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O Comum dos Mortais
" ...O Comum dos Mortais é aquele que acaba de descer do ônibus e tropeçou no
caixote do homem que vende pentes na calçada. É aquele que sorriu para o homem que
vende pentes, como a pedir desculpas por ser desastrado.
O Comum dos Mortais vive pedindo desculpas. Pede desculpas por ocupar espaço no
mundo, pelo ar que respira, por sua falta de jeito para lidar com todas as coisas
práticas.
Lá vai ele, o Comum dos Mortais. A calça de inverno lhe pesa ao sol de fevereiro, a
camisa tem um pegão na altura do ombro, os sapatos estão gastos de suas longas
peregrinações entre nada e lugar nenhum.
Lá vai ele pagar uma prestação atrasada, tentar mais um tempo de encosto no
Instituto, pedir prazo ao dono do bar que lhe fiou cem cruzados.
Lá vai ele, o Comum dos Mortais, esbarrando em pessoas e tornando a pedir
desculpas.
O Comum dos Mortais precisa de óculos, pois não enxerga bem, precisa de casa em
uma rua decente, precisa parar de pedir desculpas.
O Comum dos Mortais gostaria de ler livros e entender de política, mas só foi até o
terceiro ano no grupo escolar e depois caiu no batente.
O Comum dos Mortais recitou uma poesia na festa de encerramento do terceiro ano
primário e se engasgou no meio e começou a recitá-la de novo e se engasgou outra vez
e então fugiu do palco, humilhado por sua falta de jeito para lidar com todas as coisas,
inclusive poesias decoradas.
O Comum dos Mortais nunca mais recitou poesias. Casou, e não se fez aviador, nem
cantor de rádio, nem jogador de futebol, como queria, nessa ordem. Fez quatro filhos e
o primeiro quer ser aviador, o segundo quer ser cantor de rádio, o terceiro quer jogar
futebol e o quarto quer continuar vadiando para todo o sempre.
O Comum dos Mortais gostaria de vadiar, sentar agora mesmo naquela praça e ficar
pensando que é ele que está no comando do avião que risca o céu no rumo das terras
que nunca conhecerá. Mas o Comum dos Mortais tem hora para chegar no Instituto, a
prestação atrasada não pode esperar mais e ainda precisa amansar o dono do bar que
lhe fiou cem cruzados. Depois passará noutro bar onde ainda não deve nada e tomará
lentamente um martelo de cana e namorará os pastéis da vitrine.
Uma de suas diversões é namorar nas vitrines. Calças leves de verão, camisas sem
pegão no ombro, sapatos brilhantes com enormes, indestrutíveis solas de borracha.
Namora os manequins femininos esquecido da mulher, que sentirá seu hálito de cana,
que se queixará do filho vadio, que dirá que ele próprio é um sujeitinho imprestável.
A vida não tem sido boa para o Comum dos Mortais. Não se tornou aviador, cantor de
rádio, jogador de futebol. Não se casou com aquela morena do chalé em frente que
olha para ele disfarçado enquanto estende a roupa no varal.
A vida não tem sido boa. Mesmo assim lá vai ele, o Comum dos Mortais, esbarrando
nas pessoas e pedindo desculpas. Logo cairá a tarde e ele tomará o seu martelo de
cana, lentamente. E depois voltará no ônibus lotado para a rua poeirenta da vila. E, de
noite, sonhará com a morena que estende a roupa no varal, com um gol de placa, com
uma poesia declamada do princípio ao fim. Sonhará com as terras a que jamais irá.
Sonhará com um avião que risca o céu sob seu comando.
Longamente sonhará o Comum dos Mortais. Pois o sonho é seu único refúgio, a sua
última esperança, a sua verdadeira, inatingível pátria..."
(O Comum dos Mortais, conto de autor desconhecido).

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  • 1. O Comum dos Mortais " ...O Comum dos Mortais é aquele que acaba de descer do ônibus e tropeçou no caixote do homem que vende pentes na calçada. É aquele que sorriu para o homem que vende pentes, como a pedir desculpas por ser desastrado. O Comum dos Mortais vive pedindo desculpas. Pede desculpas por ocupar espaço no mundo, pelo ar que respira, por sua falta de jeito para lidar com todas as coisas práticas. Lá vai ele, o Comum dos Mortais. A calça de inverno lhe pesa ao sol de fevereiro, a camisa tem um pegão na altura do ombro, os sapatos estão gastos de suas longas peregrinações entre nada e lugar nenhum. Lá vai ele pagar uma prestação atrasada, tentar mais um tempo de encosto no Instituto, pedir prazo ao dono do bar que lhe fiou cem cruzados. Lá vai ele, o Comum dos Mortais, esbarrando em pessoas e tornando a pedir desculpas. O Comum dos Mortais precisa de óculos, pois não enxerga bem, precisa de casa em uma rua decente, precisa parar de pedir desculpas. O Comum dos Mortais gostaria de ler livros e entender de política, mas só foi até o terceiro ano no grupo escolar e depois caiu no batente. O Comum dos Mortais recitou uma poesia na festa de encerramento do terceiro ano primário e se engasgou no meio e começou a recitá-la de novo e se engasgou outra vez e então fugiu do palco, humilhado por sua falta de jeito para lidar com todas as coisas, inclusive poesias decoradas. O Comum dos Mortais nunca mais recitou poesias. Casou, e não se fez aviador, nem cantor de rádio, nem jogador de futebol, como queria, nessa ordem. Fez quatro filhos e o primeiro quer ser aviador, o segundo quer ser cantor de rádio, o terceiro quer jogar futebol e o quarto quer continuar vadiando para todo o sempre. O Comum dos Mortais gostaria de vadiar, sentar agora mesmo naquela praça e ficar pensando que é ele que está no comando do avião que risca o céu no rumo das terras que nunca conhecerá. Mas o Comum dos Mortais tem hora para chegar no Instituto, a prestação atrasada não pode esperar mais e ainda precisa amansar o dono do bar que lhe fiou cem cruzados. Depois passará noutro bar onde ainda não deve nada e tomará lentamente um martelo de cana e namorará os pastéis da vitrine. Uma de suas diversões é namorar nas vitrines. Calças leves de verão, camisas sem pegão no ombro, sapatos brilhantes com enormes, indestrutíveis solas de borracha.
  • 2. Namora os manequins femininos esquecido da mulher, que sentirá seu hálito de cana, que se queixará do filho vadio, que dirá que ele próprio é um sujeitinho imprestável. A vida não tem sido boa para o Comum dos Mortais. Não se tornou aviador, cantor de rádio, jogador de futebol. Não se casou com aquela morena do chalé em frente que olha para ele disfarçado enquanto estende a roupa no varal. A vida não tem sido boa. Mesmo assim lá vai ele, o Comum dos Mortais, esbarrando nas pessoas e pedindo desculpas. Logo cairá a tarde e ele tomará o seu martelo de cana, lentamente. E depois voltará no ônibus lotado para a rua poeirenta da vila. E, de noite, sonhará com a morena que estende a roupa no varal, com um gol de placa, com uma poesia declamada do princípio ao fim. Sonhará com as terras a que jamais irá. Sonhará com um avião que risca o céu sob seu comando. Longamente sonhará o Comum dos Mortais. Pois o sonho é seu único refúgio, a sua última esperança, a sua verdadeira, inatingível pátria..." (O Comum dos Mortais, conto de autor desconhecido).