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MEMÓRIAS APAGADAS:
Uma história sendo esquecida diante dos seus olhos
Giulia Vanni, Heloisa Vasilian, Larissa Reis, Luiza Vezzá e Maria Eduarda Mustafa
Apresentação
Esta história começa oito anos atrás. Mais especificamente no dia 20 de
setembro de 2015. Tais Calil estava em seu apartamento, no Paraíso, bairro
localizado na zona sul de São Paulo, quando recebeu uma ligação de seu pai, Antonio
Abrão. Toninho estava em sua casa, em São Miguel Paulista, zona leste da capital,
quando percebeu que o aniversário de sua única filha mulher havia chegado e ele
ainda não a tinha parabenizado. Instantaneamente, ligou para Tais e a desejou um
feliz aniversário. Sua filha ficou assustada e permaneceu em silêncio por alguns
segundos. Ela não sabia o que dizer.
— Mas, pai, não é meu aniversário. Meu aniversário é perto do seu.
— Ah, nossa! É verdade, eu me confundi. Pensei que era seu aniversário hoje.
Toninho nasceu em 2 de dezembro de 1937 e Tais veio ao mundo em 6 de
dezembro de 1972. Ele sempre brincou dizendo que ela tinha sido o seu presente.
Adoravam comemorar seus aniversários juntos. Tais só entendeu a razão dessa
ligação em junho de 2021.
Foto: Arquivo pessoal
Antonio carrega em seus braços os seus filhos Emerson e Tais
Antonio Abrão Mustafa Assem sempre viveu em São Miguel Paulista. Filho de
Khalil, um palestino refugiado, e Elvira, uma brasileira que nasceu em uma tribo
indígena de Mogi Mirim, ele viveu com muito orgulho de seu nome e origem.
Fotos: Arquivo pessoal
A esquerda: Antonio Abrão durante sua juventude A direita: Deisa, Toninho e Elvira em São Miguel
Paulista
Quando criança, Toninho sofreu um acidente que mudou sua vida para
sempre. Ele foi atropelado por um caminhão na Av. São Miguel (antiga estrada São
Paulo - Rio) e o motorista fugiu sem prestar socorro. Elvira estava sozinha e socorreu
seu filho, levando-o de ônibus para o Hospital Santa Casa. Ele ficou gravemente
ferido e passou quatro meses no hospital. O acidente resultou na perda da visão do
olho esquerdo de Antonio, o que o levou a usar um olho de vidro desde criança. Sua
perna direita também ficou gravemente ferida, resultando em várias cirurgias e uma
diferença de três centímetros no comprimento. Ele passou a usar sapatos feitos sob
medida com um salto no pé direito.
Mesmo depois de tanto tempo, sua dor não melhorava. As viagens de ônibus
para a Santa Casa se tornaram cada vez mais frequentes. Após meses sofrendo com
dores constantes, descobriu-se que, durante uma das operações, um médico havia
deixado uma tesoura dentro de seu abdômen, levando-o a passar por uma nova
cirurgia para removê-la.
As sequelas do atropelamento nunca desapareceram. Sua canela ficou com a
pele muito fina, o que resultou em ferimentos constantes. Aos 33 anos, um médico do
SUS sugeriu que ele fizesse uma cirurgia plástica para aliviar sua dor e tratar das
feridas frequentes. Como nada em sua vida foi fácil, dessa vez não seria diferente.
Ele faria um enxerto na perna direita e, para isso, teria que retirar pele da perna
esquerda. O médico responsável pela cirurgia disse que ele deveria ficar em repouso,
com a perna esquerda totalmente imóvel e sem se levantar. Na noite anterior à
cirurgia, um enfermeiro mandou Toninho levantar e tomar banho. Ele não entendeu o
porquê, questionando o enfermeiro.
— Mas o médico disse para eu não levantar de jeito nenhum, disse Toninho,
hesitante.
Após insistências do enfermeiro, ele decidiu tomar banho.
No dia seguinte, o médico percebeu que, por Toninho ter se levantado, não
seria mais possível realizar a retirada de pele da perna esquerda. O enxerto foi feito
com parte da pele da coxa direita. Após a cirurgia, ele desenvolveu calcificação no
joelho. Passou muitas noites sem dormir. A dor era insuportável. Para resolvê-la, se
submeteu a uma última cirurgia, que removeu o excesso de cálcio do joelho. A dor
melhorou, mas não desapareceu. Mesmo assim, ele decidiu nunca mais fazer
cirurgias na perna.
Aos 35 anos, ele já havia enfrentado inúmeras situações que o ensinaram a
conviver com a dor e a ter fé. Ele compreendeu a importância de ser grato e otimista,
mesmo nos momentos mais difíceis. As dificuldades da vida sempre estiveram
presentes. Católico e muito religioso, fez promessas e caminhou até Aparecida três
vezes, percorrendo 157 quilômetros — mesmo com todos os problemas desde a
infância. Aos 80 anos, consultou um geriatra e realizou uma radiografia para verificar
o estado de seu joelho. Ao ver o resultado, o médico não conseguia acreditar que
aquela era uma radiografia de alguém capaz de andar.
O Sr. Toninho realmente sempre desafiou o impossível, e nada, absolutamente
nada, o abalou.
I. Espelhos da Identidade
O trabalho sempre foi um pilar fundamental na vida de Antonio. Desde a
infância até os 83 anos, ele se dedicou incansavelmente para garantir um futuro
melhor para sua família. Iniciou sua jornada como mascate, percorrendo as ruas das
periferias de São Paulo, vendendo roupas de cama, mesa e banho junto com seu pai,
seja de bicicleta ou a pé. Em um dia que poderia ter sido como qualquer outro, em
1961, saiu para exercer essa atividade e, por ser muito comunicativo, simpático e
gentil, fez amizade com todos os seus clientes. Foi na casa de Angelina e Loli que ele
encontrou o amor de sua vida, Deisa Prado Abrão.
Fotos: Arquivo pessoal
A esquerda: Deisa e Antonio durante uma viagem ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1982 A direita: O
casal em uma cachoeira em São Luiz do Paraitinga
Juntos, eles construíram uma bela família, com quatro filhos: João Calil, Omar
Calil, Emerson Calil e Tais Calil, além de 11 netos: Agatha, Jade, Cauê, Isabela,
Natalia, Vitória, Maria Eduarda, Lorena, Yasmin, Sophia e Leo.
Fotos: Arquivo pessoal
A esquerda: Antonio, João Calil, Deisa, Tais, Emerson e Omar A direita: Os pais com os seus filhos
em 02/10/2005
A lista de trabalhos que ele desempenhou ao longo da vida é realmente
extensa. Além de vendedor em uma loja de construção, ele também empreendeu em
diversos negócios, como a venda de calçados e ferros. Aos 38 anos, abriu uma loja
de móveis na Vila Jacuí, que tinha mais de 200 metros quadrados. Além da loja de
móveis, ele também abriu uma revendedora de gás. Por fim, abriu uma imobiliária na
qual trabalhou até 2020. Como se todos esses trabalhos não fossem suficientes para
cumprir sua missão, ele ainda participou da maçonaria, do Rotary Club, foi
superintendente da associação comercial de São Miguel Paulista, foi dos fundadores
do Asilo São José, no Jardim Helena e cuidou das finanças do grupo escoteiro Carijós.
Fotos: Arquivo pessoal
A esquerda: Antonio Abrão no grupo escoteiro Carijós A direita: Antonio e Deisa em uma premiação
no Rotary
Todos que o conheciam tinham a mesma impressão sobre ele: honesto,
simpático, carinhoso e sempre disposto a ajudar e agradar as pessoas. Ele nunca
escondeu o seu lado comunicativo, não precisava de muito para ele ficar conversando
por horas com uma pessoa que ele tinha acabado de conhecer. Sempre gostou de
contar histórias e conversar sobre a vida.
Fotos: Celia Mustafa
Antonio e Deisa na casa deles em São Miguel Paulista, celebrando a véspera de Natal –24/12/2020
Mesmo quando não precisava trabalhar ele andava pelas ruas de São Miguel
oferecendo chá e café para todos os trabalhadores do bairro. Ele foi quase sempre
assim. Quase.
“Ele não gostava de viajar, para ficar na imobiliária. Não gostava de sair e deixar de
trabalhar, mesmo que ele tivesse funcionários que trabalhavam com ele. Mesmo
sábado ele trabalhava. Quando ele estava com o gás, se fosse alguém no domingo
para comprar gás ele abria, não tinha hora. Não ligava para descer cedo, eu ia
percebendo que ele já não queria ir, queria ficar descansando, fazia mais tempo de
horário de almoço. O funcionário que trabalhava com ele notou que ele estava meio
estranho. Ele esquecia que as pessoas não estavam pagando direito e os donos de
imóveis ficaram insatisfeitos e tiravam os seus imóveis. Parou de ver casas para
vender e para alugar. Ele mesmo quis parar de dirigir, dava desculpas para não dirigir,
nem por São Miguel.” - Deisa Prado Abrão
II. Por que perder a esperança, se há tanto querer?
14/12/2021: “É que eu tô preocupada com meu avô. Ele caiu hoje de novo e meu pai
disse que o Alzheimer tá evoluindo muito rápido. Parece que ele tá fazendo xixi nas
calças as vezes.”
O diagnóstico de Alzheimer foi confirmado em junho de 2021 após uma
tomografia. No entanto, todos na família já desconfiavam — a família Abrão Mustafa
Assem tem um histórico extenso da doença. O avô de Toninho teve Alzheimer, assim
como sua mãe, Elvira, e sua irmã, Yone. Os pequenos sinais de esquecimento que
ele apresentou ao longo desse período, juntamente com a indisposição e a confusão
com datas, já indicavam isso. Em 2020, vivemos uma pandemia global em que o
isolamento era obrigatório. O tempo que ele passou longe da família, com contato
apenas por videochamadas, fez com que esses pequenos sinais passassem
despercebidos.
Junho de 2021 - No primeiro estágio, os esquecimentos, as confusões com datas e
horários, e a pequena indisposição tornaram-se frequentes. Mas, mesmo com tudo
isso, ele ainda adorava conversar, sendo as histórias do seu passado os assuntos
mais frequentes. Ele sempre elogiava as pessoas, gostava de agradar e oferecia
ajuda a quem precisasse.
Fotos: Arquivo pessoal
Antonio e Deisa durante uma viagem para Maceió em julho de 2021
Abril de 2022 - Ele começou a esquecer o nome de pessoas próximas a ele. Era
necessário fazer um grande esforço e levar alguns segundos para lembrar dos nomes
de seus netos e amigos. No entanto, as atividades cotidianas eram realizadas
normalmente; Toninho apenas passou a acordar muitas vezes ainda durante a
madrugada.
No dia 9 de maio de 2022 - Antonio sofreu uma perfuração no duodeno devido ao
uso de anti-inflamatórios, o que gerou uma úlcera. Precisou passar por três cirurgias
e ficou muitos dias internado no quarto e na UTI. Começou a perder muito peso,
chegando a pesar 50 kg, apesar de ter 1,85 m de altura. Vômitos e refluxos eram
frequentes após as refeições.
30 de maio de 2022 - Ele passou a comer apenas alimentos pastosos e líquidos, mas
havia expectativa de que em um mês ele voltasse a se alimentar normalmente. Ainda
estava muito fraco, o que o impedia de andar.
Junho de 2022 - Os vômitos e refluxos não pararam, e foi necessário introduzir um
cateter em seu nariz para que ele conseguisse se alimentar. Ele continuou perdendo
peso e a alimentação por via oral não era mais viável.
Julho de 2022 - O Alzheimer progrediu rapidamente nesse período. Ele não
conseguia mais ter uma noite de sono completa, as doses dos remédios aumentaram
e ele passou a arrancar a sonda que era usada para se alimentar, causando mais
perfurações em seu estômago. No dia 15 de julho, foi realizada uma operação para
introduzir a GTT, uma sonda em seu estômago, e todas as suas refeições passaram
a ser feitas por meio desse tubo em seu intestino.
Fotos: Arquivo pessoal
Antonio e Deisa no apartamento deles em Guarulhos em agosto de 2022
Setembro de 2022 – As idas e vindas ao hospital eram constantes. Agora, sua
esposa Deisa já não conseguia mais cuidar dele sozinha, nem com a ajuda dos seus
filhos. Toninho não era capaz de tomar banho sozinho e precisava usar fraldas, pois
não conseguia ir ao banheiro. Além disso, as refeições continuavam sendo
administradas por sonda. Por essa razão, ele passou a contar com duas cuidadoras
diárias para assistir a ele, uma durante o dia e outra durante a noite.
“É difícil ver ele nessa situação que não tem volta.” - Emerson Calil
Dezembro de 2022 - Ele completou 85 anos e ainda adorava conversar com as
pessoas, mas suas histórias já não faziam tanto sentido. Entretanto, ele se esforçava
e continuava a falar, mesmo quando esquecia o que estava dizendo, mudando de
assunto e retomando a história. Apesar disso, gostava de caminhar, mesmo com a
ajuda de outras pessoas e um andador.
Foto a esquerda: Maria Eduarda Mustafa Foto a direita: Felipe Aguilar
Antonio e sua família em seu aniversário de 85 anos em três de dezembro de 2022
Fevereiro de 2023 - As internações e as idas à UTI tornavam-se cada vez mais
frequentes. Os episódios de pneumonia não diminuíam e ele estava cada dia mais
indisposto. Já não tinha o mesmo interesse em conversar como antes. Apesar de
todas as dores e dificuldades que enfrentava, ele nunca reclamava de nada.
“Hoje ele é muito apático, ele sempre foi uma pessoa de conversar bastante com todo
tipo de pessoa, e hoje você pode estar conversando ao lado dele que se você não
provocar não, chamar, ele não fala nada, não interage com mais ninguém.” - Emerson
Calil
Abril de 2023 - Nos dias em que não estava no hospital, ele preferia ficar em casa
dormindo e, às vezes, realizava atividades para estimular seu cérebro com as
cuidadoras. Raramente conseguia lembrar o nome dos netos e passou a confundir os
parentescos entre seus filhos, chegando ao ponto de acreditar, em certos dias, que
eles eram seus sobrinhos.
“Quando você consegue conversar coisas antigas com ele, ele responde. Mas por
exemplo, eu perguntei do tempo pra ele, se tava frio ou calor, ele falou “não sei”. A
fisio falou que ele não tem mais noção de frio, quente, doce, salgado, dias, horário”. -
Tais Calil
Maio de 2023 - As dores intensificaram e ele passou a sentir essas dores durante as
24 horas do dia. Devido a isso, não conseguia mais manter uma conversa. Ele ainda
estava ali, mas era visível que as suas dificuldades, que já eram grandes, haviam
aumentado. Mesmo diante dessas circunstâncias, ele não reclamava e insistia em
dizer que estava tudo bem.
“O Alzheimer consumiu toda a essência do meu avô.” - Maria Eduarda Mustafa
21 de maio de 2023 - Ele já havia perdido o controle de sua postura e começou a se
queixar e reclamar de dores constantes. Durante suas breves conversas, ele
mencionava que havia se encontrado com sua mãe, Elvira, e seu irmão, Abdo, ambos
falecidos há muitos anos.
24 de maio de 2023 - Apresentou uma hemorragia interna e perdia uma grande
quantidade de sangue a cada evacuação. Precisou ser internado.
25 de maio de 2023 - Foi transferido para a UTI, pois a hemorragia havia se
intensificado.
26 de maio de 2023 - Recebeu transfusões de sangue e foi diagnosticado com
anemia grave. Porém, ainda era necessário identificar a causa da hemorragia, sendo
indicada uma colonoscopia para investigar a origem da perda significativa de sangue.
27 de maio de 2023 - Às 9h20, ele sofreu uma parada cardíaca e nos deixou.
Antonio Abrão Mustafa Assem teve uma linda trajetória, sendo um homem generoso,
carinhoso e gentil com todos. Era impossível não o amar. Ele tocou profundamente o
coração de todos aqueles que tiveram a sorte de conhecê-lo.
“Não é mais que um até logo, não é mais que um breve adeus. Bem cedo junto ao
fogo. Tornaremos a nos ver. Com nossas mãos entrelaçadas ao redor do calor,
formemos esta noite, um círculo de amor.” - Canção da despedida. Uma canção
escoteira que é tradição na família Abrão Mustafa Assem.
III. O Enigma do Esquecimento
Investigando a fundo por meio de extensas pesquisas, análise de notícias e
documentos, torna-se evidente que o Brasil enfrenta uma realidade alarmante em
relação ao Alzheimer a longo prazo. Estima-se que o país tenha aproximadamente
1,2 milhão de indivíduos afetados por essa doença. Aprofundando ainda mais nossa
investigação, descobrimos que, a cada ano, mais de 100 mil pessoas são
diagnosticadas.
Os números relacionados ao Alzheimer no cenário global são ainda mais
impactantes. A organização Alzheimer's Disease International divulgou uma projeção,
indicando que até 2030 o mundo poderá enfrentar ao total 70 milhão de casos e a
situação se agrava ainda mais com as estimativas de 131,5 milhão de casos em 2050,
evidenciando um alerta crucial para as possíveis crises globais que podem surgir
devido a essa doença.
O Alzheimer, uma doença neurodegenerativa que afeta milhões de pessoas
em todo o mundo, tem sido objeto de estudo e pesquisa há mais de um século.
Mesmo com os avanços científicos, ainda estamos distantes de uma cura efetiva. O
médico geriatra José Manoel Ferreira compartilha seu conhecimento sobre a doença
e aborda as opções de tratamento disponíveis atualmente.
No início da conversa, José Manoel destacou que a queixa clínica mais
prevalente relacionada a doenças cognitivas é a perda de memória. Ele ressaltou que
esse sintoma deve chamar a atenção tanto da família quanto do médico, pois pode
indicar um problema mais sério. No passado, o diagnóstico era feito apenas quando
o paciente apresentava um quadro avançado de esquecimento, devido à falta de
recursos. No entanto, hoje em dia, existem várias opções disponíveis,
independentemente das condições financeiras do paciente, que permitem avaliar
mesmo queixas de memória leves.
José dividiu a linha de esquecimento em três pontos. Na extremidade
esquerda, encontramos o "esquecimento benigno do idoso", que é considerado
normal para o processo de envelhecimento. Nesse caso, pequenos lapsos de
memória não interferem na vida cotidiana do indivíduo. Por exemplo, esquecer onde
guardou um objeto ou entrar em um cômodo e esquecer o motivo pelo qual entrou
são situações comuns. No entanto, o médico enfatizou que, quando o esquecimento
começa a atrapalhar a rotina e a vida das pessoas ao redor, é necessário investigar
mais a fundo.
Na outra ponta da linha, temos a demência, que é um esquecimento patológico
e fora do esperado para o envelhecimento normal. Esse tipo de esquecimento causa
prejuízo nas atividades diárias e afeta significativamente a vida do indivíduo. No meio
do caminho, existe o chamado "transtorno cognitivo leve" ou "comprometimento
cognitivo leve", que não é tão simples de ser considerado um processo normal de
envelhecimento, mas também não é tão grave a ponto de ser classificado como
demência. Contudo, estudos indicam que aproximadamente 70% dos casos de
comprometimento cognitivo leve evoluem para demência, tornando esse estágio uma
fase de atenção especial.
José Manoel explica que, diferentemente de condições como hipertensão,
diabetes e insuficiência cardíaca, que têm sido tratadas há séculos, o primeiro caso
de Alzheimer foi descrito em 1906, o que significa que a doença tem apenas cerca de
110 a 115 anos de história. Portanto, o conhecimento científico sobre o Alzheimer
ainda é limitado, e a compreensão de como tratar efetivamente a doença é um
desafio.
O tratamento do Alzheimer pode ser dividido em duas abordagens principais:
não medicamentosa e medicamentosa. O tratamento não medicamentoso envolve a
promoção de um estilo de vida saudável, como a prática regular de atividade física e
a criação de um ambiente tranquilo para o paciente. Além disso, a melhoria das
dificuldades sensoriais, como audição e visão, e o apoio psicológico através de
terapia são aspectos importantes desse tratamento.
Quanto aos medicamentos, José Manoel menciona que existem dois tipos
principais. O primeiro tipo é composto por medicamentos que visam aumentar a
função cerebral, com foco na modulação do sistema imunológico e na estimulação de
receptores de glutamato. O segundo tipo de medicamento é destinado a tratar
alterações comportamentais e de temperamento associadas à doença.
Quando questionado sobre a perspectiva de uma cura para o Alzheimer, o
médico expressa uma visão realista. Ele compara a doença ao câncer, explicando
que, assim como o câncer, a prevenção e a detecção precoce são fundamentais para
obter melhores resultados. No entanto, com o Alzheimer, o movimento é inverso: as
células nervosas começam a morrer sem uma compreensão clara das falhas
bioquímicas ou estruturais que causam esse processo de apoptose.
José enfatiza que ainda estamos longe de descobrir os mecanismos
subjacentes à morte das células nervosas e, portanto, longe de desenvolver uma cura
efetiva. Embora haja uma grande quantidade de medicamentos em fase de pesquisa,
o médico observa que os resultados até o momento não são significativamente
diferentes dos tratamentos existentes. Novos medicamentos podem estar chegando,
mas a expectativa é que eles sejam, em sua maioria, variações dos tratamentos já
disponíveis.
Conversando um pouco mais com José e abordando sobre o tema familiar com
a vivência dessa doença, ele nos revelou a importância de compreender a dimensão
desse desafio. "Esse é o grande problema das demências, o grande problema do
Alzheimer. É a sobrecarga que a doença impõe sobre a família", enfatiza o médico.
A demência, em si, retira do indivíduo sua autonomia e independência. O
paciente, aos poucos, torna-se cada vez mais dependente de um cuidador, sendo
geralmente um membro da família. Conforme a dependência aumenta, a carga sobre
o cuidador se intensifica. A situação se agrava quando o paciente apresenta
comportamentos desafiadores, distúrbios do sono e necessita de assistência
constante, o que requer do cuidador um esforço contínuo e ininterrupto.
O cuidado de um paciente com demência é exaustivo e desgastante. O
cuidador precisa lidar com a rotina de cuidados 24 horas por dia, 7 dias por semana,
durante todo o mês. É uma tarefa que demanda dedicação integral, sem intervalos
para descanso. O cuidador, muitas vezes, precisa atender às necessidades do
paciente nos momentos em que ele próprio está exausto, criando uma sobrecarga
adicional de estresse e trabalho.
O impacto na vida do cuidador é algo crucial a ser considerado quando se
avalia as medidas de tratamento e cuidados para pacientes com demência, incluindo
o Alzheimer. José Manoel ressalta que uma medida terapêutica eficaz deve melhorar
não apenas a vida do paciente, mas também aliviar a carga do cuidador. "Parece que
o paciente que antes, com tratamento, não conseguia comer sozinho, se agora ele
consegue, isso já dá um alívio para quem cuida", exemplifica. Mesmo pequenas
melhorias na autonomia do paciente podem ter um impacto positivo significativo na
vida do cuidador.
É importante ressaltar que estamos vivendo em uma era de envelhecimento
populacional, o que significa que muitos idosos estão assumindo o papel de
cuidadores de outros idosos. Em algumas situações, encontramos casos em que um
idoso com demência é cuidado por seu cônjuge, parceiro ou até mesmo por um filho
mais velho. Essa dinâmica acentua ainda mais os desafios e as demandas
enfrentadas pelos cuidadores familiares.
O cuidado familiar para pacientes com demência é um tema que requer
atenção e suporte adequados. Além de buscar avanços no tratamento e cuidados
médicos, é fundamental garantir que os cuidadores tenham acesso a recursos,
orientação e apoio emocional. A sociedade precisa reconhecer e valorizar o papel
desempenhado pelos cuidadores familiares, oferecendo-lhes as ferramentas
necessárias para lidar com os desafios impostos pela demência.
IV. Histórias se cruzam
Essa parte da história tem dois começos. Um deles no dia 4 de março 1942,
na cidade de Mirassol, situada a 453 quilômetros da Capital Paulista; quando uma
mulher chamada Clotilde Ferreira Sant’Ana deu à luz a um menino. Seu nome era
Manoel Antônio: o primogênito de uma família que seria composta por quatro filhos
(duas meninas e dois homens). O outro começo se deu no dia 21 de fevereiro de
1941, a 391 quilômetros de distância, em Ribeirão Preto. No formato de uma pequena
menina, Otília deu continuidade à família — que depois de formada seria composta
por 5 filhos. Durante a apuração, foi constatado que essa história não é amarrada por
datas exatas. Ela é amarrada por lugares. Lugares que juntaram pessoas e formaram
uma família.
Ascendente de pais muito simples, Manoel saiu de Mirassol com 12 anos. Em
busca de estudo e trabalho, deixou seu núcleo familiar para morar em Santos, com a
irmã de sua mãe. Por características da época que vivia, e também pela falta de
escolha, sempre foi arrimo de família. Ele também era uma pessoa muito culta.
Sempre lia livros e jornais, atrás de conhecimento e informações. Se o Manoel dos
anos 60 pudesse ver o futuro, se depararia com sua versão paterna, que repetia como
uma reza: “estuda, minha filha. O seu conhecimento e sua independência ninguém
nunca vai tirar de você”.
Enquanto Manoel tocava sua vida, em Ribeirão Preto o destino operou uma de
suas improváveis coincidências: em 1964, Otília conheceu uma prima de Manoel.
Como todas as boas histórias de amor, essa também é grande e cheia de detalhes.
Em 2023, ela pode ser resumida em poucas palavras: “ela me falou ‘ah, vamo lá,
vamo lá’ e eu fui. Então me apresentou, a gente começou a namorar e tamo aqui até
hoje”, disse Otília — ou como gosta de ser chamada, Lia. Foi com essa prima de
Manoel que, ainda menina, conheceu a baixada santista. E também conheceu o amor.
Em dois anos juntos, noivaram e se casaram.
Manoel era operário da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa). Trabalhou
em condições quase insalubres na companhia durante sete anos, o que comprometeu
sua audição (ele não ficou completamente surdo, mas nunca mais escutou bem). Ele
saía 5 horas da manhã de casa. Muitas vezes ligava para Lia avisando que iria
“dobrar”, ou seja, trabalhar a noite toda e depois o dia inteiro, emendando um
expediente no outro. “Ele ganhava o justo”, disse ela. Por conta dos turnos noturnos
que contabilizavam horas extras, a renda era suficiente. Durante esse período, o casal
teve seu primeiro filho: Renato César.
Foto: Arquivo público da biblioteca de Cubatão
Vista parcial da Laminação da Cosipa por volta do fim do ano de 1962
Apesar da vida dura, Manoel se se tornou um homem alegre. Preenchia com
sua personalidade todo o espaço dos cômodos que ocupava. Sua risada alta e fala
forte eram características muito marcantes de sua personalidade. Todas as fontes o
descreveram assim. Pode ser que a surdez tenha contribuído para isso, mas não há
jeito de provar. Talvez fosse apenas parte de quem ele era.
Depois de um desentendimento com um engenheiro da Cosipa, ele pediu as
contas. É aí que, novamente, uma de suas primas entra na história. Manoel foi
apresentado a um homem chamado Hélio, que junto com ele montou uma fábrica de
brindes promocionais na rua Comendador Alfaia Rodrigues, em Santos.
A partir daí, começaram a operar a Relses. Era sua primeira empresa, e o início
de muito trabalho duro. Na fábrica, eram apenas duas máquinas que faziam
chaveiros. Ele começou como sócio. Trabalhava nas máquinas, fazia as vendas e
comprava os materiais. Vítima de um ataque cardíaco, seu sócio Hélio faleceu poucos
anos depois da abertura da empresa. Manoel operou sozinho a Relses em Santos,
mas não por muito tempo. Com o passar dos meses, ele começou a perceber que,
para prestar serviços, encontrar clientes e comprar materiais, sempre precisava subir
a serra. Resolveu se aventurar no novo mercado, atrás de mais oportunidades.
Do seu amor com Otília surgiram mais dois frutos, Carmen Luiza e Anderson
Manoel. Da sua luta por uma vida melhor, seu quarto filho abriu uma nova empresa
em São Paulo, chamada UniBrindes. Morando em Santos e trabalhando em São
Paulo, Manoel quase não conseguia acompanhar a rotina intermunicipal. “Ele tinha
que trabalhar muito, às vezes nem voltava pra casa”, relembra sua filha Carmen. Para
resolver o problema, tomou a decisão de alugar um apartamento perto da empresa.
Uma kitnet, estilo sala e cozinha. "Era inviável ele ficar voltando, subindo e descendo
todos os dias e tudo isso pra dar um padrão de vida melhor pra gente”, continuou ela.
Com um mundo novo se abrindo, no ritmo do trabalho duro e longe da família,
ele não se alimentava direito, não dormia e começou a adoecer. Sua família decidiu
se mudar para o ABC Paulista. De Santos para São Bernardo do Campo. Foram anos
muito prósperos na vida da família Sant’Ana, apesar da difícil adaptação dos filhos na
nova cidade. Carmen lembra: “era liberdade zero, que eu não conseguia fazer nada,
aqui era ônibus, condução e eu não tinha esse hábito de andar de ônibus lá em santos
sempre foi bicicleta e a pé, para minha mãe e meu pai a vida melhorou bastante, mas
para mim como adolescente foi uma catástrofe”.
Foto: Arquivo pessoal
Manoel em 25 de junho de 1997, aniversário de 27 anos de Carmen Luiza
A música de Caetano Veloso “Oração ao tempo” faz uma reflexão sobre algo
que está presente na vida de todos os seres deste planeta. Seja humano, animal ou
planta, todos estão submetidos aos caprichos do tempo. A família Sant’Ana, já
consolidada em seu lar, vivendo uma vida que ia além de estar confortável
financeiramente, trabalhava muito. Como Caetano se refere ao tempo, o “tambor de
todos os ritmos” continuou soando. Dois filhos de Manoel seguiram para o ensino
superior. Carmen fez administração e Anderson direito. Renato não continuou os
estudos. Os três seguiram os passos do pai e foram trabalhar na UniBrindes.
Tempo, tempo, tempo, tempo. Em junho de 2001, o primeiro neto nasceu.
Angelo, filho de Carmen Luiza, foi seguido pelos gêmeos João Pedro e Manoela,
filhos de Renato que nasceram em setembro do mesmo ano. Em abril de 2004,
nasceu Luiza, que por 10 anos foi a caçula da família. Para alegrar o ano em que o
Brasil perdeu de 7x1 para a Alemanha, em 2014 Manoel ganhou sua última neta,
Valentina – filha do também caçula, Anderson.
Foto: Arquivo pessoal
Manoel e suas netas Manoela, Luiza e Valentina em maio de 2019
Manoel vivia pela sua família e pelo seu trabalho. Sempre foi um pai
maravilhoso. “Super carinhoso, sempre se desdobrou para dar tudo aquilo que a
gente precisava, sempre nos deu além até do que ele poderia estar dando”, como
disse Carmen. Quando virou avô também virou modelo, companheiro, admirador e
herói de seus Netos.
Foto: Arquivo pessoal
Família Sant’Ana em fevereiro de 2021
“Quando eu era pequena ele sempre dizia ‘você é a neta que eu mais amo, só
não conta pra Manoela’, e eu acreditava, claro. Até um dia que eu quis me gabar e
contei pra ela, foi aí que eu descobri que ele falava isso pra nós duas”, relembra sua
neta Luiza. Ele sempre fazia de tudo para ver os netos sorrirem. No fim das contas o
que ele gostava mesmo de fazer era mimar todos eles. Costumava usar uma desculpa
para isso. Depois de agradar aos netos sempre dizia “os pais educam, e os avós
estragam”, e dava risada.
Foto: Arquivo pessoal
Manoel, Angelo e Lia em junho de 2009
"Meu avô foi um homem de grande responsabilidade e um cara bem forte”,
disse Angelo, seu neto mais velho. Junto com Lia, Manoel foi a semente de uma
família. Sem saber o que o futuro reservava, eles permitiram que todos os seus filhos
e netos tivessem um poder almejado por milhares de pessoas, todos eles puderam
decidir seus destinos.
V. Um lapso do futuro
É dia 29 de abril de 2023, na cidade de São Caetano do Sul, aniversário do
filho mais novo de Manoel. Ele está sentado na frente da televisão da sala, que
transmite um jogo da Série A do “Brasileirão” entre São Paulo e Coritiba. Ele assiste
ao jogo enquanto responde perguntas da sua neta mais nova Luiza, sem desviar os
olhos do aparelho de transmissão a cabo. Com difícil raciocínio e poucas sílabas
consegue lembrar de algumas coisas do seu passado. Mas à medida que ela faz as
perguntas, ele parece cada vez mais desinteressado, cada vez mais distante.
— Vô, como você foi parar em São Paulo?
— Parar em São Paulo?
— É — ela diz, com medo de descobrir mais uma memória apagada pelo
subconsciente de seu avô
— Eu fui para Santos, não fui para São Paulo – ele responde, com um tom de
voz um pouco irritado
— Foi para Santos, não é? E lá você trabalhava onde?
— Trabalhei na Cosipa. Uma siderúrgica aqui em Santos.
— E aí, depois… o que você fazia?
— Aí depois eu me aposentei.
— Não teve a UniBrindes, vô?
— Não, fui eu não.
— Não teve?
— Não.
Manoel foi diagnosticado com Demência Frontotemporal (DFT) em 2017. Em
geral, a demência frontotemporal afeta personalidade, comportamento e, muitas
vezes, mais a linguagem e menos a memória que a doença de Alzheimer.
A suspeita surgiu a partir de uma série de comportamentos muito novos que
ele vinha demonstrando na época. De acordo com o médico geriatra José Manoel
Ferreira, “um modo de identificar a doença cedo é sempre estar atento a sinais como
a perda de memória e alteração no comportamento do idoso”
Foto: Arquivo pessoal
"Primeira vez que ei vi meu avô depois que eu soube” - setembro de 2017
Foi isso que Carmen fez. “Ele começou com umas manias, umas coisas meio
estranhas com a minha mãe, com ciúmes achando que ela tava dando bola para
várias pessoas, saindo com várias pessoas, até uma hora que vieram me falar e eu
vi que não era uma coisa normal”, depois desses episódios repetitivos e algo
semelhante a momentos de paranoia, Manoel foi levado ao médico. Foram feitos
testes cognitivos e neuropsicológicos, usados pelo médico para avaliar a função
cognitiva, como habilidades de pensamento, memória, orientação, raciocínio,
julgamento, linguagem e atenção. “O médico fez um teste, um teste rápido ali com
ele, com algumas perguntas, algumas escritas, alguns desenhos e ali ele já viu um
foco que poderia ser uma demência”, relembra sua filha.
Depois de se aposentar ele levava uma vida ativa. Todos os dias acordava
cedo, lia seu jornal, tomava o mesmo café da manhã preparado por sua esposa —
dois ovos fritos com gema mole e um café preto — e partia para pedalar. Sua rota era
puxada. Com o mapa da cidade na palma de sua mão, percorria 8,3 quilômetros de
sua casa em Santos até a Ilha Porchat, em São Vicente. Ele fazia o trajeto de ida e
volta duas vezes.
Foto: Google Maps
Simulação do trajeto de Manoel
No caso de Manoel, a doença demorou bastante para evoluir. O diagnóstico
foi bem precoce. Muito por conta desse estilo de vida, que foi somado às formas de
tratamento mais modernas disponíveis, tudo aconteceu bem devagar, primeiro vieram
as confusões mentais, depois alguns lapsos de memória, mas os episódios
começaram a ficar mais graves. Apresentava comportamentos cada vez mais
estranhos. Acessos de raiva, desconfiança, toda hora acusava sua esposa de roubo.
Se via perdido em meio às ruas que transitava desde quando seus filhos eram
adolescentes. Mesmo com o uso de diversos remédios, o tratamento parecia não
estar adiantando.
Esse tipo de doença causa uma sobrecarga emocional dos familiares,
especialmente dos cuidadores do idoso. São as pessoas que convivem com ele,
ajudam nas tarefas diárias, estimulam a memória, fazem companhia... de tudo um
pouco. O doutor José Manoel apontou um modelo comum de cuidados adotado por
diversas famílias no Brasil: “Nós vivemos uma situação hoje em dia que o
envelhecimento populacional é muito grande, a gente tem hoje em dia idosos
cuidando de idosos”. No caso do nosso personagem, é por aí que a banda toca. O
grande amor de sua vida tornou-se sua principal cuidadora. Manoel e Otília passaram
juntos por muitos desafios na vida. Agora, atravessam todos os estágios da doença.
Ele ainda tem um certo grau de autonomia. Normalmente faz tudo sozinho, mas
sempre supervisionado.
Foto: Arquivo pessoal
Manoel e Otília no dia 24 de dezembro de 2021
Carmen, a única filha de Manoel, é como um leão quando se trata de cuidar da
sua família. Ela corre pra cima e pra baixo atrás de novos remédios, médicos e
soluções que possam tornar tudo isso um pouco menos difícil. Ela ouviu falar de um
outro tipo de tratamento que era mais natural e poderia ajudar (e muito) no retardo da
doença. “Várias pessoas já tinham me falado sobre esse óleo alguns anos atrás, mas
era inviável financeiramente, era difícil também a compra, alguns anos atrás era só
via importação”, ela se refere ao óleo de CBD, um composto extraído da canabis que
ajuda no tratamento de muitas doenças.
Junto com a regulação dos outros remédios alopáticos, o óleo ajudou a
amenizar os sintomas do sr. Manoel. Levou embora os episódios de agressividade,
melhorou o apetite dele e “controlou” a teimosia de um homem que toda vida foi
independente, mas agora precisa ser cuidado na maior parte do tempo. Isso
definitivamente não foi a cura, mas elevou a qualidade de vida dele e de sua esposa.
Hoje, Manoel e Lia moram em Santos. Eles não têm uma vida fácil. Conviver
com a doença todos os dias é desgastante, mas eles vivem uma boa vida. Eles
viveram uma boa vida.
Fotos: Arquivo pessoal
Manoel e sua família nos anos de 2021, 2022 e 2023; sempre sorrindo
Quando o Manoel ficou sabendo que sua neta escreveria um trabalho da
faculdade sobre a vida dele, afirmou: “Filha, o vovô viveu uma vida muito triste. Mas
agora tá maravilhosa!”. No dia em que fez essa afirmação, Manoel estava sorrindo
como sempre. Ele nunca parou de brincar. Nunca parou de sorrir.
VI. Há expectativa de solução?
Apesar da dificuldade em lidar com este tipo de demência, a medicina moderna
tem buscado outras formas — não tão convencionais ou tradicionais — de tratá-la. A
partir da década de 90, se iniciaram as pesquisas e os estudos sobre os efeitos dos
canabinóides.
Nivaldo Vanni, dentista e professor, é referência nos estudos sobre o uso
medicinal de cannabis em todo o continente americano. Segundo Vanni, a história da
criminalização da maconha remonta a 1937, quando o governo dos Estados Unidos
implementou uma taxação conhecida como "marijuana tax", resultando em problemas
de comercialização desse produto no país. Esse evento teve repercussões
significativas em todo o ocidente, levando à prática de criminalização da mesma.
O psiquiatra Eduardo Aliende Perin trabalha diretamente com os pacientes de
Alzheimer que buscaram a terapia canabinoides como alternativa. Perin acredita
firmemente que a cannabis pode ser uma grande aliada no tratamento da doença de
Alzheimer. Ele ressalta que os pacientes com Alzheimer gradualmente se tornam
mais isolados, interagindo menos com o mundo ao seu redor — como pudemos
perceber ao decorrer do livro. Essa afirmação enfatiza a importância de considerar
seriamente o uso terapêutico da cannabis como uma opção viável para melhorar a
qualidade de vida dos pacientes com Alzheimer.
A terapia canabinoide é um tratamento que atinge um número de sintomas de
uma forma mais global e que a gente não costuma ver com outras abordagens. Como
vimos no caso do Sr. Manoel, ela melhora a irritabilidade, o sono, a ansiedade, o
apetite, a sociabilidade, eventualmente a atenção e a memória. Há uma melhora de
muitas variáveis ao mesmo tempo que em outros tratamentos não foi confirmada a
eficácia.
“A gente colocaria, por exemplo, um antipsicótico para ajudar na irritabilidade,
um remédio pra dormir, um remédio pra ansiedade… você teria medicações para
sintomas específicos. Então a cannabis abrange um número de sintomas maior. Não
se recomenda, também, a pessoa tratar a demência somente com canabinoides.
Acho que a gente ainda não tem literatura o suficiente para dizer que só a cannabis
pode tratar a demência. Ele teria que usar as medicações convencionais em
associação com a cannabis”, explicou Eduardo.
Ainda há a preocupação com contraindicações em relação às demais doenças
dos pacientes. Afinal, idosos costumam possuir comorbidades que é importante se
atentar. Pacientes com arritmia cardíaca não podem sonhar com a medicação.
Entretanto, aqueles que necessitam fazer uso de remédios para hipertensão, pressão,
diabetes e das drogas anticoagulantes podem fazer uso do CBD com ajustes
eventuais de dosagem.
Mesmo com as atenções essenciais, a cannabis ainda se mostra importante
no tratamento do Alzheimer: “Nenhum medicamento se mostrou tão eficaz na
abrangência geral de sintomas quanto os canabinoides. A gente tem medicamentos
que atrasam a perda cognitiva, medicamentos específicos que tratam cada um
desses sintomas, mas a cannabis abrange mais coisas. Nesse sentido, a gente vê
melhoras interessantes como um aliado”, afirmou.
Para entender um pouco mais sobre o funcionamento direto deste tipo de
medicação no corpo, Eduardo e Nivaldo explicam a base do sistema endocanabinoide
e o quão efetivo ele pode se mostrar.
No organismo humano, existe um sistema endocanabinoide que desempenha
um papel crucial. Esse sistema é onde os canabinoides da planta agem, interagindo
com os receptores canabinoides presentes em todo o cérebro. Além disso, o
organismo produz suas próprias substâncias semelhantes aos canabinoides,
chamadas de endocanabinoides, como a anandamida e 2-AG. Essas substâncias têm
ação semelhante ao THC, componente ativo da cannabis. O sistema regula diversos
sistemas do organismo, como o cardiovascular, cardiorrespiratório e neurológico,
exercendo uma influência global sobre o corpo. Essa regulação abrangente destaca
a importância e a relevância desse sistema no funcionamento saudável do organismo,
abrindo portas para investigações mais aprofundadas sobre o potencial terapêutico
dos canabinoides e seu impacto em diversos sistemas fisiológicos.
“O sistema endocanabinoides produz um equilíbrio nestes três grandes
sistemas (sistema nervoso, sistema imune e sistema endócrino). Então, por isso que
quando você faz o uso de uma substância, faz uma terapia canabinoides, na verdade
você está fazendo com que o teu corpo funcione de uma forma melhor para que você
consiga equilibrar melhor os efeitos do desgaste do dia a dia, dos estímulos, estresse,
dos nervosos, de noite mal dormida, de agressores de bactéria, vários tipos de
agressores que a gente tem no dia a dia”, complementou Nivaldo.
Mesmo com o uso diário, os pacientes com demência, geralmente, não
costumam perceber as mudanças. Durante o desenvolver das histórias de nossos
personagens, percebemos um padrão: quem mais nota as diferenças são aqueles
que estão próximos a eles — familiares e cuidadores. Eles percebem que a pessoa
está mais sociável, mais fácil de lidar, não está mais tão teimosa. A cannabis ajuda
na teimosia, nessa persistência em um comportamento, na sociabilidade e na
irritabilidade.
Apesar dos resultados positivos alcançados com o uso terapêutico da
cannabis, ainda persiste a hesitação por parte de algumas famílias em adotar essa
forma de tratamento. Mesmo após a descriminalização do uso medicinal da maconha
no Brasil, a procura por medicamentos à base de canabinoides tem aumentado. No
entanto, o psiquiatra Eduardo Perin destaca a existência de preconceito em relação
ao uso da cannabis como terapia. Muitas famílias ainda se recusam a considerar essa
opção, demonstrando resistência à ideia. Por outro lado, Perin também observa um
grupo de pessoas que procuram especificamente por tratamentos com cannabis,
buscando os especialistas nessa área, como é o caso da família Sant’Ana.
Eduardo Perin acredita que há grandes expectativas nos avanços dos estudos
de canabinoides. As pesquisas aprofundadas são essenciais para que se torne
possível entender o tamanho do efeito da cannabis em pacientes de Alzheimer e
diferentes tipos de demência — o que ela realmente pode fazer por eles.
Carta I
Maria Eduarda Mustafa
Com o surgimento dos sintomas do Alzheimer, também vêm as primeiras
vezes. A primeira vez em que meu avô perdeu o interesse por algo que amava, a
primeira vez em que ele se esqueceu de um de nós, e o mais difícil é quando
percebemos que ele perdeu sua essência. Seu jeito bondoso, gentil e carinhoso
sempre esteve presente, mas sua disposição e felicidade foram tiradas dele.
Lidar com o Alzheimer é difícil, principalmente devido ao sentimento de
impotência que nunca desaparece. Não se trata apenas de ele não saber mais quem
eu sou, mas também de ele ter esquecido tudo o que vivemos juntos.
No entanto, com o tempo, percebi que o fato de meu avô não se lembrar mais
do meu nome não se compara à dor que senti ao vê-lo parar de comer, de andar e,
principalmente, de sorrir.
Acredito que a família se torna eternamente responsável por carregar suas
lembranças e memórias. O Alzheimer tem o poder de mudar completamente a mente
de uma pessoa, e por fora ela se torna irreconhecível, mas prefiro acreditar que o
coração permanece intacto, repleto de lembranças dos dias bons com as pessoas
que ele amou.
E para o meu amado vovô Toninho: Foi com você que eu aprendi a encontrar
alegria nos momentos mais difíceis. Aprendi a ser grata, a ter fé e otimismo. Que sorte
a de todos que tiveram a oportunidade de te conhecer. Desde que você se foi, não
teve um dia sequer que eu não senti sua falta, te amarei para sempre.
Carta II
Luiza Vezzá
No dia em que meu avô por parte de pai morreu, eu encontrei o meu avô
Manoel no velório. Ele me disse: “filha, eu não posso mais sentir ciúmes, eu sei que
eu sou o avô que você mais ama porque agora só tem eu”, depois deu aquela risada
que só ele tem. Acho que esse é um dos momentos mais marcantes que vivi com ele,
uma das poucas memórias que eu tenho do pior dia da minha vida. Uma memória
boa.
Depois que ele ficou doente muita coisa mudou. O sentimento de impotência
tomou conta de todos nós. Eu vi a minha avó e a minha mãe lutarem dia após dia
pelos melhores tratamentos possíveis, vi elas sofrendo pela perda de uma pessoa
que ainda está entre nós. Eu senti pela minha prima mais nova, que teve muito menos
tempo para conhecer a pessoa maravilhosa que ele foi antes de tudo isso.
Em tudo que eu faço carrego um pouco do meu avô, tudo que ele construiu
para o futuro da família me permite estar aqui. Apesar de tudo, posso contar nos
dedos as vezes que eu o vi sem um sorriso no rosto. Suas memórias ainda vivem
dentro das vidas de cada um que ele tocou.
Para o meu avô, que todas as vezes que me ouviu dizer “te amo vô”, me
respondeu com “me too”. Eu queria muito que você pudesse conhecer a pessoa que
eu me tornei. Eu te encontro em todos os lugares, todas as vezes que eu não tenho
vontade de estudar, todas as esquinas da cidade de Santos, todos os cantinhos do
meu coração.
P.S.:
A todos que se identificaram e se emocionaram no processo da leitura. Não imagino
que tenha sido um livro fácil de ler. Mas esse nunca foi o intuito.
Perdas nunca são fáceis — principalmente quando elas acontecem ainda em vida.
Levo comigo que uma pessoa só não está mais entre nós quando não perduram mais
nas memórias daqueles que a amavam. Eternizadas em um livro-reportagem, as
memórias de Antonio Abrão Mustafa Assem e Manoel Sant’Ana (ainda em vida)
jamais serão apagadas.

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MEMÓRIAS APAGADAS: Uma história sendo esquecida diante dos seus olhos

  • 1. MEMÓRIAS APAGADAS: Uma história sendo esquecida diante dos seus olhos Giulia Vanni, Heloisa Vasilian, Larissa Reis, Luiza Vezzá e Maria Eduarda Mustafa
  • 2. Apresentação Esta história começa oito anos atrás. Mais especificamente no dia 20 de setembro de 2015. Tais Calil estava em seu apartamento, no Paraíso, bairro localizado na zona sul de São Paulo, quando recebeu uma ligação de seu pai, Antonio Abrão. Toninho estava em sua casa, em São Miguel Paulista, zona leste da capital, quando percebeu que o aniversário de sua única filha mulher havia chegado e ele ainda não a tinha parabenizado. Instantaneamente, ligou para Tais e a desejou um feliz aniversário. Sua filha ficou assustada e permaneceu em silêncio por alguns segundos. Ela não sabia o que dizer. — Mas, pai, não é meu aniversário. Meu aniversário é perto do seu. — Ah, nossa! É verdade, eu me confundi. Pensei que era seu aniversário hoje. Toninho nasceu em 2 de dezembro de 1937 e Tais veio ao mundo em 6 de dezembro de 1972. Ele sempre brincou dizendo que ela tinha sido o seu presente. Adoravam comemorar seus aniversários juntos. Tais só entendeu a razão dessa ligação em junho de 2021. Foto: Arquivo pessoal Antonio carrega em seus braços os seus filhos Emerson e Tais
  • 3. Antonio Abrão Mustafa Assem sempre viveu em São Miguel Paulista. Filho de Khalil, um palestino refugiado, e Elvira, uma brasileira que nasceu em uma tribo indígena de Mogi Mirim, ele viveu com muito orgulho de seu nome e origem. Fotos: Arquivo pessoal A esquerda: Antonio Abrão durante sua juventude A direita: Deisa, Toninho e Elvira em São Miguel Paulista Quando criança, Toninho sofreu um acidente que mudou sua vida para sempre. Ele foi atropelado por um caminhão na Av. São Miguel (antiga estrada São Paulo - Rio) e o motorista fugiu sem prestar socorro. Elvira estava sozinha e socorreu seu filho, levando-o de ônibus para o Hospital Santa Casa. Ele ficou gravemente ferido e passou quatro meses no hospital. O acidente resultou na perda da visão do olho esquerdo de Antonio, o que o levou a usar um olho de vidro desde criança. Sua perna direita também ficou gravemente ferida, resultando em várias cirurgias e uma diferença de três centímetros no comprimento. Ele passou a usar sapatos feitos sob medida com um salto no pé direito. Mesmo depois de tanto tempo, sua dor não melhorava. As viagens de ônibus para a Santa Casa se tornaram cada vez mais frequentes. Após meses sofrendo com dores constantes, descobriu-se que, durante uma das operações, um médico havia
  • 4. deixado uma tesoura dentro de seu abdômen, levando-o a passar por uma nova cirurgia para removê-la. As sequelas do atropelamento nunca desapareceram. Sua canela ficou com a pele muito fina, o que resultou em ferimentos constantes. Aos 33 anos, um médico do SUS sugeriu que ele fizesse uma cirurgia plástica para aliviar sua dor e tratar das feridas frequentes. Como nada em sua vida foi fácil, dessa vez não seria diferente. Ele faria um enxerto na perna direita e, para isso, teria que retirar pele da perna esquerda. O médico responsável pela cirurgia disse que ele deveria ficar em repouso, com a perna esquerda totalmente imóvel e sem se levantar. Na noite anterior à cirurgia, um enfermeiro mandou Toninho levantar e tomar banho. Ele não entendeu o porquê, questionando o enfermeiro. — Mas o médico disse para eu não levantar de jeito nenhum, disse Toninho, hesitante. Após insistências do enfermeiro, ele decidiu tomar banho. No dia seguinte, o médico percebeu que, por Toninho ter se levantado, não seria mais possível realizar a retirada de pele da perna esquerda. O enxerto foi feito com parte da pele da coxa direita. Após a cirurgia, ele desenvolveu calcificação no joelho. Passou muitas noites sem dormir. A dor era insuportável. Para resolvê-la, se submeteu a uma última cirurgia, que removeu o excesso de cálcio do joelho. A dor melhorou, mas não desapareceu. Mesmo assim, ele decidiu nunca mais fazer cirurgias na perna. Aos 35 anos, ele já havia enfrentado inúmeras situações que o ensinaram a conviver com a dor e a ter fé. Ele compreendeu a importância de ser grato e otimista, mesmo nos momentos mais difíceis. As dificuldades da vida sempre estiveram presentes. Católico e muito religioso, fez promessas e caminhou até Aparecida três vezes, percorrendo 157 quilômetros — mesmo com todos os problemas desde a infância. Aos 80 anos, consultou um geriatra e realizou uma radiografia para verificar o estado de seu joelho. Ao ver o resultado, o médico não conseguia acreditar que aquela era uma radiografia de alguém capaz de andar. O Sr. Toninho realmente sempre desafiou o impossível, e nada, absolutamente nada, o abalou.
  • 5. I. Espelhos da Identidade O trabalho sempre foi um pilar fundamental na vida de Antonio. Desde a infância até os 83 anos, ele se dedicou incansavelmente para garantir um futuro melhor para sua família. Iniciou sua jornada como mascate, percorrendo as ruas das periferias de São Paulo, vendendo roupas de cama, mesa e banho junto com seu pai, seja de bicicleta ou a pé. Em um dia que poderia ter sido como qualquer outro, em 1961, saiu para exercer essa atividade e, por ser muito comunicativo, simpático e gentil, fez amizade com todos os seus clientes. Foi na casa de Angelina e Loli que ele encontrou o amor de sua vida, Deisa Prado Abrão. Fotos: Arquivo pessoal A esquerda: Deisa e Antonio durante uma viagem ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1982 A direita: O casal em uma cachoeira em São Luiz do Paraitinga Juntos, eles construíram uma bela família, com quatro filhos: João Calil, Omar Calil, Emerson Calil e Tais Calil, além de 11 netos: Agatha, Jade, Cauê, Isabela, Natalia, Vitória, Maria Eduarda, Lorena, Yasmin, Sophia e Leo.
  • 6. Fotos: Arquivo pessoal A esquerda: Antonio, João Calil, Deisa, Tais, Emerson e Omar A direita: Os pais com os seus filhos em 02/10/2005 A lista de trabalhos que ele desempenhou ao longo da vida é realmente extensa. Além de vendedor em uma loja de construção, ele também empreendeu em diversos negócios, como a venda de calçados e ferros. Aos 38 anos, abriu uma loja de móveis na Vila Jacuí, que tinha mais de 200 metros quadrados. Além da loja de móveis, ele também abriu uma revendedora de gás. Por fim, abriu uma imobiliária na qual trabalhou até 2020. Como se todos esses trabalhos não fossem suficientes para cumprir sua missão, ele ainda participou da maçonaria, do Rotary Club, foi superintendente da associação comercial de São Miguel Paulista, foi dos fundadores do Asilo São José, no Jardim Helena e cuidou das finanças do grupo escoteiro Carijós.
  • 7. Fotos: Arquivo pessoal A esquerda: Antonio Abrão no grupo escoteiro Carijós A direita: Antonio e Deisa em uma premiação no Rotary Todos que o conheciam tinham a mesma impressão sobre ele: honesto, simpático, carinhoso e sempre disposto a ajudar e agradar as pessoas. Ele nunca escondeu o seu lado comunicativo, não precisava de muito para ele ficar conversando por horas com uma pessoa que ele tinha acabado de conhecer. Sempre gostou de contar histórias e conversar sobre a vida. Fotos: Celia Mustafa Antonio e Deisa na casa deles em São Miguel Paulista, celebrando a véspera de Natal –24/12/2020 Mesmo quando não precisava trabalhar ele andava pelas ruas de São Miguel oferecendo chá e café para todos os trabalhadores do bairro. Ele foi quase sempre assim. Quase. “Ele não gostava de viajar, para ficar na imobiliária. Não gostava de sair e deixar de trabalhar, mesmo que ele tivesse funcionários que trabalhavam com ele. Mesmo sábado ele trabalhava. Quando ele estava com o gás, se fosse alguém no domingo para comprar gás ele abria, não tinha hora. Não ligava para descer cedo, eu ia percebendo que ele já não queria ir, queria ficar descansando, fazia mais tempo de horário de almoço. O funcionário que trabalhava com ele notou que ele estava meio estranho. Ele esquecia que as pessoas não estavam pagando direito e os donos de imóveis ficaram insatisfeitos e tiravam os seus imóveis. Parou de ver casas para vender e para alugar. Ele mesmo quis parar de dirigir, dava desculpas para não dirigir, nem por São Miguel.” - Deisa Prado Abrão
  • 8. II. Por que perder a esperança, se há tanto querer? 14/12/2021: “É que eu tô preocupada com meu avô. Ele caiu hoje de novo e meu pai disse que o Alzheimer tá evoluindo muito rápido. Parece que ele tá fazendo xixi nas calças as vezes.” O diagnóstico de Alzheimer foi confirmado em junho de 2021 após uma tomografia. No entanto, todos na família já desconfiavam — a família Abrão Mustafa Assem tem um histórico extenso da doença. O avô de Toninho teve Alzheimer, assim como sua mãe, Elvira, e sua irmã, Yone. Os pequenos sinais de esquecimento que ele apresentou ao longo desse período, juntamente com a indisposição e a confusão com datas, já indicavam isso. Em 2020, vivemos uma pandemia global em que o isolamento era obrigatório. O tempo que ele passou longe da família, com contato apenas por videochamadas, fez com que esses pequenos sinais passassem despercebidos. Junho de 2021 - No primeiro estágio, os esquecimentos, as confusões com datas e horários, e a pequena indisposição tornaram-se frequentes. Mas, mesmo com tudo isso, ele ainda adorava conversar, sendo as histórias do seu passado os assuntos mais frequentes. Ele sempre elogiava as pessoas, gostava de agradar e oferecia ajuda a quem precisasse. Fotos: Arquivo pessoal
  • 9. Antonio e Deisa durante uma viagem para Maceió em julho de 2021 Abril de 2022 - Ele começou a esquecer o nome de pessoas próximas a ele. Era necessário fazer um grande esforço e levar alguns segundos para lembrar dos nomes de seus netos e amigos. No entanto, as atividades cotidianas eram realizadas normalmente; Toninho apenas passou a acordar muitas vezes ainda durante a madrugada. No dia 9 de maio de 2022 - Antonio sofreu uma perfuração no duodeno devido ao uso de anti-inflamatórios, o que gerou uma úlcera. Precisou passar por três cirurgias e ficou muitos dias internado no quarto e na UTI. Começou a perder muito peso, chegando a pesar 50 kg, apesar de ter 1,85 m de altura. Vômitos e refluxos eram frequentes após as refeições. 30 de maio de 2022 - Ele passou a comer apenas alimentos pastosos e líquidos, mas havia expectativa de que em um mês ele voltasse a se alimentar normalmente. Ainda estava muito fraco, o que o impedia de andar. Junho de 2022 - Os vômitos e refluxos não pararam, e foi necessário introduzir um cateter em seu nariz para que ele conseguisse se alimentar. Ele continuou perdendo peso e a alimentação por via oral não era mais viável. Julho de 2022 - O Alzheimer progrediu rapidamente nesse período. Ele não conseguia mais ter uma noite de sono completa, as doses dos remédios aumentaram e ele passou a arrancar a sonda que era usada para se alimentar, causando mais perfurações em seu estômago. No dia 15 de julho, foi realizada uma operação para introduzir a GTT, uma sonda em seu estômago, e todas as suas refeições passaram a ser feitas por meio desse tubo em seu intestino.
  • 10. Fotos: Arquivo pessoal Antonio e Deisa no apartamento deles em Guarulhos em agosto de 2022 Setembro de 2022 – As idas e vindas ao hospital eram constantes. Agora, sua esposa Deisa já não conseguia mais cuidar dele sozinha, nem com a ajuda dos seus filhos. Toninho não era capaz de tomar banho sozinho e precisava usar fraldas, pois não conseguia ir ao banheiro. Além disso, as refeições continuavam sendo administradas por sonda. Por essa razão, ele passou a contar com duas cuidadoras diárias para assistir a ele, uma durante o dia e outra durante a noite. “É difícil ver ele nessa situação que não tem volta.” - Emerson Calil Dezembro de 2022 - Ele completou 85 anos e ainda adorava conversar com as pessoas, mas suas histórias já não faziam tanto sentido. Entretanto, ele se esforçava e continuava a falar, mesmo quando esquecia o que estava dizendo, mudando de assunto e retomando a história. Apesar disso, gostava de caminhar, mesmo com a ajuda de outras pessoas e um andador.
  • 11. Foto a esquerda: Maria Eduarda Mustafa Foto a direita: Felipe Aguilar Antonio e sua família em seu aniversário de 85 anos em três de dezembro de 2022 Fevereiro de 2023 - As internações e as idas à UTI tornavam-se cada vez mais frequentes. Os episódios de pneumonia não diminuíam e ele estava cada dia mais indisposto. Já não tinha o mesmo interesse em conversar como antes. Apesar de todas as dores e dificuldades que enfrentava, ele nunca reclamava de nada. “Hoje ele é muito apático, ele sempre foi uma pessoa de conversar bastante com todo tipo de pessoa, e hoje você pode estar conversando ao lado dele que se você não provocar não, chamar, ele não fala nada, não interage com mais ninguém.” - Emerson Calil Abril de 2023 - Nos dias em que não estava no hospital, ele preferia ficar em casa dormindo e, às vezes, realizava atividades para estimular seu cérebro com as cuidadoras. Raramente conseguia lembrar o nome dos netos e passou a confundir os parentescos entre seus filhos, chegando ao ponto de acreditar, em certos dias, que eles eram seus sobrinhos. “Quando você consegue conversar coisas antigas com ele, ele responde. Mas por exemplo, eu perguntei do tempo pra ele, se tava frio ou calor, ele falou “não sei”. A
  • 12. fisio falou que ele não tem mais noção de frio, quente, doce, salgado, dias, horário”. - Tais Calil Maio de 2023 - As dores intensificaram e ele passou a sentir essas dores durante as 24 horas do dia. Devido a isso, não conseguia mais manter uma conversa. Ele ainda estava ali, mas era visível que as suas dificuldades, que já eram grandes, haviam aumentado. Mesmo diante dessas circunstâncias, ele não reclamava e insistia em dizer que estava tudo bem. “O Alzheimer consumiu toda a essência do meu avô.” - Maria Eduarda Mustafa 21 de maio de 2023 - Ele já havia perdido o controle de sua postura e começou a se queixar e reclamar de dores constantes. Durante suas breves conversas, ele mencionava que havia se encontrado com sua mãe, Elvira, e seu irmão, Abdo, ambos falecidos há muitos anos. 24 de maio de 2023 - Apresentou uma hemorragia interna e perdia uma grande quantidade de sangue a cada evacuação. Precisou ser internado. 25 de maio de 2023 - Foi transferido para a UTI, pois a hemorragia havia se intensificado. 26 de maio de 2023 - Recebeu transfusões de sangue e foi diagnosticado com anemia grave. Porém, ainda era necessário identificar a causa da hemorragia, sendo indicada uma colonoscopia para investigar a origem da perda significativa de sangue. 27 de maio de 2023 - Às 9h20, ele sofreu uma parada cardíaca e nos deixou. Antonio Abrão Mustafa Assem teve uma linda trajetória, sendo um homem generoso, carinhoso e gentil com todos. Era impossível não o amar. Ele tocou profundamente o coração de todos aqueles que tiveram a sorte de conhecê-lo. “Não é mais que um até logo, não é mais que um breve adeus. Bem cedo junto ao fogo. Tornaremos a nos ver. Com nossas mãos entrelaçadas ao redor do calor, formemos esta noite, um círculo de amor.” - Canção da despedida. Uma canção escoteira que é tradição na família Abrão Mustafa Assem.
  • 13. III. O Enigma do Esquecimento Investigando a fundo por meio de extensas pesquisas, análise de notícias e documentos, torna-se evidente que o Brasil enfrenta uma realidade alarmante em relação ao Alzheimer a longo prazo. Estima-se que o país tenha aproximadamente 1,2 milhão de indivíduos afetados por essa doença. Aprofundando ainda mais nossa investigação, descobrimos que, a cada ano, mais de 100 mil pessoas são diagnosticadas. Os números relacionados ao Alzheimer no cenário global são ainda mais impactantes. A organização Alzheimer's Disease International divulgou uma projeção, indicando que até 2030 o mundo poderá enfrentar ao total 70 milhão de casos e a situação se agrava ainda mais com as estimativas de 131,5 milhão de casos em 2050, evidenciando um alerta crucial para as possíveis crises globais que podem surgir devido a essa doença. O Alzheimer, uma doença neurodegenerativa que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, tem sido objeto de estudo e pesquisa há mais de um século. Mesmo com os avanços científicos, ainda estamos distantes de uma cura efetiva. O médico geriatra José Manoel Ferreira compartilha seu conhecimento sobre a doença e aborda as opções de tratamento disponíveis atualmente. No início da conversa, José Manoel destacou que a queixa clínica mais prevalente relacionada a doenças cognitivas é a perda de memória. Ele ressaltou que esse sintoma deve chamar a atenção tanto da família quanto do médico, pois pode indicar um problema mais sério. No passado, o diagnóstico era feito apenas quando o paciente apresentava um quadro avançado de esquecimento, devido à falta de recursos. No entanto, hoje em dia, existem várias opções disponíveis, independentemente das condições financeiras do paciente, que permitem avaliar mesmo queixas de memória leves. José dividiu a linha de esquecimento em três pontos. Na extremidade esquerda, encontramos o "esquecimento benigno do idoso", que é considerado normal para o processo de envelhecimento. Nesse caso, pequenos lapsos de memória não interferem na vida cotidiana do indivíduo. Por exemplo, esquecer onde
  • 14. guardou um objeto ou entrar em um cômodo e esquecer o motivo pelo qual entrou são situações comuns. No entanto, o médico enfatizou que, quando o esquecimento começa a atrapalhar a rotina e a vida das pessoas ao redor, é necessário investigar mais a fundo. Na outra ponta da linha, temos a demência, que é um esquecimento patológico e fora do esperado para o envelhecimento normal. Esse tipo de esquecimento causa prejuízo nas atividades diárias e afeta significativamente a vida do indivíduo. No meio do caminho, existe o chamado "transtorno cognitivo leve" ou "comprometimento cognitivo leve", que não é tão simples de ser considerado um processo normal de envelhecimento, mas também não é tão grave a ponto de ser classificado como demência. Contudo, estudos indicam que aproximadamente 70% dos casos de comprometimento cognitivo leve evoluem para demência, tornando esse estágio uma fase de atenção especial. José Manoel explica que, diferentemente de condições como hipertensão, diabetes e insuficiência cardíaca, que têm sido tratadas há séculos, o primeiro caso de Alzheimer foi descrito em 1906, o que significa que a doença tem apenas cerca de 110 a 115 anos de história. Portanto, o conhecimento científico sobre o Alzheimer ainda é limitado, e a compreensão de como tratar efetivamente a doença é um desafio. O tratamento do Alzheimer pode ser dividido em duas abordagens principais: não medicamentosa e medicamentosa. O tratamento não medicamentoso envolve a promoção de um estilo de vida saudável, como a prática regular de atividade física e a criação de um ambiente tranquilo para o paciente. Além disso, a melhoria das dificuldades sensoriais, como audição e visão, e o apoio psicológico através de terapia são aspectos importantes desse tratamento. Quanto aos medicamentos, José Manoel menciona que existem dois tipos principais. O primeiro tipo é composto por medicamentos que visam aumentar a função cerebral, com foco na modulação do sistema imunológico e na estimulação de receptores de glutamato. O segundo tipo de medicamento é destinado a tratar alterações comportamentais e de temperamento associadas à doença. Quando questionado sobre a perspectiva de uma cura para o Alzheimer, o médico expressa uma visão realista. Ele compara a doença ao câncer, explicando
  • 15. que, assim como o câncer, a prevenção e a detecção precoce são fundamentais para obter melhores resultados. No entanto, com o Alzheimer, o movimento é inverso: as células nervosas começam a morrer sem uma compreensão clara das falhas bioquímicas ou estruturais que causam esse processo de apoptose. José enfatiza que ainda estamos longe de descobrir os mecanismos subjacentes à morte das células nervosas e, portanto, longe de desenvolver uma cura efetiva. Embora haja uma grande quantidade de medicamentos em fase de pesquisa, o médico observa que os resultados até o momento não são significativamente diferentes dos tratamentos existentes. Novos medicamentos podem estar chegando, mas a expectativa é que eles sejam, em sua maioria, variações dos tratamentos já disponíveis. Conversando um pouco mais com José e abordando sobre o tema familiar com a vivência dessa doença, ele nos revelou a importância de compreender a dimensão desse desafio. "Esse é o grande problema das demências, o grande problema do Alzheimer. É a sobrecarga que a doença impõe sobre a família", enfatiza o médico. A demência, em si, retira do indivíduo sua autonomia e independência. O paciente, aos poucos, torna-se cada vez mais dependente de um cuidador, sendo geralmente um membro da família. Conforme a dependência aumenta, a carga sobre o cuidador se intensifica. A situação se agrava quando o paciente apresenta comportamentos desafiadores, distúrbios do sono e necessita de assistência constante, o que requer do cuidador um esforço contínuo e ininterrupto. O cuidado de um paciente com demência é exaustivo e desgastante. O cuidador precisa lidar com a rotina de cuidados 24 horas por dia, 7 dias por semana, durante todo o mês. É uma tarefa que demanda dedicação integral, sem intervalos para descanso. O cuidador, muitas vezes, precisa atender às necessidades do paciente nos momentos em que ele próprio está exausto, criando uma sobrecarga adicional de estresse e trabalho. O impacto na vida do cuidador é algo crucial a ser considerado quando se avalia as medidas de tratamento e cuidados para pacientes com demência, incluindo o Alzheimer. José Manoel ressalta que uma medida terapêutica eficaz deve melhorar não apenas a vida do paciente, mas também aliviar a carga do cuidador. "Parece que o paciente que antes, com tratamento, não conseguia comer sozinho, se agora ele
  • 16. consegue, isso já dá um alívio para quem cuida", exemplifica. Mesmo pequenas melhorias na autonomia do paciente podem ter um impacto positivo significativo na vida do cuidador. É importante ressaltar que estamos vivendo em uma era de envelhecimento populacional, o que significa que muitos idosos estão assumindo o papel de cuidadores de outros idosos. Em algumas situações, encontramos casos em que um idoso com demência é cuidado por seu cônjuge, parceiro ou até mesmo por um filho mais velho. Essa dinâmica acentua ainda mais os desafios e as demandas enfrentadas pelos cuidadores familiares. O cuidado familiar para pacientes com demência é um tema que requer atenção e suporte adequados. Além de buscar avanços no tratamento e cuidados médicos, é fundamental garantir que os cuidadores tenham acesso a recursos, orientação e apoio emocional. A sociedade precisa reconhecer e valorizar o papel desempenhado pelos cuidadores familiares, oferecendo-lhes as ferramentas necessárias para lidar com os desafios impostos pela demência. IV. Histórias se cruzam Essa parte da história tem dois começos. Um deles no dia 4 de março 1942, na cidade de Mirassol, situada a 453 quilômetros da Capital Paulista; quando uma mulher chamada Clotilde Ferreira Sant’Ana deu à luz a um menino. Seu nome era Manoel Antônio: o primogênito de uma família que seria composta por quatro filhos (duas meninas e dois homens). O outro começo se deu no dia 21 de fevereiro de 1941, a 391 quilômetros de distância, em Ribeirão Preto. No formato de uma pequena menina, Otília deu continuidade à família — que depois de formada seria composta por 5 filhos. Durante a apuração, foi constatado que essa história não é amarrada por datas exatas. Ela é amarrada por lugares. Lugares que juntaram pessoas e formaram uma família. Ascendente de pais muito simples, Manoel saiu de Mirassol com 12 anos. Em busca de estudo e trabalho, deixou seu núcleo familiar para morar em Santos, com a irmã de sua mãe. Por características da época que vivia, e também pela falta de escolha, sempre foi arrimo de família. Ele também era uma pessoa muito culta.
  • 17. Sempre lia livros e jornais, atrás de conhecimento e informações. Se o Manoel dos anos 60 pudesse ver o futuro, se depararia com sua versão paterna, que repetia como uma reza: “estuda, minha filha. O seu conhecimento e sua independência ninguém nunca vai tirar de você”. Enquanto Manoel tocava sua vida, em Ribeirão Preto o destino operou uma de suas improváveis coincidências: em 1964, Otília conheceu uma prima de Manoel. Como todas as boas histórias de amor, essa também é grande e cheia de detalhes. Em 2023, ela pode ser resumida em poucas palavras: “ela me falou ‘ah, vamo lá, vamo lá’ e eu fui. Então me apresentou, a gente começou a namorar e tamo aqui até hoje”, disse Otília — ou como gosta de ser chamada, Lia. Foi com essa prima de Manoel que, ainda menina, conheceu a baixada santista. E também conheceu o amor. Em dois anos juntos, noivaram e se casaram. Manoel era operário da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa). Trabalhou em condições quase insalubres na companhia durante sete anos, o que comprometeu sua audição (ele não ficou completamente surdo, mas nunca mais escutou bem). Ele saía 5 horas da manhã de casa. Muitas vezes ligava para Lia avisando que iria “dobrar”, ou seja, trabalhar a noite toda e depois o dia inteiro, emendando um expediente no outro. “Ele ganhava o justo”, disse ela. Por conta dos turnos noturnos que contabilizavam horas extras, a renda era suficiente. Durante esse período, o casal teve seu primeiro filho: Renato César.
  • 18. Foto: Arquivo público da biblioteca de Cubatão Vista parcial da Laminação da Cosipa por volta do fim do ano de 1962 Apesar da vida dura, Manoel se se tornou um homem alegre. Preenchia com sua personalidade todo o espaço dos cômodos que ocupava. Sua risada alta e fala forte eram características muito marcantes de sua personalidade. Todas as fontes o descreveram assim. Pode ser que a surdez tenha contribuído para isso, mas não há jeito de provar. Talvez fosse apenas parte de quem ele era. Depois de um desentendimento com um engenheiro da Cosipa, ele pediu as contas. É aí que, novamente, uma de suas primas entra na história. Manoel foi apresentado a um homem chamado Hélio, que junto com ele montou uma fábrica de brindes promocionais na rua Comendador Alfaia Rodrigues, em Santos. A partir daí, começaram a operar a Relses. Era sua primeira empresa, e o início de muito trabalho duro. Na fábrica, eram apenas duas máquinas que faziam chaveiros. Ele começou como sócio. Trabalhava nas máquinas, fazia as vendas e comprava os materiais. Vítima de um ataque cardíaco, seu sócio Hélio faleceu poucos anos depois da abertura da empresa. Manoel operou sozinho a Relses em Santos, mas não por muito tempo. Com o passar dos meses, ele começou a perceber que, para prestar serviços, encontrar clientes e comprar materiais, sempre precisava subir a serra. Resolveu se aventurar no novo mercado, atrás de mais oportunidades. Do seu amor com Otília surgiram mais dois frutos, Carmen Luiza e Anderson Manoel. Da sua luta por uma vida melhor, seu quarto filho abriu uma nova empresa em São Paulo, chamada UniBrindes. Morando em Santos e trabalhando em São Paulo, Manoel quase não conseguia acompanhar a rotina intermunicipal. “Ele tinha que trabalhar muito, às vezes nem voltava pra casa”, relembra sua filha Carmen. Para resolver o problema, tomou a decisão de alugar um apartamento perto da empresa. Uma kitnet, estilo sala e cozinha. "Era inviável ele ficar voltando, subindo e descendo todos os dias e tudo isso pra dar um padrão de vida melhor pra gente”, continuou ela. Com um mundo novo se abrindo, no ritmo do trabalho duro e longe da família, ele não se alimentava direito, não dormia e começou a adoecer. Sua família decidiu se mudar para o ABC Paulista. De Santos para São Bernardo do Campo. Foram anos muito prósperos na vida da família Sant’Ana, apesar da difícil adaptação dos filhos na nova cidade. Carmen lembra: “era liberdade zero, que eu não conseguia fazer nada,
  • 19. aqui era ônibus, condução e eu não tinha esse hábito de andar de ônibus lá em santos sempre foi bicicleta e a pé, para minha mãe e meu pai a vida melhorou bastante, mas para mim como adolescente foi uma catástrofe”. Foto: Arquivo pessoal Manoel em 25 de junho de 1997, aniversário de 27 anos de Carmen Luiza A música de Caetano Veloso “Oração ao tempo” faz uma reflexão sobre algo que está presente na vida de todos os seres deste planeta. Seja humano, animal ou planta, todos estão submetidos aos caprichos do tempo. A família Sant’Ana, já consolidada em seu lar, vivendo uma vida que ia além de estar confortável financeiramente, trabalhava muito. Como Caetano se refere ao tempo, o “tambor de todos os ritmos” continuou soando. Dois filhos de Manoel seguiram para o ensino superior. Carmen fez administração e Anderson direito. Renato não continuou os estudos. Os três seguiram os passos do pai e foram trabalhar na UniBrindes.
  • 20. Tempo, tempo, tempo, tempo. Em junho de 2001, o primeiro neto nasceu. Angelo, filho de Carmen Luiza, foi seguido pelos gêmeos João Pedro e Manoela, filhos de Renato que nasceram em setembro do mesmo ano. Em abril de 2004, nasceu Luiza, que por 10 anos foi a caçula da família. Para alegrar o ano em que o Brasil perdeu de 7x1 para a Alemanha, em 2014 Manoel ganhou sua última neta, Valentina – filha do também caçula, Anderson. Foto: Arquivo pessoal Manoel e suas netas Manoela, Luiza e Valentina em maio de 2019 Manoel vivia pela sua família e pelo seu trabalho. Sempre foi um pai maravilhoso. “Super carinhoso, sempre se desdobrou para dar tudo aquilo que a gente precisava, sempre nos deu além até do que ele poderia estar dando”, como disse Carmen. Quando virou avô também virou modelo, companheiro, admirador e herói de seus Netos.
  • 21. Foto: Arquivo pessoal Família Sant’Ana em fevereiro de 2021 “Quando eu era pequena ele sempre dizia ‘você é a neta que eu mais amo, só não conta pra Manoela’, e eu acreditava, claro. Até um dia que eu quis me gabar e contei pra ela, foi aí que eu descobri que ele falava isso pra nós duas”, relembra sua neta Luiza. Ele sempre fazia de tudo para ver os netos sorrirem. No fim das contas o que ele gostava mesmo de fazer era mimar todos eles. Costumava usar uma desculpa para isso. Depois de agradar aos netos sempre dizia “os pais educam, e os avós estragam”, e dava risada.
  • 22. Foto: Arquivo pessoal Manoel, Angelo e Lia em junho de 2009 "Meu avô foi um homem de grande responsabilidade e um cara bem forte”, disse Angelo, seu neto mais velho. Junto com Lia, Manoel foi a semente de uma família. Sem saber o que o futuro reservava, eles permitiram que todos os seus filhos e netos tivessem um poder almejado por milhares de pessoas, todos eles puderam decidir seus destinos. V. Um lapso do futuro É dia 29 de abril de 2023, na cidade de São Caetano do Sul, aniversário do filho mais novo de Manoel. Ele está sentado na frente da televisão da sala, que transmite um jogo da Série A do “Brasileirão” entre São Paulo e Coritiba. Ele assiste ao jogo enquanto responde perguntas da sua neta mais nova Luiza, sem desviar os olhos do aparelho de transmissão a cabo. Com difícil raciocínio e poucas sílabas consegue lembrar de algumas coisas do seu passado. Mas à medida que ela faz as perguntas, ele parece cada vez mais desinteressado, cada vez mais distante. — Vô, como você foi parar em São Paulo? — Parar em São Paulo?
  • 23. — É — ela diz, com medo de descobrir mais uma memória apagada pelo subconsciente de seu avô — Eu fui para Santos, não fui para São Paulo – ele responde, com um tom de voz um pouco irritado — Foi para Santos, não é? E lá você trabalhava onde? — Trabalhei na Cosipa. Uma siderúrgica aqui em Santos. — E aí, depois… o que você fazia? — Aí depois eu me aposentei. — Não teve a UniBrindes, vô? — Não, fui eu não. — Não teve? — Não. Manoel foi diagnosticado com Demência Frontotemporal (DFT) em 2017. Em geral, a demência frontotemporal afeta personalidade, comportamento e, muitas vezes, mais a linguagem e menos a memória que a doença de Alzheimer. A suspeita surgiu a partir de uma série de comportamentos muito novos que ele vinha demonstrando na época. De acordo com o médico geriatra José Manoel Ferreira, “um modo de identificar a doença cedo é sempre estar atento a sinais como a perda de memória e alteração no comportamento do idoso”
  • 24. Foto: Arquivo pessoal "Primeira vez que ei vi meu avô depois que eu soube” - setembro de 2017 Foi isso que Carmen fez. “Ele começou com umas manias, umas coisas meio estranhas com a minha mãe, com ciúmes achando que ela tava dando bola para várias pessoas, saindo com várias pessoas, até uma hora que vieram me falar e eu vi que não era uma coisa normal”, depois desses episódios repetitivos e algo semelhante a momentos de paranoia, Manoel foi levado ao médico. Foram feitos testes cognitivos e neuropsicológicos, usados pelo médico para avaliar a função cognitiva, como habilidades de pensamento, memória, orientação, raciocínio, julgamento, linguagem e atenção. “O médico fez um teste, um teste rápido ali com ele, com algumas perguntas, algumas escritas, alguns desenhos e ali ele já viu um foco que poderia ser uma demência”, relembra sua filha. Depois de se aposentar ele levava uma vida ativa. Todos os dias acordava cedo, lia seu jornal, tomava o mesmo café da manhã preparado por sua esposa — dois ovos fritos com gema mole e um café preto — e partia para pedalar. Sua rota era
  • 25. puxada. Com o mapa da cidade na palma de sua mão, percorria 8,3 quilômetros de sua casa em Santos até a Ilha Porchat, em São Vicente. Ele fazia o trajeto de ida e volta duas vezes. Foto: Google Maps Simulação do trajeto de Manoel No caso de Manoel, a doença demorou bastante para evoluir. O diagnóstico foi bem precoce. Muito por conta desse estilo de vida, que foi somado às formas de tratamento mais modernas disponíveis, tudo aconteceu bem devagar, primeiro vieram as confusões mentais, depois alguns lapsos de memória, mas os episódios começaram a ficar mais graves. Apresentava comportamentos cada vez mais estranhos. Acessos de raiva, desconfiança, toda hora acusava sua esposa de roubo. Se via perdido em meio às ruas que transitava desde quando seus filhos eram adolescentes. Mesmo com o uso de diversos remédios, o tratamento parecia não estar adiantando. Esse tipo de doença causa uma sobrecarga emocional dos familiares, especialmente dos cuidadores do idoso. São as pessoas que convivem com ele, ajudam nas tarefas diárias, estimulam a memória, fazem companhia... de tudo um pouco. O doutor José Manoel apontou um modelo comum de cuidados adotado por diversas famílias no Brasil: “Nós vivemos uma situação hoje em dia que o envelhecimento populacional é muito grande, a gente tem hoje em dia idosos
  • 26. cuidando de idosos”. No caso do nosso personagem, é por aí que a banda toca. O grande amor de sua vida tornou-se sua principal cuidadora. Manoel e Otília passaram juntos por muitos desafios na vida. Agora, atravessam todos os estágios da doença. Ele ainda tem um certo grau de autonomia. Normalmente faz tudo sozinho, mas sempre supervisionado. Foto: Arquivo pessoal Manoel e Otília no dia 24 de dezembro de 2021 Carmen, a única filha de Manoel, é como um leão quando se trata de cuidar da sua família. Ela corre pra cima e pra baixo atrás de novos remédios, médicos e soluções que possam tornar tudo isso um pouco menos difícil. Ela ouviu falar de um outro tipo de tratamento que era mais natural e poderia ajudar (e muito) no retardo da doença. “Várias pessoas já tinham me falado sobre esse óleo alguns anos atrás, mas
  • 27. era inviável financeiramente, era difícil também a compra, alguns anos atrás era só via importação”, ela se refere ao óleo de CBD, um composto extraído da canabis que ajuda no tratamento de muitas doenças. Junto com a regulação dos outros remédios alopáticos, o óleo ajudou a amenizar os sintomas do sr. Manoel. Levou embora os episódios de agressividade, melhorou o apetite dele e “controlou” a teimosia de um homem que toda vida foi independente, mas agora precisa ser cuidado na maior parte do tempo. Isso definitivamente não foi a cura, mas elevou a qualidade de vida dele e de sua esposa. Hoje, Manoel e Lia moram em Santos. Eles não têm uma vida fácil. Conviver com a doença todos os dias é desgastante, mas eles vivem uma boa vida. Eles viveram uma boa vida. Fotos: Arquivo pessoal Manoel e sua família nos anos de 2021, 2022 e 2023; sempre sorrindo Quando o Manoel ficou sabendo que sua neta escreveria um trabalho da faculdade sobre a vida dele, afirmou: “Filha, o vovô viveu uma vida muito triste. Mas agora tá maravilhosa!”. No dia em que fez essa afirmação, Manoel estava sorrindo como sempre. Ele nunca parou de brincar. Nunca parou de sorrir. VI. Há expectativa de solução?
  • 28. Apesar da dificuldade em lidar com este tipo de demência, a medicina moderna tem buscado outras formas — não tão convencionais ou tradicionais — de tratá-la. A partir da década de 90, se iniciaram as pesquisas e os estudos sobre os efeitos dos canabinóides. Nivaldo Vanni, dentista e professor, é referência nos estudos sobre o uso medicinal de cannabis em todo o continente americano. Segundo Vanni, a história da criminalização da maconha remonta a 1937, quando o governo dos Estados Unidos implementou uma taxação conhecida como "marijuana tax", resultando em problemas de comercialização desse produto no país. Esse evento teve repercussões significativas em todo o ocidente, levando à prática de criminalização da mesma. O psiquiatra Eduardo Aliende Perin trabalha diretamente com os pacientes de Alzheimer que buscaram a terapia canabinoides como alternativa. Perin acredita firmemente que a cannabis pode ser uma grande aliada no tratamento da doença de Alzheimer. Ele ressalta que os pacientes com Alzheimer gradualmente se tornam mais isolados, interagindo menos com o mundo ao seu redor — como pudemos perceber ao decorrer do livro. Essa afirmação enfatiza a importância de considerar seriamente o uso terapêutico da cannabis como uma opção viável para melhorar a qualidade de vida dos pacientes com Alzheimer. A terapia canabinoide é um tratamento que atinge um número de sintomas de uma forma mais global e que a gente não costuma ver com outras abordagens. Como vimos no caso do Sr. Manoel, ela melhora a irritabilidade, o sono, a ansiedade, o apetite, a sociabilidade, eventualmente a atenção e a memória. Há uma melhora de muitas variáveis ao mesmo tempo que em outros tratamentos não foi confirmada a eficácia. “A gente colocaria, por exemplo, um antipsicótico para ajudar na irritabilidade, um remédio pra dormir, um remédio pra ansiedade… você teria medicações para sintomas específicos. Então a cannabis abrange um número de sintomas maior. Não se recomenda, também, a pessoa tratar a demência somente com canabinoides. Acho que a gente ainda não tem literatura o suficiente para dizer que só a cannabis pode tratar a demência. Ele teria que usar as medicações convencionais em associação com a cannabis”, explicou Eduardo.
  • 29. Ainda há a preocupação com contraindicações em relação às demais doenças dos pacientes. Afinal, idosos costumam possuir comorbidades que é importante se atentar. Pacientes com arritmia cardíaca não podem sonhar com a medicação. Entretanto, aqueles que necessitam fazer uso de remédios para hipertensão, pressão, diabetes e das drogas anticoagulantes podem fazer uso do CBD com ajustes eventuais de dosagem. Mesmo com as atenções essenciais, a cannabis ainda se mostra importante no tratamento do Alzheimer: “Nenhum medicamento se mostrou tão eficaz na abrangência geral de sintomas quanto os canabinoides. A gente tem medicamentos que atrasam a perda cognitiva, medicamentos específicos que tratam cada um desses sintomas, mas a cannabis abrange mais coisas. Nesse sentido, a gente vê melhoras interessantes como um aliado”, afirmou. Para entender um pouco mais sobre o funcionamento direto deste tipo de medicação no corpo, Eduardo e Nivaldo explicam a base do sistema endocanabinoide e o quão efetivo ele pode se mostrar. No organismo humano, existe um sistema endocanabinoide que desempenha um papel crucial. Esse sistema é onde os canabinoides da planta agem, interagindo com os receptores canabinoides presentes em todo o cérebro. Além disso, o organismo produz suas próprias substâncias semelhantes aos canabinoides, chamadas de endocanabinoides, como a anandamida e 2-AG. Essas substâncias têm ação semelhante ao THC, componente ativo da cannabis. O sistema regula diversos sistemas do organismo, como o cardiovascular, cardiorrespiratório e neurológico, exercendo uma influência global sobre o corpo. Essa regulação abrangente destaca a importância e a relevância desse sistema no funcionamento saudável do organismo, abrindo portas para investigações mais aprofundadas sobre o potencial terapêutico dos canabinoides e seu impacto em diversos sistemas fisiológicos. “O sistema endocanabinoides produz um equilíbrio nestes três grandes sistemas (sistema nervoso, sistema imune e sistema endócrino). Então, por isso que quando você faz o uso de uma substância, faz uma terapia canabinoides, na verdade você está fazendo com que o teu corpo funcione de uma forma melhor para que você consiga equilibrar melhor os efeitos do desgaste do dia a dia, dos estímulos, estresse,
  • 30. dos nervosos, de noite mal dormida, de agressores de bactéria, vários tipos de agressores que a gente tem no dia a dia”, complementou Nivaldo. Mesmo com o uso diário, os pacientes com demência, geralmente, não costumam perceber as mudanças. Durante o desenvolver das histórias de nossos personagens, percebemos um padrão: quem mais nota as diferenças são aqueles que estão próximos a eles — familiares e cuidadores. Eles percebem que a pessoa está mais sociável, mais fácil de lidar, não está mais tão teimosa. A cannabis ajuda na teimosia, nessa persistência em um comportamento, na sociabilidade e na irritabilidade. Apesar dos resultados positivos alcançados com o uso terapêutico da cannabis, ainda persiste a hesitação por parte de algumas famílias em adotar essa forma de tratamento. Mesmo após a descriminalização do uso medicinal da maconha no Brasil, a procura por medicamentos à base de canabinoides tem aumentado. No entanto, o psiquiatra Eduardo Perin destaca a existência de preconceito em relação ao uso da cannabis como terapia. Muitas famílias ainda se recusam a considerar essa opção, demonstrando resistência à ideia. Por outro lado, Perin também observa um grupo de pessoas que procuram especificamente por tratamentos com cannabis, buscando os especialistas nessa área, como é o caso da família Sant’Ana. Eduardo Perin acredita que há grandes expectativas nos avanços dos estudos de canabinoides. As pesquisas aprofundadas são essenciais para que se torne possível entender o tamanho do efeito da cannabis em pacientes de Alzheimer e diferentes tipos de demência — o que ela realmente pode fazer por eles. Carta I Maria Eduarda Mustafa Com o surgimento dos sintomas do Alzheimer, também vêm as primeiras vezes. A primeira vez em que meu avô perdeu o interesse por algo que amava, a primeira vez em que ele se esqueceu de um de nós, e o mais difícil é quando percebemos que ele perdeu sua essência. Seu jeito bondoso, gentil e carinhoso sempre esteve presente, mas sua disposição e felicidade foram tiradas dele.
  • 31. Lidar com o Alzheimer é difícil, principalmente devido ao sentimento de impotência que nunca desaparece. Não se trata apenas de ele não saber mais quem eu sou, mas também de ele ter esquecido tudo o que vivemos juntos. No entanto, com o tempo, percebi que o fato de meu avô não se lembrar mais do meu nome não se compara à dor que senti ao vê-lo parar de comer, de andar e, principalmente, de sorrir. Acredito que a família se torna eternamente responsável por carregar suas lembranças e memórias. O Alzheimer tem o poder de mudar completamente a mente de uma pessoa, e por fora ela se torna irreconhecível, mas prefiro acreditar que o coração permanece intacto, repleto de lembranças dos dias bons com as pessoas que ele amou. E para o meu amado vovô Toninho: Foi com você que eu aprendi a encontrar alegria nos momentos mais difíceis. Aprendi a ser grata, a ter fé e otimismo. Que sorte a de todos que tiveram a oportunidade de te conhecer. Desde que você se foi, não teve um dia sequer que eu não senti sua falta, te amarei para sempre. Carta II Luiza Vezzá No dia em que meu avô por parte de pai morreu, eu encontrei o meu avô Manoel no velório. Ele me disse: “filha, eu não posso mais sentir ciúmes, eu sei que eu sou o avô que você mais ama porque agora só tem eu”, depois deu aquela risada que só ele tem. Acho que esse é um dos momentos mais marcantes que vivi com ele, uma das poucas memórias que eu tenho do pior dia da minha vida. Uma memória boa. Depois que ele ficou doente muita coisa mudou. O sentimento de impotência tomou conta de todos nós. Eu vi a minha avó e a minha mãe lutarem dia após dia pelos melhores tratamentos possíveis, vi elas sofrendo pela perda de uma pessoa que ainda está entre nós. Eu senti pela minha prima mais nova, que teve muito menos tempo para conhecer a pessoa maravilhosa que ele foi antes de tudo isso. Em tudo que eu faço carrego um pouco do meu avô, tudo que ele construiu para o futuro da família me permite estar aqui. Apesar de tudo, posso contar nos
  • 32. dedos as vezes que eu o vi sem um sorriso no rosto. Suas memórias ainda vivem dentro das vidas de cada um que ele tocou. Para o meu avô, que todas as vezes que me ouviu dizer “te amo vô”, me respondeu com “me too”. Eu queria muito que você pudesse conhecer a pessoa que eu me tornei. Eu te encontro em todos os lugares, todas as vezes que eu não tenho vontade de estudar, todas as esquinas da cidade de Santos, todos os cantinhos do meu coração. P.S.: A todos que se identificaram e se emocionaram no processo da leitura. Não imagino que tenha sido um livro fácil de ler. Mas esse nunca foi o intuito. Perdas nunca são fáceis — principalmente quando elas acontecem ainda em vida. Levo comigo que uma pessoa só não está mais entre nós quando não perduram mais nas memórias daqueles que a amavam. Eternizadas em um livro-reportagem, as memórias de Antonio Abrão Mustafa Assem e Manoel Sant’Ana (ainda em vida) jamais serão apagadas.