celular e ligue para mim caso se perca”. Nessa situação, o 
elemento escolha claramente define o cuidado. Embora assuste, é através do cuidado que fazemos crescer. 
Cuidar educa. Proteger, embora necessário, não. 
Diante dessa crise, certamente nos orientam algumas ações que são essenciais para que não nos 
percamos nesse mar de dúvidas: 
• Estimular o desenvolvimento da autoestima. Autoestima saudável é sentir-se competente para 
lidar com os desafios básicos da vida e sentir-se merecedor de felicidade. É essencial desenvolver 
a autoconfiança em nossos filhos para que eles possam enfrentar a realidade, mesmo diante de 
fatos desagradáveis. Para construir uma autoestima saudável em nossos filhos, precisamos agir 
com autoaceitação, respeito, afetuosidade, coerência, objetividade e determinação. 
• Ensiná-los a lidar com suas emoções. Para que isso seja possível, precisamos substituir a censura 
pelo apoio e criar um clima para uma conversa aberta que favoreça o autoconhecimento. 
1 Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Havana. Mestre em Educação pela UFRJ. Pedagogo, Psicólogo e 
Professor.
• Desenvolver habilidades essenciais à sobrevivência num futuro próximo. Dentre essas 
habilidades, destacam-se a autonomia, a seletividade, a flexibilidade, a interação, a serenidade e 
a resiliência. 
• Ajudá-los a desenvolver a educação da vontade. Está mais do que provado que o que nos move 
não é a inteligência, mas sim a vontade. Uma pessoa muito inteligente, mas fraca na 
administração de sua vontade, não sai do lugar. Por outro lado, alguém de inteligência média, 
mas com alto potencial de domínio de sua própria vontade, atinge seus objetivos com relativa 
facilidade. 
• Administrar o tempo para sobrar tempo para sermos pais. E aqui estamos falando de qualidade 
e não de quantidade de tempo. Independentemente da quantidade, o tempo que podemos 
passar com nossos filhos precisa ser marcado pelo contato emocional, da forma mais intensa 
possível. É através desse contato que nossos filhos constroem segurança para se tornar 
autônomos. 
Pelo que nos parece, os tempos de crise estão, aos poucos, se tornando a marca registrada de nosso 
mundo. Educar filhos num mundo cuja única certeza que temos é de que tudo pode mudar, exige de nós 
buscarmos referenciais sólidos nos quais eles possam se agarrar para darem conta de tantas mudanças.

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  • 1. O PAPEL DOS PAIS EM TEMPOS DE CRISE 1 Júlio Furtado Estamos vivendo tempos de crise. Não estamos falando especificamente de crise financeira ou de crise política. Estamos falando, principalmente, de crise de verdades e de valores. O que sempre foi considerado certo, de repente nos deixa em dúvida. As atitudes que sempre foram recomendadas para certas situações com nossos filhos, hoje nos deixam inseguros, pois não estamos convictos de seus efeitos. Somos uma geração de pais, marcada pela dúvida e pela culpa. Dúvida sobre o que fazer e culpa por colocar limites. Podemos resumir nosso momento como uma transição entre a disciplina do medo e o medo da disciplina. Já sabemos das conseqüências desses dois extremos. Crianças que são criadas sob a disciplina do medo tornam-se, geralmente, adultos com baixa autoestima, com grande sentimento de culpa e que tendem a fugir dos desafios, além de agirem com grande instabilidade emocional. Crianças que, opostamente, são criadas num contexto de falta de disciplina tendem a tornarem-se adultos indecisos e inseguros, com pouca capacidade de persistência e baixa resistência à frustração. Geralmente aprendem a manipular e a mentir como forma de conseguirem o que querem. Esses extremos estão no centro da crise que vivemos enquanto educadores. Não temos sabido direito a hora de diminuir a proteção e aumentar o cuidado. Talvez tenhamos esquecido até mesmo o real sentido de proteger e de cuidar. Proteger envolve decidir pelo outro. Quem protege escolhe o que é melhor para o outro, excluindo-o da escolha e da decisão. “Você vai ficar em casa, pois na rua está muito tumultuado e você pode se perder!”. Eis uma situação típica de proteção. A decisão é unilateral e não pressupõe diálogo. Cuidar envolve oferecer escolhas, explicar suas conseqüências e disponibilizar-se para ajudar, caso seja necessário. Envolve análise de conseqüências e uma escolha por parte do outro. “Na rua tem muita gente e você pode se perder. Se isso acontecer, você vai ficar nervoso e começar a chorar por não saber voltar pra casa. Se você quiser ir, assim mesmo, não vá muito longe! Leve o celular e ligue para mim caso se perca”. Nessa situação, o elemento escolha claramente define o cuidado. Embora assuste, é através do cuidado que fazemos crescer. Cuidar educa. Proteger, embora necessário, não. Diante dessa crise, certamente nos orientam algumas ações que são essenciais para que não nos percamos nesse mar de dúvidas: • Estimular o desenvolvimento da autoestima. Autoestima saudável é sentir-se competente para lidar com os desafios básicos da vida e sentir-se merecedor de felicidade. É essencial desenvolver a autoconfiança em nossos filhos para que eles possam enfrentar a realidade, mesmo diante de fatos desagradáveis. Para construir uma autoestima saudável em nossos filhos, precisamos agir com autoaceitação, respeito, afetuosidade, coerência, objetividade e determinação. • Ensiná-los a lidar com suas emoções. Para que isso seja possível, precisamos substituir a censura pelo apoio e criar um clima para uma conversa aberta que favoreça o autoconhecimento. 1 Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Havana. Mestre em Educação pela UFRJ. Pedagogo, Psicólogo e Professor.
  • 2. • Desenvolver habilidades essenciais à sobrevivência num futuro próximo. Dentre essas habilidades, destacam-se a autonomia, a seletividade, a flexibilidade, a interação, a serenidade e a resiliência. • Ajudá-los a desenvolver a educação da vontade. Está mais do que provado que o que nos move não é a inteligência, mas sim a vontade. Uma pessoa muito inteligente, mas fraca na administração de sua vontade, não sai do lugar. Por outro lado, alguém de inteligência média, mas com alto potencial de domínio de sua própria vontade, atinge seus objetivos com relativa facilidade. • Administrar o tempo para sobrar tempo para sermos pais. E aqui estamos falando de qualidade e não de quantidade de tempo. Independentemente da quantidade, o tempo que podemos passar com nossos filhos precisa ser marcado pelo contato emocional, da forma mais intensa possível. É através desse contato que nossos filhos constroem segurança para se tornar autônomos. Pelo que nos parece, os tempos de crise estão, aos poucos, se tornando a marca registrada de nosso mundo. Educar filhos num mundo cuja única certeza que temos é de que tudo pode mudar, exige de nós buscarmos referenciais sólidos nos quais eles possam se agarrar para darem conta de tantas mudanças.