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MEDICINA TIBETANA
                  Livro 13


  Uma publicação destinada ao estudo da medicina tibetana,
   editada pela Biblioteca de Obras e Arquivos Tibetanos,
                      Dharamsala, Índia
MEDICINA TIBETANA
      Livro 13

    Dr. Yonten Gyatso
       Jan Bärmark




            Traduzido por :
      Williams Ribeiro de Farias
     Dra. Yeda Ribeiro de Farias




     EDITORA CHAKPORI
Título original: Tibetan Medicine Series 13
©1991 Biblioteca de Obras e Arquivos Tibetanos, Dharamsala,Índia




                              1996
 Direitos autorais para edição em línguas portuguesa e espanhola
                           adquiridos pela
                       EDITORA CHAKPORI
AGRADECIMENTOS À PRESENTE EDIÇÃO



       Agradeço ao Sr. Lhasang Tsering, ao Venerável Dagom
Rimpoche e seu assistente Lama Tsultrim Dorge, ao Sr.
Lobsang Samten, à Srta. Nyingma Sherpa, ao Sr. Tsewang
Jigme Tsarong, Diretor do Centro Médico Tibetano em
Dharamsala, à Maria do Carmo Chagas Ribeiro e ao Sr. Sérgio
Fanelli, que ajudaram a tornar possível a edição destes livros
sobre Medicina Tibetana.



                                                      O Editor
                                    Williams Ribeiro de Farias
ÍNDICE


A MEDICINA BUDISTA TIBETANA SOB A PERSPECTIVA DA
ANTROPOLOGIA DO CONHECIMENTO....................................................... 8
PARTE 1. A PERSPECTIVA BUDISTA ..................................................................... 8
  Um Dia no Consultório de um Médico ........................................................ 8
  Uma Mudança Filosófica ............................................................................. 9
  Uma Compreensão Interna ........................................................................ 10
  Uma Descrição mais Profunda da Medicina Tibetana ............................... 11
  A Educação Médica ................................................................................... 12
  Sobre as Pílulas Tibetanas ........................................................................ 13
  As Características Mentais do Médico ....................................................... 14
  Todo o Conhecimento Médico Tem Origem na Sabedoria de Buda .......... 15
  A Primeira Volta da Roda do Dharma ........................................................ 16
  A Causa Básica de Todas as Doenças ...................................................... 17
  Doença é Desequilíbrio .............................................................................. 17
  Buda, O Médico Ideal ................................................................................ 18
  As Raízes Históricas da Medicina Tibetana ............................................... 18
  O Significado da Própria Motivação ........................................................... 21
  Bodhicitta ................................................................................................... 22
  Lo-jong, Treinamento Mental ..................................................................... 23
  Equilíbrio Interno ........................................................................................ 24
  Sanidade Básica ........................................................................................ 24
  As Doenças Psiquiátricas .......................................................................... 26
  Demônios e Insanidade ............................................................................. 29
  Uma Escalada Gradual para a Sabedoria e a Compaixão......................... 29
  Mantendo a Mente Atenta, Permanecendo Dentro da Compaixão ........... 30
  Tong-len, Dar e Receber ........................................................................... 31
  O Bodhicitta Relativo e o Absoluto............................................................. 32
  A Qualidade da Franqueza e da Claridade em Todos os Fenômenos....... 33
  A Mente é Inexistente ................................................................................ 34
  Mahamudra................................................................................................ 34
  Duas Verdades .......................................................................................... 36
  Meditações no “shunyata”.......................................................................... 37
  Experiência Não-Dual ................................................................................ 38
PARTE 2: ALGUMAS OBSERVAÇÕES META-CIENTÍFICAS ...................................... 38
  Fontes do Conhecimento ........................................................................... 38

6
Tranquilizando a Mente e Discernindo o Real ........................................... 40
    Tradição e Autoridade................................................................................ 42
    Conhecimento na Medicina Tibetana ......................................................... 42
    O Desenvolvimento do Conhecimento ....................................................... 43
    Alguns Problemas de Interpretação ........................................................... 45
    Os Três Humores ...................................................................................... 45
    A Cientificação da Medicina ....................................................................... 46
    Algumas Observações Sobre Comensurabilidade..................................... 47
    Uma Visão Relacional do Homem ............................................................. 49
    Realismo na Medicina Tibetana ................................................................. 50
    Medicina Tibetana como um Programa de Pesquisa................................. 52
    Razão hábil ................................................................................................ 53
    Etnociência ................................................................................................ 55
    O Significado da Compreensão Prévia ...................................................... 56
    Os Três Mundos do Homem ...................................................................... 57
    Uma Cultura da Ciência e Uma Cultura da Sabedoria ............................... 58
    Harmonia ................................................................................................... 59
    Ciência e Sabedoria................................................................................... 59
    Sabedoria Prática, “Phronesis” .................................................................. 60
    Um Diálogo Possível Entre o Budismo e a Ciência Ocidental ................... 61
OS SEGREDOS DA FÓRMULA DA PÍLULA NEGRA* ................................ 63
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 63
TRADUÇÃO DO TEXTO:
“A ETERNA GEMA PRECIOSA PARA A CLARA REVELAÇÃO DOS SEGREDOS DA
FÓRMULA DA PÍLULA NEGRA” ............................................................................ 66
PURIFICAÇÃO DO MERCÚRIO E OS INGREDIENTES PRECIOSOS ............................. 69
A PRÁTICA DA DESINTOXICAÇÃO DOS INGREDIENTES PRECIOSOS ........................ 70
A GRANDE FÓRMULA ....................................................................................... 71
POLIMENTO ..................................................................................................... 76
PARA DETERMINAR UMA INTOXICAÇÃO ............................................................... 80
APÊNDICE 1: TRADUÇÃO DO TEXTO “UM MÉTODO CARACTERÍSTICO DE
ADMINISTRAR AS PÍLULAS PRECIOSAS - UMA PRÁTICA DE HABILIDADE” ................ 86
APÊNDICE 2: A ORAÇÃO DE BENÇÃOS ............................................................... 89




7
A MEDICINA BUDISTA TIBETANA SOB A PERSPECTIVA DA
            ANTROPOLOGIA DO CONHECIMENTO

                          Jan Bärmark

           Que eu possa ser o médico e a medicina
           E que eu possa ser aquele que assiste
           A todos os seres doentes no mundo
           Até que todos estejam curados.
                                           Shantideva
Parte 1. A Perspectiva Budista*
Um Dia no Consultório de um Médico
       Dois pequenos monges indicaram-me e ao fotógrafo Thoma
Ljungqvist o caminho para o consultório de Shekar Amchi. Sua
sala localizava-se em uma casa próxima ao monastério Khendrup
Sherap Ling em Kathmandu. Shekar Amchi estava sentado em
uma sala pequena, frugalmente mobiliada, com uma imensa
variedade de potes de pílulas cobrindo as prateleiras e a mesa.
Sobre a parede estava uma pintura em seda, uma thangka, de
Sangye Menla, o Buda da Medicina. Não havia nada que
lembrasse a alguém que aquele era o consultório médico. Nenhum
instrumento médico. Nenhuma roupa branca. Shekar Amchi (amchi

* Este estudo é dedicado a meu professor, Khenpo Tsultrim Gyatso
Rimpoche.
        O Dr. Jan Bärmark recebeu seu Ph.D. sobre a psicologia da
ciência e a teoria de Abraham Maslow em 1976. Seu principal campo
de estudo é Teoria da Ciência. Atualmente realiza pesquisa em
antropologia do conhecimento, ou seja, estudos comparativos sobre
conhecimento e cultura.

8
significa médico) estava vestido com uma roupa vermelha escura,
usada por monges. Nós o reconhecemos do monastério. Ele havia
estado lá em uma cerimônia de oferendas, onde textos foram
recitados acompanhados pela música de grandes tambores,
chifres, trompetas, sinos e címbalos. Naquele momento, nós o
encontrávamos ali em seu papel de médico.
        Com o auxílio de um monge que falava inglês, ele
perguntou qual nosso trabalho no Nepal. Dissemo-lhe que
estávamos em Kathmandu por um mês para estudar a filosofia
budista com o lama tibetano Khenpo Tsultrim Gyatso Rimpoche,
em seu recentemente inaugurado centro de estudos chamado
Marpa Institute. O intérprete sueco do lama Khenpo, Kicki
Ekselius, recomendou que viéssemos consultá-lo para que nos
ajudasse com nossos estômagos. Shekar Amchi perguntou-nos
alguma coisa sobre os sintomas e sobre o que tínhamos comido e
pediu para observar nossa língua. Após examinar também os
olhos, ele tomou o pulso sobre o braço muitas vezes. Considera-se
que a energia vital, importante para a saúde e a doença, possua
um canal através do braço, o que explica o cuidado com que ele
toma o pulso. Quando o diagnóstico foi estabelecido, ele nos
aconselhou sobre a dieta – para evitarmos carne de galinha, café e
álcool – e nos prescreveu pílulas duras e redondas. Devíamos
tomar duas pílulas grandes e três pílulas pequenas três vezes ao
dia com água morna. A visita ao médico estava terminada.
Retornamos para casa e tomamos nossas pílulas e ficamos bem
novamente alguns dias depois.
Uma Mudança Filosófica
        Como é possível interpretar e compreender uma medicina
incomum como a tibetana, onde tantas idéias e práticas parecem
tão irracionais para nós? Ao cruzar com um grupo de crenças que
pareçam irracionais à primeira vista, qual deveria ser minha atitude
com relação à elas?
        Nossa visita ao médico tibetano nos trouxe à memória a
questão de Steven Lukes: Como podem crenças e práticas

9
médicas, que obviamente não estão de acordo com a realidade
“objetiva” e com a medicina Ocidental, serem ao mesmo tempo
internamente lógicas e mesmo efetivas?
         Temos que analisar a racionalidade mística e religiosa em
termos completamente diferentes e seguindo outro critério daquele
que utilizamos quando analisamos a racionalidade científica?
Sentimos que poderíamos estabelecer uma identidade com as
anotações que John Woodroffe fez há mais de um século quando,
no prefácio para seus estudos sobre tantra – uma tradição
filosófica indiana frequentemente considerada irracional no mundo
Ocidental –, ele escreve: “Quando comecei o estudo deste
shastra, estava acreditando que a Índia não possuía mais
estúpidos do que os existentes em outros povos. Atrás da prática
ininteligível, que sem dúvida existe em alguma extensão em todas
as crenças, tive certeza de que deveria haver um princípio
racional, uma vez que os homens como um todo não continuariam,
através de muitas eras, a fazer o que não possuísse significado
próprio e não tivesse resultados.”
Uma Compreensão Interna
       Nosso objetivo é uma compreensão interior da medicina
tibetana, uma compreensão em seus próprios termos, o que não é
o mesmo que concordar com eles. Podemos também
compreender crenças estranhas, tais como a medicina e o
budismo tibetano, da mesma maneira que os tibetanos as
compreendem? Uma outra questão importante: que espécie de
cognição e outras experiências devemos desenvolver antes que
possamos declarar com certeza que compreendemos uma cultura
estrangeira interiormente? Uma compreensão interna envolve uma
duplicação da mentalidade nativa – apegar-se ao ponto de vista
nativo, compartilhar seus pensamentos interiores, ser capaz de
examinar seu raciocínio na mente do indivíduo. Nós duvidamos
que seja possível compreender uma cultura estrangeira
exatamente da mesma maneira que um nativo. Podemos chegar
muito próximo e até ver a cultura estrangeira sob a perspectiva e

10
os preconceitos de um Ocidental. Para chegar tão próximo,
devemos seguir os padrões da cultura estrangeira de forma a
sermos socializados dentro dela, o que significa prestar atenção
aos ensinamentos dos lamas e médicos, fazer meditações,
entrevistar lamas e médicos e estudar textos junto com budistas.
Pode-se ir ainda mais longe e fazer um refúgio durante três anos,
três semanas e três dias para ser um lama, de acordo com o
costume da tradição Kagyu do budismo, e até ser um lama
Ocidental. No entanto, haverá sempre um intervalo, mas este
intervalo na realidade é o local exato do diálogo criativo entre as
culturas e seus modos de pensar.
Uma Descrição mais Profunda da Medicina Tibetana
        Este relato de nossa visita a Shekar Amchi é uma descrição
superficial da medicina tibetana. Como podemos chegar a uma
descrição mais profunda? 1 O verdadeiro contexto sócio-econômico
no qual Shekar Amchi atua é interessante. Sob a perspectiva da
antropologia do conhecimento, a medicina tibetana pode ser vista
como um texto com muitas dimensões ou regras para serem
interpretadas e explicadas hermeneuticamente. Temos que
articular a visão global – as conjeturas, a cosmologia e sua
epistemologia, a plataforma filosófica para a prática médica. Uma
descrição profunda da realidade clínica na medicina tibetana
implica em uma análise da estrutura social da realidade médica.
Como são construídas as realidades das doenças? Como o
tratamento médico transforma a realidade da doença em saúde
recuperada a partir da perspectiva do paciente, na rede social do
paciente e do médico? Qualquer que seja a natureza e a causa da
doença, quaisquer que possam ser seus processos fisiológicos,
bioquímicos ou psicológicos fundamentais, eles penetram no

1Tomei  os dois conceitos de descrições “superficiais” e “profundas” de
Y. Elkana, A Programmatic Attempt at an Anthropology of Knowledge,
Sciences and Cultures, publicado por Y. Elkana e E. Mendelsohn,
“Sociology of the Sciences Yearbooks”, 1981, págs. 1-76. Reidel 1981.

11
mundo da vida humana e tornam-se objetos da ação humana
como realidades significativamente constituídas.
A Educação Médica
       A primeira dimensão, ou regra, na medicina tibetana é a
realidade material concreta, o contexto social do ambiente
monástico e sua posição e função dentro da mais ampla cultura.
Amchi é um médico e um monge. A religião e a ciência médica
estão integradas entre si. Amchi foi educado em uma cultura
permeada com a filosofia budista, assim como os médicos em
muitas outras culturas budistas. Sua educação durou cerca de
treze anos, durante os quais ele estudou medicina e aprendeu a
reconhecer, coletar e transformar ervas em medicamentos. Como
outros estudantes de medicina, ele começava seus estudos às três
horas da manhã, com orações a Manjushri, o Buda da Sabedoria.
Depois disso, estudava textos sobre medicina e astrologia que
recitava e memorizava até as seis horas. Exercícios físicos, um
tipo de rathayoga, vinham a seguir e às oito horas eram oferecidas
orações para Sangye Menla, o Buda da Medicina. Após o café da
manhã havia um horário para instrução individualizada
dependendo do nível do estudante. A astronomia e a medicina
eram estudadas paralelamente com comentários orais sobre os
textos. Exigia-se que os estudantes novos aprendessem gramática
e escrevessem poesia.
       Após o almoço, à uma hora, eram estudadas as medições
do corpo, localização das energias corporais sutis e
reconhecimento das plantas medicinais. Os estudos continuavam
durante o restante do dia até próximo do anoitecer, quando os
estudantes se reuniam para debater questões médicas e
astrológicas. Testes regulares eram realizados e os estudantes
recitavam os textos médicos, astrológicos ou astronômicos que
haviam memorizado. Após muitos anos de estudo, permite-se que
um estudante treine juntamente com um médico, para que adquira



12
habilidade nos diag-nósticos através do exame do pulso, um
método que necessita sete anos de aprendizado. 2
        De volta para o hotel, comparamos nossa experiência da
visita ao médico com o que havíamos lido sobre medicina tibetana.
O médico não havia levado em consideração qualquer possível
influência astrológica sobre nossos estômagos, e também não
analisou nossa urina, o que nos desapontou um pouco. É
principalmente por causa do exame da urina que a medicina
tibetana se fez conhecida. A urina é vista como uma espécie de
espelho no qual o médico pode observar a condição interna do
paciente. Grande importância é dada ao clima, à estação do ano e
à vida sexual do paciente, mas isto não foi comentado durante
nossa consulta. Talvez nossas queixas fossem demasiadamente
simples para que estes importantes aspectos da medicina fossem
necessários no diagnóstico.
Sobre as Pílulas Tibetanas
       As pílulas que recebemos foram feitas de uma certa
quantidade de ervas e especiarias. Juntas, eram positivamente
para estimular as energias vitais e restaurar o equilíbrio corporal
perdido, indicado pela doença. Há muitas centenas de anos, o
Tibete tornou-se famoso por seu conhecimento em plantas
medicinais. O vale YarLung é famoso por sua riqueza nestas
plantas e é mencionado em numerosos textos chineses. Há uma
complicada metodologia para a coleta das plantas e preparação
das pílulas, com orientações sobre o que e quando deve ser feito.
Além disso, a motivação do médico é muito importante. O médico,
invariavelmente, deve ser motivado por um forte sentimento de
compaixão por todas as criaturas vivas. Durante nenhuma fase do
processo de manipulação podem ocorrer quaisquer ações
negativas – pois teriam um efeito prejudicial sobre o

2Para  uma apresentação posterior do processo educacional na
medicina tibetana, ver Medicina Tibetana, de Rechung Rimpoche,
Berkeley, Los Angeles, 1973.

13
medicamento 3 . A condição mental do médico representa um papel
importante na medicina tibetana. Para ser capaz de prescrever um
bom tratamento, é necessário que o médico possua qualidades
como sabedoria e compaixão e que utilize seu trabalho para a
prática de virtudes como generosidade, paciência, entusiasmo e
moralidade. É preciso que o paciente tenha total confiança.
As Características Mentais do Médico
        As características mentais de um médico são mais
valorizadas que suas habilidades teóricas. Afirma-se que muitos
médicos são bem sucedidos na cura de muitos pacientes graças
às suas experiências meditativas, apesar de serem até mesmo
iletrados. O papel representado pelas qualidades internas do
médico também é salientado. “A crença de que é a pessoa do
médico, e não o sistema conceitual ou suas técnicas particulares,
o fator de importância decisiva para o processo de cura é também
um inquestionável contrato de confiança para a maioria dos
pacientes indianos.” 4 Sudhir Kakar menciona também a
importância dada ao médico que possui qualidades como “mente
limpa”. Um médico deve sofrer uma transformação interna
tornando possível que ele seja capaz de curar. Na medicina
tibetana, o médico deve seguir onze leis. Algumas delas
determinam que ele deve ter um grande respeito pelos seus
professores e considerá-los como deuses. Ele deve acreditar
naquilo que o professor lhe ensina e não deve ter dúvidas em
quaisquer de seus ensinamentos. Deve ter grande respeito pelos
livros sobre medicina. Deve ter simpatia pelos pacientes. Deve
considerar a medicina como uma oferenda do Buda da Medicina e
de todas as outras divindades curativas. 5 O médico deve, por

3T. Clifford, Tibetan Buddhist Medicine and Psychiatry, Wellingborough,
1984, págs. 115-125.
4S. Kakar, “Shamans, Mystics and Doctors”, New York, 1982, pág. 39.
5Rechung Rimpoche, “Tibetan Medicine”, Berkeley e Los Angeles,

1973, págs. 91-92.

14
outro lado, ser capaz de conseguir a motivação necessária para
utilizar a sabedoria e a compaixão tornando-se capaz de beneficiar
outros. Ele deve ser motivado pela postura do Bodhisattva ideal. O
Bodhisattva, por amor a todos os seres sem distinção, sejam reis
ou mendigos, promete adiar sua própria entrada no nirvana de
modo que possa permanecer no mundo para libertar os outros
seres do sofrimento perante si mesmos. O voto e o ideal do
Bodhisattva é o caminho do amor. É expressado pelo poeta
budista indiano, Shantideva:
     Tão duradoura quanto a existência do espaço e
     Tão duradoura quanto a existência terrena,
     Que durante este longo tempo minha existência possa
     ser devotada aos sofrimentos do mundo.
     Quaisquer que sejam tais sofrimentos,
     Que possam todos amadurecer em mim;
     E possa o mundo
     Ser confortado pelos gloriosos Bodhisattvas. 6
        Neste ideal não há separação entre as habilidades de cura
e o Dharma. Realizando o melhor do Dharma em seu ser e sendo
o melhor médico, haverá a dupla natureza da sabedoria e
compaixão do Buda, tornando-o mais capaz de compreender as
profundezas da ciência médica e de satisfazer as necessidades
físicas, emocionais e espirituais dos pacientes.
Todo o Conhecimento Médico Tem Origem na Sabedoria de Buda
       A relação entre o budismo e a cura é inata e extraordinária.
Precisa-se apenas reconhecer que o Buda falou da verdade
fundamental em termos de uma analogia médica. Afirma-se que
todo o conhecimento de Buda destina-se a prevenir o sofrimento.
De acordo com Buda, nós sofremos da frustração inerente da
existência condicionada, e nosso sofrimento é causado pelo fato
de que tudo quanto existe ou pode existir é impermanente e pelo
6Shantideva,     retirado de Terry Clifford, “Tibetan Buddhism and Psychia-
try”, pág. 25.

15
desejo sem fim que surge da ilusão básica da auto-existência do
ego. A medicina é o ensinamento, o Dharma, que Buda prescreveu
para dominar nosso sofrimento e nossa ilusão. E a essência
destes ensinamentos é subjugar a mente e transformar as
emoções negativas. A palavra em sânscrito para budismo,
dharma, pode ser interpretada com o seguinte significado “o que
nos mantém naquilo que é benéfico”, e a palavra correspondente
em tibetano, chos, significa “curar”. Tais analogias médicas são
extremamente básicas no budismo. Buda é referido como Médico
Supremo.
A Primeira Volta da Roda do Dharma
       Quando Buda girou pela primeira vez a Roda do Dharma
para dar seus primeiros ensinamentos, comparou-se a um médico,
relacionou os ensinamentos à medicina e sua aplicação ao
tratamento. Os ensinamentos são propostos da mesma maneira
que um diagnóstico médico, de acordo com a tradição Ayurvédica
indiana daquela época.
     Há uma doença?
     Do que é constituída?
     Há uma condição saudável?
     Como se pode alcançar esta condição?
       Em torno da doença, todos os seres sencientes circundam
em um ciclo de sofrimento e insatisfação. A causa deste
sofrimento está em nossa mente confusa. O estado de saúde e
bem-estar é a mente iluminada, livre da confusão e da ignorância.
Ignorância, Ma-rig-pa, significa que a inteligência e a claridade
natural da mente estão obscurecidas pelas emoções negativas. O
modo de remover esta condição é o caminho óctuplo, cujos
elementos básicos são moralidade, meditação e sabedoria (ponto
de vista correto, intenção correta, ação correta, fala correta, modo
de vida correto, esforço correto, atenção correta, meditação
correta).



16
A Causa Básica de Todas as Doenças
        De acordo com a filosofia, psicologia e medicina budista, o
“apego ao ego” é a causa básica deste estado de confusão mental
e, consequentemente, de toda doença e sofrimento. “Não há
senão uma causa para todas as doenças, e esta causa é a total
falta de compreensão do significado da inexistência da identidade
(a não existência de um ego independente). Por exemplo, mesmo
quando um pássaro voa a grande altitude, ele não se separa de
sua sombra. Da mesma forma, mesmo quando todas as criaturas
vivem e agem com alegria, enquanto possuírem a ignorância, é
impossível para elas estarem livres da doença.” 7 O Dr. Yeshe
Dhonden expressa o assunto em termos enérgicos. Todas as
pessoas são basicamente doentes. Até que tenhamos atingido a
mente iluminada, encontramo-nos em um estado de ignorância.
Desde que haja um apego à crença em um “eu auto-existente”
inerentemente, nós não estaremos livres da doença e do
sofrimento. Na presença das condições necessárias ao seu
surgimento, diferentes doenças psicológicas e fisiológicas vêm à
tona. A doença latente, por assim dizer, manifesta-se.
Doença é Desequilíbrio
       A doença é um sinal de desequilíbrio entre o microcosmo
interno e o macrocosmo externo. No entanto, a doença em si nem
sempre é atribuída a causas imediatas ou evidentes. O sintoma
que se manifesta é apenas o último estágio de um processo que
começa frequentemente algum tempo antes. Fala-se de três
estágios no desenvolvimento de uma doença: formação, acúmulo
e manifestação. Os tibetanos fazem uma analogia com as nuvens
no céu que começam a se acumular imperceptivelmente e atingem
uma densidade crítica para fazer cair chuva; mas isso apenas
ocorre se as condições atmosféricas assim permitirem, e da



7ibid.   pág. 6.

17
mesma maneira as estações podem determinar o início de uma
doença. 8
Buda, O Médico Ideal
       Com o passar do tempo, Buda tornou-se o modelo do
médico-santo, com quem os médicos budistas procuraram se
igualar, o ser realizado espiritualmente que ajuda aos outros,
curando suas doenças. A analogia médica é estabelecida no sutra
chamado “Lótus of the Good Law” no qual Buda afirma: “Nesta
comparação, Tathagata deve ser considerado como o grande
médico; e todos os seres devem ser considerados cegados pelos
erros, como um homem que nasceu cego” 9 . Toda medicina
tibetana tem como base filosófica os ensinamentos de Buda e os
mesmos têm origem, segundo os budistas, em uma mente
iluminada.
As Raízes Históricas da Medicina Tibetana
       A medicina tibetana tem suas raízes no Ayurveda. As
primeiras influências vieram da Índia, no século 6, mas não se
estabeleceram até o século 8, assim como a entrada do budismo
no país. O rei tibetano Srong-brtsan sgam-po tinha duas esposas,
uma chinesa e outra nepalesa. Ambas eram budistas e
interessadas em medicina. As duas esposas converteram o rei ao
budismo e convenceram-no a mandar buscar médicos da Índia,
China e Mongólia. A cada um deles foi requisitado que traduzisse
e apresentasse um texto médico ao Rei. No entanto, não havia
língua escrita no Tibete daquela época. Conforme o desejo do Rei,
tibetanos estudiosos em linguística foram enviados à Índia com a
tarefa de criar uma linguagem escrita. Com este objetivo
finalmente realizado, textos puderam ser traduzidos, tal como o
assim chamado “Quatro Tantras” sobre medicina, escrito por

8Dott.  Luigi Vitiello, “Introduction to Tibetan Medicine”, Shang-Shung
edizione, 1983, pág. 11.
9T. Clifford, “Tibetan Buddhism and Psychiatry”, pág. 23.


18
Chandrananda, conhecido em tibetano como “rGyud-bzhi”.
Sessenta textos foram traduzidos do sânscrito. O melhor dentre os
muitos eminentes tradutores foi Rinchen Zangpo, que viveu entre
985 e 1055, um importante período em termos de difusão da
filosofia budista através do Tibete. Os médicos tibetanos viajavam
para a Índia para estudar, e médicos indianos eram convidados
para se estabelecerem no Tibete. Do século 8 ao século 17, houve
uma intensa difusão da tradição médica da Índia para o Tibete.
Influências posteriores vieram da China e da Grécia, estas através
da Pérsia. Até o século 17, a medicina tibetana não caminhava
inteiramente sobre seus próprios pés. A primeira escola para
estudos médicos, Chakpori, foi então fundada nos arredores de
Lhasa. 10
A Árvore da Medicina
        Quando um estudante de medicina memoriza os textos,
utiliza uma pintura da árvore da medicina, como auxílio
pedagógico. A árvore da medicina possui três raízes, nove
troncos, quarenta e sete ramos, cento e vinte e quatro folhas, duas
frutas e três flores. As duas frutas são a saúde e a longa vida, as
três flores são o de-senvolvimento espiritual, a riqueza e a
felicidade. A primeira raiz tem duas divisões, uma caracterizando o
corpo saudável e a outra o corpo doente. O corpo saudável tem
três ramos, os humores, a constituição corporal e as excreções. O
ramo dos humores, sobre o tronco do corpo saudável possui três
folhas, rLung, mKris-pa e Bad-kan. Estes três, por sua vez, podem
ser divididos em cinco tipos diferentes, com sítios e funções
específicas. O corpo saudável é caracterizado por um equilíbrio
entre os três humores.
        A doença é causada pelo desequilíbrio. Como esclarece o
Dr. Yeshe Dhonden, apesar de todas as pessoas serem
basicamente doentes, a doença apenas se manifesta quando há

10ibid.
      págs. 35-63 e E. Finckh, Foundations of Tibetan Medicine, vol. 1,
Londres 1978.

19
um desequilíbrio entre os humores. O tronco do corpo doente
possui nove ramos. O primeiro é o ramo da causa e o segundo é o
ramo da condição, que descreve os fatores que permitirão a
maturação e a manifestação da doença. O terceiro ramo é o da
entrada. Este descreve os diferentes estágios no desenvolvimento
de uma doença, como penetra no corpo e como se dissemina no
interior do mesmo. O quarto ramo indica onde a doença finalmente
ocorre, dependendo de sua relação com rLung, mKris-pa e Bad-
kan. O quinto ramo descreve como a doença de dissemina no
corpo. O sexto ramo relaciona o tempo para a ocorrência da
doença, o período do ano e o clima característico. O sétimo ramo
refere-se às doenças que levam à morte, os oito efeitos colaterais
de um tratamento e o nono ramo refere-se ao modo como as
doenças podem ser classificadas como “frias” e “quentes”.
        O ramo da causa sobre o tronco do corpo doente possui
três folhas: ignorância-confusão (ma-rig-pa), ódio-aversão (zhe-
sdang) e apego-desejo-ânsia (‘dod-chags). Estas três emoções
perturbadoras (nyon mongs, em tibetano), ou como são
geralmente chamados “venenos psíquicos”, são apontadas como a
causa primária de todas as doenças psicológicas e fisiológicas. O
princípio da medicina tibetana (assim como ocorre em muitas
outras medicinas tradicionais) é de que o semelhante cura o
semelhante (similia similibus curantor, o axioma da homeopatia). O
apego possui as mesmas qualidades que rLung e, portanto, cria
doenças de rLung; a confusão-ignorância possui as mesmas
qualidades escuras e pesadas que Bad-kan e, portanto, cria
doenças relacionadas com o mesmo e o ódio tem as qualidades
de mKris-pa e cria doenças de mKris-pa. 11




11Y.Dhonden, Saúde Através do Equilíbrio, Editora Chakpori, São
Paulo 1993.

20
O Significado da Própria Motivação
        As virtudes no budismo preparam a mente para uma
percepção mais avançada, que é a sabedoria, considerando o
fenômeno sem apego. No budismo, podemos encontrar a
compreensão da relação entre motivação (as virtudes), o tipo de
consciência e a percepção. O propósito da prática do Dharma, ou
seja, da aplicação dos ensinamentos budistas em sua própria vida,
é livrar-se do sofrimento e da frustração. De acordo com os
budistas tibetanos, para alcançarmos este objetivo nós temos que
ouvir, refletir e meditar. “Ouvir” significa que precisamos prestar
atenção aos ensinamentos que nos são dados por uma mulher ou
um homem experientes capazes de transmitir o Dharma de uma
forma pura e de uma maneira adequada às nossas necessidades
e à nossa capacidade de compreender. Quando escutamos dessa
maneira, evitamos três tipos de erros, o erro de ouvir como uma
xícara virada com a abertura para baixo, de ouvir como uma xícara
com um buraco no fundo e o erro de ouvir como uma xícara na
qual algum veneno foi colocado, onde o veneno é o responsável
por nossa mente prejudicada. Depois de ouvir, temos que
examinar os ensinamentos, como um homem que vai comprar
ouro, examinando seu valor. Se encontramos algum valor naquilo
que ouvimos, devemos aplicá-lo em nossas mentes através do
cultivo mental (meditação), assimilá-lo e fazê-lo nosso. Em tudo
isso nossa motivação é da maior importância. A motivação para
lutar pela iluminação não deve destinar-se apenas para livrar a nós
mesmos do sofrimento, mas deve incluir todos os seres
sencientes, “tanto quanto o céu é vasto”. Um homem inferior luta
pela própria libertação e apenas para este período de vida. Um
homem medíocre luta também pela libertação em sua próximas
vidas, mas um homem superior luta pela libertação de todos os
seres sencientes.

        Ele deseja eliminar
        Todas as misérias dos outros,

21
Porque na correnteza de seu próprio ser
        compreendeu a natureza da miséria,
        Este é um excelente homem. 12
Bodhicitta
       O tipo de motivação sobre a qual estamos discorrendo é
denominado Bodhicitta (literalmente, “mente da iluminação”, mas
pode ser traduzido como “mente dirigida para a iluminação”).
Bodhicitta é a mente preciosa que deseja alcançar a iluminação
para o benefício dos outros. Diz-se que é a verdadeira base para
entrar no caminho do Mahayana no budismo. Um homem ou uma
mulher que tenham realizado o Bodhicitta são chamados
Bodhisattvas. O ideal para o médico é trabalhar por todos os seres
como um Bodhisattva.

     Esta intenção de beneficiar todos os seres,
     Que não surge em outros,
     mesmo que seja para sua própria salvação,
     É uma extraordinária jóia da mente,
     E seu nascimento é uma maravilha sem precedentes. 13

       Bodhicitta, o desejo de beneficiar os outros, é a verdadeira
essência da compaixão no budismo. Está junto com a sabedoria. A
compaixão e a sabedoria são semelhantes também às duas asas
de um pássaro. Mas nenhuma surge espontaneamente. São
habilidades a serem cultivadas. (Recordam-nos o que disse
Aristóteles sobre a prática da sabedoria. Virtudes tais como ser um
bom homem são habilidades que devemos exercitar). Nós temos
que cultivar nossas mentes para desenvolver estas qualidades.
Uma palavra tibetana para meditação, “gom”, tem o significado de
tornar a mente de uma pessoa familiarizada com algo. Em nosso

12sGompopa,The    Jewel Ornament of Liberation, Boulder, 1981, pág.18.
13Shantideva,  A Guide to the Bodhisattva’s Way of Life, Dharamsala,
Libraey of Tibetan Works and Archives, 1979.

22
treinamento mental, devemos deixar que nossas mentes se
familiarizem com pensamentos que sejam benéficos para nós e
para os outros.
Lo-jong, Treinamento Mental
       Este treinamento mental (em tibetano, lo-jong) 14 significa
modificar a mente de um estado para outro, acima de tudo, livrar
nossos pensamentos de atitudes centradas em si mesmas. Enfim,
objetiva libertar nossa natureza inerente de Buda, tornando
possível para nós beneficiarmos os outros. Apesar de possuirmos
uma mente sombreada por emoções negativas (ganância,
aversão, egoísmo e assim por diante) e visões distorcidas (a
crença na existência de um Eu inerente), a mente em si tem uma
sanidade básica, um potencial para ser iluminada. Toda medicina
budista apóia-se na hipótese de que nossa mente por si mesma
possui a natureza de Buda, o potencial para ir além do sofrimento
e da doença.
       O treinamento mental aqui mencionado poderia ser
comparado ao processo do refinamento do ouro, ou seja, retirando
de nossa natureza de Buda, aqui comparada ao ouro, as
impurezas, que seriam comparadas às emoções negativas. É um
processo que envolve observar tudo o que acontece em sua
mente com intensa consciência, mas sem ser levado pelas fortes
emoções ou pelo esvoaçar das idéias. Deve-se apenas observar
este “murmúrio interno” da mente sem qualquer esforço para
julgar, interpretar ou reprimir. Usando a expressão de
Krishnamutri, é uma “consciência sem escolha”. Assim, são
nossas emoções negativas e perturbadoras os obstáculos para
realizar nossa sanidade básica, devemos chegar aos limites com


14Para explicações mais detalhadas sobre lo jong, ver J. Kongtrul, The
Great Path of Awakening, Boston e Londres, 1987; G. Rabten e G.
Dhargyey, Advice From a Spiritual Friend, Londres, 1977; Sonam Gyat-
so, Essence of Refined Gold, Ithaca, 1982.

23
nossa própria mente. Você deve ser o mestre de sua própria
mente, não seu escravo.
Equilíbrio Interno
        O ponto de vista aqui nos remonta muitas vezes ao antigo
filósofo grego. Em ambas as culturas, o equilíbrio interno é visto
como um pré-requisito ao bem-estar. Apenas quando o indivíduo
não é mais prisioneiro dos sentimentos é que pode ser
considerado uma pessoa livre. De acordo com Sócrates, aquele
que é escravo de seus sentimentos é mais estúpido que o mais
estúpido dos animais. Quando sentimentos tais como ódio,
ganância ou apego surgem, devemos agir “como um leão entre
raposas”, como diz Shantideva.
        Portanto, nós devemos trabalhar com as emoções e o
melhor caminho para fazê-lo é observando sua substância básica.
Sua qualidade, a natureza fundamental das emoções, é apenas
energia. E, se o indivíduo é capaz de relacionar-se diretamente
com a natureza-energia, não há necessidade de qualquer conflito.
O princípio básico para esta prática é apenas estar lá, estar
presente.

         “Estar exatamente nesse momento, nem
         reprimindo nem deixando ir abertamente, mas
         estando precisamente consciente do que você é”,

assim Chögyam Trungpa descreve a prática.
Sanidade Básica
       Apesar das lâmpadas da casa terem sido acesas,
       O homem cego vive na escuridão.
       Apesar da espontaneidade estar próxima e abranger tudo,
       Para a mente iludida, ela permanece sempre distante. 15


15Retirado de T. Allione, Women of Wisdom, Londres, 1984, pág. XV.


24
Este poema, escrito pelo iogue indiano Saraha poderia ser
lido para dar a mensagem de que enquanto não realizarmos
nossa natureza inata de Buda, continuaremos a viver na
escuridão, sofrendo diferentes tipos de frustrações e doenças.
Todos os seres vivos possuem a natureza de Buda, mas isso não
permanece exposto. No Gyu Lama, 16 é comparada à manteiga no
leite, ao óleo de gergelim na semente do gergelim e uma pequena
estátua em um bolo de mel circundado por abelhas. A manteiga, o
potencial, deve ser trabalhada no leite para se manifestar. As
abelhas em torno do bolo poderiam ser vistas como “emoções
perturbadoras”, tais como raiva e medo juntamente com o apego
pelas doçuras da vida. Enquanto formos escravos de nossas
próprias “emoções perturbadores” não seremos capazes de
experimentar nossa natureza mais profunda. Estes aspectos,
colocados nas palavras de Shantideva:
       Embora os inimigos, como o ódio e o apego
       Não possuam nem braços nem pernas,
       E não sejam corajosos nem sábios,
       Não tenho sido usado por eles como um escravo? 17

        Todos os ensinamentos de Buda poderiam ser
considerados como conselhos pessoais sobre como podemos
cultivar nossas mentes para livrar-nos de emoções perturbadoras
e visões distorcidas e, portanto, realizarmos nossa própria
natureza inerente de Buda. O que é, no entanto, a natureza de
Buda? É frequentemente comparada ao céu aberto sem centro ou
fronteiras. A natureza da mente é a franqueza e a claridade. É o
nada, ou seja, a não existência. A mente não é um objeto. Nada



16Gyud bLama, ou Mahayana Uttara Tantra Shastra foi traduzido para o inglês

com o título The Changeless Nature, Samye Ling, Eskdalemuir, 1985.
17Shantideva, A Guide to the Bodhisattva’s Way of Life, Dharamsala, 1979,

pág. 39.

25
para pegar. Nada para se agarrar. 18 Ou, colocando nas palavras
poéticas de Kalu Rimpoche:
           A essência da mente é o vazio
           A natureza da mente é a claridade
           A mente vazia e clara é o campo de Buda
           O estado de franqueza
           Estas três qualidades não estão separadas
           São todas o mesmo
           Em seres sencientes o vazio não é experimentado
           A ignorância o é
           A claridade não é experimentada
           Os cinco sentidos o são
           A verdadeira natureza da mente é eterna
           É inata
           E imortal
           E portanto eterna
           Apenas o corpo morre. 19
As Doenças Psiquiátricas
       Não é nada extraordinário que a psiquiatria ocupe uma
posição única na medicina tibetana, porque o ensinamento budista
repousa principalmente sobre a natureza da mente. De qualquer
modo, não existe para isso nenhuma categoria especial de
habilidade médica. A divisão de trabalho e especialização que
caracteriza nossa medicina Ocidental está ausente na medicina
tibetana.
       Com relação a todas as formas de sofrimento, somático ou
existencial, considera-se que a raiz do infortúnio esteja na
confusão do ser humano, suas concepções errôneas sobre sua
própria mente. Demasiado ódio, confusão ou apego levam a um
desequilíbrio e, portanto, à doença. Porém, em uma perspectiva

18Wisdom     Energy 2, Wisdom Culture, Cumbria, 1979, pág. 14.
19Ver   T. Clifford, Tibetan Buddhism and Psychiatry, págs. 127-197.

26
mais limitada, são apontadas principalmente cinco causas de
doenças psicológicas: karma (o resultado de ações realizadas em
vidas anteriores), tristeza/aborrecimento, desequilíbrio dos
humores, venenos e demônios. As doenças psicológicas podem
também surgir em consequência de stress, relações familiares
insalubres, problemas com amor, ansiedade e isolamento do
mundo. O resultado é uma doença psicológica essencialmente de
três tipos, caracterizado por seus sintomas: 1) medo e paranóia, 2)
agressão e 3) depressão e isolamento. A base filosófica para todo
tratamento psiquiátrico é a natureza inerente de Buda, de que há
uma insanidade básica no homem. É possível transformar a
confusão e o isolamento através de métodos habilidosos. Para
doenças relacionadas com o karma, há apenas um tratamento que
auxilia, a prática do Dharma, que tem como objetivo limpar a
mente do indivíduo e restaurar sua sanidade básica.
        A prática do Dharma significa exercitar os seis paramitas, a
generosidade, a paciência e assim por diante. De acordo com o
budismo tibetano, a prática do Dharma não é apenas uma cura
para as doenças que estão se manifestando, mas também uma
medida preventiva contra futuros desequilíbrios. Enquanto
tivermos concepções irreais sobre a realidade estaremos aptos a
cair no abismo dos sofrimentos psíquicos. Todos os fenômenos
são impermanentes. Entretanto, é necessário livrar-se das oito
preocupações mundanas e realizar que os ganhos e as perdas, a
felicidade e a infelicidade, as falhas e o sucesso, as conversas
agradáveis e desagradáveis não são algo para apegar-se, todas
elas vêm e vão. A renúncia é uma expressão deste discernimento.
É a prática do não-apego. Apegos a fenômenos transitórios são
“como mel lambuzando o fio de uma navalha”, nas palavras de
Shantideva. Trazem apenas frustração e sofrimento. O termo
tibetano traduzido geralmente como renúncia possui um
significado literal de “emergência definitiva”. Indica uma decisão
profunda e sincera para emergir definitivamente das repetidas
frustrações e desapontamentos da vida comum. Na realidade, a

27
renúncia é uma atitude. Renúncia significa desistir dos apegos às
coisas do mundo, um apego por possui-los.
        O fato de tais fenômenos como felicidade e infelicidade,
falhas ou sucessos, ganhos ou perdas serem transitórios e,
portanto, o fato de não podermos confiar nossa felicidade em
nada, podem, se rejeitados ou reprimidos, criar ansiedade e
sofrimento psicológico. Se fizermos deste fato (de que todos os
fenômenos são transitórios), um ponto de partida para nossa
aplicação do Dharma, isto pode ser o impulso para tentar
seriamente a iluminação. Emoções perturbadoras, negativas,
podem ser transformadas através de práticas meditativas. No
budismo, nunca se fala em “repressão”, mas em “transfiguração”
ou “transformação” de emoções, uma vez que são na realidade
elementos essenciais de nossa psique. Meditações, visualizações
e mantras são os métodos para este processo alquímico, o qual
deve ser realizado sob a orientação de um professor
experimentado. Os fundamentos da insanidade e da iluminação
são os mesmos, assim como samsara (o ciclo do sofrimento) e
nirvana (o estado além do sofrimento) são inseparáveis. Mas eles
são dois modos distintos de experimentar o mesmo fenômeno.
Através da prática do Dharma, realizamos a verdadeira natureza
do fenômeno, como franqueza e claridade e podemos permanecer
felizes em um mundo onde tudo é impermanente. Na longa
trajetória, a prática do Dharma é o melhor medicamento para
todas as doenças. Mas também há tratamentos com um caráter
mais próximo da terra, para lidar com as necessidades imediatas
do paciente. São tratamentos mais breves para doenças
psicológicas, por exemplo, medicamentos à base de ervas,
massagens, banhos medicinais e exorcismo. Também pode ser
prescrito que o paciente, que a pessoa doente, permaneça em um
ambiente com pessoas gentis, que fique rodeado por objetos
bonitos e que receba livros que possam ser estimulantes.
Podemos descrever esta prescrição como um tipo de terapia
ocupacional na prática.

28
Demônios e Insanidade
        Os demônios (gdon) são considerados uma possível causa
de insanidade. A medicina tibetana interpreta como demônios
diferentes tipos de forças e emoções não-visíveis que tem o poder
de criar um desequilíbrio. Representam uma imensa variedade de
forças e emoções que normalmente estão além do controle
consciente e todas impedem o desenvolvimento espiritual e o
bem-estar. Também podem estar relacionadas com ligações
conscientes tais como a preguiça, a má companhia, demasiada
sensitividade, apego às possessões, as oito aflições mundanas já
mencionadas, sectarismo ou orgulho. Todos constituem
obstáculos ao desenvolvimento espiritual. 20 Portanto, demônios
são a princípio fenômenos psicológicos associados com uma
variedade de obscurecimentos mentais e emocionais. A incrível
iogue Ma-chig-la, no século 12, explicou para um de seus
discípulos o significado de demônio. Ela descreveu-os como
“muito, muito grandes, e totalmente negros. Quem quer que visse
um deles ficaria verdadeiramente apavorado e tremeria da cabeça
aos pés – mas demônios, na realidade, não existem”. O que
podemos compreender disso é que os demônios são reais em um
sentido psicológico, como por exemplo, “objetos interiores”
mencionados na teoria das relações do objeto em psicanálise.
Eles existem da mesma maneira que os sonhos ou como fantasias
psicóticas. Os demônios parecem muito reais, mas na verdade,
são apenas fabricações mentais.
Uma Escalada Gradual para a Sabedoria e a Compaixão

     Na prisão do sofrimento da existência cíclica sem limites
     Vagam os seis tipos de seres sencientes privados da felicidade.
     Pais e mães que o protegeram com bondade estão lá,
     Abandonando o desejo e o ódio,
     medite no amor e na compaixão.

20ibid.   págs. 147-170.

29
Não deixe sua mente desviar-se,
     coloque-a dentro da compaixão.
Mantendo a Mente Atenta, Permanecendo Dentro da Compaixão
21

       Lam-rim é um caminho gradual no qual podemos treinar
nossas mentes para torná-la iluminada. O fundamental são as
práticas preliminares nas quais contemplamos o precioso corpo
humano, a morte e a impermanência, as ações e seus resultados
(karma) e as imperfeições da existência cíclica. Isso significa,
entre outras coisas, livrar-se ou abandonar os oito conflitos
mundanos, o apego à felicidade e infelicidade, ganhos e perdas,
as falhas e os sucessos, as falas amáveis e ásperas. Devemos
contemplar tudo isso cuidadosamente e refugiar-nos em Buda, no
Dharma e na Sangha. Esta é a base sólida para práticas
posteriores. 22
       Uma vez entrando no caminho gradual, devemos combater
nossos principais inimigos internos, o apego à crença na
existência independente de um Eu inerente e seus dois principais
serventes, a auto-importância e o auto-carisma. Estes inimigos
são as causas principais de todo sofrimento e doença. Eles
funcionam como “venenos psíquicos” e são as causas
fundamentais para as doenças físicas e psicológicas. No
treinamento da mente, tudo o que ocorre em nossas vidas pode
ser usado como métodos habilidosos para cultivar a sabedoria e a
compaixão. Há meditações recomendadas até mesmo para
transformar obstáculos em recursos. Os inimigos nos dão a
oportunidade para praticar a paciência. Mesmo as doenças físicas

21Kalsang   Gyatso, The Seventh Dalai Lama, The Song of the Four
Mindfulness Causing the Rain of Achievments to Fall, The Precious
Garland and the Song of the Four Mindfulnesses, G & Unwin, 1975,
pág. 115.
22Para uma explicações das práticas preliminares ver The Torch of

Certainty, Jamgon Kongtrul, Boulder e Londres, 1977

30
e os sofrimentos podem ser um auxílio para aprofundar nosso
desejo pela iluminação. Podem também nos ajudar a desenvolver
a compaixão e a transformar nosso sofrimento em caminho.
Tong-len, Dar e Receber
       O exercício chamado “dar e receber” (tong-len, em
tibetano) é um bom exemplo disso. Inicia-se imaginando que
nossa própria mãe está sentada em nossa frente. Então,
imaginamos todas as coisas boas que ela fez por nós. Depois,
imagina-se que durante eras sem princípio todos os seres
sencientes em algum momento podem ter sido nossa mãe ou pai
e nos dado igualmente muito amor e compaixão. Agora é nossa
vez de dar-lhes algo de volta. Agora todos estão passando por
diferentes tipos de sofrimentos por causa de sua própria
ignorância e confusão. Consequentemente, você deve desejar
sinceramente que todos os sofrimentos dos outros venham para si
e que todas as suas felicidades sejam também deles. Imagine que
os sofrimentos de todos entram em suas narinas na forma de
piche negro que é absorvido pelo seu coração. Pense que todos
os seres estão livres do sofrimento para sempre. Então, quando
exalar, imagine que sua própria felicidade sai das narinas e é
absorvida pelos corações de todos. Deseje que todos os seres
adquiram o estado de Buda. A importância dessa prática de dar e
receber é claramente definida por Shantideva:

        Se eu não trocar completamente
        Minha felicidade pela tristeza do outro,
        o estado de Buda não se realizará. 23
       Meditando dessa maneira combatemos nossa própria
atitude de auto-estima, nosso costume de sempre colocarmos a
nós mesmos e a nossa própria felicidade em primeiro lugar.

23Shantideva, A Guide of Bodhisattva’s Way of Life, citação de J.
Kongtrul, The Great Path of Awakening, pág. 15

31
Colocando este ensinamento nas palavras poéticas de Shantideva
novamente:
           Qualquer que seja a felicidade que exista neste mundo
           Tudo vem do desejo de que os outros sejam felizes
           E qualquer que seja o sofrimento que exista neste mundo
           Tudo vem do meu próprio desejo de ser feliz 24 .

O Bodhicitta Relativo e o Absoluto
        Bodhicitta, a mente preciosa, pode ter dois significados,
relativo e absoluto. Bodhicitta em um sentido relativo significa
cultivar os seis paramitas, virtudes como generosidade, paciência,
entusiasmo, moralidade, concentração e sabedoria. No sentido
absoluto, Bodhicitta implica na completa realização do
“shunyata” 25 . Vamos tomar como exemplo o paramita da
generosidade. Generosidade, como explica Shantideva, significa
dar tudo, incluindo o pensamento de dar. Em sua essência, é um
estado da mente. Mas, que tipo de estado é este? É
fundamentalmente um estado onde não há mais qualquer sentido
de meu e seu, dar e receber. Todas estas idéias são construções
mentais. O ato de dar vem de uma mente onde o apego à idéia de
um Eu e meu desapareceu. A generosidade, neste sentido é um
tratamento direto para a ganância, o apego às coisas como se
estas fossem nos dar felicidade permanentemente. A paciência é,
da mesma forma, um remédio para a raiva e a aversão. O
Bodhicitta absoluto vem de uma mente que realizou o shunyata, o
“vazio”, que todos os fenômenos não possuem uma existência
inerente. Tendo realizado isso, podemos tomar para nós mesmos
o sofrimento de outros, para sermos um “receptáculo” destes
sentimentos como assim define Winnicot, e ao mesmo tempo
vermos que os mesmos não são reais em um sentido absoluto.

24ibid.
25J.   Hopkins, Compassion in Tibetan Buddhism, Londres, 1980.

32
A Qualidade da Franqueza e da Claridade em Todos os
Fenômenos
       A filosofia do “shunyata” é talvez a mais difícil de se
apreender em todas as idéias budistas. 26 A idéia de que a
realidade possui a natureza do “shunyata” nos dá facilmente a
impressão de que os budistas são niilistas, negando a realidade
que todos nós podemos experimentar como sendo
verdadeiramente real. Mesmo na literatura budista, há muitas
advertências para evitar a má interpretação do “shunyata”.
Nagarjuna afirmou em seu Tratado Fundamental chamado
“Sabedoria”:

          Analisar o “estado de vazio” erroneamente,
          Assim como agarrar uma cobra incorretamente,
          Traz a ruína àqueles de pouca inteligência. 27

        Há dois erros que podem ser cometidos. Um deles é
acreditar que “shunyata” significa uma completa negação do
fenômeno, niilismo. O outro erro é pensar que o fenômeno possui
uma existência autônoma, que é permanente, eterno. Ainda de
acordo com a filosofia budista, as experiências meditacionais
levam-nos a verificar que todo fenômeno está em constante
mutação, que toda realidade é um fluxo. O budismo é o caminho
intermediário entre estes dois extremos, do niilismo e do
eternalismo. Os fenômenos não possuem qualquer substância
permanente. E isso é que é negado pelo “shunyata”. O
significativo é que todo fenômeno carece de um si mesmo
inerente. O “shunyata”, portanto, não é uma negação da realidade
do fenômeno, mas exprime algo relacionado à maneira como
existem os fenômenos. Não existem por si mesmos,
26Garma  C. C. Chang, The Budhist Philosophy of Totality, University
Park e Londres, 1974, pág. 60.
27G. Rabten e G. Dhargyey, Advice From a Spiritual Friend, Londres,

1977, pág. 40

33
independentemente de outros fenômenos. Todo fenômeno surge
por causa da interdependência com outro fenômeno e desaparece
como consequência das causas. Existem na forma de processos
interdependentes.
A Mente é Inexistente
       A mente é vista como uma corrente do processo. Não há
entidade permanente nesta corrente que possamos qualificar
como um eu, tal como nossa ignorância (ma-rig-pa) nos faz
acreditar. A mente também não tem existência independente.
Qualquer estado da mente depende de numerosos momentos de
consciência e vários fatores mentais. Cada fator mental individual,
tal como um sentimento de felicidade ou tristeza, também é
dependente de uma variedade de condições, que uma vez
reunidas, fazem com que ocorra um sentimento particular. A
pessoa também é dependente. A pessoa existe meramente na
dependência de componentes físicos e mentais dos quais é
constituída. Consequentemente, “shunyata” significa a anulação
completa ou a ausência de qualquer existência independente,
inerente dentro de um fenômeno.
Mahamudra
       Para tornar este termo “shunyata” mais claro, ele tem sido
traduzido como vazio, abertura, etc. A realidade não tem a
qualidade de uma coisa. Sua natureza é franca e clara. A filosofia
do “shunyata” segue juntamente com um maneira específica de
perceber a realidade. Ao invés de enfocar os fenômenos
concretos da forma como ocorrem, consideramos o campo no qual
surgem, o espaço aberto no qual residem todos os fenômenos. 28
Da mesma forma, ao invés de sermos seduzidos por qualquer
coisa que ocorra em nossa mente, observamos a abertura e a

28HerbertGuenter, The Dawn of Tantra, Guenther, Chogyam Trungpa.
Berkeley e Londres, 1975, págs. 26-33; S. Odin, Process Metaphysics
and Hua Yen Budhism, Albany, 1982, págs. 32-52.

34
claridade da mente em si. Realizamos mais e mais que a mente
em si não tem existência. É aberta e clara. Não há nada
semelhante a alguma coisa para apegar-se. A meditação sobre o
“shunyata” é o mais poderoso remédio para nosso auto-apego. É
por causa deste auto-apego, juntamente com nossa maneira de
impor uma auto-existência ao fenômeno, que experimentamos
tudo de uma forma distorcida. Os fenômenos ocorrem e podemos
experimentá-los, mas enfim eles não existem independentemente
de nossos conceitos e imposições. Assim todos os fenômenos
possuem o selo do “shunyata”. Isso é chamado Mahamudra
(maha, grande e mudra, selo), uma experiência não-dual da
“qualidade inerente” de todos os fenômenos, transcendendo todas
as conceitualizações. Mahamudra é deixar a mente repousar em
seu estado natural, apegando-se a nada.
        “No Mahamudra sem objeto, livre de imagens,
        Os dez mil pensamentos ilusórios são vazios.
        Uma vez que todos os fenômenos são o conhecimento e
        a pura consciência
        Eu vejo minha realidade como Mahamudra.”

       Mas devemos fazer um fetiche do “shunyata”, por que este
também carece de existência inerente. O “shunyata”, portanto, não
é um fim em si mesmo. É apenas um meio para elevar a mente ao
prajna, um discernimento transcendental. Aqueles que convertem
o “shunyata” em outra doutrina estão, como dizia Nagarjuna,
verdadeiramente além da esperança e da ajuda. A realização do
“estado de vazio” não é simplesmente um despertar para uma
realidade ontológica, mas um passo salvador que liberta o homem
de suas frustrações e sofrimentos.
       A experiência do “shunyata” segue juntamente com a
grande compaixão. É uma experiência direta de não-dualidade
frequentemente simbolizada por um casal divino enlaçado,
geralmente visto na arte sacra tibetana, e ambos inspiram e


35
expressam visualmente as experiências e a visualização de
meditações.
        Exatamente naquele momento
        quando a Grande Compaixão surge
        Emerge de forma nua e vívida o Grande Shunyata.
        Deixe-me sempre encontrar
        este inconfundível Caminho Duplo-em-Um
        E praticá-lo dia e noite. 29

Duas Verdades
       Todos os fenômenos, seus e de outros (verdade relativa)
compartilham a natureza do “shunyata” (verdade absoluta). As
duas verdades são inseparáveis. Realizar a natureza fundamental
do “estado de vazio” luminoso é dissolver a distinção entre o
samsara e o nirvana. Portanto, todos os fenômenos são
concebidos com “percepção pura” como inseparáveis do “estado
de vazio” radiante e consequentemente como a expressão
sagrada da natureza de Buda. A experiência direta do “estado de
vazio” é frequentemente acompanhada por felicidade, e todos os
fenômenos são concebidos como o divertimento da divindade do
“shunyata”, da abertura e claridade. Como disse o iogue Longchen
Rabjampa:
        Visto que a mente em si – pura desde o início e sem
        nenhuma raiz para apegar-se a algo que não seja ela
        mesma – não possui nenhuma relação com uma
        causa ou com algo a ser feito, esta mente pode muito
        bem ser feliz... Visto que tudo é meramente uma
        perfeita aparição, sendo o que é, não tendo qualquer
        relação com o bom ou o mal, com a aceitação ou a


29R.Moacanin, Jung’s Psychology and Tibetan Buddhism, Londres,
1986, pág.19.

36
rejeição, uma pessoa pode muito bem cair na
        gargalhada. 30

Meditações no “shunyata”
       A realização do “shunyata” é o resultado de meditações em
um caminho progressivo. No início, com sua primeira
compreensão, melhor do que um bom senso grosseiro, progride-
se através de estágios incrivelmente sutis e mais refinados até
chegar à completa e perfeita compreensão. Cada estágio no
progresso prepara a mente para o próximo e assim por diante,
cada passo está inteiramente integrado em sua própria
compreensão através do processo meditativo. 31
       O caminho graduado para a meditação no “shunyata” tem
como objetivo um conhecimento experimental do “estado de
vazio”. Combina meditação com raciocínio lógico.
       Da mesma maneira, cientistas estudam objetos físicos,
como flores. A primeira análise grosseira separa a flor em suas
partes, pétalas, estame, etc. Uma análise mais refinada separa-a
em células, moléculas depois átomos, partículas sub-atômicas.
Finalmente, estas partículas sub-atômicas em si perdem sua
identidade, tornam-se simples movimento no espaço vazio e a
natureza fundamental deste movimento desafia a análise racional.
Contudo, a flor permanece ainda vívida e óbvia como sempre.
Deve-se aceitar, portanto, que há duas verdades, a relativa e a
absoluta. A relativa refere-se a como as coisas aparecem para a
consciência comum e não-crítica e a verdade absoluta é a
natureza fundamental de uma coisa, estabelecida através da
análise precisa e minuciosa da mente racional. A relativa refere-se
a simples conceitos e a absoluta é “shunyata”, livre de conceitos. 32

30T. Clifford, Tibetan Budhist Medicine and Psychiatry, pág. 29.
31Khenpo    Tsultrim Gyatso Rimpoche, Progressive Stages of Meditation
on Emptiness, Longchen Foundation, Oxford, 1986, pág. 11.
32ibid. págs. 57-58


37
Experiência Não-Dual
         O objetivo final é uma percepção direta do “shunyata”, livre
de conceitos e fabricações mentais. Mas, antes de ser possível
uma percepção direta da mente e do corpo, assim destituída de
uma existência substancialmente auto-suficiente em si, em
primeiro lugar deve estar compreendida conceitualmente a
ausência dos mesmos. Os filósofos desenvolvem uma imagem
mental de si mesmos até finalmente, através de uma crescente
familiaridade com aquela imagem, tornarem possível a percepção
direta. 33
         Compreendendo o trabalho ilusório da mente
         Que observa todas as coisas
         como se fossem isoladas umas das outras,
         A visão penetra o drama ilusório da manifestação
         e surge o “vazio”.
         Então livre dos abismos do niilismo e do eternalismo
         pelo rei das perspectivas abertas como o céu,
         A mente está repleta de alegria. 34


Parte 2: Algumas Observações Meta-Científicas

Fontes do Conhecimento

       Até agora, tentei entrar em harmonia com a perspectiva
budista sobre filosofia e medicina. Agora é tempo de representar o
papel de meta-cientista e fazer algumas questões
epistemológicas. Assim, temos que questionar primeiramente

33Anne  Klein, Knowledge and Liberation, Ithaca, New York, 1986, págs.
13-32.
34Selected Works of the Dalai Lama VII, Songs of Spiritual Change,

Ithaca, 1982, pág.8.

38
sobre a epistemologia da filosofia budista, e depois como isso está
relacionado com a medicina. Portanto, quais são as fontes de
conhecimento e erro de acordo com a filosofia e a medicina
budista? Quais são as conjunturas epistemológicas atrás de tudo
isso? As fontes do conhecimento podem ser definidas como sendo
socialmente determinadas, como apontado por Elkana. 35 Os
conceitos centrais em qualquer epistemologia estão relacionados
com as estruturas culturais e resultam de um consenso social. Há
muitas fontes de conhecimento, e Elkana fornece uma lista parcial:
a) experiência, b) evidência dos sentidos, c) idéias claras e
distintas, d) tradição, e) autoridade, f) revelação, g) inovação, h)
beleza, i) intuição, j) analogia. 36
        Se aplicamos esta lista à medicina tibetana, podemos notar
que a experiência representa um papel central: experiências com
a produção de medicamentos, no tratamento dos doentes, da
análise dos corpos de pessoas mortas, etc. Aprendia-se através
da experimentação de tratamentos. A experiência vem dos
sentidos, mas é sempre enfatizado que o indivíduo não deve se
enganar tomando ingenuamente por certo apenas o que os
sentidos informam. Devemos estar conscientes sobre a atividade
dos sentidos, e fazer uma distinção entre o que é visto
espontaneamente como estando lá, e o que realmente está lá.
Nossa experiência espontânea da realidade pode nos enganar. É
típico para uma cultura pré-científica como a tibetana que a
experiência esteja unida à percepção, uma percepção imediata da
realidade e racionalizações da informação obtida através desta
percepção imediata. A ciência Ocidental é distintiva, entretanto,
criando deliberadamente novas experiências através da invenção
de entidades e modelos teóricos no desenvolvimento de bom-
senso na observação. Na ciência Ocidental nós experimentamos a
35Y. Elkana, A Programmatic Attempt at on Anthropology of Knowledge,
Sciences and Cultures, E. Mendelsohn e Y. Elkana, Sociology of the
Sciences Yearbook, 1981, pág. 19.
36ibid. pág.19.


39
realidade através de nossos modelos. No budismo e na medicina
tibetana é crucial a percepção mental, enquanto na ciência
Ocidental, cruciais são nossos modelos. A experiência na filosofia
e medicina budista é pessoal. É um conhecimento pessoal. A
ciência Ocidental tende para a despersonalização.
        O papel das idéias claras e distintas é muito enfatizado na
filosofia budista. O papel da lógica e a habilidade de fornecer
argumentos racionais é consequentemente central. Desde a
época de Buda, tem havido um debate contínuo entre diferentes
escolas no budismo sobre epistemologia, assim como problemas
lógicos. Mas em geral, podemos dizer que todas as escolas
budistas concordam em alguns pontos essenciais. 37
Tranquilizando a Mente e Discernindo o Real
        Desse modo, as análises da mente através de diferentes
tipos de meditação são consideradas para fornecer um
conhecimento confiável sobre os processos mentais e mesmo
sobre a natureza da mente em si. Percepção e conhecimento (blo-
rig) é o estudo da consciência, da mente. Compreender a mente é
essencial para compreender o budismo tanto em seus aspectos
práticos como teóricos, e ainda, para o processo de conquista da
iluminação, esta compreensão é sistematicamente a primeira na
purificação e intensificação da mente. Dentro da ordem Gelugpa
do budismo tibetano, a mente é estudada formalmente no tópico
de “Percepção e conhecimento”. É a segunda maior área de
estudo realizado durante um curso de treinamento intelectual que
termina depois de vinte a vinte e cinco anos de estudos intensivos
na obtenção do grau de ge-she, um doutor em filosofia. A
consciência é examinada principalmente através da divisão em
tipos e subtipos a partir de diversos pontos de vista, por meio do
qual um estudante desenvolve uma compreensão das variações
da consciência, suas funções e interrelações. Além desses

37Ver, por exemplo, A. Klein, Knowledge and Liberation, Ithaca, New
York, 1986.

40
estudos teóricos os estudantes também precisam aprender sobre
suas mentes através de práticas meditativas.
        Ao examinar nossa realidade interna e externa devemos
em primeiro lugar acalmar nossas mentes para sermos capazes
de discernir o que é real. Através do “zhi-ney” tranquilizamos
nossa mente e aguçamos sua capacidade analítica. No “lhag-
thong” (meditação no discernimento), aplicamos esta agudeza
para a análise de fenômenos externos e processos internos.
Dessa forma, os diferentes tipos de meditação trabalham como
meios efetivos para uma análise de nossas maneiras de “elaborar
o mundo”, conforme a adequada expressão de Nelson Goodman.
A análise é dirigida para o papel representado por diferentes
fatores mentais em nossa percepção do mundo. Mesmo que o
objetivo final seja uma percepção não dual, direta, da realidade,
além de todas as formas de conceitualizações e fabricações
mentais, temos que utilizar conceitos e lógica na direção deste
objetivo. Nessa análise lógica e conceitual investigamos quais
fatores mentais levam ao conhecimento válido e confiável e quais
fatores distorcem nossa percepção do mundo. O método é a
purificação da faculdade do conhecimento. A verdade fundamental
é não-conceitual. Portanto, o método na escola Madyamika de
budismo é para desconceitualizar a mente e para livrá-la de todas
as noções, tanto empíricas como a priori. A implicação desse
método é que o real é encoberto pelas elaborações de nossas
noções e pontos de vista. O real é conhecido através da
descoberta do mesmo, removendo a opacidade das idéias,
observando-as como o “vazio” da existência absoluta. O intelecto
torna-se tão puro e transparente que nenhuma diferença pode
possivelmente existir entre o Real e o Intelecto que o apreende. A
ênfase aqui é para a atitude correta sobre nosso conhecimento, e
não como na ciência, na qual a ênfase é para o conhecido. A
mente no budismo não é semelhante à inteligência de Aristóteles,
dotada da habilidade para conhecer a existência; longe disso, sua
atividade natural ou sua conceitualização é também uma

41
obstrução, a qual deve ser tranquilizada e clareada através das
meditações mencionadas, antes da verdade estar presente.
Tradição e Autoridade
        A tradição e a autoridade são conceitos centrais no
budismo. Os ensinamentos de Buda, por exemplo, são
considerados impositivos. A tradição nos dá acesso à experiência
coletiva dentro do contexto budista. “Revelação” é uma palavra
complicada para ser usada no contexto do budismo. Não se falam
de experiências meditacionais como revelações. Elas são
contadas como experiências derivadas de análises e observações
da mente. Há imagens do conhecimento que falam de
competência mais que originalidade, enquanto outras enfatizam a
criatividade, a abertura e a inovação. A filosofia budista e a
medicina tibetana pertencem a estas tradições, onde a
competência é mais importante que a originalidade e a inovação.
As analogias, no entanto, representam um papel central na
medicina tibetana. Nos ensinamentos sobre filosofia ou medicina,
elas são frequentemente utilizadas para esclarecer um assunto, e
até mesmo para fazer com que pareçam mais semelhantes. Mas
como na ciência, a medicina tibetana não repousa sobre uma
única fonte de conhecimento. A experiência e as evidências
experimentais, as idéias claras e distintas, as considerações
estéticas e as analogias são todas fontes legítimas de
conhecimento.
Conhecimento na Medicina Tibetana
       Como em todas as outras áreas da medicina tibetana,
Buda é um paradigma também nas questões epistemológicas.
Portanto, diz-se que todo conhecimento médico surge da
sabedoria dos Budas. A verdadeira base “filosófica” da medicina
tibetana, sua imagem do homem e sua cosmologia é um efeito da
iluminação de Buda. A medicina tibetana tem seu início em uma
tradição de praticantes tecida em uma longa tradição religiosa que
tem sofrido alterações muito lentamente. Ao ler livros sobre

42
medicina tibetana ou ouvir médicos tibetanos falando sobre
medicina, nota-se a riqueza de metáforas, espelhando uma
proximidade com a terra, a vida diária e a natureza. Ao mesmo
tempo, há uma riqueza de variações na observação e também
uma taxonomia rígida. A tradição tem mapeado cuidadosamente
as diferentes condições da mente ou do pensamento e das
doenças relacionadas por estarem suas raízes fundamentadas
nestas condições. De acordo com a medicina tibetana as doenças
físicas sempre possuem dimensões “psicológicas” e vice versa.
        A medicina tibetana pode ser caracterizada por
considerações como a habilidade baseada na filosofia budista e
influências de numerosas outras culturas e suas medicinas
tradicionais, juntamente com suas próprias experiências.
O Desenvolvimento do Conhecimento
       Robin Horton faz uma distinção entre as culturas
progressistas e tradicionalistas. 38 Em uma cultura progressista há
muita ênfase no desenvolvimento do conhecimento. A
racionalidade da cultura está unida à idéia de que há um contínuo
desenvolvimento do conhecimento. O conhecimento de ontem não
é tão relevante e, amanhã, o conhecimento de hoje será
superado. 39 Em uma cultura tradicionalista, por outro lado, há uma
transmissão, de uma geração para outra, do que se considera ser
o conhecimento. Há pouca ou nenhuma mudança dentro de uma
tradição. Com isso em mente, perguntamos a um médico tibetano
sobre o desenvolvimento do conhecimento na medicina tibetana.
Como poderia alguém interpretar a afirmação de que todo
conhecimento médico originou-se da sabedoria de Buda? Isso
poderia significar que todo conhecimento, definitivamente, é
completo e disponível, e é transmitido de médico para médico, de
uma geração para outra? Nosso informante respondeu

38R.  Horton, Tradition and Modernity Revisited, Rationality and Relativ-
ism, publicado por M. Hollis e S. Lukes, Oxford, 1982, págs. 201-260.
39ibid. págs. 238-260


43
afirmativamente a estas questões. Sua resposta é uma indicação
do que Horton chama “conhecimento tradicionalista”. A fonte do
conhecimento em uma cultura tradicionalista está nos anciãos e é
transmitido através da tradição de pessoa para pessoa. As
opiniões são aceitas, de acordo com o conceito de conhecimento
tradicionalista, não apenas porque são vistas como antigas, mas
porque são consideradas como comprovações pelo tempo. Em
uma visão tradicionalista o consenso é enfatizado, enquanto no
pensamento progressivista Ocidental a competição é valorizada.
        Em uma cultura progressista o desenvolvimento do
conhecimento é enfatizado através da competição entre teóricos
que inventam teorias para derrotar seus oponentes. Como
resultado conseguimos uma progressiva separação entre a teoria
secundária e a vida prática. Na medicina tibetana não
encontramos nada semelhante a esta teoria crítica secundária. O
conhecimento médico é transmitido do professor para o discípulo
e está próximo ao tratamento prático. Como dissemos
anteriormente, é um conhecimento de um praticante de nível
elevado. Isso poderia ser entendido, entre outras coisas, pelo fato
de que na medicina tibetana não havia até recentemente nada
semelhante ao que chamamos de pesquisa. Não havia um grupo
de médicos que tinham a tarefa exclusiva de desenvolver novas
teorias. Supunha-se que o fundamento verdadeiro já fosse
conhecido, e influências de outras tradições eram assimiladas
dentro da tradição. Visto a partir do ponto de vista da tradição a
qual pertence Rimpoche, a escola Madhyamika no budismo, sua
resposta é lógica e racional. A concepção Madhyamika da
filosofia, como intuição não-dual, ou sabedoria, evita o progresso e
a surpresa. Progresso implica que o objetivo é alcançado
sucessivamente através de uma série de etapas em uma ordem, e
que pode ser mensurado em termos quantitativos. A sabedoria
(prajna) é conhecimento da realidade completa, definitiva. Uma
realização progressiva do absoluto é portanto incompatível. O
conceito de progresso é aplicável à ciência, não à filosofia budista.

44
É possível, no entanto, conceber a eliminação progressiva dos
obstáculos que bloqueiam nossa visão da realidade, da forma
como aprendemos na abordagem lam-rim.
Alguns Problemas de Interpretação
        Nesta seção gostaria de enfocar algumas questões sobre
interpretação. A primeira refere-se à interpretação de alguns
conceitos centrais na medicina tibetana. A segunda refere-se ao
problema meta-científico clássico da comensurabilidade – por
exemplo, é “o mesmo” corpo humano que a medicina tibetana e a
medicina Ocidental “configuram” em seus atlas de anatomia e
sistemas de conceitos? A terceira questão refere-se à
dependência cultural do conhecimento, uma discussão que tem
sido geralmente conduzida sob o tema de “etnociência”. Eu
questionaria finalmente se a medicina tibetana, em algum sentido,
poderia afirmar ser racional, e se afirmativo, em qual sentido. Na
discussão do problema da incomensurabilidade, argumentaria
contra uma ruptura total entre as culturas e tradições, ou de um
lado a incomensurabilidade e do outro lado contra o ideal
convencional acerca de um crescimento cumulativo do
conhecimento. Entendemos cada um e nos comunicamos através
da membrana semi-permeável da tradução de uma cultura para
outra. Somos capazes de tolerar a falta de clareza nos
significados e temos a habilidade de coexistir em diversas ordens
de discurso. O rumo para nosso encontro com outras culturas e
seus pensamentos está no diálogo com outros, um diálogo onde
podemos testar as conjeturas básicas de nossa própria cultura, no
confronto com o modo de pensar estrangeiro.
Os Três Humores
       A dificuldade de interpretar e compreender a medicina de
uma outra cultura é exemplificada nos três humores da medicina
tibetana. A apresentação da saúde e da doença como uma
questão de equilíbrio e desequilíbrio pode ser encontrada em
numerosas culturas em países que circundam o Mediterrâneo, na

45
América Latina, na Grécia antiga, China e Índia. Encontramos
familiaridades em muitas áreas. Afirma-se, por exemplo, em
diversas culturas, que o equilíbrio entre os “humores” está
relacionado às estações do ano e ao clima, e que os alimentos
“quentes” e “frios” podem ter influências mediadoras entre os
humores. Outro ponto em comum é a definição de saúde e doença
como termos relacionados, isto é, com relação ao desequilíbrio
como tendo poder não apenas sobre o doente, mas também entre
a pessoa doente e sua família, a sociedade, a natureza e o
cosmos. Apesar dessas similaridades, não podemos concluir que
as diferentes culturas dão a mesma interpretação para seus
conceitos. Devem ser vistos dentro da estrutura de suas
cosmologias. Se observarmos a medicina tibetana como um texto
a ser abordado de maneira hermética, podemos cortá-la em
pequenos pedaços. Vamos descobrir que cada fragmento contém
toda a cosmologia budista. Portanto, não se pode comparar os
conceitos da medicina tibetana acerca do equilíbrio com
Hipócrates sem dar cuidadosamente contextos das extensas
descrições dos quais eles são uma parte.
A Cientificação da Medicina
        Uma comparação entre as convicções médicas de
diferentes culturas não é suficiente para observar os conceitos das
tradições. Devemos observá-las também em seus discursos
teóricos e suas práticas sociais e materiais. Devemos buscar o
tipo de produção, a divisão de trabalho em sociedade, e como os
sistemas e normas, valores e poder são socialmente construídas.
A medicina tibetana é uma arte de cura pré-científica e uma
análise comparativa do desenvolvimento da medicina Hipocrática
e tibetana seria capaz de lançar alguma luz na “cientificação” da
medicina em nossa própria cultura. Pode-se ver já nos textos de
Hipócrates o verdadeiro embrião da medicina moderna.
Hipócrates define a medicina como uma ciência separada da
religião e da superstição. Requer que suas hipóteses sejam
baseadas em fatos observáveis. Podemos encontrar em seus

46
textos uma essência racional de um tipo semelhante à da
medicina moderna. 40 Quais foram as razões sociais, materiais e
cognitivas para que a medicina se tornasse uma ciência nesta
época em particular e nesta cultura em particular?
       No Tibete, a medicina manteve uma habilidade profissional
intimamente conectada com a religião. Ela possui a racionalidade
das habilidades do médico que a pratica juntamente com o
profundo discernimento sobre a mente humana. Retornaremos
posteriormente à questão sobre a relação entre a ciência
Ocidental e a sabedoria budista, mas primeiro faremos algumas
observações sobre comensurabilidade.
Algumas Observações Sobre Comensurabilidade
       É necessária uma compreensão da concepção global para
nossa compreensão dos conceitos centrais “rLung”, “mKris-pa” e
“Bad-kan” usados. Um médico contemporâneo explicou um ponto
de vista moderno dos três Nyes-pas (grosseiramente traduzidos
como “humores”) como segue: O humor “rLung” (grosseiramente
traduzido como “ar” ou “vento”) é a força vital. É compreendida
como estando concentrada no núcleo; controla o metabolismo. O
humor “mKris-pa” (grosseiramente traduzido como “bile”) é a
energia vital. Entendida como a energia liberada durante a
atividade catabólica pelas reações enzimáticas. O humor “Bad-
kan” (traduzido como “fleuma”) é compreendido como força
anabólica que sintetiza o protoplasma. 41
          A realidade, de acordo com a cosmologia budista, é
formada de cinco elementos ou formas de energia - “terra”, “ar”,
“fogo”, “água” e “espaço”. Estes elementos básicos são
encontrados também no homem, “terra” corresponde às partes
sólidas do corpo, da carne e dos ossos, “água” corresponde ao
sangue e linfa, “fogo” à energia e habilidades motoras e “espaço”

40Ver  G. E. R. Lloyd, Magic, Reason and Experience, Studies in the
Origins and Development of Greek Science, Cambridge, 1979.
41T. Clifford, Tibetan Buddhist Medicine and Psychiatry, pág. 91.


47
à mente. Um filósofo da ciência chinês, Lan Zheng, apontou
algumas dificuldades na comparação das diferentes tradições em
um artigo sobre a medicina chinesa e a Ocidental: “Os conceitos
físicos e patológicos encontrados na teoria médica chinesa são
sistematicamente diferentes dos ocidentais. Apesar de existirem
algumas semelhanças na terminologia, os termos possuem
conotações físicas e patológicas completamente diferentes.” 42
           Por exemplo, de acordo com Lan Zheng, um
determinado órgão pode realizar muitas funções que são
realizadas por outros órgãos, segundo a medicina Ocidental.
Outras funções que a medicina Ocidental considera que seja
realizada por um órgão são compreendidas na medicina chinesa
como sendo o resultado de cooperação entre muitos órgãos
diferentes. Isto porque o modelo chinês observa o órgão,
frequentemente, em termos fisiológicos e patológicos do que
simplesmente em termos anatômicos. Há correspondências na
medicina chinesa, assim como na medicina tibetana, para o
fígado, coração, rins e outros, mas eles possuem também outras
conotações. Como exemplo, Zheng pega o coração, para o qual
são atribuídas as mesmas funções, de muitas maneiras, tanto na
medicina chinesa como na tibetana, mas o qual é responsável
também por numerosas atividades mentais e emocionais.
           Complicações correspondentes podem ser observadas
na análise simultânea da medicina tibetana com a Ocidental em
comparações relacionadas ao coração, o qual é considerado na
medicina tibetana a sede da clareza mental. A doença é analisada
quanto ao nível celular e molecular na medicina Ocidental,
enquanto dentro da medicina tibetana e chinesa, é analisada em
grandes unidades. As tentativas de traduzir os ensinamentos yin-
yang da medicina chinesa em termos Ocidentais, da mesma forma
que as tentativas correspondentes com a medicina tibetana, têm
sido infrutíferas. As diferenças teóricas entre as tradições levam a

42Artigo   não publicado de uma conferência em Dubrovik, 1987.

48
diferentes princípios de diagnóstico e tratamento. A análise de
Zheng é convincente e estou preparado para ver sua conclusão,
para que seja aplicável à medicina tibetana também.

           Creio que os fatos acima mencionados são
           completamente suficientes para demonstrar a
           incomensurabilidade das teorias chinesa e Ocidental.
           Cada uma possui suas próprias estruturas conceituais
           físicas e patológicas e seu próprio sistema de
           classificação. Elas interpretam as doenças diferentemente
           e aplicam métodos de tratamento também diferentes.

         Na medicina tibetana, cada diagnóstico deve considerar
a estação do ano, quais dos três elementos estão envolvidos, se é
uma doença quente ou fria, e quais efeitos proporcionados pela
cura na constituição corporal do paciente.
Uma Visão Relacional do Homem
          Na cosmologia budista, o homem é visto como um
cosmo em miniatura. Tanto o homem como o mundo onde ele vive
são considerados processos de energia ou campos de energia.
Considera-se consequentemente que, contanto que haja um
estado de equilíbrio entre humores, ou energias, dentro de uma
pessoa e entre uma pessoa e seu ambiente social e biológico,
haverá um estado de saúde. Quando o equilíbrio é rompido, surge
um estado de desarmonia ou doença. Como resultado, é natural
que o médico tibetano, com sua abordagem global e relacional,
atente para o ambiente social e cultural do paciente. Ele deve
saber algo sobre a região na qual vive o paciente e seu equilíbrio
com as circunstâncias, incluindo a família e a sociedade. Sudhir
Kakar fez as mesmas observações sobre a medicina tradicional na
Índia. 43


43S.   Kakar, Shamans, Mystics and Doctors, New York, 1982.

49
Enquanto as modernas ciências Ocidentais do homem
            concebem a pessoa como de natureza individual
            (indivisível), que é permanente, fechada, possuidora de
            uma estrutura interna homogênea, as teorias indianas
            (como evidenciado nos textos sobre astrologia, biologia,
            moral e rituais) consideram a pessoa como divíduo, ou
            seja, divisível. De acordo com Marriot, o divíduo Hindu é
            aberto, mais ou menos fluido e apenas temporariamente
            em integração; não é um mônada, mas (pelo menos)
            binário,       derivando    sua      natureza     pessoal
            interpessoalmente. As pessoas Hindus, portanto, são
            constituídas de relações; todos os sentimentos,
            necessidades e motivos são relacionais e seus
            sofrimentos são distúrbios destas relações. 44
Realismo na Medicina Tibetana
        As medicinas tibetana e Ocidental mapeiam o corpo
humano de maneiras diferentes. Seus mapeamentos teóricos
possuem termos teóricos e analíticos diferentes. Exatamente
como na medicina Ocidental, a linguagem analítica é impregnada
de teoria. Os conceitos teóricos tais como Bad-kan, mKris-pa e
rLung desempenham uma função dentro de uma teoria e ordenam
o fenômeno de forma a possibilitar a explicação, o diagnóstico e o
tratamento. Como é o mapa Ocidental do homem com relação ao
tibetano? O mapa médico tibetano deve ser visto apenas como
irracional, não possuindo conteúdo cognitivo? Pode haver
qualquer tipo de verossimilhança nas teorias médicas tibetanas, e
se afirmativo, em que sentido? Nossas respostas a questões
como estas têm relação com nosso ponto de vista acerca de
relativismo e realismo.




44ibid.   págs. 274-175.

50
Sigo as duas linhas de pensamento de Elkana, de que é
possível ser simultaneamente realista e relativista. 45 Neste caso,
significa que podemos ver ambos os mapas como realistas, de um
certo sentido. Tendo escolhido uma estrutura, a medicina tibetana,
por exemplo, somos realistas dentro desta estrutura. Se
interpretamos a medicina tibetana como sendo realista, em que
sentido ela é realista?
        Quando falamos em realismo, temos que dizer algo acerca
de qual tipo de realismo estamos nos referindo. Como pudemos
ver até agora, o tipo de realismo que chega mais próximo é aquele
que Rom Harre chama realismo referencial. 46 Conforme Harre,
temos que nos deslocar da cognição para a prática, de forma que
o ato de estabelecer a suposta existência ou não-existência estará
na dependência de um material prático. O realismo referencial
requer que alguns dos termos substantivos em um discurso
denotem ou pretendam denotar entidades de várias categorias
metafísicas, que existam independentemente deste discurso. 47
Esta forma de realismo deve ser considerada como “uma política,
a política de buscar entidades suficientemente semelhantes às
supostamente existentes, cujas características estejam
determinadas na teoria”. Harre acrescenta que um referencial
realista seria absurdo se ele necessitasse da possibilidade de ser
reconhecido simplesmente pelas propriedades da teoria de que
seus termos denotam realmente algo.
        O realismo referencial implica na não invocação de
conceitos tais como verdadeiro ou falso. É diferente de “realismo
verdadeiro”. Referência, neste contexto, é estabelecida
adquirindo-se uma ligação física entre o cientista personificado (ou
o médico, em nosso caso) e a existência em questão. Sua
existência está ligada à do cientista. O realismo defendido por
45Y. Elkana, A Programmatic Attempt at an Anthropology of Knowledge,
Sciences and Cultures, págs. 3-5.
46Rom Harre, Varieties of Realism, Oxford, 1986, págs. 65-70.
47ibid. pág. 69


51
Harre deve ser entendido em termos de práticas materiais, e não
através de relações lógicas. O aparecimento de termos que
parecem denotar alguma existência extra-analítica (tais como
rLung, mKris-pa e Bad-kan, por exemplo) deveria ser considerado
como a base para um projeto material, uma busca do mundo real
para uma existência que poderia servir como sua referência. 48
Considero a ênfase de Harre no “prática material” muito
proveitosa. Temos que observar os médicos tibetanos em suas
práticas . McMullin possui outro ponto de vista interessante de
realismo. Ele sugere que          observemos o modelo como
funcionando até certo ponto como uma metáfora na linguagem.
Ela expressa um pensamento complexo. 49 Possui seu próprio tipo
de precisão. Possui a precisão de uma poesia. Talvez possamos
compreender os “humores” na medicina tibetana como uma
metáfora para os complexos campos de energia no interior do
corpo. A metáfora aqui poderia, segundo McMullin, agir como uma
tentativa de sugestão. Somos convidados a experienciar o corpo
humano como um campo de diferentes energias. A metáfora
poderia ser um guia para o cientista em seu material prático. Ao
mesmo tempo, ele está confiante de que há algum tipo de ligação
entre a metáfora e a estrutura do mundo.
Medicina Tibetana como um Programa de Pesquisa
        A medicina tibetana e a Ocidental constituem o corpo de
diferentes maneiras. Os mapas são desenhados dentro de duas
visões diferentes. Podemos considerar cada um deles como
realistas. Os princípios utilizados para desenhar os mapas são
muito diferentes, o que dificulta as comparações. Entretanto, não
impede que sejam julgados como dois programas de pesquisa
(concorrentes), com heurísticas positivas e negativas. Temos que
dar uma olhada mais de perto ao “núcleo” de seus “programas de

48ibid.pág. 67-70
49Ernan  McMullin, A Case for Scientific Realism, publicado por J. Lep-
lin, Berkeley, 1984, págs. 30-36.

52
pesquisa” para tornar explícitas suas metafísicas. Este “núcleo” ,
conforme o conceito de Lakatos, pode ser semelhante ao código
do DNA de um gene. Contém os fatores essenciais determinantes
da produção do conhecimento.
       Na medicina tibetana este código conduz a mapas que têm
o caráter de narrativas. Na ciência Ocidental, o código dá
explicações do tipo dedutivo. Na medicina tibetana, não
observamos o tipo de “arrebatamento” epistêmico, a ruptura de
nossas experiências espontâneas do mundo sobre a qual referiu-
se Gaston Bachelard. O antimorfismo ideal, a idéia de que a
Natureza é escrita na linguagem da Matemática, é desconhecida
para a ciência médica tibetana, pois é o ideal do experimento. Ao
invés de descrever suas teorias em uma linguagem matemática,
eles utilizam o idioma da poesia. Ambas as linguagens possuem
seus próprios critérios de exatidão.
Razão hábil
        A experiência na filosofia budista significa conhecimento
experimental, algo experimentado fenomenologicamente, e não
conhecimento experimental como na ciência Ocidental. Não é por
causa da sofisticação de nossos modelos teóricos que eles
aprofundam o conhecimento sobre, por exemplo, a mente
humana, mas através de uma percepção mais avançada. 50
        Enquanto a razão na ciência Ocidental é epistêmica, ou
seja, lógica, dedutiva, objetiva e despersonalizada, a razão na
filosofia budista e na medicina tibetana é pessoal, utilizando o que
Elkana chama de “razão habilidosa”. “Razão habilidosa”, implica
em “um corpo coerente e verdadeiramente complexo de atitudes
mentais e comportamento intelectual que combina discernimento,
sabedoria, prudência, sutileza da mente, erros, desenvoltura,

50A. Klein, Knowledge and Liberation, Ithaca, New York, 1986; Lati
Rimpoche, Mind in Tibetan Medicine, publicado por E. Napper, Lon-
dres, 1980; B. Krishna Matilal, R. D. Evans, Buddhist Logic and
Epistemology, Dordrecht, 1982

53
atenção, oportunismo, várias habilidades e experiência adquirida
durante anos. É aplicada a situações que são transitórias,
mutáveis, desconcertantes e ambíguas, situações estas que não
se prestam a precisar medições, cálculos exatos ou lógica
vigorosa.” 51
        Na filosofia budista e na medicina tibetana há um tipo
semelhante de razão que é chamada “recursos hábeis”. O iogue
ou o médico habilidoso usa o que quer que venha a suas mãos
como habilidade, meios efetivos para gerar as condições corretas
para a iluminação ou a saúde. Diz-se que tudo pode ser utilizado
como medicamento pelo médico habilidoso. Na ciência Ocidental
temos o mesmo tipo de “recursos hábeis” na psicoterapia e
psicanálise. Os profissionais precisam trabalhar com a lógica da
situação. Precisam penetrar a racionalidade da mente do paciente,
da existência do paciente esquizofrênico, por exemplo, e utilizar os
recursos corretos para lidar com isso. Terapêutas como John
Rosen, de maneira semelhante aos médicos e iogues tibetanos,
utilizam comportamento não convencional e a fala aparentemente
irracional para “passar através” do paciente ou do discípulo. O
iogue tibetano ou o psicoterapêuta, em seu trabalho com um
discípulo ou um paciente psicótico, podem utilizar um efeito de
choque, o que significa que eles puxam o tapete que está sob os
pés do outro para quebrar a resistência antagônica para a
mudança. Mudam abruptamente as regras do jogo. O discípulo ou
o paciente é confrontado com um conjunto de circunstâncias
inteiramente novas e deve mudar a posição de seus pés durante o
jogo para lidar com estas novas circunstâncias. Eles devem
encarar seu próprio apego aos preconceitos e ao pensamento
convencional, e observar que ele está preso na armadilha de suas
próprias fabricações mentais.


51Y.Elkana, A Programmatic Attempt at an Anthropology of Knowledge,
Sciences and Cultures, pág. 48.

54
Etnociência
        Não estamos abordando um assunto sem preconceitos,
com uma tabula rasa. Nossos preconceitos, através dos quais
acomodamos nossos problemas e hipóteses, estão impregnados
pela cultura científica e filosófica na qual nosso pensamento é
moldado. O encontro entre duas culturas, a medicina Ocidental e a
tibetana, por exemplo, lança uma luz sobre ambas. Ao
aprendermos sobre o modo de pensar de outras culturas
aprofundamos nossa auto-compreensão. Tal encontro dá origem a
uma enorme quantidade de problemas metodológicos para um
antropologista do conhecimento. Devemos, ao mesmo tempo,
manter a proximidade e a distância de nosso objetivo. Devemos
estar próximos para entrarmos em harmonia com a outra cultura,
para conseguirmos vestir a pele, por assim dizer. Ao mesmo
tempo, devemos manter a distância para sermos capazes de fazer
uma análise teórica de nosso material.
        Horton relaciona uma variedade de dicotomias geralmente
utilizadas para caracterizar a diferença entre a ciência Ocidental e
o pensamento “primitivo”. Entre estes opostos estão
verdadeiro/falso, racional/irracional, profano/religioso, onde a
ciência Ocidental representa o que é racional, verdadeiro e
profano. A medicina tibetana é religiosa, mas não
necessariamente irracional e falsa. O que é verdadeiro ou falso na
medicina tibetana é um problema de investigação empírica. A
medicina tibetana pode, como dissemos anteriormente, como
muitas outras medicinas de tradição cultural, ser chamada
tradicionalista segundo Horton. Mas isso não a torna irracional.
Assim como na ciência e filosofia Ocidental, na tradição budista
podemos encontrar muitos exemplos de análise lógica e racional.
Muitos tópicos de importância central no discurso filosófico
Ocidental sobre epistemologia são também postos em jogo na




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Medicina tibetana 13

  • 1. MEDICINA TIBETANA Livro 13 Uma publicação destinada ao estudo da medicina tibetana, editada pela Biblioteca de Obras e Arquivos Tibetanos, Dharamsala, Índia
  • 2. MEDICINA TIBETANA Livro 13 Dr. Yonten Gyatso Jan Bärmark Traduzido por : Williams Ribeiro de Farias Dra. Yeda Ribeiro de Farias EDITORA CHAKPORI
  • 3. Título original: Tibetan Medicine Series 13 ©1991 Biblioteca de Obras e Arquivos Tibetanos, Dharamsala,Índia 1996 Direitos autorais para edição em línguas portuguesa e espanhola adquiridos pela EDITORA CHAKPORI
  • 4. AGRADECIMENTOS À PRESENTE EDIÇÃO Agradeço ao Sr. Lhasang Tsering, ao Venerável Dagom Rimpoche e seu assistente Lama Tsultrim Dorge, ao Sr. Lobsang Samten, à Srta. Nyingma Sherpa, ao Sr. Tsewang Jigme Tsarong, Diretor do Centro Médico Tibetano em Dharamsala, à Maria do Carmo Chagas Ribeiro e ao Sr. Sérgio Fanelli, que ajudaram a tornar possível a edição destes livros sobre Medicina Tibetana. O Editor Williams Ribeiro de Farias
  • 5.
  • 6. ÍNDICE A MEDICINA BUDISTA TIBETANA SOB A PERSPECTIVA DA ANTROPOLOGIA DO CONHECIMENTO....................................................... 8 PARTE 1. A PERSPECTIVA BUDISTA ..................................................................... 8 Um Dia no Consultório de um Médico ........................................................ 8 Uma Mudança Filosófica ............................................................................. 9 Uma Compreensão Interna ........................................................................ 10 Uma Descrição mais Profunda da Medicina Tibetana ............................... 11 A Educação Médica ................................................................................... 12 Sobre as Pílulas Tibetanas ........................................................................ 13 As Características Mentais do Médico ....................................................... 14 Todo o Conhecimento Médico Tem Origem na Sabedoria de Buda .......... 15 A Primeira Volta da Roda do Dharma ........................................................ 16 A Causa Básica de Todas as Doenças ...................................................... 17 Doença é Desequilíbrio .............................................................................. 17 Buda, O Médico Ideal ................................................................................ 18 As Raízes Históricas da Medicina Tibetana ............................................... 18 O Significado da Própria Motivação ........................................................... 21 Bodhicitta ................................................................................................... 22 Lo-jong, Treinamento Mental ..................................................................... 23 Equilíbrio Interno ........................................................................................ 24 Sanidade Básica ........................................................................................ 24 As Doenças Psiquiátricas .......................................................................... 26 Demônios e Insanidade ............................................................................. 29 Uma Escalada Gradual para a Sabedoria e a Compaixão......................... 29 Mantendo a Mente Atenta, Permanecendo Dentro da Compaixão ........... 30 Tong-len, Dar e Receber ........................................................................... 31 O Bodhicitta Relativo e o Absoluto............................................................. 32 A Qualidade da Franqueza e da Claridade em Todos os Fenômenos....... 33 A Mente é Inexistente ................................................................................ 34 Mahamudra................................................................................................ 34 Duas Verdades .......................................................................................... 36 Meditações no “shunyata”.......................................................................... 37 Experiência Não-Dual ................................................................................ 38 PARTE 2: ALGUMAS OBSERVAÇÕES META-CIENTÍFICAS ...................................... 38 Fontes do Conhecimento ........................................................................... 38 6
  • 7. Tranquilizando a Mente e Discernindo o Real ........................................... 40 Tradição e Autoridade................................................................................ 42 Conhecimento na Medicina Tibetana ......................................................... 42 O Desenvolvimento do Conhecimento ....................................................... 43 Alguns Problemas de Interpretação ........................................................... 45 Os Três Humores ...................................................................................... 45 A Cientificação da Medicina ....................................................................... 46 Algumas Observações Sobre Comensurabilidade..................................... 47 Uma Visão Relacional do Homem ............................................................. 49 Realismo na Medicina Tibetana ................................................................. 50 Medicina Tibetana como um Programa de Pesquisa................................. 52 Razão hábil ................................................................................................ 53 Etnociência ................................................................................................ 55 O Significado da Compreensão Prévia ...................................................... 56 Os Três Mundos do Homem ...................................................................... 57 Uma Cultura da Ciência e Uma Cultura da Sabedoria ............................... 58 Harmonia ................................................................................................... 59 Ciência e Sabedoria................................................................................... 59 Sabedoria Prática, “Phronesis” .................................................................. 60 Um Diálogo Possível Entre o Budismo e a Ciência Ocidental ................... 61 OS SEGREDOS DA FÓRMULA DA PÍLULA NEGRA* ................................ 63 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 63 TRADUÇÃO DO TEXTO: “A ETERNA GEMA PRECIOSA PARA A CLARA REVELAÇÃO DOS SEGREDOS DA FÓRMULA DA PÍLULA NEGRA” ............................................................................ 66 PURIFICAÇÃO DO MERCÚRIO E OS INGREDIENTES PRECIOSOS ............................. 69 A PRÁTICA DA DESINTOXICAÇÃO DOS INGREDIENTES PRECIOSOS ........................ 70 A GRANDE FÓRMULA ....................................................................................... 71 POLIMENTO ..................................................................................................... 76 PARA DETERMINAR UMA INTOXICAÇÃO ............................................................... 80 APÊNDICE 1: TRADUÇÃO DO TEXTO “UM MÉTODO CARACTERÍSTICO DE ADMINISTRAR AS PÍLULAS PRECIOSAS - UMA PRÁTICA DE HABILIDADE” ................ 86 APÊNDICE 2: A ORAÇÃO DE BENÇÃOS ............................................................... 89 7
  • 8. A MEDICINA BUDISTA TIBETANA SOB A PERSPECTIVA DA ANTROPOLOGIA DO CONHECIMENTO Jan Bärmark Que eu possa ser o médico e a medicina E que eu possa ser aquele que assiste A todos os seres doentes no mundo Até que todos estejam curados. Shantideva Parte 1. A Perspectiva Budista* Um Dia no Consultório de um Médico Dois pequenos monges indicaram-me e ao fotógrafo Thoma Ljungqvist o caminho para o consultório de Shekar Amchi. Sua sala localizava-se em uma casa próxima ao monastério Khendrup Sherap Ling em Kathmandu. Shekar Amchi estava sentado em uma sala pequena, frugalmente mobiliada, com uma imensa variedade de potes de pílulas cobrindo as prateleiras e a mesa. Sobre a parede estava uma pintura em seda, uma thangka, de Sangye Menla, o Buda da Medicina. Não havia nada que lembrasse a alguém que aquele era o consultório médico. Nenhum instrumento médico. Nenhuma roupa branca. Shekar Amchi (amchi * Este estudo é dedicado a meu professor, Khenpo Tsultrim Gyatso Rimpoche. O Dr. Jan Bärmark recebeu seu Ph.D. sobre a psicologia da ciência e a teoria de Abraham Maslow em 1976. Seu principal campo de estudo é Teoria da Ciência. Atualmente realiza pesquisa em antropologia do conhecimento, ou seja, estudos comparativos sobre conhecimento e cultura. 8
  • 9. significa médico) estava vestido com uma roupa vermelha escura, usada por monges. Nós o reconhecemos do monastério. Ele havia estado lá em uma cerimônia de oferendas, onde textos foram recitados acompanhados pela música de grandes tambores, chifres, trompetas, sinos e címbalos. Naquele momento, nós o encontrávamos ali em seu papel de médico. Com o auxílio de um monge que falava inglês, ele perguntou qual nosso trabalho no Nepal. Dissemo-lhe que estávamos em Kathmandu por um mês para estudar a filosofia budista com o lama tibetano Khenpo Tsultrim Gyatso Rimpoche, em seu recentemente inaugurado centro de estudos chamado Marpa Institute. O intérprete sueco do lama Khenpo, Kicki Ekselius, recomendou que viéssemos consultá-lo para que nos ajudasse com nossos estômagos. Shekar Amchi perguntou-nos alguma coisa sobre os sintomas e sobre o que tínhamos comido e pediu para observar nossa língua. Após examinar também os olhos, ele tomou o pulso sobre o braço muitas vezes. Considera-se que a energia vital, importante para a saúde e a doença, possua um canal através do braço, o que explica o cuidado com que ele toma o pulso. Quando o diagnóstico foi estabelecido, ele nos aconselhou sobre a dieta – para evitarmos carne de galinha, café e álcool – e nos prescreveu pílulas duras e redondas. Devíamos tomar duas pílulas grandes e três pílulas pequenas três vezes ao dia com água morna. A visita ao médico estava terminada. Retornamos para casa e tomamos nossas pílulas e ficamos bem novamente alguns dias depois. Uma Mudança Filosófica Como é possível interpretar e compreender uma medicina incomum como a tibetana, onde tantas idéias e práticas parecem tão irracionais para nós? Ao cruzar com um grupo de crenças que pareçam irracionais à primeira vista, qual deveria ser minha atitude com relação à elas? Nossa visita ao médico tibetano nos trouxe à memória a questão de Steven Lukes: Como podem crenças e práticas 9
  • 10. médicas, que obviamente não estão de acordo com a realidade “objetiva” e com a medicina Ocidental, serem ao mesmo tempo internamente lógicas e mesmo efetivas? Temos que analisar a racionalidade mística e religiosa em termos completamente diferentes e seguindo outro critério daquele que utilizamos quando analisamos a racionalidade científica? Sentimos que poderíamos estabelecer uma identidade com as anotações que John Woodroffe fez há mais de um século quando, no prefácio para seus estudos sobre tantra – uma tradição filosófica indiana frequentemente considerada irracional no mundo Ocidental –, ele escreve: “Quando comecei o estudo deste shastra, estava acreditando que a Índia não possuía mais estúpidos do que os existentes em outros povos. Atrás da prática ininteligível, que sem dúvida existe em alguma extensão em todas as crenças, tive certeza de que deveria haver um princípio racional, uma vez que os homens como um todo não continuariam, através de muitas eras, a fazer o que não possuísse significado próprio e não tivesse resultados.” Uma Compreensão Interna Nosso objetivo é uma compreensão interior da medicina tibetana, uma compreensão em seus próprios termos, o que não é o mesmo que concordar com eles. Podemos também compreender crenças estranhas, tais como a medicina e o budismo tibetano, da mesma maneira que os tibetanos as compreendem? Uma outra questão importante: que espécie de cognição e outras experiências devemos desenvolver antes que possamos declarar com certeza que compreendemos uma cultura estrangeira interiormente? Uma compreensão interna envolve uma duplicação da mentalidade nativa – apegar-se ao ponto de vista nativo, compartilhar seus pensamentos interiores, ser capaz de examinar seu raciocínio na mente do indivíduo. Nós duvidamos que seja possível compreender uma cultura estrangeira exatamente da mesma maneira que um nativo. Podemos chegar muito próximo e até ver a cultura estrangeira sob a perspectiva e 10
  • 11. os preconceitos de um Ocidental. Para chegar tão próximo, devemos seguir os padrões da cultura estrangeira de forma a sermos socializados dentro dela, o que significa prestar atenção aos ensinamentos dos lamas e médicos, fazer meditações, entrevistar lamas e médicos e estudar textos junto com budistas. Pode-se ir ainda mais longe e fazer um refúgio durante três anos, três semanas e três dias para ser um lama, de acordo com o costume da tradição Kagyu do budismo, e até ser um lama Ocidental. No entanto, haverá sempre um intervalo, mas este intervalo na realidade é o local exato do diálogo criativo entre as culturas e seus modos de pensar. Uma Descrição mais Profunda da Medicina Tibetana Este relato de nossa visita a Shekar Amchi é uma descrição superficial da medicina tibetana. Como podemos chegar a uma descrição mais profunda? 1 O verdadeiro contexto sócio-econômico no qual Shekar Amchi atua é interessante. Sob a perspectiva da antropologia do conhecimento, a medicina tibetana pode ser vista como um texto com muitas dimensões ou regras para serem interpretadas e explicadas hermeneuticamente. Temos que articular a visão global – as conjeturas, a cosmologia e sua epistemologia, a plataforma filosófica para a prática médica. Uma descrição profunda da realidade clínica na medicina tibetana implica em uma análise da estrutura social da realidade médica. Como são construídas as realidades das doenças? Como o tratamento médico transforma a realidade da doença em saúde recuperada a partir da perspectiva do paciente, na rede social do paciente e do médico? Qualquer que seja a natureza e a causa da doença, quaisquer que possam ser seus processos fisiológicos, bioquímicos ou psicológicos fundamentais, eles penetram no 1Tomei os dois conceitos de descrições “superficiais” e “profundas” de Y. Elkana, A Programmatic Attempt at an Anthropology of Knowledge, Sciences and Cultures, publicado por Y. Elkana e E. Mendelsohn, “Sociology of the Sciences Yearbooks”, 1981, págs. 1-76. Reidel 1981. 11
  • 12. mundo da vida humana e tornam-se objetos da ação humana como realidades significativamente constituídas. A Educação Médica A primeira dimensão, ou regra, na medicina tibetana é a realidade material concreta, o contexto social do ambiente monástico e sua posição e função dentro da mais ampla cultura. Amchi é um médico e um monge. A religião e a ciência médica estão integradas entre si. Amchi foi educado em uma cultura permeada com a filosofia budista, assim como os médicos em muitas outras culturas budistas. Sua educação durou cerca de treze anos, durante os quais ele estudou medicina e aprendeu a reconhecer, coletar e transformar ervas em medicamentos. Como outros estudantes de medicina, ele começava seus estudos às três horas da manhã, com orações a Manjushri, o Buda da Sabedoria. Depois disso, estudava textos sobre medicina e astrologia que recitava e memorizava até as seis horas. Exercícios físicos, um tipo de rathayoga, vinham a seguir e às oito horas eram oferecidas orações para Sangye Menla, o Buda da Medicina. Após o café da manhã havia um horário para instrução individualizada dependendo do nível do estudante. A astronomia e a medicina eram estudadas paralelamente com comentários orais sobre os textos. Exigia-se que os estudantes novos aprendessem gramática e escrevessem poesia. Após o almoço, à uma hora, eram estudadas as medições do corpo, localização das energias corporais sutis e reconhecimento das plantas medicinais. Os estudos continuavam durante o restante do dia até próximo do anoitecer, quando os estudantes se reuniam para debater questões médicas e astrológicas. Testes regulares eram realizados e os estudantes recitavam os textos médicos, astrológicos ou astronômicos que haviam memorizado. Após muitos anos de estudo, permite-se que um estudante treine juntamente com um médico, para que adquira 12
  • 13. habilidade nos diag-nósticos através do exame do pulso, um método que necessita sete anos de aprendizado. 2 De volta para o hotel, comparamos nossa experiência da visita ao médico com o que havíamos lido sobre medicina tibetana. O médico não havia levado em consideração qualquer possível influência astrológica sobre nossos estômagos, e também não analisou nossa urina, o que nos desapontou um pouco. É principalmente por causa do exame da urina que a medicina tibetana se fez conhecida. A urina é vista como uma espécie de espelho no qual o médico pode observar a condição interna do paciente. Grande importância é dada ao clima, à estação do ano e à vida sexual do paciente, mas isto não foi comentado durante nossa consulta. Talvez nossas queixas fossem demasiadamente simples para que estes importantes aspectos da medicina fossem necessários no diagnóstico. Sobre as Pílulas Tibetanas As pílulas que recebemos foram feitas de uma certa quantidade de ervas e especiarias. Juntas, eram positivamente para estimular as energias vitais e restaurar o equilíbrio corporal perdido, indicado pela doença. Há muitas centenas de anos, o Tibete tornou-se famoso por seu conhecimento em plantas medicinais. O vale YarLung é famoso por sua riqueza nestas plantas e é mencionado em numerosos textos chineses. Há uma complicada metodologia para a coleta das plantas e preparação das pílulas, com orientações sobre o que e quando deve ser feito. Além disso, a motivação do médico é muito importante. O médico, invariavelmente, deve ser motivado por um forte sentimento de compaixão por todas as criaturas vivas. Durante nenhuma fase do processo de manipulação podem ocorrer quaisquer ações negativas – pois teriam um efeito prejudicial sobre o 2Para uma apresentação posterior do processo educacional na medicina tibetana, ver Medicina Tibetana, de Rechung Rimpoche, Berkeley, Los Angeles, 1973. 13
  • 14. medicamento 3 . A condição mental do médico representa um papel importante na medicina tibetana. Para ser capaz de prescrever um bom tratamento, é necessário que o médico possua qualidades como sabedoria e compaixão e que utilize seu trabalho para a prática de virtudes como generosidade, paciência, entusiasmo e moralidade. É preciso que o paciente tenha total confiança. As Características Mentais do Médico As características mentais de um médico são mais valorizadas que suas habilidades teóricas. Afirma-se que muitos médicos são bem sucedidos na cura de muitos pacientes graças às suas experiências meditativas, apesar de serem até mesmo iletrados. O papel representado pelas qualidades internas do médico também é salientado. “A crença de que é a pessoa do médico, e não o sistema conceitual ou suas técnicas particulares, o fator de importância decisiva para o processo de cura é também um inquestionável contrato de confiança para a maioria dos pacientes indianos.” 4 Sudhir Kakar menciona também a importância dada ao médico que possui qualidades como “mente limpa”. Um médico deve sofrer uma transformação interna tornando possível que ele seja capaz de curar. Na medicina tibetana, o médico deve seguir onze leis. Algumas delas determinam que ele deve ter um grande respeito pelos seus professores e considerá-los como deuses. Ele deve acreditar naquilo que o professor lhe ensina e não deve ter dúvidas em quaisquer de seus ensinamentos. Deve ter grande respeito pelos livros sobre medicina. Deve ter simpatia pelos pacientes. Deve considerar a medicina como uma oferenda do Buda da Medicina e de todas as outras divindades curativas. 5 O médico deve, por 3T. Clifford, Tibetan Buddhist Medicine and Psychiatry, Wellingborough, 1984, págs. 115-125. 4S. Kakar, “Shamans, Mystics and Doctors”, New York, 1982, pág. 39. 5Rechung Rimpoche, “Tibetan Medicine”, Berkeley e Los Angeles, 1973, págs. 91-92. 14
  • 15. outro lado, ser capaz de conseguir a motivação necessária para utilizar a sabedoria e a compaixão tornando-se capaz de beneficiar outros. Ele deve ser motivado pela postura do Bodhisattva ideal. O Bodhisattva, por amor a todos os seres sem distinção, sejam reis ou mendigos, promete adiar sua própria entrada no nirvana de modo que possa permanecer no mundo para libertar os outros seres do sofrimento perante si mesmos. O voto e o ideal do Bodhisattva é o caminho do amor. É expressado pelo poeta budista indiano, Shantideva: Tão duradoura quanto a existência do espaço e Tão duradoura quanto a existência terrena, Que durante este longo tempo minha existência possa ser devotada aos sofrimentos do mundo. Quaisquer que sejam tais sofrimentos, Que possam todos amadurecer em mim; E possa o mundo Ser confortado pelos gloriosos Bodhisattvas. 6 Neste ideal não há separação entre as habilidades de cura e o Dharma. Realizando o melhor do Dharma em seu ser e sendo o melhor médico, haverá a dupla natureza da sabedoria e compaixão do Buda, tornando-o mais capaz de compreender as profundezas da ciência médica e de satisfazer as necessidades físicas, emocionais e espirituais dos pacientes. Todo o Conhecimento Médico Tem Origem na Sabedoria de Buda A relação entre o budismo e a cura é inata e extraordinária. Precisa-se apenas reconhecer que o Buda falou da verdade fundamental em termos de uma analogia médica. Afirma-se que todo o conhecimento de Buda destina-se a prevenir o sofrimento. De acordo com Buda, nós sofremos da frustração inerente da existência condicionada, e nosso sofrimento é causado pelo fato de que tudo quanto existe ou pode existir é impermanente e pelo 6Shantideva, retirado de Terry Clifford, “Tibetan Buddhism and Psychia- try”, pág. 25. 15
  • 16. desejo sem fim que surge da ilusão básica da auto-existência do ego. A medicina é o ensinamento, o Dharma, que Buda prescreveu para dominar nosso sofrimento e nossa ilusão. E a essência destes ensinamentos é subjugar a mente e transformar as emoções negativas. A palavra em sânscrito para budismo, dharma, pode ser interpretada com o seguinte significado “o que nos mantém naquilo que é benéfico”, e a palavra correspondente em tibetano, chos, significa “curar”. Tais analogias médicas são extremamente básicas no budismo. Buda é referido como Médico Supremo. A Primeira Volta da Roda do Dharma Quando Buda girou pela primeira vez a Roda do Dharma para dar seus primeiros ensinamentos, comparou-se a um médico, relacionou os ensinamentos à medicina e sua aplicação ao tratamento. Os ensinamentos são propostos da mesma maneira que um diagnóstico médico, de acordo com a tradição Ayurvédica indiana daquela época. Há uma doença? Do que é constituída? Há uma condição saudável? Como se pode alcançar esta condição? Em torno da doença, todos os seres sencientes circundam em um ciclo de sofrimento e insatisfação. A causa deste sofrimento está em nossa mente confusa. O estado de saúde e bem-estar é a mente iluminada, livre da confusão e da ignorância. Ignorância, Ma-rig-pa, significa que a inteligência e a claridade natural da mente estão obscurecidas pelas emoções negativas. O modo de remover esta condição é o caminho óctuplo, cujos elementos básicos são moralidade, meditação e sabedoria (ponto de vista correto, intenção correta, ação correta, fala correta, modo de vida correto, esforço correto, atenção correta, meditação correta). 16
  • 17. A Causa Básica de Todas as Doenças De acordo com a filosofia, psicologia e medicina budista, o “apego ao ego” é a causa básica deste estado de confusão mental e, consequentemente, de toda doença e sofrimento. “Não há senão uma causa para todas as doenças, e esta causa é a total falta de compreensão do significado da inexistência da identidade (a não existência de um ego independente). Por exemplo, mesmo quando um pássaro voa a grande altitude, ele não se separa de sua sombra. Da mesma forma, mesmo quando todas as criaturas vivem e agem com alegria, enquanto possuírem a ignorância, é impossível para elas estarem livres da doença.” 7 O Dr. Yeshe Dhonden expressa o assunto em termos enérgicos. Todas as pessoas são basicamente doentes. Até que tenhamos atingido a mente iluminada, encontramo-nos em um estado de ignorância. Desde que haja um apego à crença em um “eu auto-existente” inerentemente, nós não estaremos livres da doença e do sofrimento. Na presença das condições necessárias ao seu surgimento, diferentes doenças psicológicas e fisiológicas vêm à tona. A doença latente, por assim dizer, manifesta-se. Doença é Desequilíbrio A doença é um sinal de desequilíbrio entre o microcosmo interno e o macrocosmo externo. No entanto, a doença em si nem sempre é atribuída a causas imediatas ou evidentes. O sintoma que se manifesta é apenas o último estágio de um processo que começa frequentemente algum tempo antes. Fala-se de três estágios no desenvolvimento de uma doença: formação, acúmulo e manifestação. Os tibetanos fazem uma analogia com as nuvens no céu que começam a se acumular imperceptivelmente e atingem uma densidade crítica para fazer cair chuva; mas isso apenas ocorre se as condições atmosféricas assim permitirem, e da 7ibid. pág. 6. 17
  • 18. mesma maneira as estações podem determinar o início de uma doença. 8 Buda, O Médico Ideal Com o passar do tempo, Buda tornou-se o modelo do médico-santo, com quem os médicos budistas procuraram se igualar, o ser realizado espiritualmente que ajuda aos outros, curando suas doenças. A analogia médica é estabelecida no sutra chamado “Lótus of the Good Law” no qual Buda afirma: “Nesta comparação, Tathagata deve ser considerado como o grande médico; e todos os seres devem ser considerados cegados pelos erros, como um homem que nasceu cego” 9 . Toda medicina tibetana tem como base filosófica os ensinamentos de Buda e os mesmos têm origem, segundo os budistas, em uma mente iluminada. As Raízes Históricas da Medicina Tibetana A medicina tibetana tem suas raízes no Ayurveda. As primeiras influências vieram da Índia, no século 6, mas não se estabeleceram até o século 8, assim como a entrada do budismo no país. O rei tibetano Srong-brtsan sgam-po tinha duas esposas, uma chinesa e outra nepalesa. Ambas eram budistas e interessadas em medicina. As duas esposas converteram o rei ao budismo e convenceram-no a mandar buscar médicos da Índia, China e Mongólia. A cada um deles foi requisitado que traduzisse e apresentasse um texto médico ao Rei. No entanto, não havia língua escrita no Tibete daquela época. Conforme o desejo do Rei, tibetanos estudiosos em linguística foram enviados à Índia com a tarefa de criar uma linguagem escrita. Com este objetivo finalmente realizado, textos puderam ser traduzidos, tal como o assim chamado “Quatro Tantras” sobre medicina, escrito por 8Dott. Luigi Vitiello, “Introduction to Tibetan Medicine”, Shang-Shung edizione, 1983, pág. 11. 9T. Clifford, “Tibetan Buddhism and Psychiatry”, pág. 23. 18
  • 19. Chandrananda, conhecido em tibetano como “rGyud-bzhi”. Sessenta textos foram traduzidos do sânscrito. O melhor dentre os muitos eminentes tradutores foi Rinchen Zangpo, que viveu entre 985 e 1055, um importante período em termos de difusão da filosofia budista através do Tibete. Os médicos tibetanos viajavam para a Índia para estudar, e médicos indianos eram convidados para se estabelecerem no Tibete. Do século 8 ao século 17, houve uma intensa difusão da tradição médica da Índia para o Tibete. Influências posteriores vieram da China e da Grécia, estas através da Pérsia. Até o século 17, a medicina tibetana não caminhava inteiramente sobre seus próprios pés. A primeira escola para estudos médicos, Chakpori, foi então fundada nos arredores de Lhasa. 10 A Árvore da Medicina Quando um estudante de medicina memoriza os textos, utiliza uma pintura da árvore da medicina, como auxílio pedagógico. A árvore da medicina possui três raízes, nove troncos, quarenta e sete ramos, cento e vinte e quatro folhas, duas frutas e três flores. As duas frutas são a saúde e a longa vida, as três flores são o de-senvolvimento espiritual, a riqueza e a felicidade. A primeira raiz tem duas divisões, uma caracterizando o corpo saudável e a outra o corpo doente. O corpo saudável tem três ramos, os humores, a constituição corporal e as excreções. O ramo dos humores, sobre o tronco do corpo saudável possui três folhas, rLung, mKris-pa e Bad-kan. Estes três, por sua vez, podem ser divididos em cinco tipos diferentes, com sítios e funções específicas. O corpo saudável é caracterizado por um equilíbrio entre os três humores. A doença é causada pelo desequilíbrio. Como esclarece o Dr. Yeshe Dhonden, apesar de todas as pessoas serem basicamente doentes, a doença apenas se manifesta quando há 10ibid. págs. 35-63 e E. Finckh, Foundations of Tibetan Medicine, vol. 1, Londres 1978. 19
  • 20. um desequilíbrio entre os humores. O tronco do corpo doente possui nove ramos. O primeiro é o ramo da causa e o segundo é o ramo da condição, que descreve os fatores que permitirão a maturação e a manifestação da doença. O terceiro ramo é o da entrada. Este descreve os diferentes estágios no desenvolvimento de uma doença, como penetra no corpo e como se dissemina no interior do mesmo. O quarto ramo indica onde a doença finalmente ocorre, dependendo de sua relação com rLung, mKris-pa e Bad- kan. O quinto ramo descreve como a doença de dissemina no corpo. O sexto ramo relaciona o tempo para a ocorrência da doença, o período do ano e o clima característico. O sétimo ramo refere-se às doenças que levam à morte, os oito efeitos colaterais de um tratamento e o nono ramo refere-se ao modo como as doenças podem ser classificadas como “frias” e “quentes”. O ramo da causa sobre o tronco do corpo doente possui três folhas: ignorância-confusão (ma-rig-pa), ódio-aversão (zhe- sdang) e apego-desejo-ânsia (‘dod-chags). Estas três emoções perturbadoras (nyon mongs, em tibetano), ou como são geralmente chamados “venenos psíquicos”, são apontadas como a causa primária de todas as doenças psicológicas e fisiológicas. O princípio da medicina tibetana (assim como ocorre em muitas outras medicinas tradicionais) é de que o semelhante cura o semelhante (similia similibus curantor, o axioma da homeopatia). O apego possui as mesmas qualidades que rLung e, portanto, cria doenças de rLung; a confusão-ignorância possui as mesmas qualidades escuras e pesadas que Bad-kan e, portanto, cria doenças relacionadas com o mesmo e o ódio tem as qualidades de mKris-pa e cria doenças de mKris-pa. 11 11Y.Dhonden, Saúde Através do Equilíbrio, Editora Chakpori, São Paulo 1993. 20
  • 21. O Significado da Própria Motivação As virtudes no budismo preparam a mente para uma percepção mais avançada, que é a sabedoria, considerando o fenômeno sem apego. No budismo, podemos encontrar a compreensão da relação entre motivação (as virtudes), o tipo de consciência e a percepção. O propósito da prática do Dharma, ou seja, da aplicação dos ensinamentos budistas em sua própria vida, é livrar-se do sofrimento e da frustração. De acordo com os budistas tibetanos, para alcançarmos este objetivo nós temos que ouvir, refletir e meditar. “Ouvir” significa que precisamos prestar atenção aos ensinamentos que nos são dados por uma mulher ou um homem experientes capazes de transmitir o Dharma de uma forma pura e de uma maneira adequada às nossas necessidades e à nossa capacidade de compreender. Quando escutamos dessa maneira, evitamos três tipos de erros, o erro de ouvir como uma xícara virada com a abertura para baixo, de ouvir como uma xícara com um buraco no fundo e o erro de ouvir como uma xícara na qual algum veneno foi colocado, onde o veneno é o responsável por nossa mente prejudicada. Depois de ouvir, temos que examinar os ensinamentos, como um homem que vai comprar ouro, examinando seu valor. Se encontramos algum valor naquilo que ouvimos, devemos aplicá-lo em nossas mentes através do cultivo mental (meditação), assimilá-lo e fazê-lo nosso. Em tudo isso nossa motivação é da maior importância. A motivação para lutar pela iluminação não deve destinar-se apenas para livrar a nós mesmos do sofrimento, mas deve incluir todos os seres sencientes, “tanto quanto o céu é vasto”. Um homem inferior luta pela própria libertação e apenas para este período de vida. Um homem medíocre luta também pela libertação em sua próximas vidas, mas um homem superior luta pela libertação de todos os seres sencientes. Ele deseja eliminar Todas as misérias dos outros, 21
  • 22. Porque na correnteza de seu próprio ser compreendeu a natureza da miséria, Este é um excelente homem. 12 Bodhicitta O tipo de motivação sobre a qual estamos discorrendo é denominado Bodhicitta (literalmente, “mente da iluminação”, mas pode ser traduzido como “mente dirigida para a iluminação”). Bodhicitta é a mente preciosa que deseja alcançar a iluminação para o benefício dos outros. Diz-se que é a verdadeira base para entrar no caminho do Mahayana no budismo. Um homem ou uma mulher que tenham realizado o Bodhicitta são chamados Bodhisattvas. O ideal para o médico é trabalhar por todos os seres como um Bodhisattva. Esta intenção de beneficiar todos os seres, Que não surge em outros, mesmo que seja para sua própria salvação, É uma extraordinária jóia da mente, E seu nascimento é uma maravilha sem precedentes. 13 Bodhicitta, o desejo de beneficiar os outros, é a verdadeira essência da compaixão no budismo. Está junto com a sabedoria. A compaixão e a sabedoria são semelhantes também às duas asas de um pássaro. Mas nenhuma surge espontaneamente. São habilidades a serem cultivadas. (Recordam-nos o que disse Aristóteles sobre a prática da sabedoria. Virtudes tais como ser um bom homem são habilidades que devemos exercitar). Nós temos que cultivar nossas mentes para desenvolver estas qualidades. Uma palavra tibetana para meditação, “gom”, tem o significado de tornar a mente de uma pessoa familiarizada com algo. Em nosso 12sGompopa,The Jewel Ornament of Liberation, Boulder, 1981, pág.18. 13Shantideva, A Guide to the Bodhisattva’s Way of Life, Dharamsala, Libraey of Tibetan Works and Archives, 1979. 22
  • 23. treinamento mental, devemos deixar que nossas mentes se familiarizem com pensamentos que sejam benéficos para nós e para os outros. Lo-jong, Treinamento Mental Este treinamento mental (em tibetano, lo-jong) 14 significa modificar a mente de um estado para outro, acima de tudo, livrar nossos pensamentos de atitudes centradas em si mesmas. Enfim, objetiva libertar nossa natureza inerente de Buda, tornando possível para nós beneficiarmos os outros. Apesar de possuirmos uma mente sombreada por emoções negativas (ganância, aversão, egoísmo e assim por diante) e visões distorcidas (a crença na existência de um Eu inerente), a mente em si tem uma sanidade básica, um potencial para ser iluminada. Toda medicina budista apóia-se na hipótese de que nossa mente por si mesma possui a natureza de Buda, o potencial para ir além do sofrimento e da doença. O treinamento mental aqui mencionado poderia ser comparado ao processo do refinamento do ouro, ou seja, retirando de nossa natureza de Buda, aqui comparada ao ouro, as impurezas, que seriam comparadas às emoções negativas. É um processo que envolve observar tudo o que acontece em sua mente com intensa consciência, mas sem ser levado pelas fortes emoções ou pelo esvoaçar das idéias. Deve-se apenas observar este “murmúrio interno” da mente sem qualquer esforço para julgar, interpretar ou reprimir. Usando a expressão de Krishnamutri, é uma “consciência sem escolha”. Assim, são nossas emoções negativas e perturbadoras os obstáculos para realizar nossa sanidade básica, devemos chegar aos limites com 14Para explicações mais detalhadas sobre lo jong, ver J. Kongtrul, The Great Path of Awakening, Boston e Londres, 1987; G. Rabten e G. Dhargyey, Advice From a Spiritual Friend, Londres, 1977; Sonam Gyat- so, Essence of Refined Gold, Ithaca, 1982. 23
  • 24. nossa própria mente. Você deve ser o mestre de sua própria mente, não seu escravo. Equilíbrio Interno O ponto de vista aqui nos remonta muitas vezes ao antigo filósofo grego. Em ambas as culturas, o equilíbrio interno é visto como um pré-requisito ao bem-estar. Apenas quando o indivíduo não é mais prisioneiro dos sentimentos é que pode ser considerado uma pessoa livre. De acordo com Sócrates, aquele que é escravo de seus sentimentos é mais estúpido que o mais estúpido dos animais. Quando sentimentos tais como ódio, ganância ou apego surgem, devemos agir “como um leão entre raposas”, como diz Shantideva. Portanto, nós devemos trabalhar com as emoções e o melhor caminho para fazê-lo é observando sua substância básica. Sua qualidade, a natureza fundamental das emoções, é apenas energia. E, se o indivíduo é capaz de relacionar-se diretamente com a natureza-energia, não há necessidade de qualquer conflito. O princípio básico para esta prática é apenas estar lá, estar presente. “Estar exatamente nesse momento, nem reprimindo nem deixando ir abertamente, mas estando precisamente consciente do que você é”, assim Chögyam Trungpa descreve a prática. Sanidade Básica Apesar das lâmpadas da casa terem sido acesas, O homem cego vive na escuridão. Apesar da espontaneidade estar próxima e abranger tudo, Para a mente iludida, ela permanece sempre distante. 15 15Retirado de T. Allione, Women of Wisdom, Londres, 1984, pág. XV. 24
  • 25. Este poema, escrito pelo iogue indiano Saraha poderia ser lido para dar a mensagem de que enquanto não realizarmos nossa natureza inata de Buda, continuaremos a viver na escuridão, sofrendo diferentes tipos de frustrações e doenças. Todos os seres vivos possuem a natureza de Buda, mas isso não permanece exposto. No Gyu Lama, 16 é comparada à manteiga no leite, ao óleo de gergelim na semente do gergelim e uma pequena estátua em um bolo de mel circundado por abelhas. A manteiga, o potencial, deve ser trabalhada no leite para se manifestar. As abelhas em torno do bolo poderiam ser vistas como “emoções perturbadoras”, tais como raiva e medo juntamente com o apego pelas doçuras da vida. Enquanto formos escravos de nossas próprias “emoções perturbadores” não seremos capazes de experimentar nossa natureza mais profunda. Estes aspectos, colocados nas palavras de Shantideva: Embora os inimigos, como o ódio e o apego Não possuam nem braços nem pernas, E não sejam corajosos nem sábios, Não tenho sido usado por eles como um escravo? 17 Todos os ensinamentos de Buda poderiam ser considerados como conselhos pessoais sobre como podemos cultivar nossas mentes para livrar-nos de emoções perturbadoras e visões distorcidas e, portanto, realizarmos nossa própria natureza inerente de Buda. O que é, no entanto, a natureza de Buda? É frequentemente comparada ao céu aberto sem centro ou fronteiras. A natureza da mente é a franqueza e a claridade. É o nada, ou seja, a não existência. A mente não é um objeto. Nada 16Gyud bLama, ou Mahayana Uttara Tantra Shastra foi traduzido para o inglês com o título The Changeless Nature, Samye Ling, Eskdalemuir, 1985. 17Shantideva, A Guide to the Bodhisattva’s Way of Life, Dharamsala, 1979, pág. 39. 25
  • 26. para pegar. Nada para se agarrar. 18 Ou, colocando nas palavras poéticas de Kalu Rimpoche: A essência da mente é o vazio A natureza da mente é a claridade A mente vazia e clara é o campo de Buda O estado de franqueza Estas três qualidades não estão separadas São todas o mesmo Em seres sencientes o vazio não é experimentado A ignorância o é A claridade não é experimentada Os cinco sentidos o são A verdadeira natureza da mente é eterna É inata E imortal E portanto eterna Apenas o corpo morre. 19 As Doenças Psiquiátricas Não é nada extraordinário que a psiquiatria ocupe uma posição única na medicina tibetana, porque o ensinamento budista repousa principalmente sobre a natureza da mente. De qualquer modo, não existe para isso nenhuma categoria especial de habilidade médica. A divisão de trabalho e especialização que caracteriza nossa medicina Ocidental está ausente na medicina tibetana. Com relação a todas as formas de sofrimento, somático ou existencial, considera-se que a raiz do infortúnio esteja na confusão do ser humano, suas concepções errôneas sobre sua própria mente. Demasiado ódio, confusão ou apego levam a um desequilíbrio e, portanto, à doença. Porém, em uma perspectiva 18Wisdom Energy 2, Wisdom Culture, Cumbria, 1979, pág. 14. 19Ver T. Clifford, Tibetan Buddhism and Psychiatry, págs. 127-197. 26
  • 27. mais limitada, são apontadas principalmente cinco causas de doenças psicológicas: karma (o resultado de ações realizadas em vidas anteriores), tristeza/aborrecimento, desequilíbrio dos humores, venenos e demônios. As doenças psicológicas podem também surgir em consequência de stress, relações familiares insalubres, problemas com amor, ansiedade e isolamento do mundo. O resultado é uma doença psicológica essencialmente de três tipos, caracterizado por seus sintomas: 1) medo e paranóia, 2) agressão e 3) depressão e isolamento. A base filosófica para todo tratamento psiquiátrico é a natureza inerente de Buda, de que há uma insanidade básica no homem. É possível transformar a confusão e o isolamento através de métodos habilidosos. Para doenças relacionadas com o karma, há apenas um tratamento que auxilia, a prática do Dharma, que tem como objetivo limpar a mente do indivíduo e restaurar sua sanidade básica. A prática do Dharma significa exercitar os seis paramitas, a generosidade, a paciência e assim por diante. De acordo com o budismo tibetano, a prática do Dharma não é apenas uma cura para as doenças que estão se manifestando, mas também uma medida preventiva contra futuros desequilíbrios. Enquanto tivermos concepções irreais sobre a realidade estaremos aptos a cair no abismo dos sofrimentos psíquicos. Todos os fenômenos são impermanentes. Entretanto, é necessário livrar-se das oito preocupações mundanas e realizar que os ganhos e as perdas, a felicidade e a infelicidade, as falhas e o sucesso, as conversas agradáveis e desagradáveis não são algo para apegar-se, todas elas vêm e vão. A renúncia é uma expressão deste discernimento. É a prática do não-apego. Apegos a fenômenos transitórios são “como mel lambuzando o fio de uma navalha”, nas palavras de Shantideva. Trazem apenas frustração e sofrimento. O termo tibetano traduzido geralmente como renúncia possui um significado literal de “emergência definitiva”. Indica uma decisão profunda e sincera para emergir definitivamente das repetidas frustrações e desapontamentos da vida comum. Na realidade, a 27
  • 28. renúncia é uma atitude. Renúncia significa desistir dos apegos às coisas do mundo, um apego por possui-los. O fato de tais fenômenos como felicidade e infelicidade, falhas ou sucessos, ganhos ou perdas serem transitórios e, portanto, o fato de não podermos confiar nossa felicidade em nada, podem, se rejeitados ou reprimidos, criar ansiedade e sofrimento psicológico. Se fizermos deste fato (de que todos os fenômenos são transitórios), um ponto de partida para nossa aplicação do Dharma, isto pode ser o impulso para tentar seriamente a iluminação. Emoções perturbadoras, negativas, podem ser transformadas através de práticas meditativas. No budismo, nunca se fala em “repressão”, mas em “transfiguração” ou “transformação” de emoções, uma vez que são na realidade elementos essenciais de nossa psique. Meditações, visualizações e mantras são os métodos para este processo alquímico, o qual deve ser realizado sob a orientação de um professor experimentado. Os fundamentos da insanidade e da iluminação são os mesmos, assim como samsara (o ciclo do sofrimento) e nirvana (o estado além do sofrimento) são inseparáveis. Mas eles são dois modos distintos de experimentar o mesmo fenômeno. Através da prática do Dharma, realizamos a verdadeira natureza do fenômeno, como franqueza e claridade e podemos permanecer felizes em um mundo onde tudo é impermanente. Na longa trajetória, a prática do Dharma é o melhor medicamento para todas as doenças. Mas também há tratamentos com um caráter mais próximo da terra, para lidar com as necessidades imediatas do paciente. São tratamentos mais breves para doenças psicológicas, por exemplo, medicamentos à base de ervas, massagens, banhos medicinais e exorcismo. Também pode ser prescrito que o paciente, que a pessoa doente, permaneça em um ambiente com pessoas gentis, que fique rodeado por objetos bonitos e que receba livros que possam ser estimulantes. Podemos descrever esta prescrição como um tipo de terapia ocupacional na prática. 28
  • 29. Demônios e Insanidade Os demônios (gdon) são considerados uma possível causa de insanidade. A medicina tibetana interpreta como demônios diferentes tipos de forças e emoções não-visíveis que tem o poder de criar um desequilíbrio. Representam uma imensa variedade de forças e emoções que normalmente estão além do controle consciente e todas impedem o desenvolvimento espiritual e o bem-estar. Também podem estar relacionadas com ligações conscientes tais como a preguiça, a má companhia, demasiada sensitividade, apego às possessões, as oito aflições mundanas já mencionadas, sectarismo ou orgulho. Todos constituem obstáculos ao desenvolvimento espiritual. 20 Portanto, demônios são a princípio fenômenos psicológicos associados com uma variedade de obscurecimentos mentais e emocionais. A incrível iogue Ma-chig-la, no século 12, explicou para um de seus discípulos o significado de demônio. Ela descreveu-os como “muito, muito grandes, e totalmente negros. Quem quer que visse um deles ficaria verdadeiramente apavorado e tremeria da cabeça aos pés – mas demônios, na realidade, não existem”. O que podemos compreender disso é que os demônios são reais em um sentido psicológico, como por exemplo, “objetos interiores” mencionados na teoria das relações do objeto em psicanálise. Eles existem da mesma maneira que os sonhos ou como fantasias psicóticas. Os demônios parecem muito reais, mas na verdade, são apenas fabricações mentais. Uma Escalada Gradual para a Sabedoria e a Compaixão Na prisão do sofrimento da existência cíclica sem limites Vagam os seis tipos de seres sencientes privados da felicidade. Pais e mães que o protegeram com bondade estão lá, Abandonando o desejo e o ódio, medite no amor e na compaixão. 20ibid. págs. 147-170. 29
  • 30. Não deixe sua mente desviar-se, coloque-a dentro da compaixão. Mantendo a Mente Atenta, Permanecendo Dentro da Compaixão 21 Lam-rim é um caminho gradual no qual podemos treinar nossas mentes para torná-la iluminada. O fundamental são as práticas preliminares nas quais contemplamos o precioso corpo humano, a morte e a impermanência, as ações e seus resultados (karma) e as imperfeições da existência cíclica. Isso significa, entre outras coisas, livrar-se ou abandonar os oito conflitos mundanos, o apego à felicidade e infelicidade, ganhos e perdas, as falhas e os sucessos, as falas amáveis e ásperas. Devemos contemplar tudo isso cuidadosamente e refugiar-nos em Buda, no Dharma e na Sangha. Esta é a base sólida para práticas posteriores. 22 Uma vez entrando no caminho gradual, devemos combater nossos principais inimigos internos, o apego à crença na existência independente de um Eu inerente e seus dois principais serventes, a auto-importância e o auto-carisma. Estes inimigos são as causas principais de todo sofrimento e doença. Eles funcionam como “venenos psíquicos” e são as causas fundamentais para as doenças físicas e psicológicas. No treinamento da mente, tudo o que ocorre em nossas vidas pode ser usado como métodos habilidosos para cultivar a sabedoria e a compaixão. Há meditações recomendadas até mesmo para transformar obstáculos em recursos. Os inimigos nos dão a oportunidade para praticar a paciência. Mesmo as doenças físicas 21Kalsang Gyatso, The Seventh Dalai Lama, The Song of the Four Mindfulness Causing the Rain of Achievments to Fall, The Precious Garland and the Song of the Four Mindfulnesses, G & Unwin, 1975, pág. 115. 22Para uma explicações das práticas preliminares ver The Torch of Certainty, Jamgon Kongtrul, Boulder e Londres, 1977 30
  • 31. e os sofrimentos podem ser um auxílio para aprofundar nosso desejo pela iluminação. Podem também nos ajudar a desenvolver a compaixão e a transformar nosso sofrimento em caminho. Tong-len, Dar e Receber O exercício chamado “dar e receber” (tong-len, em tibetano) é um bom exemplo disso. Inicia-se imaginando que nossa própria mãe está sentada em nossa frente. Então, imaginamos todas as coisas boas que ela fez por nós. Depois, imagina-se que durante eras sem princípio todos os seres sencientes em algum momento podem ter sido nossa mãe ou pai e nos dado igualmente muito amor e compaixão. Agora é nossa vez de dar-lhes algo de volta. Agora todos estão passando por diferentes tipos de sofrimentos por causa de sua própria ignorância e confusão. Consequentemente, você deve desejar sinceramente que todos os sofrimentos dos outros venham para si e que todas as suas felicidades sejam também deles. Imagine que os sofrimentos de todos entram em suas narinas na forma de piche negro que é absorvido pelo seu coração. Pense que todos os seres estão livres do sofrimento para sempre. Então, quando exalar, imagine que sua própria felicidade sai das narinas e é absorvida pelos corações de todos. Deseje que todos os seres adquiram o estado de Buda. A importância dessa prática de dar e receber é claramente definida por Shantideva: Se eu não trocar completamente Minha felicidade pela tristeza do outro, o estado de Buda não se realizará. 23 Meditando dessa maneira combatemos nossa própria atitude de auto-estima, nosso costume de sempre colocarmos a nós mesmos e a nossa própria felicidade em primeiro lugar. 23Shantideva, A Guide of Bodhisattva’s Way of Life, citação de J. Kongtrul, The Great Path of Awakening, pág. 15 31
  • 32. Colocando este ensinamento nas palavras poéticas de Shantideva novamente: Qualquer que seja a felicidade que exista neste mundo Tudo vem do desejo de que os outros sejam felizes E qualquer que seja o sofrimento que exista neste mundo Tudo vem do meu próprio desejo de ser feliz 24 . O Bodhicitta Relativo e o Absoluto Bodhicitta, a mente preciosa, pode ter dois significados, relativo e absoluto. Bodhicitta em um sentido relativo significa cultivar os seis paramitas, virtudes como generosidade, paciência, entusiasmo, moralidade, concentração e sabedoria. No sentido absoluto, Bodhicitta implica na completa realização do “shunyata” 25 . Vamos tomar como exemplo o paramita da generosidade. Generosidade, como explica Shantideva, significa dar tudo, incluindo o pensamento de dar. Em sua essência, é um estado da mente. Mas, que tipo de estado é este? É fundamentalmente um estado onde não há mais qualquer sentido de meu e seu, dar e receber. Todas estas idéias são construções mentais. O ato de dar vem de uma mente onde o apego à idéia de um Eu e meu desapareceu. A generosidade, neste sentido é um tratamento direto para a ganância, o apego às coisas como se estas fossem nos dar felicidade permanentemente. A paciência é, da mesma forma, um remédio para a raiva e a aversão. O Bodhicitta absoluto vem de uma mente que realizou o shunyata, o “vazio”, que todos os fenômenos não possuem uma existência inerente. Tendo realizado isso, podemos tomar para nós mesmos o sofrimento de outros, para sermos um “receptáculo” destes sentimentos como assim define Winnicot, e ao mesmo tempo vermos que os mesmos não são reais em um sentido absoluto. 24ibid. 25J. Hopkins, Compassion in Tibetan Buddhism, Londres, 1980. 32
  • 33. A Qualidade da Franqueza e da Claridade em Todos os Fenômenos A filosofia do “shunyata” é talvez a mais difícil de se apreender em todas as idéias budistas. 26 A idéia de que a realidade possui a natureza do “shunyata” nos dá facilmente a impressão de que os budistas são niilistas, negando a realidade que todos nós podemos experimentar como sendo verdadeiramente real. Mesmo na literatura budista, há muitas advertências para evitar a má interpretação do “shunyata”. Nagarjuna afirmou em seu Tratado Fundamental chamado “Sabedoria”: Analisar o “estado de vazio” erroneamente, Assim como agarrar uma cobra incorretamente, Traz a ruína àqueles de pouca inteligência. 27 Há dois erros que podem ser cometidos. Um deles é acreditar que “shunyata” significa uma completa negação do fenômeno, niilismo. O outro erro é pensar que o fenômeno possui uma existência autônoma, que é permanente, eterno. Ainda de acordo com a filosofia budista, as experiências meditacionais levam-nos a verificar que todo fenômeno está em constante mutação, que toda realidade é um fluxo. O budismo é o caminho intermediário entre estes dois extremos, do niilismo e do eternalismo. Os fenômenos não possuem qualquer substância permanente. E isso é que é negado pelo “shunyata”. O significativo é que todo fenômeno carece de um si mesmo inerente. O “shunyata”, portanto, não é uma negação da realidade do fenômeno, mas exprime algo relacionado à maneira como existem os fenômenos. Não existem por si mesmos, 26Garma C. C. Chang, The Budhist Philosophy of Totality, University Park e Londres, 1974, pág. 60. 27G. Rabten e G. Dhargyey, Advice From a Spiritual Friend, Londres, 1977, pág. 40 33
  • 34. independentemente de outros fenômenos. Todo fenômeno surge por causa da interdependência com outro fenômeno e desaparece como consequência das causas. Existem na forma de processos interdependentes. A Mente é Inexistente A mente é vista como uma corrente do processo. Não há entidade permanente nesta corrente que possamos qualificar como um eu, tal como nossa ignorância (ma-rig-pa) nos faz acreditar. A mente também não tem existência independente. Qualquer estado da mente depende de numerosos momentos de consciência e vários fatores mentais. Cada fator mental individual, tal como um sentimento de felicidade ou tristeza, também é dependente de uma variedade de condições, que uma vez reunidas, fazem com que ocorra um sentimento particular. A pessoa também é dependente. A pessoa existe meramente na dependência de componentes físicos e mentais dos quais é constituída. Consequentemente, “shunyata” significa a anulação completa ou a ausência de qualquer existência independente, inerente dentro de um fenômeno. Mahamudra Para tornar este termo “shunyata” mais claro, ele tem sido traduzido como vazio, abertura, etc. A realidade não tem a qualidade de uma coisa. Sua natureza é franca e clara. A filosofia do “shunyata” segue juntamente com um maneira específica de perceber a realidade. Ao invés de enfocar os fenômenos concretos da forma como ocorrem, consideramos o campo no qual surgem, o espaço aberto no qual residem todos os fenômenos. 28 Da mesma forma, ao invés de sermos seduzidos por qualquer coisa que ocorra em nossa mente, observamos a abertura e a 28HerbertGuenter, The Dawn of Tantra, Guenther, Chogyam Trungpa. Berkeley e Londres, 1975, págs. 26-33; S. Odin, Process Metaphysics and Hua Yen Budhism, Albany, 1982, págs. 32-52. 34
  • 35. claridade da mente em si. Realizamos mais e mais que a mente em si não tem existência. É aberta e clara. Não há nada semelhante a alguma coisa para apegar-se. A meditação sobre o “shunyata” é o mais poderoso remédio para nosso auto-apego. É por causa deste auto-apego, juntamente com nossa maneira de impor uma auto-existência ao fenômeno, que experimentamos tudo de uma forma distorcida. Os fenômenos ocorrem e podemos experimentá-los, mas enfim eles não existem independentemente de nossos conceitos e imposições. Assim todos os fenômenos possuem o selo do “shunyata”. Isso é chamado Mahamudra (maha, grande e mudra, selo), uma experiência não-dual da “qualidade inerente” de todos os fenômenos, transcendendo todas as conceitualizações. Mahamudra é deixar a mente repousar em seu estado natural, apegando-se a nada. “No Mahamudra sem objeto, livre de imagens, Os dez mil pensamentos ilusórios são vazios. Uma vez que todos os fenômenos são o conhecimento e a pura consciência Eu vejo minha realidade como Mahamudra.” Mas devemos fazer um fetiche do “shunyata”, por que este também carece de existência inerente. O “shunyata”, portanto, não é um fim em si mesmo. É apenas um meio para elevar a mente ao prajna, um discernimento transcendental. Aqueles que convertem o “shunyata” em outra doutrina estão, como dizia Nagarjuna, verdadeiramente além da esperança e da ajuda. A realização do “estado de vazio” não é simplesmente um despertar para uma realidade ontológica, mas um passo salvador que liberta o homem de suas frustrações e sofrimentos. A experiência do “shunyata” segue juntamente com a grande compaixão. É uma experiência direta de não-dualidade frequentemente simbolizada por um casal divino enlaçado, geralmente visto na arte sacra tibetana, e ambos inspiram e 35
  • 36. expressam visualmente as experiências e a visualização de meditações. Exatamente naquele momento quando a Grande Compaixão surge Emerge de forma nua e vívida o Grande Shunyata. Deixe-me sempre encontrar este inconfundível Caminho Duplo-em-Um E praticá-lo dia e noite. 29 Duas Verdades Todos os fenômenos, seus e de outros (verdade relativa) compartilham a natureza do “shunyata” (verdade absoluta). As duas verdades são inseparáveis. Realizar a natureza fundamental do “estado de vazio” luminoso é dissolver a distinção entre o samsara e o nirvana. Portanto, todos os fenômenos são concebidos com “percepção pura” como inseparáveis do “estado de vazio” radiante e consequentemente como a expressão sagrada da natureza de Buda. A experiência direta do “estado de vazio” é frequentemente acompanhada por felicidade, e todos os fenômenos são concebidos como o divertimento da divindade do “shunyata”, da abertura e claridade. Como disse o iogue Longchen Rabjampa: Visto que a mente em si – pura desde o início e sem nenhuma raiz para apegar-se a algo que não seja ela mesma – não possui nenhuma relação com uma causa ou com algo a ser feito, esta mente pode muito bem ser feliz... Visto que tudo é meramente uma perfeita aparição, sendo o que é, não tendo qualquer relação com o bom ou o mal, com a aceitação ou a 29R.Moacanin, Jung’s Psychology and Tibetan Buddhism, Londres, 1986, pág.19. 36
  • 37. rejeição, uma pessoa pode muito bem cair na gargalhada. 30 Meditações no “shunyata” A realização do “shunyata” é o resultado de meditações em um caminho progressivo. No início, com sua primeira compreensão, melhor do que um bom senso grosseiro, progride- se através de estágios incrivelmente sutis e mais refinados até chegar à completa e perfeita compreensão. Cada estágio no progresso prepara a mente para o próximo e assim por diante, cada passo está inteiramente integrado em sua própria compreensão através do processo meditativo. 31 O caminho graduado para a meditação no “shunyata” tem como objetivo um conhecimento experimental do “estado de vazio”. Combina meditação com raciocínio lógico. Da mesma maneira, cientistas estudam objetos físicos, como flores. A primeira análise grosseira separa a flor em suas partes, pétalas, estame, etc. Uma análise mais refinada separa-a em células, moléculas depois átomos, partículas sub-atômicas. Finalmente, estas partículas sub-atômicas em si perdem sua identidade, tornam-se simples movimento no espaço vazio e a natureza fundamental deste movimento desafia a análise racional. Contudo, a flor permanece ainda vívida e óbvia como sempre. Deve-se aceitar, portanto, que há duas verdades, a relativa e a absoluta. A relativa refere-se a como as coisas aparecem para a consciência comum e não-crítica e a verdade absoluta é a natureza fundamental de uma coisa, estabelecida através da análise precisa e minuciosa da mente racional. A relativa refere-se a simples conceitos e a absoluta é “shunyata”, livre de conceitos. 32 30T. Clifford, Tibetan Budhist Medicine and Psychiatry, pág. 29. 31Khenpo Tsultrim Gyatso Rimpoche, Progressive Stages of Meditation on Emptiness, Longchen Foundation, Oxford, 1986, pág. 11. 32ibid. págs. 57-58 37
  • 38. Experiência Não-Dual O objetivo final é uma percepção direta do “shunyata”, livre de conceitos e fabricações mentais. Mas, antes de ser possível uma percepção direta da mente e do corpo, assim destituída de uma existência substancialmente auto-suficiente em si, em primeiro lugar deve estar compreendida conceitualmente a ausência dos mesmos. Os filósofos desenvolvem uma imagem mental de si mesmos até finalmente, através de uma crescente familiaridade com aquela imagem, tornarem possível a percepção direta. 33 Compreendendo o trabalho ilusório da mente Que observa todas as coisas como se fossem isoladas umas das outras, A visão penetra o drama ilusório da manifestação e surge o “vazio”. Então livre dos abismos do niilismo e do eternalismo pelo rei das perspectivas abertas como o céu, A mente está repleta de alegria. 34 Parte 2: Algumas Observações Meta-Científicas Fontes do Conhecimento Até agora, tentei entrar em harmonia com a perspectiva budista sobre filosofia e medicina. Agora é tempo de representar o papel de meta-cientista e fazer algumas questões epistemológicas. Assim, temos que questionar primeiramente 33Anne Klein, Knowledge and Liberation, Ithaca, New York, 1986, págs. 13-32. 34Selected Works of the Dalai Lama VII, Songs of Spiritual Change, Ithaca, 1982, pág.8. 38
  • 39. sobre a epistemologia da filosofia budista, e depois como isso está relacionado com a medicina. Portanto, quais são as fontes de conhecimento e erro de acordo com a filosofia e a medicina budista? Quais são as conjunturas epistemológicas atrás de tudo isso? As fontes do conhecimento podem ser definidas como sendo socialmente determinadas, como apontado por Elkana. 35 Os conceitos centrais em qualquer epistemologia estão relacionados com as estruturas culturais e resultam de um consenso social. Há muitas fontes de conhecimento, e Elkana fornece uma lista parcial: a) experiência, b) evidência dos sentidos, c) idéias claras e distintas, d) tradição, e) autoridade, f) revelação, g) inovação, h) beleza, i) intuição, j) analogia. 36 Se aplicamos esta lista à medicina tibetana, podemos notar que a experiência representa um papel central: experiências com a produção de medicamentos, no tratamento dos doentes, da análise dos corpos de pessoas mortas, etc. Aprendia-se através da experimentação de tratamentos. A experiência vem dos sentidos, mas é sempre enfatizado que o indivíduo não deve se enganar tomando ingenuamente por certo apenas o que os sentidos informam. Devemos estar conscientes sobre a atividade dos sentidos, e fazer uma distinção entre o que é visto espontaneamente como estando lá, e o que realmente está lá. Nossa experiência espontânea da realidade pode nos enganar. É típico para uma cultura pré-científica como a tibetana que a experiência esteja unida à percepção, uma percepção imediata da realidade e racionalizações da informação obtida através desta percepção imediata. A ciência Ocidental é distintiva, entretanto, criando deliberadamente novas experiências através da invenção de entidades e modelos teóricos no desenvolvimento de bom- senso na observação. Na ciência Ocidental nós experimentamos a 35Y. Elkana, A Programmatic Attempt at on Anthropology of Knowledge, Sciences and Cultures, E. Mendelsohn e Y. Elkana, Sociology of the Sciences Yearbook, 1981, pág. 19. 36ibid. pág.19. 39
  • 40. realidade através de nossos modelos. No budismo e na medicina tibetana é crucial a percepção mental, enquanto na ciência Ocidental, cruciais são nossos modelos. A experiência na filosofia e medicina budista é pessoal. É um conhecimento pessoal. A ciência Ocidental tende para a despersonalização. O papel das idéias claras e distintas é muito enfatizado na filosofia budista. O papel da lógica e a habilidade de fornecer argumentos racionais é consequentemente central. Desde a época de Buda, tem havido um debate contínuo entre diferentes escolas no budismo sobre epistemologia, assim como problemas lógicos. Mas em geral, podemos dizer que todas as escolas budistas concordam em alguns pontos essenciais. 37 Tranquilizando a Mente e Discernindo o Real Desse modo, as análises da mente através de diferentes tipos de meditação são consideradas para fornecer um conhecimento confiável sobre os processos mentais e mesmo sobre a natureza da mente em si. Percepção e conhecimento (blo- rig) é o estudo da consciência, da mente. Compreender a mente é essencial para compreender o budismo tanto em seus aspectos práticos como teóricos, e ainda, para o processo de conquista da iluminação, esta compreensão é sistematicamente a primeira na purificação e intensificação da mente. Dentro da ordem Gelugpa do budismo tibetano, a mente é estudada formalmente no tópico de “Percepção e conhecimento”. É a segunda maior área de estudo realizado durante um curso de treinamento intelectual que termina depois de vinte a vinte e cinco anos de estudos intensivos na obtenção do grau de ge-she, um doutor em filosofia. A consciência é examinada principalmente através da divisão em tipos e subtipos a partir de diversos pontos de vista, por meio do qual um estudante desenvolve uma compreensão das variações da consciência, suas funções e interrelações. Além desses 37Ver, por exemplo, A. Klein, Knowledge and Liberation, Ithaca, New York, 1986. 40
  • 41. estudos teóricos os estudantes também precisam aprender sobre suas mentes através de práticas meditativas. Ao examinar nossa realidade interna e externa devemos em primeiro lugar acalmar nossas mentes para sermos capazes de discernir o que é real. Através do “zhi-ney” tranquilizamos nossa mente e aguçamos sua capacidade analítica. No “lhag- thong” (meditação no discernimento), aplicamos esta agudeza para a análise de fenômenos externos e processos internos. Dessa forma, os diferentes tipos de meditação trabalham como meios efetivos para uma análise de nossas maneiras de “elaborar o mundo”, conforme a adequada expressão de Nelson Goodman. A análise é dirigida para o papel representado por diferentes fatores mentais em nossa percepção do mundo. Mesmo que o objetivo final seja uma percepção não dual, direta, da realidade, além de todas as formas de conceitualizações e fabricações mentais, temos que utilizar conceitos e lógica na direção deste objetivo. Nessa análise lógica e conceitual investigamos quais fatores mentais levam ao conhecimento válido e confiável e quais fatores distorcem nossa percepção do mundo. O método é a purificação da faculdade do conhecimento. A verdade fundamental é não-conceitual. Portanto, o método na escola Madyamika de budismo é para desconceitualizar a mente e para livrá-la de todas as noções, tanto empíricas como a priori. A implicação desse método é que o real é encoberto pelas elaborações de nossas noções e pontos de vista. O real é conhecido através da descoberta do mesmo, removendo a opacidade das idéias, observando-as como o “vazio” da existência absoluta. O intelecto torna-se tão puro e transparente que nenhuma diferença pode possivelmente existir entre o Real e o Intelecto que o apreende. A ênfase aqui é para a atitude correta sobre nosso conhecimento, e não como na ciência, na qual a ênfase é para o conhecido. A mente no budismo não é semelhante à inteligência de Aristóteles, dotada da habilidade para conhecer a existência; longe disso, sua atividade natural ou sua conceitualização é também uma 41
  • 42. obstrução, a qual deve ser tranquilizada e clareada através das meditações mencionadas, antes da verdade estar presente. Tradição e Autoridade A tradição e a autoridade são conceitos centrais no budismo. Os ensinamentos de Buda, por exemplo, são considerados impositivos. A tradição nos dá acesso à experiência coletiva dentro do contexto budista. “Revelação” é uma palavra complicada para ser usada no contexto do budismo. Não se falam de experiências meditacionais como revelações. Elas são contadas como experiências derivadas de análises e observações da mente. Há imagens do conhecimento que falam de competência mais que originalidade, enquanto outras enfatizam a criatividade, a abertura e a inovação. A filosofia budista e a medicina tibetana pertencem a estas tradições, onde a competência é mais importante que a originalidade e a inovação. As analogias, no entanto, representam um papel central na medicina tibetana. Nos ensinamentos sobre filosofia ou medicina, elas são frequentemente utilizadas para esclarecer um assunto, e até mesmo para fazer com que pareçam mais semelhantes. Mas como na ciência, a medicina tibetana não repousa sobre uma única fonte de conhecimento. A experiência e as evidências experimentais, as idéias claras e distintas, as considerações estéticas e as analogias são todas fontes legítimas de conhecimento. Conhecimento na Medicina Tibetana Como em todas as outras áreas da medicina tibetana, Buda é um paradigma também nas questões epistemológicas. Portanto, diz-se que todo conhecimento médico surge da sabedoria dos Budas. A verdadeira base “filosófica” da medicina tibetana, sua imagem do homem e sua cosmologia é um efeito da iluminação de Buda. A medicina tibetana tem seu início em uma tradição de praticantes tecida em uma longa tradição religiosa que tem sofrido alterações muito lentamente. Ao ler livros sobre 42
  • 43. medicina tibetana ou ouvir médicos tibetanos falando sobre medicina, nota-se a riqueza de metáforas, espelhando uma proximidade com a terra, a vida diária e a natureza. Ao mesmo tempo, há uma riqueza de variações na observação e também uma taxonomia rígida. A tradição tem mapeado cuidadosamente as diferentes condições da mente ou do pensamento e das doenças relacionadas por estarem suas raízes fundamentadas nestas condições. De acordo com a medicina tibetana as doenças físicas sempre possuem dimensões “psicológicas” e vice versa. A medicina tibetana pode ser caracterizada por considerações como a habilidade baseada na filosofia budista e influências de numerosas outras culturas e suas medicinas tradicionais, juntamente com suas próprias experiências. O Desenvolvimento do Conhecimento Robin Horton faz uma distinção entre as culturas progressistas e tradicionalistas. 38 Em uma cultura progressista há muita ênfase no desenvolvimento do conhecimento. A racionalidade da cultura está unida à idéia de que há um contínuo desenvolvimento do conhecimento. O conhecimento de ontem não é tão relevante e, amanhã, o conhecimento de hoje será superado. 39 Em uma cultura tradicionalista, por outro lado, há uma transmissão, de uma geração para outra, do que se considera ser o conhecimento. Há pouca ou nenhuma mudança dentro de uma tradição. Com isso em mente, perguntamos a um médico tibetano sobre o desenvolvimento do conhecimento na medicina tibetana. Como poderia alguém interpretar a afirmação de que todo conhecimento médico originou-se da sabedoria de Buda? Isso poderia significar que todo conhecimento, definitivamente, é completo e disponível, e é transmitido de médico para médico, de uma geração para outra? Nosso informante respondeu 38R. Horton, Tradition and Modernity Revisited, Rationality and Relativ- ism, publicado por M. Hollis e S. Lukes, Oxford, 1982, págs. 201-260. 39ibid. págs. 238-260 43
  • 44. afirmativamente a estas questões. Sua resposta é uma indicação do que Horton chama “conhecimento tradicionalista”. A fonte do conhecimento em uma cultura tradicionalista está nos anciãos e é transmitido através da tradição de pessoa para pessoa. As opiniões são aceitas, de acordo com o conceito de conhecimento tradicionalista, não apenas porque são vistas como antigas, mas porque são consideradas como comprovações pelo tempo. Em uma visão tradicionalista o consenso é enfatizado, enquanto no pensamento progressivista Ocidental a competição é valorizada. Em uma cultura progressista o desenvolvimento do conhecimento é enfatizado através da competição entre teóricos que inventam teorias para derrotar seus oponentes. Como resultado conseguimos uma progressiva separação entre a teoria secundária e a vida prática. Na medicina tibetana não encontramos nada semelhante a esta teoria crítica secundária. O conhecimento médico é transmitido do professor para o discípulo e está próximo ao tratamento prático. Como dissemos anteriormente, é um conhecimento de um praticante de nível elevado. Isso poderia ser entendido, entre outras coisas, pelo fato de que na medicina tibetana não havia até recentemente nada semelhante ao que chamamos de pesquisa. Não havia um grupo de médicos que tinham a tarefa exclusiva de desenvolver novas teorias. Supunha-se que o fundamento verdadeiro já fosse conhecido, e influências de outras tradições eram assimiladas dentro da tradição. Visto a partir do ponto de vista da tradição a qual pertence Rimpoche, a escola Madhyamika no budismo, sua resposta é lógica e racional. A concepção Madhyamika da filosofia, como intuição não-dual, ou sabedoria, evita o progresso e a surpresa. Progresso implica que o objetivo é alcançado sucessivamente através de uma série de etapas em uma ordem, e que pode ser mensurado em termos quantitativos. A sabedoria (prajna) é conhecimento da realidade completa, definitiva. Uma realização progressiva do absoluto é portanto incompatível. O conceito de progresso é aplicável à ciência, não à filosofia budista. 44
  • 45. É possível, no entanto, conceber a eliminação progressiva dos obstáculos que bloqueiam nossa visão da realidade, da forma como aprendemos na abordagem lam-rim. Alguns Problemas de Interpretação Nesta seção gostaria de enfocar algumas questões sobre interpretação. A primeira refere-se à interpretação de alguns conceitos centrais na medicina tibetana. A segunda refere-se ao problema meta-científico clássico da comensurabilidade – por exemplo, é “o mesmo” corpo humano que a medicina tibetana e a medicina Ocidental “configuram” em seus atlas de anatomia e sistemas de conceitos? A terceira questão refere-se à dependência cultural do conhecimento, uma discussão que tem sido geralmente conduzida sob o tema de “etnociência”. Eu questionaria finalmente se a medicina tibetana, em algum sentido, poderia afirmar ser racional, e se afirmativo, em qual sentido. Na discussão do problema da incomensurabilidade, argumentaria contra uma ruptura total entre as culturas e tradições, ou de um lado a incomensurabilidade e do outro lado contra o ideal convencional acerca de um crescimento cumulativo do conhecimento. Entendemos cada um e nos comunicamos através da membrana semi-permeável da tradução de uma cultura para outra. Somos capazes de tolerar a falta de clareza nos significados e temos a habilidade de coexistir em diversas ordens de discurso. O rumo para nosso encontro com outras culturas e seus pensamentos está no diálogo com outros, um diálogo onde podemos testar as conjeturas básicas de nossa própria cultura, no confronto com o modo de pensar estrangeiro. Os Três Humores A dificuldade de interpretar e compreender a medicina de uma outra cultura é exemplificada nos três humores da medicina tibetana. A apresentação da saúde e da doença como uma questão de equilíbrio e desequilíbrio pode ser encontrada em numerosas culturas em países que circundam o Mediterrâneo, na 45
  • 46. América Latina, na Grécia antiga, China e Índia. Encontramos familiaridades em muitas áreas. Afirma-se, por exemplo, em diversas culturas, que o equilíbrio entre os “humores” está relacionado às estações do ano e ao clima, e que os alimentos “quentes” e “frios” podem ter influências mediadoras entre os humores. Outro ponto em comum é a definição de saúde e doença como termos relacionados, isto é, com relação ao desequilíbrio como tendo poder não apenas sobre o doente, mas também entre a pessoa doente e sua família, a sociedade, a natureza e o cosmos. Apesar dessas similaridades, não podemos concluir que as diferentes culturas dão a mesma interpretação para seus conceitos. Devem ser vistos dentro da estrutura de suas cosmologias. Se observarmos a medicina tibetana como um texto a ser abordado de maneira hermética, podemos cortá-la em pequenos pedaços. Vamos descobrir que cada fragmento contém toda a cosmologia budista. Portanto, não se pode comparar os conceitos da medicina tibetana acerca do equilíbrio com Hipócrates sem dar cuidadosamente contextos das extensas descrições dos quais eles são uma parte. A Cientificação da Medicina Uma comparação entre as convicções médicas de diferentes culturas não é suficiente para observar os conceitos das tradições. Devemos observá-las também em seus discursos teóricos e suas práticas sociais e materiais. Devemos buscar o tipo de produção, a divisão de trabalho em sociedade, e como os sistemas e normas, valores e poder são socialmente construídas. A medicina tibetana é uma arte de cura pré-científica e uma análise comparativa do desenvolvimento da medicina Hipocrática e tibetana seria capaz de lançar alguma luz na “cientificação” da medicina em nossa própria cultura. Pode-se ver já nos textos de Hipócrates o verdadeiro embrião da medicina moderna. Hipócrates define a medicina como uma ciência separada da religião e da superstição. Requer que suas hipóteses sejam baseadas em fatos observáveis. Podemos encontrar em seus 46
  • 47. textos uma essência racional de um tipo semelhante à da medicina moderna. 40 Quais foram as razões sociais, materiais e cognitivas para que a medicina se tornasse uma ciência nesta época em particular e nesta cultura em particular? No Tibete, a medicina manteve uma habilidade profissional intimamente conectada com a religião. Ela possui a racionalidade das habilidades do médico que a pratica juntamente com o profundo discernimento sobre a mente humana. Retornaremos posteriormente à questão sobre a relação entre a ciência Ocidental e a sabedoria budista, mas primeiro faremos algumas observações sobre comensurabilidade. Algumas Observações Sobre Comensurabilidade É necessária uma compreensão da concepção global para nossa compreensão dos conceitos centrais “rLung”, “mKris-pa” e “Bad-kan” usados. Um médico contemporâneo explicou um ponto de vista moderno dos três Nyes-pas (grosseiramente traduzidos como “humores”) como segue: O humor “rLung” (grosseiramente traduzido como “ar” ou “vento”) é a força vital. É compreendida como estando concentrada no núcleo; controla o metabolismo. O humor “mKris-pa” (grosseiramente traduzido como “bile”) é a energia vital. Entendida como a energia liberada durante a atividade catabólica pelas reações enzimáticas. O humor “Bad- kan” (traduzido como “fleuma”) é compreendido como força anabólica que sintetiza o protoplasma. 41 A realidade, de acordo com a cosmologia budista, é formada de cinco elementos ou formas de energia - “terra”, “ar”, “fogo”, “água” e “espaço”. Estes elementos básicos são encontrados também no homem, “terra” corresponde às partes sólidas do corpo, da carne e dos ossos, “água” corresponde ao sangue e linfa, “fogo” à energia e habilidades motoras e “espaço” 40Ver G. E. R. Lloyd, Magic, Reason and Experience, Studies in the Origins and Development of Greek Science, Cambridge, 1979. 41T. Clifford, Tibetan Buddhist Medicine and Psychiatry, pág. 91. 47
  • 48. à mente. Um filósofo da ciência chinês, Lan Zheng, apontou algumas dificuldades na comparação das diferentes tradições em um artigo sobre a medicina chinesa e a Ocidental: “Os conceitos físicos e patológicos encontrados na teoria médica chinesa são sistematicamente diferentes dos ocidentais. Apesar de existirem algumas semelhanças na terminologia, os termos possuem conotações físicas e patológicas completamente diferentes.” 42 Por exemplo, de acordo com Lan Zheng, um determinado órgão pode realizar muitas funções que são realizadas por outros órgãos, segundo a medicina Ocidental. Outras funções que a medicina Ocidental considera que seja realizada por um órgão são compreendidas na medicina chinesa como sendo o resultado de cooperação entre muitos órgãos diferentes. Isto porque o modelo chinês observa o órgão, frequentemente, em termos fisiológicos e patológicos do que simplesmente em termos anatômicos. Há correspondências na medicina chinesa, assim como na medicina tibetana, para o fígado, coração, rins e outros, mas eles possuem também outras conotações. Como exemplo, Zheng pega o coração, para o qual são atribuídas as mesmas funções, de muitas maneiras, tanto na medicina chinesa como na tibetana, mas o qual é responsável também por numerosas atividades mentais e emocionais. Complicações correspondentes podem ser observadas na análise simultânea da medicina tibetana com a Ocidental em comparações relacionadas ao coração, o qual é considerado na medicina tibetana a sede da clareza mental. A doença é analisada quanto ao nível celular e molecular na medicina Ocidental, enquanto dentro da medicina tibetana e chinesa, é analisada em grandes unidades. As tentativas de traduzir os ensinamentos yin- yang da medicina chinesa em termos Ocidentais, da mesma forma que as tentativas correspondentes com a medicina tibetana, têm sido infrutíferas. As diferenças teóricas entre as tradições levam a 42Artigo não publicado de uma conferência em Dubrovik, 1987. 48
  • 49. diferentes princípios de diagnóstico e tratamento. A análise de Zheng é convincente e estou preparado para ver sua conclusão, para que seja aplicável à medicina tibetana também. Creio que os fatos acima mencionados são completamente suficientes para demonstrar a incomensurabilidade das teorias chinesa e Ocidental. Cada uma possui suas próprias estruturas conceituais físicas e patológicas e seu próprio sistema de classificação. Elas interpretam as doenças diferentemente e aplicam métodos de tratamento também diferentes. Na medicina tibetana, cada diagnóstico deve considerar a estação do ano, quais dos três elementos estão envolvidos, se é uma doença quente ou fria, e quais efeitos proporcionados pela cura na constituição corporal do paciente. Uma Visão Relacional do Homem Na cosmologia budista, o homem é visto como um cosmo em miniatura. Tanto o homem como o mundo onde ele vive são considerados processos de energia ou campos de energia. Considera-se consequentemente que, contanto que haja um estado de equilíbrio entre humores, ou energias, dentro de uma pessoa e entre uma pessoa e seu ambiente social e biológico, haverá um estado de saúde. Quando o equilíbrio é rompido, surge um estado de desarmonia ou doença. Como resultado, é natural que o médico tibetano, com sua abordagem global e relacional, atente para o ambiente social e cultural do paciente. Ele deve saber algo sobre a região na qual vive o paciente e seu equilíbrio com as circunstâncias, incluindo a família e a sociedade. Sudhir Kakar fez as mesmas observações sobre a medicina tradicional na Índia. 43 43S. Kakar, Shamans, Mystics and Doctors, New York, 1982. 49
  • 50. Enquanto as modernas ciências Ocidentais do homem concebem a pessoa como de natureza individual (indivisível), que é permanente, fechada, possuidora de uma estrutura interna homogênea, as teorias indianas (como evidenciado nos textos sobre astrologia, biologia, moral e rituais) consideram a pessoa como divíduo, ou seja, divisível. De acordo com Marriot, o divíduo Hindu é aberto, mais ou menos fluido e apenas temporariamente em integração; não é um mônada, mas (pelo menos) binário, derivando sua natureza pessoal interpessoalmente. As pessoas Hindus, portanto, são constituídas de relações; todos os sentimentos, necessidades e motivos são relacionais e seus sofrimentos são distúrbios destas relações. 44 Realismo na Medicina Tibetana As medicinas tibetana e Ocidental mapeiam o corpo humano de maneiras diferentes. Seus mapeamentos teóricos possuem termos teóricos e analíticos diferentes. Exatamente como na medicina Ocidental, a linguagem analítica é impregnada de teoria. Os conceitos teóricos tais como Bad-kan, mKris-pa e rLung desempenham uma função dentro de uma teoria e ordenam o fenômeno de forma a possibilitar a explicação, o diagnóstico e o tratamento. Como é o mapa Ocidental do homem com relação ao tibetano? O mapa médico tibetano deve ser visto apenas como irracional, não possuindo conteúdo cognitivo? Pode haver qualquer tipo de verossimilhança nas teorias médicas tibetanas, e se afirmativo, em que sentido? Nossas respostas a questões como estas têm relação com nosso ponto de vista acerca de relativismo e realismo. 44ibid. págs. 274-175. 50
  • 51. Sigo as duas linhas de pensamento de Elkana, de que é possível ser simultaneamente realista e relativista. 45 Neste caso, significa que podemos ver ambos os mapas como realistas, de um certo sentido. Tendo escolhido uma estrutura, a medicina tibetana, por exemplo, somos realistas dentro desta estrutura. Se interpretamos a medicina tibetana como sendo realista, em que sentido ela é realista? Quando falamos em realismo, temos que dizer algo acerca de qual tipo de realismo estamos nos referindo. Como pudemos ver até agora, o tipo de realismo que chega mais próximo é aquele que Rom Harre chama realismo referencial. 46 Conforme Harre, temos que nos deslocar da cognição para a prática, de forma que o ato de estabelecer a suposta existência ou não-existência estará na dependência de um material prático. O realismo referencial requer que alguns dos termos substantivos em um discurso denotem ou pretendam denotar entidades de várias categorias metafísicas, que existam independentemente deste discurso. 47 Esta forma de realismo deve ser considerada como “uma política, a política de buscar entidades suficientemente semelhantes às supostamente existentes, cujas características estejam determinadas na teoria”. Harre acrescenta que um referencial realista seria absurdo se ele necessitasse da possibilidade de ser reconhecido simplesmente pelas propriedades da teoria de que seus termos denotam realmente algo. O realismo referencial implica na não invocação de conceitos tais como verdadeiro ou falso. É diferente de “realismo verdadeiro”. Referência, neste contexto, é estabelecida adquirindo-se uma ligação física entre o cientista personificado (ou o médico, em nosso caso) e a existência em questão. Sua existência está ligada à do cientista. O realismo defendido por 45Y. Elkana, A Programmatic Attempt at an Anthropology of Knowledge, Sciences and Cultures, págs. 3-5. 46Rom Harre, Varieties of Realism, Oxford, 1986, págs. 65-70. 47ibid. pág. 69 51
  • 52. Harre deve ser entendido em termos de práticas materiais, e não através de relações lógicas. O aparecimento de termos que parecem denotar alguma existência extra-analítica (tais como rLung, mKris-pa e Bad-kan, por exemplo) deveria ser considerado como a base para um projeto material, uma busca do mundo real para uma existência que poderia servir como sua referência. 48 Considero a ênfase de Harre no “prática material” muito proveitosa. Temos que observar os médicos tibetanos em suas práticas . McMullin possui outro ponto de vista interessante de realismo. Ele sugere que observemos o modelo como funcionando até certo ponto como uma metáfora na linguagem. Ela expressa um pensamento complexo. 49 Possui seu próprio tipo de precisão. Possui a precisão de uma poesia. Talvez possamos compreender os “humores” na medicina tibetana como uma metáfora para os complexos campos de energia no interior do corpo. A metáfora aqui poderia, segundo McMullin, agir como uma tentativa de sugestão. Somos convidados a experienciar o corpo humano como um campo de diferentes energias. A metáfora poderia ser um guia para o cientista em seu material prático. Ao mesmo tempo, ele está confiante de que há algum tipo de ligação entre a metáfora e a estrutura do mundo. Medicina Tibetana como um Programa de Pesquisa A medicina tibetana e a Ocidental constituem o corpo de diferentes maneiras. Os mapas são desenhados dentro de duas visões diferentes. Podemos considerar cada um deles como realistas. Os princípios utilizados para desenhar os mapas são muito diferentes, o que dificulta as comparações. Entretanto, não impede que sejam julgados como dois programas de pesquisa (concorrentes), com heurísticas positivas e negativas. Temos que dar uma olhada mais de perto ao “núcleo” de seus “programas de 48ibid.pág. 67-70 49Ernan McMullin, A Case for Scientific Realism, publicado por J. Lep- lin, Berkeley, 1984, págs. 30-36. 52
  • 53. pesquisa” para tornar explícitas suas metafísicas. Este “núcleo” , conforme o conceito de Lakatos, pode ser semelhante ao código do DNA de um gene. Contém os fatores essenciais determinantes da produção do conhecimento. Na medicina tibetana este código conduz a mapas que têm o caráter de narrativas. Na ciência Ocidental, o código dá explicações do tipo dedutivo. Na medicina tibetana, não observamos o tipo de “arrebatamento” epistêmico, a ruptura de nossas experiências espontâneas do mundo sobre a qual referiu- se Gaston Bachelard. O antimorfismo ideal, a idéia de que a Natureza é escrita na linguagem da Matemática, é desconhecida para a ciência médica tibetana, pois é o ideal do experimento. Ao invés de descrever suas teorias em uma linguagem matemática, eles utilizam o idioma da poesia. Ambas as linguagens possuem seus próprios critérios de exatidão. Razão hábil A experiência na filosofia budista significa conhecimento experimental, algo experimentado fenomenologicamente, e não conhecimento experimental como na ciência Ocidental. Não é por causa da sofisticação de nossos modelos teóricos que eles aprofundam o conhecimento sobre, por exemplo, a mente humana, mas através de uma percepção mais avançada. 50 Enquanto a razão na ciência Ocidental é epistêmica, ou seja, lógica, dedutiva, objetiva e despersonalizada, a razão na filosofia budista e na medicina tibetana é pessoal, utilizando o que Elkana chama de “razão habilidosa”. “Razão habilidosa”, implica em “um corpo coerente e verdadeiramente complexo de atitudes mentais e comportamento intelectual que combina discernimento, sabedoria, prudência, sutileza da mente, erros, desenvoltura, 50A. Klein, Knowledge and Liberation, Ithaca, New York, 1986; Lati Rimpoche, Mind in Tibetan Medicine, publicado por E. Napper, Lon- dres, 1980; B. Krishna Matilal, R. D. Evans, Buddhist Logic and Epistemology, Dordrecht, 1982 53
  • 54. atenção, oportunismo, várias habilidades e experiência adquirida durante anos. É aplicada a situações que são transitórias, mutáveis, desconcertantes e ambíguas, situações estas que não se prestam a precisar medições, cálculos exatos ou lógica vigorosa.” 51 Na filosofia budista e na medicina tibetana há um tipo semelhante de razão que é chamada “recursos hábeis”. O iogue ou o médico habilidoso usa o que quer que venha a suas mãos como habilidade, meios efetivos para gerar as condições corretas para a iluminação ou a saúde. Diz-se que tudo pode ser utilizado como medicamento pelo médico habilidoso. Na ciência Ocidental temos o mesmo tipo de “recursos hábeis” na psicoterapia e psicanálise. Os profissionais precisam trabalhar com a lógica da situação. Precisam penetrar a racionalidade da mente do paciente, da existência do paciente esquizofrênico, por exemplo, e utilizar os recursos corretos para lidar com isso. Terapêutas como John Rosen, de maneira semelhante aos médicos e iogues tibetanos, utilizam comportamento não convencional e a fala aparentemente irracional para “passar através” do paciente ou do discípulo. O iogue tibetano ou o psicoterapêuta, em seu trabalho com um discípulo ou um paciente psicótico, podem utilizar um efeito de choque, o que significa que eles puxam o tapete que está sob os pés do outro para quebrar a resistência antagônica para a mudança. Mudam abruptamente as regras do jogo. O discípulo ou o paciente é confrontado com um conjunto de circunstâncias inteiramente novas e deve mudar a posição de seus pés durante o jogo para lidar com estas novas circunstâncias. Eles devem encarar seu próprio apego aos preconceitos e ao pensamento convencional, e observar que ele está preso na armadilha de suas próprias fabricações mentais. 51Y.Elkana, A Programmatic Attempt at an Anthropology of Knowledge, Sciences and Cultures, pág. 48. 54
  • 55. Etnociência Não estamos abordando um assunto sem preconceitos, com uma tabula rasa. Nossos preconceitos, através dos quais acomodamos nossos problemas e hipóteses, estão impregnados pela cultura científica e filosófica na qual nosso pensamento é moldado. O encontro entre duas culturas, a medicina Ocidental e a tibetana, por exemplo, lança uma luz sobre ambas. Ao aprendermos sobre o modo de pensar de outras culturas aprofundamos nossa auto-compreensão. Tal encontro dá origem a uma enorme quantidade de problemas metodológicos para um antropologista do conhecimento. Devemos, ao mesmo tempo, manter a proximidade e a distância de nosso objetivo. Devemos estar próximos para entrarmos em harmonia com a outra cultura, para conseguirmos vestir a pele, por assim dizer. Ao mesmo tempo, devemos manter a distância para sermos capazes de fazer uma análise teórica de nosso material. Horton relaciona uma variedade de dicotomias geralmente utilizadas para caracterizar a diferença entre a ciência Ocidental e o pensamento “primitivo”. Entre estes opostos estão verdadeiro/falso, racional/irracional, profano/religioso, onde a ciência Ocidental representa o que é racional, verdadeiro e profano. A medicina tibetana é religiosa, mas não necessariamente irracional e falsa. O que é verdadeiro ou falso na medicina tibetana é um problema de investigação empírica. A medicina tibetana pode, como dissemos anteriormente, como muitas outras medicinas de tradição cultural, ser chamada tradicionalista segundo Horton. Mas isso não a torna irracional. Assim como na ciência e filosofia Ocidental, na tradição budista podemos encontrar muitos exemplos de análise lógica e racional. Muitos tópicos de importância central no discurso filosófico Ocidental sobre epistemologia são também postos em jogo na 55