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Copyright © 2007 by J. M. Coetzee
Copyright da introdução © Derek Attridge
                                                                                          Sumário
Todos os direitos reservados.

Tradução publicada mediante acordo com Peter Lampack Agency,
Jnc. 551 Fifth Avenue, Suite 1613, New York, NY 10176-0187, Estados Unidos.

Grafia atualizada            segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Jnller workillgs - Literary Essays 2000-2005

Capa
Kiko Farkas e Thiago Lacaz/ Máquina Estúdio

Preparação
Cados Alberto B,írbaro

Revisão
Erika Nakahata
Camila Saraiva


                                                                                          Créditos                                           7
      Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)                             Introdução                                         9
               (Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil)

Coelzee, J. M.
    Mecanismos internos: ensaios sobre literatura (2000-2005) /                            1.   Italo Svevo                                 17
J. M. Coelzee ; inlrodução Derek Allridge ; tradução Sergio
Flaksman. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.                                         2. Robert Walser                                 33
       Título original: Inner workings - Literary Essays 2000-20°5                        3. Robert Musil, O jovem Türless                  51
       Bibliografia
       ISBN   978-85-359-1808-3                                                           4- Walter Benjamin, Passagens                     62

       }. Literatura - História e crítica   I.   Attridge, Derek.   11.   Título.         5. Bruno Schulz                                   9°
                                                                                          6. Joseph Roth, os contos                        106
1l-00209                                                              CDD-809

                                                                                          7. Sándor Márai                                  122
Índice para catálogo sistemático:
1.   Literatura: História e crítica          809                                          8. Paul Celan e seus tradutores                  144
                                                                                           9. Günter Grass e o Wilhelm Gustloff            165
                                                                                          10. W. G. Sebald, After Nature                   180
[20n]
Todos os direitos desta edição reservados à                                               11.   Hugo Claus, poeta                          193
EDITORA               SCHWARCZ        LTDA.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32                                                        12. Graham Greene, O condenado [Brighton Rock]   198
°4532-002         -    São Paulo -      SP                                                13. Samuel Beckett, os contos                    2°9
Telefone (n) 37°7-35°0
                                                                                          14- Walt Whitman                                 214
Fax (n) 37°7-35°1
www.companhiadasletras.com.br                                                             15.   William Faulkner e seus biógrafos          231
16. Saul Bellow, os primeiros romances                 251   Créditos
17. Arthur Miller, Os desajustados                     268
18. Philip Roth, Complâ contra a América               274
19· Nadine Gordimer          ,                         293
20. Gabriel García Márquez, Memórias de minhas putas
   tristes                                             308
21. V. S. Naipaul, Meia vida                           324


Notas                                                  347




                                                                 O ensaio sobre Arthur Miller foi publicado originalmente
                                                             em Writers atthe Movies [Escritores no cinema]' org. Jim She-
                                                             pardo Nova York: HarperCollins, 2000.
                                                                  O ensaio sobre Robert Musil foi publicado originalmente
                                                             como introdução a The Confusions ofYoung Torless [As confu-
                                                             sões do jovem Ti;irless]' trad. Shaun Whiteside. Londres: Pen-
                                                             gUIn, 2001.
                                                                  O ensaio sobre Graham Greene foi publicado originalmen-
                                                             te como introdução a Brighton Rock. Nova York: Penguin, 2004-
                                                                  O ensaio sobre Samuel Beckett foi tirado da introdução ao
                                                             quarto volume de Samuel Beckett: The Grave Centenary Edition.
                                                             Nova York: Grove, 2006.
                                                                  O ensaio sobre Hugo Claus foi publicado originalmente co-
                                                             mo apresentação à edição em brochura de Hugo Claus, Greetíngs:
                                                             Selected Poems, trad. John Irons. Nova York: Harcourt, 2006.
                                                                  Todos os demais ensaios foram originalmente publicados na
                                                             New York Review of Books.



                                                                                                                     7
Introdução




     Por que razão alguém pode sentir-se atraído pela leitura de
uma coletânea de resenhas de livros e apresentações      literárias
de um escritor conhecido acima de tudo por sua ficção? Os ro-
mances de   J.   M. Coetzee conquistaram   aclamação em todo o
planeta; dois deles receberam o Booker Prize, e foi por sua obra
de ficcionista que conquistou o prêmio Nobel de literatura em
2003. Alguns de seus livros combinam ficção e não ficção, e ele
emprega com frequência uma persona fictícia -       especialmen-
te uma escritora australiana chamada Elizabeth Costello - para
abordar certas questões importantes do momento atual. Em Me-
canismos internos, contudo, ele nos fala com sua própria voz, dan-
do prosseguimento a uma prolífica carreira de resenhista e críti-
co que já resultou na publicação de três coletâneas de ensaios.
     Existem dois incentivos óbvios para nos voltarmos da ficção
para a prosa crítica: a esperança de que estes textos mais diretos
possam lançar alguma luz sobre seus romances muitas vezes oblí-
quos, e a convicção de que um escritor que em suas obras imagi-
nativas se mostra capaz de penetrar até o cerne de tantas ques-

                                                            9
tões urgentes deve ter muito a oferecer quando escreve, por assim         te convidado a refletir sobre cada uma delas por vez, o leitor deste
dizer, com a mão esquerda. Em especial, há sempre o interesse             volume é estimulado a vê-Ias em relação umas com as outras.
em ver como um escritor de primeira linha trata os seus pares,                  A maioria dos capítulos que se seguem apresenta um re-
comentando não como um crítico de fora mas na qualidade de                trato do artista como o contexto para o livro ou os livros em dis-
alguém que trabalha com as mesmas matérias-primas. Há far-                cussão, que tomados em conjunto ilustram com riqueza de deta-
tos indícios de que a segunda expectativa tende a ser atendida. A         lhes a variedade e a imprevisibilidade das vidas dos escritores do
obra não ficcional e semificcional de Coetzee, encarada em seu            século xx. (Há entre eles um escritor do século XIX, Walt Whit-
conjunto, representa uma contribuição substancial e significati-          man, poeta fora do seu tempo mas ao mesmo tempo muito re-
va à discussão permanente sobre o lugar da literatura na vida dos         presentativo.) Os primeiros sete - !talo Svevo, Robert Walser,
indivíduos e das culturas. As entrevistas e os ensaios publicados         Robert Musil, Walter Benjamin, Bruno Schulz, Joseph Roth e
em Doubling the Point [Voltando ao ponto], os estudos sobre a             Sándor Márai - formam um aglomerado com lImitas inter-re-
literatura sul-africana e a censura em White Writing [Escrita bran-       lações: todos nasceram na Europa no final do século XIX e viven-
ca] e Giving Offense [Ofendendo], e as "lições" de Elizabeth Cos-         ciaram, na juventude ou na meia-idade, as reviravoltas da Pri-
tello investigam, entre muitos outros tópicos, a relação entre a          meira Guerra Mundial, tendo muitos deles ainda atingido, ou
arte e a política, a continuidade entre o estético e o erótico, as res-   atravessado, também a Segunda Guerra Mundial. Apesar das dis-
ponsabilidades do escritor e o potencial ético da ficção. O fato de       paridades de suas origens nacionais e étnicas (italiana, suíça, po-
os romances e memórias de Coetzee apresentarem questões se-               lonesa, galiciana e húngara), das diferentes línguas em que es-
melhantes é testemunho da integridade e da persistência de sua            creveram e das trajetórias muito diversas de suas biografias, há
concepção do papel do artista.                                            entre eles conexões claramente perceptíveis. Todos sentiram a ne-
     Em 2001 Coetzee publicou Stranger Shores [Margens estra-             cessidade de explorar, na ficção, a extinção do mundo em que
nhas], uma coletânea de ensaios datados de 1986 a 1999, em sua            tinham nascido; todos registraram as ondas de choque do novo
maioria publicados originalmente na New York Review ofBooks.              mundo que emergia. Suas origens burguesas não os isentaram das
Continuou a escrever regularmente para o mesmo periódico, e               tribulações do exílio, da destituição e, às vezes, da violência pes-
este livro é novamente composto quase todo de resenhas produ-             soal. Quatro deles eram judeus, e dois morreram em decorrên-
zidas segundo os padrões da revista, generosos e estritos ao mes-         cia da perseguição nazista. (Entre os sete, a única exceção a esse
mo tempo, juntamente com uma seleção de outros ensaios escri-             padrão é um dos judeus: !talo Svevo, que permaneceu arraiga-
tos quase sempre como introdução à reedição de obras literárias.          do em Trieste até a morte. O rumo diferente da sua vida pode ser
Embora os capítulos desses dois livros ostentem a aparência do            parcialmente explicado pelo fato de ter morrido em 1928; como
artigo ocasional, eles dão continuidade, num outro plano, à inves-        nos conta Coetzee, a viúva de Svevo passou escondida os anos da
tigação de Coetzee sobre o lugar e a finalidade da literatura - e,        guerra, e o neto dos dois, escondido com ela, acabou fuzilado
não se pode deixar de enfatizar, sobre seus prazeres, além dos seus       pelos nazistas em 1945.) O que emerge desse conjunto de ensaios
desafios. Enquanto o leitor das resenhas originais era basicamen-         é uma Europa em transição dolorosa, e uma série de obras lite-

     10                                                                                                                                11
rárias cuja originalidade   é vista corno a resposta necessária do   claramente o compromisso de Coetzee tanto com a arte quanto
artista a mudanças de tamanho alcance. Urna figura óbvia está        com a ética quando ele apresenta, ao final do capítulo sobre o
ausente (embora seja mencionado em conexão com vários dos            filme, um comentário especialmente revelador sobre a diferença
escritores abordados): Franz Kafka, cujas obras parecem apre-        entre a imagem fotográfica e a representação literária: os cavalos
sentar de forma concentrada muitas das paixões e dos percalços       selvagens cercados no filme estavam de fato aterrorizados.
explorados de maneira mais extensa por esses sete escritores.             O próprio Coetzee costuma ser visto corno um escritor nem
     Num segundo grupo, somos levados da crise da metade do          europeu nem americano: passou quase toda a vida de escritor na
século XX na Europa para o período que a sucedeu. Nesses estu-       África do Sul, e metade dos seus romances transcorre nesse país.
dos sobre Paul Celan, Günter Grass, W. G. Sebald e Hugo Claus        Hoje mora na Austrália, e um de seus romances mais recentes,
torna-se mais difícil discernir um padrão comum, na medida em        Homem lento, é ambientado em sua cidade adotiva, Adelaide.
que as histórias tanto nacionais quanto individuais divergem de      Os últimos três escritores da coletânea têm origens igualmen-
maneira mais acentuada, embora a sombria história recente da         te não metropolitanas, e também foram agraciados com o reco-
Europa permaneça um ponto ele referência constante.                  nhecimento mundial na forma do Prêmio Nobel de Literatura:
    A segunda metade do livro, Coetzee dedica basicamente            Nadine Gordimer, Gabriel García Márquez e V. S. Naipaul.
a obras em inglês. (Corno relata em Infância, foi criado falan-      Aqui, Coetzee assesta o foco em obras determinadas, em vez de
do inglês corno primeira língua, embora seus pais falassem o         enquadrar a vida dos autores: lemos estes seus ensaios não corno
africânder; também se sente à vontade com o holandês e o ale-        urna avaliação feita em retrospecto, mas corno expressão do seu
mão, corno sugerem seus comentários        sobre obras nessas lín-   compromisso com os contemporâneos.        Coetzee espera que sua
guas.) A atenção de Coetzee é capturada pela intensidade mo-         própria ficção seja avaliada à luz dos mesmos padrões de rigor
ral de Graham Greene, pela intensidade existencial de Samuel         que aqui aplica aos outros.
Beckett e pela intensidade homoerótica de Walt Whitman. E o              Ninguém poderia imaginar depois de ler apenas seus ro-
estudo sobre Whitman conduz a outro grupo, dessa vez de es-          mances, mas Coetzee é um resenhista ideal. Parece ter lido tudo
critores americanos, que tiveram dificuldades e oportunidades        que é relevante sobre o seu terna, muitas vezes inclusive os livros
de criação totalmente diversas das dos europeus. A biografia de      mais obscuros da obra de um autor; escreve com familiaridade
Faulkner, e as biografias escritas sobre Faulkner, são o terna de    fluente sobre o pano de fundo histórico, cultural e político, seja
outro capítulo, e a história dos anos desperdiçados escrevendo ro-   ele o Império Austro-Húngaro ou o Sul dos Estados Unidos; e
teiros por encomenda em Hollywood parece muito diversa da luta       ainda se dá à pachorra de resumir os enredos para que os leitores
para escrever contra um pano de fundo de nações em guerra. Nos       mais ocupados possam descobrir "o que acontece" da maneira
primeiros romances de Saul Bellow, no filme Os desajustados,         menos trabalhosa. Pouco se percebe do romancista de folga: os
de Arthur Miller e John Huston, e na fantasia histórica de Philip    floreios literários são poucos, e não se nota nenhum sinal daque-
Roth Complô contra a América, ternos mais três versões sem re-       la voz interna antes rabugenta que marca boa parte da ficção
toques dos Estados Unidos no século xx. É possível perceber          recente de Coetzee. (Podemos sentir, no entanto, a solidarieda-

     12                                                                                                                          13
de que lhe inspira a luta do escritor para manter-se fiel à sua vo-    moestava seu colega romancista por não ter se posto a serviço
cação apesar de tudo.) Coetzee não hesita em emitir julgamen-         . das demandas éticas e políticas da África do Sul daquela época.
tos, mas é um leitor generoso, aberto a uma ampla variedade de          Coetzee, que se manifestou ele próprio em tom severo em ava-
temas e estilos.                                                       liações anteriores da obra de Gordimer, mostra-se aqui generoso
      E quanto ao segundo motivo para ler estes ensaios, as possí-     ao reconhecer a busca da justiça como o princípio constante e
veis revelações sobre a obra ficcional do próprio Coetzee? Será        supremo da escritora; e ao assinalar que O engate, que ele classi-
que o leitor deste livro, voltando aos seus romances, irá desco-       fica de "um livro extraordinário", introduz uma nota espiritual
brir que de alguma forma se modificaram? Um efeito pode ser            inédita na obra da autora, parecendo recebê-Ia num campo em
descobrir oquanto lhe é inadequado o rótulo de escritor "sul-afri-     que já transitava, nem sempre com conforto, havia algum tem-
cano" (ou, nos dias que correm, "australiano"): a criação de Coet-     po. Pois, se existem vislumbres de transcendência nos romances
zee se dá a partir de um rico diálogo com escritores de várias         de Coetzee, eles não são sugestões de uma justiça possível, mas de
tradições. Em especial, seu fascínio evidente pelos romancistas        uma justiça animada, além de posta à prova, por uma deman-
europeus da primeira metade do século XX sugere que, embora            da mais obscura ainda, que a definição de "espiritual" se limita
jamais tenha morado na Europa continental, ele é, visto de certo       a indicar - uma demanda já prenunciada, desde Dostoiévski,
ângulo, um escritor profundamente europeu. Igualmente óbvio            por seus formidáveis antecessores europeus.
é seu interesse profundo pelas mais minuciosas questões da lin-
guagem: os ensaios sobre os escritores que não escreveram ori-                                                           Derek Attridge
ginalmente em inglês sempre trazem um exame detalhado do
ofício dos tradutores. E, para dar o exemplo de uma conexão mais
específica, os leitores de Infância ficarão intrigados com os co-
mentários sobre a criação de um alter ego autobiográfico por
Philip Roth em Complô contra a América.
     Entretanto, muitos leitores à procura de pistas sobre a cria-
ção literária do próprio Coetzee ficarão tentados a debruçar-se
sobre o único capítulo dedicado a outra romancista da África do
Sul, seus comentários ao romance O engate, escrito por Nadine
Gordimer em 2001. O questionamento       que Coetzee faz a Nadi-
ne Gordimer só pode ser lido como uma pergunta que também
coloca para si próprio: "Que papel histórico está disponível para
uma escritora como ela, nascida numa comunidade colonial tar-
dia?". Nadine Gordimer escreveu uma conhecida resenha sobre
Vida e época de Michael K, romance de Coetzee, em que ad-

    14                                                                                                                            15
1.   Italo Svevo




     Um homem -       um homem imenso, ao lado do qual você
se sente muito pequeno - decide convidá-Io para conhecer suas
filhas, a fim de escolher uma delas para esposa. Elas são quatro,
todas com os nomes começando em A; o seu nome começa com
Z. Você vai visitá-Ias em casa e tenta travar uma conversa civili-
zada, mas não consegue evitar que insultos se despejem da sua
boca. Você se descobre contando piadas indecentes, que são re-
cebidas com um silêncio glacial. No escuro, você murmura pa-
lavras sedutoras para a mais bonita das A; quando as luzes se
acendem, descobre que quem vinha cortejando era a A de olhos
estrábicos. Você se apoia descuidado    em seu guarda-chuva;     o
guarda-chuva se parte ao meio; todos riem.
     Isso tudo parece, se não um pesadelo, um desses sonhos que,
nas mãos de um vienense devidamente habilitado para interpre-
tá-Ios, como por exemplo Sigmund Freud, acabam revelando
muita coisa embaraçosa a seu respeito. Entretanto não se trata
de um sonho, e sim de um dia na vida de Zeno Cosini, herói de
A consciência de Zeno, romance de Halo Svevo (1861-1928). Se

                                                           17
Svevo é de fato um romancista freudiano, será freudiano na me-          ticos alemães. Não obstante as vantagens que seu aprendizado
    dida em que mostra o quanto a vida das pessoas comuns é reple-          alemão podia trazer a seus negócios no Império Austro-Húngaro,
    ta de lapsos, parapraxias e símbolos, ou na medida em que, usan-        acabaram por privá-Io de uma formação literária italiana.
    do como fontes A interpretação dos sonhos, O chiste e sua relação            De volta a Trieste, Svevo matriculou-se aos dezessete anos
    com o inconsciente e Sobre a psicopatologia da vida cotidiana,          no Instituto Superiore Commerciale. Seus sonhos de tornar-se
    ele cria uma personagem cuja vida interior obedece às linhas des-       ator tiveram fim quando foi recusado num teste devido à sua
    critas pelos manuais freudianos? Ou será ainda que tanto Freud          elocução defeituosa do italiano.
    quanto Svevo pertencem a uma era em que cachimbos, charu-                    Em 1880, Schmitz pai sofreu reveses financeiros e seu filho
tos, bolsas e guarda-chuvas pareciam impregnados de significa-          1   precisou interromper os estudos. Obteve um emprego na filial
dos secretos, enquanto nos dias de hoje um cachimbo é apenas                em Trieste do Unionbank de Viena e, pelos dezenove anos se-
um cachimbo?
                                                                            guintes, trabalhou no banco. Fora do expediente, lia os clássicos
                                                                            italianos e a vanguarda europeia em geral. Zola tornou-se o seu
    "Italo Svevo" (Italo, o Suevo) é obviamente um pseudôni-                ídolo. Frequentava salons artísticos e escrevia para um jornal sim-
mo. O nome original de Svevo era Aron Ettore Schmitz. Seu avô               pático ao nacionalismo italiano.
paterno era um judeu vindo da Hungria e estabelecido em Tries-                   Entre os trinta e os quarenta anos, tendo experimentado      o
te. Seu pai começou a vida como mascate e acabou como um                    sabor de publicar um romance (Una vita, 1892 [Uma vida]) por
bem-sucedido comerciante de artigos de vidro; sua mãe vinha de              conta própria e vê-Io ignorado pelos críticos, e prestes a repetir a
uma família judaica de Trieste. Os Schmitz eram judeus pra-                 experiência com Senilidade (1898), Svevo casou-se com uma re-
ticantes, mas de observância não muito rígida. Aron Ettore ca-              presentante da proeminente família Veneziani, proprietários de
sou-se com uma convertida ao catolicismo, e por pressão dela aca-           um estabelecimento que revestia cascos de navios com uma subs-
bou se convertendo ele também (um tanto a contragosto, vale                 tância patenteada que retardava a corrosão e impedia o cresci-
dizer). A breve autobiografia publicada sob seu nome num mo-                mento de cracas. Svevo foi admitido na empresa, onde era en-
mento posterior da vida, quando Trieste se tornara parte da Itália          carregado da preparação da tinta a partir de uma fórmula secreta
e a Itália se tornara fascista, é bastante vaga quanto a seus ante-         e supervisionava os demais funcionários.
cedentes judaicos e não italianos. As memórias que sua mulher                    Os Veneziani já eram contratados por várias forças navais
Livia publicou a seu respeito - com uma certa tendência hagio-              de todo o mundo. Quando o Almirantado Britânico assinalou
gráfica, embora plenamente legíveis - são igualmente discretas              seu interesse, apressaram-se em abrir uma representação em Lon-
na matéria.' Em seus escritos, não se encontram personagens ou              dres, gerenciada por Svevo. Para aperfeiçoar seu inglês, Svevo
temas abertamente judaicos.                                                 teve aulas com um irlandês chamado James Joyce, que leciona-
        O pai de Svevo -   uma influência dominante em sua vida             va no curso Berlitz de Trieste. Depois do fracasso de Senilida-
-     mandou os filhos para um colégo interno de comércio na Ale-       f
                                                                        I   de, desistira de escrever a sério. Agora, porém, no novo professor,
manha, onde em suas horas vagas Svevo mergulhou nos român-                  encontrou alguém que gostava dos seus livros e entendia as suas

        18                                                                                                                               19
intenções. Animado, retomou o que chamava de suas garatujas,       mo uma espécie à parte, coexistindo às turras com os tipos sau-
 embora só voltasse a publicar alguma coisa na década de 1920.      dáveis e irreflexivos que poderiam ser definidos como os "mais
                                                                    aptos" do jargão darwiniano.    Com Darwin -       lido através de
      Predominantemente    italiana em sua cultura, a Trieste dos   uma lente schopenhaueriana      -   Svevo manteve uma teimosa
 tempos de Svevo ainda assim fazia parte do império dos Habs-       implicância a vida inteira. Seu primeiro romance pretendia tra-
 burgo. Era uma cidade próspera, o principal porto marítimo de      zer no título uma alusão a Darwin: Un inetto, "um inepto", ou
 Viena, onde uma classe média esclarecida tocava uma econo-         "mal-adaptado". Mas seu editor foi contrário, e ele acabou esco-
mia baseada na navegação, nos seguros e nas finanças. A imigra-     lhendo o bem mais inexpressivo Una vita. Num estilo exemplar-
ção levara para lá gregos, alemães e judeus; o trabalho braçal      mente naturalista,   o livro acompanha   a história de um jovem
era feito por eslovenos e croatas. Em sua heterogeneidade, Tries-   bancário que, quando finalmente se vê obrigado a admitir que
te era um microcosmo de um império etnicamente variado em           sua vida é desprovida de qualquer desejo ou ambição, toma a pro-
que eram cada vez maiores as dificuldades para manter sob con-      vidência correta do ponto de vista evolucionário, e se suicida.
trole inúmeros ressentimentos interétnicos. Quando esses ódios           Num ensaio posterior, intitulado "O homem e a teoria dar-
explodiram, em 1914, o império mergulhou na guerra, arrastan-       winiana", Svevo mostra Darwin por um viés mais otimista, que
do a Europa consigo.                                                acaba conduzindo às páginas de Zeno. Nossa sensação de nunca
     Embora acompanhassem Florença nas questões culturais,          estarmos à vontade no mundo, sugere ele, resulta de um certo
os intelectuais triestinos tendiam a mostrar-se mais abertos às     inacabamento da evolução humana. Para fugir a essa triste con-
correntes do norte que seus equivalentes   da Itália. No caso de    dição, há os que tentam adaptar-se a seu meio. Outros preferem
Svevo, primeiro Schopenhauer e Darwin, e mais tarde Freud, des-     o contrário. De fora, os inadaptados podem parecer formas rejei-
tacam-se como as principais influências filosóficas.                tadas pela natureza, mas, paradoxalmente, podem mostrar-se mais
     Como qualquer bom burguês do seu tempo, Svevo preo-            aptos que seus vizinhos bem-adaptados      para enfrentar o que o
cupava-se muito com sua saúde: o que constituiria a boa saú-        futuro imprevisível possa nos trazer.
de, de que modo podia ser adquirida, e como mantê-Ia? Em sua
obra, a saúde acabou assumindo uma ampla gama de sentidos,                A língua de casa de Svevo era o triestino, uma variante do
indo do físico e do psíquico ao social e ético. De onde vem a       dialeto veneziana. Para tornar-se escritor, ele precisava dominar
sensação insatisfeita, própria da humanidade, que nos diz que       o italiano literário, baseado no dialeto toscano. Mas jamais alcan-
não estamos bem e de que tanto desejaríamos ver-nos curados?        çou o domínio que almejava. Para aumentar suas dificuldades,
E essa cura, será possível? E se nos obrigar a nos conformarmos     tinha pouca sensibilidade para as qualidades estéticas da lingua-
com a maneira como as coisas são, será essa cura necessariamen-     gem, e especialmente nenhum ouvido para a poesia. Arreliava
te uma coisa boa?
                                                                    seu amigo, o jovem poeta Eugenio Montale, dizendo que lhe pa-
      Aos olhos de Svevo, Schopenhauer foi o primeiro filósofo a    recia um desperdício usar apenas uma parte da página em bran-
tratar as pessoas acometidas do mal do pensamento reflexivo co-     co quando pagara por toda ela. P. N. Furbank, um dos melhores

    20                                                                                                                          21
tradutores de Svevo [para o inglês], rotula sua prosa de "uma       escrever em italiano. [... ] Com cada palavra toscana que em-
 espécie de italiano 'comercial', quase um esperanto - uma lin-      pregamos, nós mentimos!") Aqui, Svevo trata a passagem de um
 guagem bastarda e desgraciosa, totalmente desprovida de poesia      dialeto a outro, do triestino em que foi alfabetizado ao italiano
 ou ressonância".2 Logo depois do seu lançamento, Una vita foi       em que escrevia, como inerentemente traiçoeira (traditore tra-
 criticado por seus erros gramaticais, por seu uso indiscriminado    duttore). Só em triestino ele podia dizer a verdade. A questão que
do dialeto e pela pobreza geral da sua prosa. E muito foi dito na    tanto os não italianos quanto os italianos devem ponderar é se
mesma linha sobre Senilidade. Quando Svevo ficou famoso, e           existiriam de fato verdades triestinas que Svevo sentia jamais con-
Senilidade foi, pois, reeditado, ele concordou em reler o texto      seguir traçar na página em italiano.
e corrigir seu italiano, mas sem aplicar muito esforço à tarefa.
De si para si, parecia duvidar de que meras alterações editoriais         A origem de Senilidade foi um caso amoroso que Svevo man-
pudessem produzir algum efeito.                                      teve em 1891-2 com uma jovem, como diz delicadamente um
     Até certo ponto, a controvérsia quanto ao domínio do italia-    dos seus críticos, de profissão indeterminada, que mais tarde se
no por Svevo pode ser ignorada como uma questão que só in-           transformaria   em equestrienne de circo. No livro, ela se chama
teressa aos italianos, irrelevante para estrangeiros que o leem em   Angiolina. Emilio Brentani, o protagonista, vê Angiolina como
tradução. Para o tradutor, porém, o italiano de Svevo coloca uma     uma inocente que ele irá instruir nos aspectos mais sutis da vida
substancial questão de princípio. Será que seus defeitos, numa ga-   enquanto ela, em contrapartida, irá dedicar-se ao seu bem-estar.
ma que vai do uso de preposições erradas ao emprego de um fra-       Mas é Angiolina quem, na prática, dá as lições; e a iniciação que
seado arcaico ou livresco e a um estilo em geral laborioso, devem    ela proporciona a Emilio nas evasões e nas baixezas da vida eró-
ser reproduzidos ou corrigidos em silêncio? Ou, para formular        tica bem valeria o dinheiro que ela o faz gastar a rodo, não esti-
a questão na forma inversa, como é que, sem lançar mão de uma        vesse ele envolvido demais no autoengano da sua fantasia para
prosa deliberadamente truncada, o tradutor poderá transmitir         absorvê-Ia devidamente. Anos depois de Angiolina ter fugido com
uma ideia do que Montale chama de "esclerose" do mundo de            um escriturário de banco, Emilio irá relembrar o tempo que pas-
Svevo, impregnada em sua própria linguagem?                          sou com ela filtrando-o por uma névoa rosada (Joyce sabia de cor
     Svevo não era indiferente ao problema. Sua recomendação         as maravilhosas últimas páginas do livro, banhadas em clichês
ao tradutor de Zeno para o alemão foi traduzir seu italiano por      românticos e ironia impiedosa, e chegou a recitá-Ias para Svevo).
um alemão gramaticalmente correto, mas sem embelezar ou me-          A verdade é que esse caso amoroso fora senil desde o início, no
lhorar seu texto.
                                                                     sentido único que Svevo dá à palavra: nada tinha de juvenil ou vi-
      Svevo costumava definir o triestino, em tom de desprezo,       tal, mas antes subsistindo desde o início graças à mentira egoísta.
como um dialettaccio, um dialeto menor, ou uma linguetta, uma              Em Senilidade, o autoengano é um estado da existência deli-
sublíngua, mas não estava sendo sincero. Muito mais convin-          berado mas não reconhecido. A ficção que Emilio constrói para si
cente é Zeno quando deplora que os estrangeiros "não sabem o         mesmo quanto a quem ele é, quanto a quem é Angiolina e quan-
que representa para aqueles de nós que falam dialeto [il dialetto]   to ao que os dois fazem juntos é ameaçada pelo fato de Angiolina

    22
                                                                                                                                23
dormir promiscuamente     com outros homens e mostrar-se incom-      a fim de livrar-se da "infamia" (a desonra, mas também o horror)
petente, indiferente ou maliciosa demais para escondê-Ia. Ao la-     do toque desse homem, mergulha imediatamente        na cama com
do de A sonata Kreutzer e No caminho de Swann, Senilidade é          outro. O texto de Svevo quase não é metafórico: com um segun-
um dos grandes romances do ciúme sexual masculino, explo-            do ato sexual Angiolina tentaria limpar-se ("nettarsí") dos vestí-
rando o repertório técnico legado por Flaubert a seus sucessores     gios que Volpini deixara nela. De Zoete omite a limpeza: Angio-
para entrar e sair da consciência de uma personagem com um           lina "busca refugiar-se daquele enlace infame".4
mínimo de incômodo e emitir juízos sem parecer fazê-Io. A ma-             Noutros pontos, De Zoete simplesmente elide ou sinteti-
neira como Svevo mostra as relações entre Emilio e seus rivais é     za trechos que -   com ou sem razão -     julga não terem contri-
especialmente perceptiva. Emilio quer e ao mesmo tempo não           buição para o sentido do texto, ou serem coloquiais demais para
quer que seus amigos cortejem sua amante; quanto mais clara-         funcionarem em inglês. Também acontece de superinterpretar,
mente consegue visualizar Angiolina com outro homem, mais            acrescentando o que ela acha estar acontecendo entre as per-
intensamente ele a deseja, a ponto de chegar a desejá-Ia porque      sonagens quando o próprio original se cala. As metáforas comer-
ela esteve com outro homem. (A presença de correntes homos-          ciais que caracterizam a relação entre Emilio e as mulheres às
sexuais no triângulo do ciúme foi evidentemente    assinalada por    vezes se perdem. Numa ocasião, De Zoete interpreta o sentido
Freud, mas só anos depois de Tolstói e Svevo.)                       de uma delas de maneira catastroficamente errada, atribuindo a
     As traduções-padrão [para o inglês] de Senilidade e Zeno        Emilio a decisão de forçar Angiolina a uma relação sexual ("ele
são até aqui as de Beryl de Zoete, uma britânica de ascendên-        a possui"), quando o protagonista só pretendia esclarecer quem
cia holandesa e conectada ao grupo de Bloomsbury cuja faceta         seria seu proprietário ("ele é seu possuidor").
mais famosa é ter sido uma das pioneiras mundiais no estudo da            A nova tradução de Senilidade, de autoria de Beth Archer
dança balinesa. Na apresentação da sua nova tradução de Zeno,        Brombert, constitui um avanço considerável. Invariavelmente,
William Weaver discute as soluções de De Zoete e sugere, com         recupera as metáforas submersas que De Zoete prefere ignorar.
a delicadeza possível, que bem pode ter chegado a hora de tirá-Ias   Seu inglês, embora claramente datado do final do século xx, tem
de circulação.                                                       uma formalidade que reflete de certa forma uma era anterior. Se
     A tradução de Senilidade publicada por De Zoete em 1932,        alguma crítica pode ser feita é que num esforço excessivo para
com o título As a Man Grows Older [Enquanto um homem en-             mostrar-se atualizada ela emprega expressões que tendem a enve-
velhece], é particularmente datada. Senilidade fala muito de sexo;   lhecer em pouco tempo.5
o sexo usado como arma na batalha entre os sexos, o sexo como             Os títulos de Svevo sempre representaram     uma dor de ca-
mercadoria negociada. Embora sua linguagem nunca seja exa-           beça para seus tradutores e editores. Como título, Una vita é
tamente imprópria, Svevo tampouco pisa em ovos em torno da           simplesmente banal. Por recomendação de Joyce, Senilidade
questão. A versão de De Zoete, porém, é de um decoro excessi-        foi lançado em inglês com o título As a Man Grows Older, em-
vo. Por exemplo, Emilio pensa nos feitos sexuais de Angiolina e      bora o romance nada tenha a ver com o envelhecimento. Beth
imagina que ela deixa a cama do rico mas repulsivo Volponi, e,       Brombert reverte a um título de trabalho anterior, Emilio's Car-

    24                                                                                                                          25
nival [A orgia de Emilio], apesar de na edição revista em italiano        cia como industrial à Confederação      Fascista das Indústrias. E
Svevo se ter recusado a abrir mão de Senilidade: "Eu teria a sen-         sua mulher foi participante ativa do "Fascio das Mulheres"J
sação de estar mutilando o livro ... Esse título foi o meu guia, era           Se ficou moralmente    comprometido     devido à sua associa-
ele que me orientava".fi                                                  ção com os Veneziani, Svevo/Schmitz pelo menos não escondia
                                                                          isso de si mesmo, a julgar pelo que escrevia. Basta lembrar do
     A carreira literária de Svevo se estende por quatro décadas          velho do conto "La novella deI buon vecchio e della bella fan-
turbulentas da história de Trieste, mas ainda assim muitíssimo            ciulla" [A história do bom velho e da moça bonita]' escrito em
pouco dessa história se reflete, direta ou indiretamente,      em sua     1926 mas ambientado    durante a Primeira Guerra: "Todos os si-
obra ficcional. A partir do que contam os dois primeiros livros,          nais da guerra lhe lembravam, dolorosamente, que, graças a ela,
ambientados na Trieste da década de 1890, jamais se poderia               ele ganhava tanto dinheiro. A guerra lhe trouxera riqueza e hu-
imaginar que àquela época a classe média italiana de Trieste vi-          milhação ... Já estava acostumado ao remorso causado por seu
via entregue a uma febre típica do Risorgimento, reivindicando            sucesso nos negócios, e continuava ganhando dinheiro a despei-
a união com a pátria-mãe. E, embora as confissões de Zeno te-             to do seu remorso".8
nham sido supostamente escritas durante a guerra de 1914-8, o                 A atmosfera moral desse texto tardio pode ser mais sombria,
conflito só vai lançar alguma sombra sobre a obra em suas últi-           e a autocrítica, mais corrosiva, do que encontramos no essencial-
mas páginas.                                                              mente cômico Zeno, mas isso é apenas uma questão de grau de
     Graças aos contratos com o governo de Viena, a família Ve-           sombra ou potencial de corrosão. De Sócrates a Freud, a filoso-
neziani ganhou muito dinheiro com a guerra. Ao mesmo tempo,               fia ética do Ocidente subscreveu ao Conhece-ti a ti mesmo délfi-
seus membros apresentavam-se em Trieste como irredentistas                co. No entanto, de que serve conhecer a si mesmo se, seguidor
apaixonados, partidários da incorporação ao solo italiano de to-          do caminho apontado por Schopenhauer, um indivíduo acre-
dos os territórios sob domínio estrangeiro. John Gatt-Rutter, bió-        dita que o caráter se baseia num substrato de vontade, e duvida
grafo de Svevo, classifica essa atitude de "farsa hipócrita", e acredi-   que a vontade queira mudar?
ta que o próprio Svevo foi no mínimo conivente com a encenação.
Gatt-Rutter critica acerbamente as posições políticas de Svevo                 Zeno Cosini, o herói do terceiro romance de Svevo, sua
durante a guerra e depois da tomada do poder pelos fascistas em           obra-prima da maturidade, é um homem de meia-idade, confor-
1922. Como muitos triestinos da classe alta, os Veneziani apoia-          tavelmente casado, próspero, ocioso, vivendo de uma renda que
ram Mussolini. O próprio Svevo parece ter acatado o novo regime           recebe do negócio fundado por seu pai. Por um capricho, a fim
de um modo que Gatt-Rutter define como "de perfeita má-fé",               de ver se consegue curar-se de seja lá qual for o seu problema,
considerando o fascismo um mal menor que o bolchevismo. Em                submete-se à psicanálise. Preliminarmente, seu terapeuta, o dr. S.,
1925, na pessoa de Ettore Schmitz,  ele aceitou uma comenda               pede-lhe que escreva suas memórias da maneira como lhe ocor-
menor do Estado pelos serviços que prestou à indústria nacional.          rerem. Zeno obedece, produzindo cinco capítulos da extensão
Embora nunca se tenha tornado um fascista de carteira, perten-            de um conto cada, cujos temas são: o fumo; a morte do seu pai;

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seu namoro; um dos seus casos amorosos; uma das suas socieda-        Zeno tem dúvidas quanto aos poderes terapêuticos da psicanáli-
des comerciais.
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      Decepcionado com o dr. S., que considera obtuso e dogmá-        no entanto, quem se atreveria a dizer que o paradoxo que aca-
tico, Zeno para de manter suas notas sistemáticas. Visando inde-     ba adotando ao final da sua história -   de que a suposta doença
nizar-se pelos honorários perdidos, o dr. S. publica o manuscrito    é parte da condição humana, de que a verdadeira saúde consiste
de Zeno. E eis o que constitui o livro que temos à nossa frente:     em aceitar quem você é ("ao contrário das outras moléstias ... não
as memórias de Zeno mais a narrativa que lhe serve de moldu-         existe cura para a vida") - não instiga ele próprio uma interro-
ra, sobre como elas foram escritas, "uma autobiografia, mas não      gação cética e zenoniana?lO
a minha", como diz Svevo numa carta a Montale. E Svevo ainda              A psicanálise era uma espécie de mania na Trieste da época
explica como sonhava aventuras para Zeno, plantava-as em seu         em que Svevo trabalhava em Zeno. Gatt-Rutter cita um professor
próprio passado e depois, ignorando deliberadamente a divisa en-     triestino: "Aderentes fanáticos à psicanálise [... viviam trocando
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tre a fantasia e a memória, "'lembrava-se' delas".9                  histórias, interpretações de sonhos e lapsos significativos, produ-
     Zeno é um fumante compulsivo que quer parar de fumar,           zindo eles próprios seus diagnósticos amadores" (p. 306). O pró-
embora sem força de vontade suficiente para consegui-Io de fa-       prio Svevo colaborou numa tradução da Interpretação dos sonhos,
to. Não duvida que fumar lhe faça mal, e sonha com os pul-           de Freud. Apesar das aparências, não achava que Zeno fosse um
mões cheios de ar fresco - as três grandes cenas de morte em         ataque contra a psicanálise em si, só contra suas pretensões cura-
Svevo, uma em cada romance, mostram pessoas que morrem               tivas. A seu ver, não era um seguidor de Freud mas um seu igual,
arquejando e lutando desesperadas para respirar -, mas ainda         dedicado também por seu lado a investigar o inconsciente e o
assim revolta-se contra a cura. Desistir do cigarro, sabe ele em     domínio do inconsciente sobre a vida consciente; considerava
algum nível instintivo, é reconhecer a primazia de pessoas como      seu livro fiel ao espírito cético da psicanálise da maneira como
a sua mulher e o dr. S., que, com a melhor das intenções, gosta-     era praticada pelo próprio Freud, embora não por seus discípu-
riam de transformá-Io num cidadão comum e saudável, subtrain-        los, e chegou a enviar um exemplar a Freud (que entretanto não
do-lhe assim os poderes que cultiva: o poder de pensar, o poder      acusou o recebimento). E de fato, visto de uma perspectiva mais
de escrever. Com um simbolismo tão grosseiro que nem mesmo           ampla, Zeno é mais que uma simples aplicação da psicanálise a
Zeno consegue deixar de rir, o cigarro, a caneta e o falo acabam     uma vida ficcional, ou que um mero questionamento       cômico da
representando uns aos outros. O conto "La novella deI buon           psicanálise. É uma exploração das paixões, inclusive as mais mes-
vecchio e della bella fanciulla" termina com o velho morto em        quinhas, como a cobiça, a inveja e o ciúme, na tradição do roman-
sua escrivaninha, uma caneta presa entre os dentes cerrados.         ce europeu, paixões para as quais a psicanálise acaba sendo ape-
    Dizer que Zeno é ambivalente     sobre o fumo e, portanto,       nas um guia muito parcial. A doença da qual Zeno quer e não quer
sobre a possibilidade de cura de sua doença indefinida não passa     ser curado é, no fim das contas, não menos que o mal du síiJele
de um arranhão na superfície do ceticismo corrosivo porém en-        da própria Europa, uma crise da civilização a que tanto a teoria
graçado de Svevo quanto à nossa capacidade de aprimoramento.         freudiana como A consciência de Zeno procuram responder.

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                                                                    em vez de mais atualizados teóricos da psique, na verdade ela
                                                                    atribui os males do marido a uma predisposição de caráter. E
    A consciência de Zeno [La coscienza di Zeno] é mais um          essa sua intervenção leva Zeno e seus amigos a longas conversas
dos títulos difíceis de Svevo. "Coscienza" pode significar o que    de muitas páginas sobre o fenômeno        do malato immaginario
modernamente se chama de "consciência"; mas também pode             em contraposição ao malato reale ou malato vero: não pode uma
significar o que em inglês se chama de "self-consciousness" [a      doença provinda da imaginação ser mais grave que uma doença
"consciência de si mesmo" ou "o embaraço"]' como na frase           "verdadeira" ou "real", embora não seja genuína? E Zeno leva
de Hamlet "A consciência nos converte a todos em covardes"          a interrogação ainda mais além quando pergunta se, em nosso
[Conscience does make cowards of us all]. No livro, Svevo alterna   tempo, o mais doente de todos pode não ser o sano immaginario,
o tempo todo entre os dois significados, de um modo que o in-       o homem que se imagina são.
glês moderno não tem como imitar. Evitando o problema, De               Toda a disquisição é conduzida com muito mais precisão
Zoete deu à sua tradução de 1930 o título de Confessions ofZeno.    e humor no italiano de Svevo do que seria possível num inglês
Em sua nova tradução, William Weaver capitula ante a ambi-          circunlocutório.   Aqui, De Zoete está um passo à frente de Wea-
guidade e usa Zeno's Conscience.                                    ver ao desistir do inglês e recorrer ao francês: "malade imaginaire"
    Weaver publicou traduções, entre outros escritores italia-      para "malato immaginario".
nos, de Luigi Pirandello,   Cado Emilio Cadda, EIsa Morante,
Italo Calvino e Umberto Eco. Sua tradução de Zeno numa pro-              Publicado às expensas do próprio Svevo em 1923, quando
sa inglesa devidamente comedida e discreta é do melhor padrão.      contava 62 anos de idade, Zeno foi resenhado em algumas publi-
Num detalhe, porém, é a própria língua inglesa que trai o seu       cações, mas nunca por algum dos líderes da opinião crítica. Um
trabalho. Zeno costuma contrastar muito o malato immaginario        resenhista triestino declarou ter sido pressionado a ignorar o livro,
com o sano immaginario, traduzidos por Weaver como "imagina-        posto que, fosse o que fosse, era um insulto evidente à cidade.
ry sick man" e "imaginary healthy man". (pp. 171, 176; capítulo 6        Em nome dos velhos tempos, Svevo enviou um exemplar
do original) No entanto, "immaginario", aqui, não corresponde       para Joyce em Paris. Joyce mostrou o livro a Valéry Larbaud e
estritamente ao inglês "imaginary", mas a "self-imaginedly", e um   outras figuras influentes da cena literária francesa. A reação foi
malato immaginario não é, no sentido próprio, um imaginário         de entusiasmo. Callim'ard encomendou uma tradução, com a
homem doente ("ímaginary sick man"), mas um homem que se            condição de serem feitos certos cortes; uma revista literária pu-
imagina doente ("a man who imagines himself sick").                 blicou todo um número sobre Svevo; o PEN clube organizou um
    O malato immaginario de Zeno vem da mesma origem que            banquete em homenagem a Svevo em Paris.
o malade imaginaire de Moliere, e é sem dúvida Moliere que a            Em Milão, foi publicada uma nova apreciação positiva da
mulher de Zeno tem em mente quando, depois de ouvi-Io falar         obra de Svevo, assinada por Montale. Senilidade foi relança-
durante horas sobre os seus males, explode numa risada e diz-lhe    do em versão revista. Os italianos começaram a ler amplamente
que ele não passa de um malato immaginario. Ao invocar Moliere      Svevo; uma nova geração de romancistas adotou-o como patro-

    3°                                                                                                                            31
no. A direita reagiu com hostilidade. "Na vida real, Italo Svevo          2. Robert Walser
tem um nome semita - Ettore Schmitz", escreveu La Sera, e
sugeriu que toda aquela onda em torno de Svevo fazia parte de
uma vasta conspiração judaica."
    Envaidecido com o sucesso inesperado de Zeno, exultante
com sua nova fama, Svevo pôs-se a trabalhar numa série de tex-
tos cujo tema comum era o envelhecimento         e os apetites insacia-
dos da velhice. Talvez pretendesse usá-los num quarto romance,
uma continuação    de Zeno. Em inglês, podem ser encontrados,
em traduções de P. N. Furbank e outros, nos volumes 4 e 5 da
edição uniformizada em cinco volumes das obras de Svevo pu-
blicada na década de 1960 pela U niversity of California Press nos
Estados Unidos e por Secker & Warburg na Grã-Bretanha, mas
hoje fora de catálogo. Já é mais que tempo de uma reedição.
     a volume   5 contém ainda uma tradução da peça teatral La                 No dia de Natal de 1956, a polícia da cidade de Herisau, no
Rígenerazíone [Regeneração]'    obra tardia. Svevo nunca perdeu           leste da Suíça, recebeu um telefonema: um grupo de crianças
o interesse pelo teatro, e escreveu inúmeras peças ao longo dos           tinha tropeçado no corpo de um homem que morrera congela-
anos, mesmo enquanto trabalhava para os Veneziani. Só uma                 do num campo nevado. Chegando ao local, primeiro os policiais
delas, Terzetto sjJezzato [a triângulo partido], foi encenada du-         tiraram algumas fotos e depois removeram o corpo.
rante a sua vida.                                                              a morto logo foi identificado:
                                                                                                           era Robert Walser, de 78 anos,
     Svevo morreu em 1928 de complicações provocadas por um               que desaparecera de um hospital psiquiátrico local. Na juventu-
acidente automobilístico sem importância. Foi enterrado no ce-            de, Walser conquistara certa reputação, na Suíça e também na
mitério católico de Trieste com o nome de Aron Hector Schmitz.            Alemanha, como escritor. Alguns de seus livros ainda estavam
Livia Veneziani Svevo, reclassificada como judia, passou os anos          em catálogo; outro fora publicado a seu respeito, uma biografia.
da guerra, juntamente com a filha do casal e o terceiro filho des-        Ao longo de um quarto de século passado de hospício em hospí-
ta, escondida dos esquadrões de purificação. Esse terceiro filho          cio, entretanto, sua obra acabara secando. Longas caminhadas
foi morto pelos alemães por ocasião do levante triestino de 1945.         pelo campo - como aquela em que finalmente faleceu - ti-
A essa altura, seus dois irmãos mais velhos já tinham morrido na          nham se transformado na sua principal distração.
frente russa, lutando pela Itália e pelo Eixo.                                 As fotografias da polícia mostram um velho de sobretudo e
                                                                          botas estendido na neve, com os olhos muito abertos e o maxilar
                                                                (2002)    distendido. Essas fotos foram ampla (e descaradamente)   reprodu-
                                                                          zidélSna literatura crítica sobre Walser que vem florescendo des-

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de a década de 1960.1 A suposta loucura de Walser, sua morte         pelo nome de "Monsieur       Robert". Em pouco tempo, todavia,
solitária e o esconderijo postumamente encontrado de escritos        descobriu que poderia sustentar-se com os proventos do que es-
secretos tornaram-se os pilares sobre os quais se erigiu toda uma    crevia. Seus textos começaram a aparecer em revistas literárias
lenda que tem em Walser um gênio escandalosamente negligen-          de prestígio; passou a ser admitido nos círculos artísticos mais
ciado. E o repentino crescimento do interesse por Walser tor-        sérios. Mas o papel de intelectual da metrópole não lhe era fácil.
nou-se também parte do escândalo. "Eu me pergunto", escreveu         Algumas doses de bebida e ele tendia a mostrar-se grosseiro e
Elias Canetti em 1973, "se, entre todos os que constroem uma         agressivamente provinciano. Aos poucos foi se retirando da so-
vida acadêmica confortável, segura e regular a partir da existên-    ciedade, refugiando-se numa vida solitária e frugal em modes-
cia de um escritor que viveu na miséria e no desespero, existe       tos conjugados. E nesse cenário escreveu quatro romances, dos
um único que sinta vergonha de si mesmo."2                           quais três sobreviveram: Os irmãos Tanner (1906), Der Gehülfe
                                                                     [O factótum) (1908), e Jakob von Gunten (1909). Em todos eles
     Robert Walser nasceu em 1878 no cantão de Berna. Foi o          os temas foram extraídos das experiências do autor; mas no caso
sétimo de oito irmãos e irmãs. Seu pai, treinado no ofício de        de Jakob von Gunten - merecidamente o mais conhecido dos
encadernador, mantinha uma papelaria. Aos catorze anos, Ro-          três - essas vivências são assombrosamente transmutadas.
bert foi tirado da escola e começou a trabalhar como aprendiz
num banco, onde cumpria exemplarmente seus deveres de es-                 "Aqui se aprende muito pouco", observa o jovem Jakob von
criturário até o dia em que, sem aviso, dominado pelo sonho de       Gunten ao final do seu primeiro dia no Instituto Benjamenta,
tornar-se ator, abandonou   o emprego e fugiu para Stuttgart. Lá     onde se matriculou como estudante. Um único livro é usado,
fez um teste, que resultou num fracasso humilhante: foi reprova-     O que pretende a Escola Benjamenta para Rapazes?, e uma úni-
do por se mostrar muito rígido e inexpressivo. Abandonando as        ca matéria é lecionada, "Como um menino deve se comportar".
ambições cênicas, decidiu tornar-se - "com a ajuda de Deus"          Os professores da escola são inertes como mortos. E toda a ati-
- poeta.> Andou de emprego em emprego, sempre escrevendo             vidade efetiva de ensino cabe à srta. Lisa Benjamenta, irmã do
poemas, pequenos textos em prosa e pequenas peças teatrais em        diretor. O próprio sr. Benjamenta não sai nunca do seu gabinete,
verso ("dramolets") para a imprensa periódica, não sem algum         onde conta e reconta seu dinheiro como um ogro de conto de
sucesso. Logo foi contratado pela Insel Yerlag, editora de Rilke e   fadas. Na verdade, a escola parece um mero embuste.4
Hofmannstahl, que publicou seu primeiro livro.                            Ainda assim, tendo deixado o que define como "uma me-
    Em 1905, pensando no progresso de sua carreira literária,        trópole muitíssimo pequena" em troca de uma cidade grande
acompanhou seu irmão mais velho, ilustrador de livros e cenó-        - cujo nome não é revelado mas só pode ser Berlim -, Jakob
grafo teatral de sucesso, numa viagem a Berlim. Por medida de        não tem a menor intenção de recuar. Procura se dar bem com os
prudência, matriculou-se ao mesmo tempo numa escola de for-          seus colegas; não se incomoda de usar o uniforme da Benjamen-
mação de criados domésticos, e trabalhou por algum tempo co-         ta; além disso, adora ir ao centro da cidade para andar de elevador,
mo mordamo numa casa de campo, onde usava libré e atendia            o que o faz sentir-se um filho pleno da era moderna (p. 40).

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Jakob von Gunten alega ser um diário mantido por Jakob                 Quanto ao sr. Benjamenta,      hostil a Jakob num primeiro
durante sua permanência no Instituto. Contém principalmen-            . momento, logo acaba manipulado ao ponto de suplicar ao rapaz
te suas reflexões sobre o tipo de formação que recebe ali - uma        que se torne seu amigo, deixando a escola para trás e saindo para
educação   na humildade    -   e sobre o estranho par de irmãos        correr o mundo em sua companhia. Jakob declina com modos
responsável por ela. A humildade lecionada pelos irmãos Benja-         afetados: "Mas como irei comer, senhor diretor? ... Seu dever é
menta não é da variedade religiosa. A maioria dos rapazes que se       me conseguir um emprego decente. Tudo que quero é um em-
formam na escola aspira ao ofício de criado ou mordomo, e não          prego". Ainda assim, na última página do seu diário, Jakob anun-
à santidade. Mas Jakob é um caso à parte, um aluno para quem           cia que mudou de ideia: decidiu abandonar a pena e partir para
as lições de humildade adquirem uma ressonância interior su-           o desconhecido na companhia do sr. Benjamenta. Ao que o lei-
plementar. "Como tenho sorte", escreve ele, "de não ver em mim         tor só pode reagir pensando: Com um companheiro        desse cali-
nada digno de ser respeitado ou observado! Ser pequeno e per-          bre, Deus proteja o sr. Benjamenta! (p. 172)
manecer pequeno." (p. 155)                                                  Como personagem literária, Jakob von Gunten não deixa de
      Os irmãos Benjamenta são um par misterioso e, à primeira         ter seus precedentes.   No prazer que sente em criticar seus pró-
vista, intimidador. E Jakob decide assumir a tarefa de desven-        ,prios motivos, lembra o Homem do Subterrâneo de Dostoiévski
dar o mistério dos dois. E passa a tratá-l os não com respeito, mas    e, por trás deste, o Jean-Jacques Rousseau das Confissões. Mas
com a autossuficiência atrevida das crianças acostumadas a ter        -   como afirma a primeira tradutora de Walser para o francês,
suas travessuras perdoadas e julgadas adoráveis. Combina a des-        Marthe Robert - há também em Jakob algo do herói dos contos
façatez com uma autodepreciação evidentemente insincera, rin-          tradicionais populares alemães, o rapaz que invade o castelo do
do à socapa da sua insinceridade e confiando que a candura de-        gigante e emerge vitorioso. Franz Kafka admirava a obra de Wal-
sarmará qualquer crítica, e não se incomodando muito quando           ser (Max Brod registra com quanto encantamento Kafka lia em
isso não acontece. A palavra que desejaria aplicar a si mesmo, a      voz alta as passagens mais engraçadas de Walser). Barnabas e Je-
palavra que gostaria que o mundo aplicasse a ele, é endiabrado.       remias, os "assistentes" demoniacamente obstrutivos do agrimen-
Um diabrete é um espírito malicioso; mas é também um demô-            sor K. em O castelo, têm seu protótipo em Jakob.
mo menor.                                                                   Em Kafka também podemos perceber alguns ecos da prosa
     Logo Jakob começa a adquirir uma certa ascendência so-           de Walser, com sua lúcida organização sintática, suas justaposi-
bre os irmãos Benjamenta. A srta. Benjamenta dá-lhe a enten-          ções casuais do elevado com o banal, e sua lógica paradoxal as-
der que se afeiçoou a ele, que em resposta faz de conta que           sustadoramente convincente. Aqui temos Jakob numa disposição
não entendeu. Na verdade, ela acaba revelando que o que sen-          reflexiva:
te por ele pode ser mais que simples carinho: talvez seja amor.
Jakob responde com um longo discurso evasivo repleto de sen-                Usamos uniformes. Ora, usar um uniforme nos humilha e ao
timentos respeitosos. Rejeitada, a srta. Benjamenta definha e aca-          mesmo tempo nos exalta. Parecemos gente sem liberdade, o que
ba morrendo.                                                                é possivelmente uma desgraça, mas também ficamos bem em

     36                                                                                                                          37
nossos uniformes, o que nos distingue da desgraça profunda des-   e seu gosto por pregar peças maliciosas nos outros -        todos es-
     sas pessoas que andam pelas ruas com suas próprias roupas, mas    ses traços, vistos em conjunto,     apontam para o tipo de peque-
     sujas e esfarrapadas. Para mim, por exemplo, usar um uniforme     no-burguês     do sexo masculino     que, num tempo de confusão
     é muito agradável porque eu nunca sabia, antes, que roupa devia   social mais intensa, podia sentir-se atraído pelos camisas pardas
     usar. Mas nisso, também, permaneço por enquanto um mistério       de Hitler. (p. 124)
     para mim mesmo.
                                                                            Walser nunca foi um escritor declaradamente        político. Ain-
                                                                       da assim, seu envolvimento emocional com a classe de que pro-
Qual é o mistério em si mesmo ou acerca de si mesmo que
                                                                       vinha, a classe dos pequenos comerciantes,        dos funcionários     e
Jakob acha tão instigante? Num ensaio sobre Walser especial-
                                                                       dos professores primários, era profundo. Berlim lhe acenava com
mente notável por basear-se num conhecimento muito incom-
                                                                       uma oportunidade       clara de escapar a suas origens sociais e tras-
pleto da sua obra, Walter Benjamin sugere que as pessoas mos-
                                                                       ladar-se, como fez seu irmão, para a intelligentsia cosmopolita
tradas por Walser são como personagens de um conto de fadas
                                                                       dos déclassés. Walser tenta o mesmo caminho, mas fracassa, ou
que chegou ao fim, personagens      que a partir desse momento
                                                                       desiste, preferindo retomar aos braços da Suíça provinciana. Mas
passam a viver no mundo real. Todas são marcadas por "uma
                                                                       nunca perdeu de vista -       na verdade, nunca lhe foi permitido
superficialidade sistematicamente dilacerante e desumana", co-
                                                                       perder de vista -     as tendências iliberais e conformistas da sua
mo se, tendo sido libertadas da loucura (ou de um feitiço), de-
                                                                       classe, e a intolerância que esta sempre manifestou diante de pes-
vessem agir com muita cautela por medo de serem novamente
engolfadas pelo delírio.5                                              soas como ele próprio, os sonhadores e vagabundos.
    Jakob é uma criatura tão estranha, e o ar que respira no Ins-
tituto Benjamenta, tão rarefeito, tão próximo da alegoria, que é            Em 1913 Walser deixou Berlim e voltou para a Suíça "um
difícil imaginá-Io como uma personagem representativa de qual-         escritor ridicularizado e sem sucesso" (em suas próprias palavras
quer elemento da sociedade. Entretanto, o cinismo de Jakob quan-       autodepreciativas).6 Alugou um quarto num hotel que não servia
to à civilização e aos valores em geral, seu desprezo pela vida        bebidas, na cidade industrial de Biel, perto da sua irmã, e passou
mental, suas convicções simplistas sobre o modo como o mundo           os sete anos seguintes vivendo precariamente,        de textos curtos
realmente funciona (é comandado pelas grandes empresas para            para suplementos      literários. Fora isso, fazia longas caminhadas
explorar o homem comum), sua elevação da obediência à qua-             pelos campos e ainda cumpriu seu serviço na Guarda Nacional.
lidade de mais alta das virtudes, sua determinação de não fazer        Nas coletâneas de sua poesia e prosa curta que continuavam a
nada à espera do chamamento do destino, sua alegação de des-           ser publicadas, cada vez falava mais da paisagem social e na-
cender de nobres e guerreiros (ao mesmo tempo em que a eti-            tural da Suíça. Além dos três romances mencionados, escreveu
mologia que ele próprio indica para o nome Von Gunten - von            ainda mais dois. O manuscrito do primeiro, Theodor, foi perdi-
unten, "de baixo" - sugere o contrário), bem como o prazer que         do pelos seus editores; o segundo, Tobold, foi destruído pelo pró-
encontra no ambiente exclusivamente masculino do internato             prio Walser.

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Depois da Primeira Guerra Mundial, o gosto do público pe-         da, e Walser preferiu permanecer      internado.   Em 1933, sua fa-
lo tipo de literatura que respondia pelos rendimentos de Walser,       . mília o transferiu para o asilo de Herisau, onde ele recebia uma
textos descartáveis de caráter excêntrico e beletrístico, reduziu-se     pensão e preenchia seu tempo com tarefas simples como colar
muito. Ele vivia afastado demais da sociedade alemã mais ampla          sacos de papel e separar feijões. Permanecia em plena posse das
para manter-se a par das novas correntes de pensamento; quanto          suas faculdades; continuava a ler jornais e revistas populares; mas,
à Suíça, o público leitor local era pequeno demais para susten-         depois de 1932, não escreveu mais. "Não estou aqui para escre-
tar um corpo significativo de escritores. Embora se orgulhasse da       ver, estou aqui para ser louco", disse ele a um visitante.lO Além
sua frugalidade, Walser acabou precisando fechar o que chama-           disso, o tempo dos líttérateurs tinha ficado para trás.
va de "minha pequena oficina de peças em prosa" J Seu precá-                 (Anos depois da morte de Walser, um dos funcionários do
rio equilíbrio mental começou a falhar. Sentia-se cada vez mais         asilo de Herisau afirmou que via Walser escrevendo sistemati-
oprimido pelos olhares de censura dos vizinhos, pela exigência          camente durante seus plantões. No entanto, mesmo que isso se-
de respeitabilidade que o cercava. Deixou Biel, mudando-se pa-          ja verdade, nenhum manuscrito de data posterior a 1932 chegou
ra Berna, onde assumiu um cargo no Arquivo Nacional; mas ao             aos nossos dias.)
cabo de poucos meses foi demitido por insubordinação. Vivia
mudando de residência. Bebia muito; sofria de insônia, ouvia vo-             Ser um escritor, uma pessoa que usa as mãos para transfor-
zes imaginárias, tinha pesadelos e ataques de ansiedade. Tentou         mar pensamentos em traços no papel, era difícil para Walser no
o suicídio, fracassando porque, como admitiu com desconcertan-          mais elementar dos níveis. Na juventude, ele tinha uma letra ní-
te sinceridade, "nem um laço eu consegui fazer certo". 8                tida e bem desenhada de que se orgulhava muito. Os manuscri-
      Ficou claro que não podia mais morar sozinho. Vinha de            tos que conhecemos desses dias - as versões finais de seus textos
uma família que, na terminologia da época, era degenerada: sua          - são verdadeiros modelos de bela caligrafia. A caligrafia, entre-
mãe sofria de depressão crônica; um dos seus irmãos se suicida-         tanto, foi uma das primeiras áreas em que as perturbações psíqui-
ra; outro morrera num hospício. Pressionaram uma de suas irmãs          cas de Walser se manifestaram. Em algum momento entre os seus
a recebê-Io em casa, mas ela recusou. E assim ele permitiu que          trinta e os seus quarenta anos de idade (ele é vago quanto à da-
o internassem no sanatório de Waldau. "Acentuadamente depri-            ta), começou a sofrer de cãibras psicossomáticas na mão direita.
mido e gravemente inibido", afirma seu primeiro relatório mé-          Atribuía o problema a uma animosidade        inconsciente   contra a
dico. "Deu respostas evasivas às perguntas quanto a estar farto         caneta como instrumento de trabalho, e só conseguiu superá-Ias
da vida."9                                                              quando finalmente abandonou a caneta em favor do lápis.
    Em avaliações posteriores,     os médicos de Walser discor-              Escrever a lápis era tão importante que Walser batizou o pro-
dariam quanto à natureza do seu problema, se é que problema             cesso de "sistema do lápis" ou "método do lápis"." E o método
havia, e chegariam mesmo a insistir com ele para que voltasse           do lápis significava bem mais que o mero uso de um lápis. Quando
a morar no mundo exterior. No entanto, a rotina da instituição          passou a escrever a lápis, Walser também mudou radicalmente
parece ter-se transformado numa base indispensável para sua vi-         sua caligrafia. Ao morrer, deixou cerca de quinhentas folhas de

    4°                                                                                                                              41
papel cobertas de fora a fora de linhas de delicados sinais cali-        terrupto, introvertido, movido a sonho, que se tornara indispen-
gráficos diminutos, desenhados a lápis, uma letra tão difícil de         sável para a sua postura criadora.
ler que num primeiro momento seu inventariante julgou ter à
sua frente um diário escrito num código secreto. Mas Walser não               A mais longa das obras tardias de Walser é Der Riiuber, es-
mantinha um diário, nem essa escrita é um código. Seus ma-               crita em 1925-6, mas decifrada e publicada apenas em 1972. A
nuscritos tardios foram na verdade compostos em alemão lite-             história é tão rala que chega a ser insubstancial. Narra os envol-
rário, mas com tantas abreviações idiossincráticas que, mesmo            vimentos sentimentais de um homem de meia-idade conheci-
para os editores mais familiarizados com ela, sua decifração ine-        do simplesmente    como o Ladrão, um homem sem ocupação
quívoca nem sempre é possível. E foi só em rascunhos produ-              que consegue subsistir à margem da sociedade cultivada de Ber-
zidos pelo "método do lápis" que as inúmeras obras tardias de
                                                                         na graças a um legado modesto.
Walser, entre elas seu romance Der Riiuber [O Ladrão] (24 folhas
                                                                              Entre as mulheres que o Ladrão persegue com muita reser-
de microescrita, correspondentes     a cerca de 150 páginas impres~
                                                                         va, há uma garçonete chamada Edith; entre as mulheres que com
sas), chegaram até nós.
                                                                         reserva pouco menor perseguem a ele estão várias proprietárias
     Mais interessante que decifrar a letra propriamente dita é a
                                                                         de imóveis que o querem, seja para as suas filhas ou para elas
questão do que o método do lápis permitia a Walser mas a cane-
                                                                         próprias. A ação culmina numa cena em que o Ladrão sobe ao
ta não era mais capaz de produzir (embora ele ainda fosse ca-
                                                                         púlpito e, perante uma vasta assembleia, reprova Edith por pre-
paz de usar a caneta quando apenas transcrevia, ou para escrever
                                                                         ferir um rival medíocre a ele. Enfurecida, Edith dispara um re-
cartas). A resposta parece ser que, como um desenhista com um
                                                                         vólver contra ele, ferindo-o de raspão. Segue-se uma torrente de
bastão de carvão entre os dedos, Walser precisava desencadear
                                                                         comentários   animados. Quando a poeira baixa, o Ladrão está
um movimento regular e rítmico da mão antes de conseguir en-
                                                                         colaborando com um escritor profissional para contar o seu lado
trar num estado de espírito em que o devaneio, a composição e
o fluxo do instrumento de escrita se tornavam uma coisa só. Num          da história.

texto intitulado "Bleistiftskizze" [Esboço a lápis], datado de 1926-7,        Por que ele deu o nome "o Ladrão" [der Riiuber] a esse con-
ele menciona a "bem-aventurança singular" que o método do lá-            quistador inseguro? A palavra remete, claro, a "Robert", o nome
pis lhe permitia." "Ele me acalma e me anima", disse noutra oca-         do próprio Walser. Um quadro de Karl Walser, irmão de Robert,
sião.'3 Esses textos de Walser avançam não de acordo com a lógi-         nos fornece mais uma pista. Na aquarela de Karl, Robert, aos
ca nem acompanhando uma narrativa, mas segundo mudanças                  quinze anos, aparece vestido como seu herói predileto, Karl
de humor, fantasias e associações: por temperamento, ele é me-           Moor, da peça da juventude de Schiller Die Riiuber [Os ladrões,
nos um pensador que persegue uma argumentação             ou mesmo       1781]. O Ladrão da história de Walser, entretanto,   não é um sal-
um contador de histórias seguindo a linha de uma narrativa que           teador heroico como o de Schiller, mas um plagiário desonesto
um autêntico beletrista. O lápis e a notação estenográfica de sua        que se limita a roubar o afeto de algumas jovens e as fórmulas da
invenção lhe permitiam um movimento manual produtivo, inin-              ficção popular.

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Por trás do Ladrão, ou Robert/Rauber,    assoma uma figura,          Ele estava sempre [00.] só como um pobre cordeirinho perdido.
o autor nominal do livro, que o trata ora como um protegido, ora          As pessoas o perseguiam para ajudá-lo a aprender como se vive.
como um rival, ora como um simples fantoche a ser conduzido               Ele dava uma impressão tão vulnerável. Parecia a folha que um
de situação em situação. Esse diretor de cena o critica por cuidar        menino separa do tronco com um golpe de vara só porque sua
mal das suas finanças, por sair com moças da classe operária e,           singularidade a torna conspícua. Noutras palavras, ele atraía a
de maneira geral, por comportar-se como um Tagedíeb, um ocio-             perseguição. (p. 40)
so ou "ladrão de dias", em vez de proceder como um bom bur-
guês suíço, muito embora, admite ele, precise estar sempre to-            Como Walser também observa, com igual ironia mas ín
mando cuidado para não confundir a si próprio com Robert/            propría persona, numa carta do mesmo período: "Às vezes me
Rauber. Seu caráter lembra muito o do rival, zombando de si          sinto devorado, ou melhor, parcial ou totalmente consumido,
mesmo enquanto cumpre suas rotinas sociais sem sentido. De           pelo amor, pela preocupação     e pelo interesse de meus tão ex-
                                                                     celentes concidadãos" .14
tempos em tempos sente uma pontada de ansiedade quanto ao
                                                                          Der Riiuber nunca foi preparado para publicação. Na ver-
livro que está escrevendo debaixo dos nossos olhos -     porque a
                                                                     dade, em nenhuma de suas muitas conversas com seu amigo e
obra progride devagar, porque seu conteúdo é trivial, por causa
da vacuidade do seu herói.                                           benfeitor durante seus anos de internação, Carl Seelig, Walser
                                                                     sequer mencionou a existência da obra. Ela se baseia em epi-
     Fundamentalmente,      Der Riiuber "trata" apenas da aven-
                                                                     sódios mal disfarçados da sua vida; ainda assim, precisamos de
tura da sua própria composição. Seu encanto reside nas suas sur-
                                                                     muita cautela se quisermos considerá-Ia um texto autobiográ-
preendentes   reviravoltas e mudanças de direção, no seu trata-
                                                                     fico. Robert/Rauber só encarna um dos aspectos de Walser. Em-
mento delicadamente      irônico das fórmulas do jogo amoroso, e
                                                                     bora haja referências a vozes persecutórias, e embora ele sofra do
em sua exploração flexível e inventiva dos recursos da língua ale-
                                                                     que, no jargão psiquiátrico e psicanalítico, é chamado de delírio
mã. A figura do seu autor, alvoroçado diante da multiplicidade
                                                                     de referência - suspeitando que haja significados ocultos, por
de fios narrativos que precisa administrar depois que o lápis em     exemplo, na maneira como os homens assoam o nariz na sua
suas mãos entra em movimento, lembra acima de tudo Laurence          presença -, o lado mais melancólico e mais autodestrutivo do
Sterne, o Sterne tardio, mais suave, livre da malícia e dos duplos   Walser real mantém-se sistematicamente fora do quadro.
sentidos.
                                                                         Num episódio crucial, Robert/Rauber procura um médico
    Os efeitos de distanciamento   produzidos pela identidade de     e, com grande franqueza, lhe descreve seus problemas sexuais.
autor que se destaca da personagem de Robert/Rauber, e por um        Nunca sentiu o desejo de passar a noite com uma mulher, diz,
estilo em que o sentimento é admitido desde que coberto por um       mas acumula "estoques assustadores de potencial amoroso", tan-
véu fino de paródia, permitem a Walser momentos em que con-          to que "toda vez que saio para a rua, começo imediatamente a
segue falar de maneira pungente sobre seu próprio desamparo -        me apaixonar". O estratagema que imaginou para alcançar a fe-
ou seja, de Robert/Rauber -    às margens da sociedade suíça:        licidade é inventar histórias envolvendo o objeto do seu desejo

    44                                                                                                                           45
em que ele próprio se transforma no [indivíduo] "subordinado,                  A engenhosidade     do neologismo "emborboletado"       (em in-
obediente, sacrificado, dissecado e tutelado". Na verdade, con-           glês "embutterflíed") para "umschmetterlíngelt"     é admirável, as-
fessa, às vezes acha que no fundo é uma garota. Ao mesmo tem-             sim como o talento de Bernofsky para adiar o impacto da frase
po, contudo, também tem um menino dentro de si, um menino                 até sua última palavra. Mas a frase também serve para ilustrar
que se comporta mal (sombras de Jakob von Gunten). A reação               um dos problemas mais exasperantes dos textos microescritos
do médico é eminentemente sensata. O senhor parece se conhe-              de Walser. A palavra aqui traduzida como "jovem aristocrata",
cer muito bem, diz ele -    não tente mudar. (pp. 105-6)                  "Herrentochter", é decifrada por outro dos editores do original de
    Noutra passagem notável Walser simplesmente            deixa o lá-    Walser como "Saaltochter", que no alemão da Suíça quer dizer
pis correr (deixa o censor dormir) e conduzi-Io, a partir dos pra-        "garçonete". (A mulher em questão, Edith, é sem dúvida uma
zeres da vivência imaginária de uma vida interior feminina, a             garçonete, nem de longe uma aristocrata.) Se não podemos ter
uma participação de intenso erotismo na experiência de um casal           certeza do texto, será possível confiar na sua tradução?
de amantes operísticos, para os quais a bem-aventurança de ex-                 Aqui e ali, Walser propõe desafios a cuja altura Bernofsky
ternar seu amor na forma de canto e a bem-aventurança do amor             não consegue responder. Não tenho certeza de que a expressão
propriamente   dito são uma coisa só. (p. 101)                            em inglês "scalawaggíng hís way through [the) arcades" ["zigue
                                                                          zaguendo em meio aos arcos"] evoque exatamente a imagem
    Christopher   Middleton foi um dos pioneiros do estudo da             que Walser pretendia, a de um menino que mata aula. Uma das
obra de Walser, e um dos grandes mediadores da literatura ale-            viúvas com quem Rauber/Robert flerta é caracterizada como eín
mã moderna para o mundo de língua inglesa. Sua exemplar                   Dummchen; e pelas duas páginas seguintes Walser opera mudan-
tradução de Jakob von Gunten foi lançada em 1969. Em sua tra-             ças em todos os aspectos da palavra "Dummchen". Bernofsky em-
dução de 2000 para Der Rduber, intitulada The Robber, Susan               prega sistematicamente "nínny" [aproximadamente "pateta", ou
Bernofsky sai-se igualmente bem do desafio da obra posterior de           "tola"] para "Dummchen", e "nínníhood" [mais ou menos "pate-
Walser, especialmente no caso dos jogos do autor com as forma-            tice"] para "Dummheít". Mas "nínny" tem conotações claras de
ções derivadas que o alemão permite tão bem.'5                            incompetência mental e até mesmo de idiotice, ausentes das pa-
    Num ensaio acerca de alguns dos problemas que Walser apre-            lavras em Dumm- em alemão, e de qualquer modo é vocábulo
senta para o tradutor, Bernofsky nos dá como ilustração a seguin-         raro no inglês de hoje. Nem "nínny" nem nenhuma outra palavra
te passagem:                                                              única em inglês poderia ser usada para traduzir sistematicamen-
                                                                          te "Dummchen", que às vezes tem o sentido de "dummy" [mais
    Ele estava sentado no tal jardim, entrelaçado de cipós, emborbo-      aproximadamente "imbecil", pessoa que é estúpida ou tapada-
    letado de melodias, e arrebatado pela radicalidade do seu amor        sentido mais forte no inglês americano que no britânico], às ve-
    pela mais linda jovem aristocrata a jamais baixar dos céus do abri-   zes de "nítwít" ["bobo"], e às vezes de "cabeça-oca". (pp. 42, 26-27)
    go paterno para a apreciação do público de modo a, com seus                Walser escrevia em alemão literário (Hochdeutsch), a lín-
    encantos, desferir no peito de um Ladrão uma fatal estocacla.,6       gua que as crianças suíças aprendem na escola. O alemão literá-


    46                                                                                                                                 47
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rio difere em inúmeros detalhes linguísticos, e ainda no tempe-
ramento, do alemão suíço que é a língua materna de três quartos
do povo suíço. Escrever em alemão literário -        a única escolha       Der Rduber é mais ou menos contemporâneo,       em sua com-
possível para Walser, se pretendia ganhar alguma coisa com sua         posição, do Ulysses de Joyce e dos derradeiros volumes de Em
pena - acarretava automaticamente uma postura cortês e so-             busca do tempo perdido de Proust. Caso tivesse sido publicado
cialmente refinada, atitude que não o deixava confortável. Em-         em 1926, poderia ter afetado o curso da moderna literatura ale-
bora tivesse pouco tempo para uma literatura regional (Heimat-         mã, inaugurando e até legitimando como tema as aventur~s da
líteratur)suíça, dedicada a reproduzir o folclore helvético e a        identidade que escreve (ou sonha) e da linha de tinta (ou lápis)
celebrar costumes populares obsolescentes, Walser, depois de           cheia de meandros que emerge ao correr da mão. Mas não foi
sua volta ao país natal, começou a introduzir deliberadamente          assim. Embora um projeto de reunir os textos de Walser tenha
o alemão suíço em seus textos, e de maneira geral tentava soar         sido iniciado antes da sua morte, foi só depois que começaram a
distintamente suíço.                                                   aparecer os primeiros volumes de uma edição mais criteriosa de
      A coexistência de duas versões da mesma língua no mesmo          suas Obras Reunidas em 1966, e depois de chamar a atenção
espaço social é um fenômeno pouco familiar ao mundo metro-             de leitores na Inglaterra e na França, que Walser atraiu uma am-
politano de língua inglesa, e cria problemas insolúveis por quem       pla atenção na Alemanha.
traduz esses textos para o inglês. A resposta de Bernofsky aos usos         Hoje Walser é valorizado principalmente por seus roman-
do dialeto por Walser -      que não se limitam à inclusão ocasional   ces, muito embora estes só constituam um quinto da sua produ-
de uma palavra ou expressão local, mas produzem todo um co-            ção total e o romance não tenha sido propriamente     o seu forte
10l·idosuíço de sua linguagem que é difícil atribuir precisamente      (as quatro obras de ficção mais longas que deixou pertencem na
a um ou outro elemento - é, candidamente, a de ignorá-los, ou          verdade à tradição menos ambiciosa da novela). Walser está mais
pelo menos não fazer qualquer esforço em favor de sua reprodu-         à vontade em formas mais breves. Contos como "Helbling" (1914)
ção. Como diz ela com razão, traduzir os momentos em que o             ou "Kleist in Thun" (1913), em que nuances aquareladas de sen-
alemão de Walser é mais suíço lançando mão de algum diale-             timento são esquadrinhadas com a mais ligeira das ironias e a
to regional ou social do inglês produziria apenas uma falsifica-       prosa responde a lufadas ocasionais de sentimento com a sensi-
ção cultural. 17                                                       bilidade das asas de uma borboleta, mostram Walser no seu me-
    Tanto Middleton quanto Bernofsky escrevem apresentações            lhor. Seu único tema verdadeiro foi sua vida pouco movimen-
muito instrutivas das suas traduções, embora a esta altura o texto     tada mas, a seu modo, muito pungente. Cada um dos seus textos
de Middleton esteja desatualizado em relação aos estudos sobre         em prosa, sugeriu ele em retrospecto, pode ser lido como um
Walser. Nenhum dos dois recorre a notas explicativas. A ausên-         capítulo de uma "narrativa longa, realista e sem enredo", um "li-
cia de notas é sentida especialmente em The Robber, salpicado          vro recortado ou desmembrado do eu [Ich-Buch]" .•8
de fartas referências à literatura, inclusive os confins mais obs-          Mas terá sido Walser um grande escritor? Se no final das
curos da literatura suíça.                                             contas ainda hesitamos em qualificá-lo de grande, assinala Ca-

      48                                                                                                                        49
netti, é só porque nada poderia ser-lhe mais estranho que a gran-
deza.'9 Num poema tardio, Walser escreveu:                          3. Robert Musil, O jovem Torless
    Não desejaria a ninguém que fosse eu.
    Só eu sou capaz de me suportar.
    Saber tanto, ter visto tanto, e
    Não dizer nada, ou quase nada.20


                                                          (2000)




                                                                         Robert Musil nasceu em 1880 em Klagenfurt, na província
                                                                    austríaca da Caríntia. A mãe, proveni~nte da alta burguesia, era
                                                                    uma mulher muito nervosa e interessada pelas artes, o pai, um
                                                                    engenheiro empregado no governo imperial que, mais adiante,
                                                                    acabaria recompensado por seus serviços com um título menor
                                                                    de nobreza. O casamento era "progressista": Musil pai aceitava
                                                                    sem reclamar uma ligação entre sua mulher e um homem mais
                                                                    jovem, Heinrich Reiter, iniciada logo após o nascimento de seu
                                                                    filho. Reiter acabaria indo morar com o casal Musil, num ménage
                                                                    à trais que persistiria por um quarto de século.
                                                                         O próprio Musil era filho único. Mais jovem e menor que
                                                                    seus colegas de escola, cultivava uma força física que conser-
                                                                    varia pela vida inteira. A atmosfera em casa parece ter sido tem-
                                                                    pestuosa; a pedido da mãe - e, diga-se de passagem, com o
                                                                    consentimento entusiástico do próprio menino -, ele foi in-
                                                                    ternado aos onze anos numa Unterrealschule militar nos arredo-
                                                                    res de Viena. De lá transferiu-se em 1894 para a Oberrealschule
                                                                    em Mahrisch-Weisskirchen perto de Brno, capital da Morávia,

    5°                                                                                                                        51
onde passou três anos. Essa escola tornou-se o modelo para o        cantou-se com MaIlarmé e Maeterlinck, rejeitando o credo na-
 "W." de O jovem Torless.                                            turalista segundo o qual a obra de arte precisava refletir fiel-
      Decidindo    não seguir uma carreira militar, aos dezessete    mente ("objetivamente") a realidade que já existia. Buscou apoio
 anos Musil ingressou na Technische Hochschule em Brno, onde         filosófico em Kant, Schopenhauer e (especialmente) Nietzsche.
 se entregou a intensos estudos de engenharia, desdenhando as        Em seus diários, criou para si mesmo a persona artística de "Mon-
 humanidades e o tipo de estudante atraído por elas. Seus diários    sieur le vivisecteur", um homem dado a explorar os estados de
 da época revelam-no preocupado com o sexo, mas de um modo           consciência e as relações afetivas com um bisturi intelectual. Prá-
 incomumente      consciente.   Relutava em aceitar o papel sexual   ticava imparcialmente suas técnicas de vivissecção, em si mes-
que os costumes da sua classe prescreviam para os rapazes, a sa-     mo e nos seus familiares e amigos.
ber, que espalhasse a sua semente com prostitutas e jovens tra-            Apesar de suas emergentes aspirações literárias, Musil con-
balhadoras até que chegasse a hora de um casamento adequado.         tinuava a preparar-se para a carreira de engenheiro. Passou com
Embarcou numa relação com uma moça tcheca chamada Her-               distinção nos exames e mudou-se para Stuttgart como assisten-
ma Dietz que trabalhara na casa da sua avó; enfrentando a resis-     te de pesquisa na prestigiosa TechnÍsche HochsGlwle. Mas o tra-
tência da mãe, e correndo o risco de perder seus amigos, insta-      balho científico começou a entediá-Io. Enquanto ainda escrevia
lou-se com Herma primeiro em Brno e depois em Berlim.                artigos técnicos e trabalhava num aparelho que inventara para
     Ligando-se a Herma, Musil deu um passo importante no            ser usado em experimentos de óptica (mais tarde patentearia o
sentido de romper o magnetismo erótico que sua mãe exercia           instrumento, na esperança não muito realista de conseguir viver
sobre ele. Por alguns anos, Herma continuou a ser o foco da sua      do que a invenção rendesse), embarcou num primeiro roman-
vida emocional. A relação do casal - mais objetiva da parte de       ce, O jovem Torless. Começou também a preparar o terreno pa-
Herma, mais complexa e ambivalente da parte de Robert - se-          ra uma guinada acadêmica.     Em 1903, abandonou      formalmen-
ria mais tarde a base para o conto "Tonka", publicado na coletâ-     te a engenharia e partiu para Berlim disposto a estudar filosofia
nea Três mulheres (1924).                                            e psicologia.
    Em conteúdo intelectual, a educação que Musil recebeu                 O jovem Torless ficou pronto no início de 1905. Depois que
em suas escolas militares foi decididamente inferior à oferecida     foi recusado por três editoras, Musil encaminhou o original pa-
nos Cymnasia clássicos. Ainda em Brno, começou a frequentar          ra ser comentado pelo respeitado crítico berlinense Alfred Kerr.
concertos e conferências sobre literatura. O que começou como        Kerr deu apoio a Musil, sugeriu revisões e resenhou o livro em
um projeto de alcançar seus contemporâneos de melhor forma-          termos entusiasmados quando foi lançado, em 1906. Apesar do
ção logo se transformou numa absorvente aventura intelectual.        sucesso de O jovem Torless, entretanto, e apesar da marca que
Os anos de 1898 a 1902 marcam uma primeira fase de aprendi-          começava a deixar nos círculos artísticos de Berlim, Musil sen-
zado literário. O jovem Musil se identificava especialmente com      tia-se inseguro demais quanto ao seu talento para se comprome-
os escritores e intelectuais da geração que florescera na década     ter com toda uma vida de produção literária. Continuou seus es-
de 1890 e tanto contribuíra para o movimento modernista. En-         tudos de filosofia, obtendo o grau de doutor em 1908.

    52                                                                                                                           53
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  • 1.
  • 2. Copyright © 2007 by J. M. Coetzee Copyright da introdução © Derek Attridge Sumário Todos os direitos reservados. Tradução publicada mediante acordo com Peter Lampack Agency, Jnc. 551 Fifth Avenue, Suite 1613, New York, NY 10176-0187, Estados Unidos. Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Título original Jnller workillgs - Literary Essays 2000-2005 Capa Kiko Farkas e Thiago Lacaz/ Máquina Estúdio Preparação Cados Alberto B,írbaro Revisão Erika Nakahata Camila Saraiva Créditos 7 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Introdução 9 (Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil) Coelzee, J. M. Mecanismos internos: ensaios sobre literatura (2000-2005) / 1. Italo Svevo 17 J. M. Coelzee ; inlrodução Derek Allridge ; tradução Sergio Flaksman. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 2. Robert Walser 33 Título original: Inner workings - Literary Essays 2000-20°5 3. Robert Musil, O jovem Türless 51 Bibliografia ISBN 978-85-359-1808-3 4- Walter Benjamin, Passagens 62 }. Literatura - História e crítica I. Attridge, Derek. 11. Título. 5. Bruno Schulz 9° 6. Joseph Roth, os contos 106 1l-00209 CDD-809 7. Sándor Márai 122 Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura: História e crítica 809 8. Paul Celan e seus tradutores 144 9. Günter Grass e o Wilhelm Gustloff 165 10. W. G. Sebald, After Nature 180 [20n] Todos os direitos desta edição reservados à 11. Hugo Claus, poeta 193 EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 12. Graham Greene, O condenado [Brighton Rock] 198 °4532-002 - São Paulo - SP 13. Samuel Beckett, os contos 2°9 Telefone (n) 37°7-35°0 14- Walt Whitman 214 Fax (n) 37°7-35°1 www.companhiadasletras.com.br 15. William Faulkner e seus biógrafos 231
  • 3. 16. Saul Bellow, os primeiros romances 251 Créditos 17. Arthur Miller, Os desajustados 268 18. Philip Roth, Complâ contra a América 274 19· Nadine Gordimer , 293 20. Gabriel García Márquez, Memórias de minhas putas tristes 308 21. V. S. Naipaul, Meia vida 324 Notas 347 O ensaio sobre Arthur Miller foi publicado originalmente em Writers atthe Movies [Escritores no cinema]' org. Jim She- pardo Nova York: HarperCollins, 2000. O ensaio sobre Robert Musil foi publicado originalmente como introdução a The Confusions ofYoung Torless [As confu- sões do jovem Ti;irless]' trad. Shaun Whiteside. Londres: Pen- gUIn, 2001. O ensaio sobre Graham Greene foi publicado originalmen- te como introdução a Brighton Rock. Nova York: Penguin, 2004- O ensaio sobre Samuel Beckett foi tirado da introdução ao quarto volume de Samuel Beckett: The Grave Centenary Edition. Nova York: Grove, 2006. O ensaio sobre Hugo Claus foi publicado originalmente co- mo apresentação à edição em brochura de Hugo Claus, Greetíngs: Selected Poems, trad. John Irons. Nova York: Harcourt, 2006. Todos os demais ensaios foram originalmente publicados na New York Review of Books. 7
  • 4. Introdução Por que razão alguém pode sentir-se atraído pela leitura de uma coletânea de resenhas de livros e apresentações literárias de um escritor conhecido acima de tudo por sua ficção? Os ro- mances de J. M. Coetzee conquistaram aclamação em todo o planeta; dois deles receberam o Booker Prize, e foi por sua obra de ficcionista que conquistou o prêmio Nobel de literatura em 2003. Alguns de seus livros combinam ficção e não ficção, e ele emprega com frequência uma persona fictícia - especialmen- te uma escritora australiana chamada Elizabeth Costello - para abordar certas questões importantes do momento atual. Em Me- canismos internos, contudo, ele nos fala com sua própria voz, dan- do prosseguimento a uma prolífica carreira de resenhista e críti- co que já resultou na publicação de três coletâneas de ensaios. Existem dois incentivos óbvios para nos voltarmos da ficção para a prosa crítica: a esperança de que estes textos mais diretos possam lançar alguma luz sobre seus romances muitas vezes oblí- quos, e a convicção de que um escritor que em suas obras imagi- nativas se mostra capaz de penetrar até o cerne de tantas ques- 9
  • 5. tões urgentes deve ter muito a oferecer quando escreve, por assim te convidado a refletir sobre cada uma delas por vez, o leitor deste dizer, com a mão esquerda. Em especial, há sempre o interesse volume é estimulado a vê-Ias em relação umas com as outras. em ver como um escritor de primeira linha trata os seus pares, A maioria dos capítulos que se seguem apresenta um re- comentando não como um crítico de fora mas na qualidade de trato do artista como o contexto para o livro ou os livros em dis- alguém que trabalha com as mesmas matérias-primas. Há far- cussão, que tomados em conjunto ilustram com riqueza de deta- tos indícios de que a segunda expectativa tende a ser atendida. A lhes a variedade e a imprevisibilidade das vidas dos escritores do obra não ficcional e semificcional de Coetzee, encarada em seu século xx. (Há entre eles um escritor do século XIX, Walt Whit- conjunto, representa uma contribuição substancial e significati- man, poeta fora do seu tempo mas ao mesmo tempo muito re- va à discussão permanente sobre o lugar da literatura na vida dos presentativo.) Os primeiros sete - !talo Svevo, Robert Walser, indivíduos e das culturas. As entrevistas e os ensaios publicados Robert Musil, Walter Benjamin, Bruno Schulz, Joseph Roth e em Doubling the Point [Voltando ao ponto], os estudos sobre a Sándor Márai - formam um aglomerado com lImitas inter-re- literatura sul-africana e a censura em White Writing [Escrita bran- lações: todos nasceram na Europa no final do século XIX e viven- ca] e Giving Offense [Ofendendo], e as "lições" de Elizabeth Cos- ciaram, na juventude ou na meia-idade, as reviravoltas da Pri- tello investigam, entre muitos outros tópicos, a relação entre a meira Guerra Mundial, tendo muitos deles ainda atingido, ou arte e a política, a continuidade entre o estético e o erótico, as res- atravessado, também a Segunda Guerra Mundial. Apesar das dis- ponsabilidades do escritor e o potencial ético da ficção. O fato de paridades de suas origens nacionais e étnicas (italiana, suíça, po- os romances e memórias de Coetzee apresentarem questões se- lonesa, galiciana e húngara), das diferentes línguas em que es- melhantes é testemunho da integridade e da persistência de sua creveram e das trajetórias muito diversas de suas biografias, há concepção do papel do artista. entre eles conexões claramente perceptíveis. Todos sentiram a ne- Em 2001 Coetzee publicou Stranger Shores [Margens estra- cessidade de explorar, na ficção, a extinção do mundo em que nhas], uma coletânea de ensaios datados de 1986 a 1999, em sua tinham nascido; todos registraram as ondas de choque do novo maioria publicados originalmente na New York Review ofBooks. mundo que emergia. Suas origens burguesas não os isentaram das Continuou a escrever regularmente para o mesmo periódico, e tribulações do exílio, da destituição e, às vezes, da violência pes- este livro é novamente composto quase todo de resenhas produ- soal. Quatro deles eram judeus, e dois morreram em decorrên- zidas segundo os padrões da revista, generosos e estritos ao mes- cia da perseguição nazista. (Entre os sete, a única exceção a esse mo tempo, juntamente com uma seleção de outros ensaios escri- padrão é um dos judeus: !talo Svevo, que permaneceu arraiga- tos quase sempre como introdução à reedição de obras literárias. do em Trieste até a morte. O rumo diferente da sua vida pode ser Embora os capítulos desses dois livros ostentem a aparência do parcialmente explicado pelo fato de ter morrido em 1928; como artigo ocasional, eles dão continuidade, num outro plano, à inves- nos conta Coetzee, a viúva de Svevo passou escondida os anos da tigação de Coetzee sobre o lugar e a finalidade da literatura - e, guerra, e o neto dos dois, escondido com ela, acabou fuzilado não se pode deixar de enfatizar, sobre seus prazeres, além dos seus pelos nazistas em 1945.) O que emerge desse conjunto de ensaios desafios. Enquanto o leitor das resenhas originais era basicamen- é uma Europa em transição dolorosa, e uma série de obras lite- 10 11
  • 6. rárias cuja originalidade é vista corno a resposta necessária do claramente o compromisso de Coetzee tanto com a arte quanto artista a mudanças de tamanho alcance. Urna figura óbvia está com a ética quando ele apresenta, ao final do capítulo sobre o ausente (embora seja mencionado em conexão com vários dos filme, um comentário especialmente revelador sobre a diferença escritores abordados): Franz Kafka, cujas obras parecem apre- entre a imagem fotográfica e a representação literária: os cavalos sentar de forma concentrada muitas das paixões e dos percalços selvagens cercados no filme estavam de fato aterrorizados. explorados de maneira mais extensa por esses sete escritores. O próprio Coetzee costuma ser visto corno um escritor nem Num segundo grupo, somos levados da crise da metade do europeu nem americano: passou quase toda a vida de escritor na século XX na Europa para o período que a sucedeu. Nesses estu- África do Sul, e metade dos seus romances transcorre nesse país. dos sobre Paul Celan, Günter Grass, W. G. Sebald e Hugo Claus Hoje mora na Austrália, e um de seus romances mais recentes, torna-se mais difícil discernir um padrão comum, na medida em Homem lento, é ambientado em sua cidade adotiva, Adelaide. que as histórias tanto nacionais quanto individuais divergem de Os últimos três escritores da coletânea têm origens igualmen- maneira mais acentuada, embora a sombria história recente da te não metropolitanas, e também foram agraciados com o reco- Europa permaneça um ponto ele referência constante. nhecimento mundial na forma do Prêmio Nobel de Literatura: A segunda metade do livro, Coetzee dedica basicamente Nadine Gordimer, Gabriel García Márquez e V. S. Naipaul. a obras em inglês. (Corno relata em Infância, foi criado falan- Aqui, Coetzee assesta o foco em obras determinadas, em vez de do inglês corno primeira língua, embora seus pais falassem o enquadrar a vida dos autores: lemos estes seus ensaios não corno africânder; também se sente à vontade com o holandês e o ale- urna avaliação feita em retrospecto, mas corno expressão do seu mão, corno sugerem seus comentários sobre obras nessas lín- compromisso com os contemporâneos. Coetzee espera que sua guas.) A atenção de Coetzee é capturada pela intensidade mo- própria ficção seja avaliada à luz dos mesmos padrões de rigor ral de Graham Greene, pela intensidade existencial de Samuel que aqui aplica aos outros. Beckett e pela intensidade homoerótica de Walt Whitman. E o Ninguém poderia imaginar depois de ler apenas seus ro- estudo sobre Whitman conduz a outro grupo, dessa vez de es- mances, mas Coetzee é um resenhista ideal. Parece ter lido tudo critores americanos, que tiveram dificuldades e oportunidades que é relevante sobre o seu terna, muitas vezes inclusive os livros de criação totalmente diversas das dos europeus. A biografia de mais obscuros da obra de um autor; escreve com familiaridade Faulkner, e as biografias escritas sobre Faulkner, são o terna de fluente sobre o pano de fundo histórico, cultural e político, seja outro capítulo, e a história dos anos desperdiçados escrevendo ro- ele o Império Austro-Húngaro ou o Sul dos Estados Unidos; e teiros por encomenda em Hollywood parece muito diversa da luta ainda se dá à pachorra de resumir os enredos para que os leitores para escrever contra um pano de fundo de nações em guerra. Nos mais ocupados possam descobrir "o que acontece" da maneira primeiros romances de Saul Bellow, no filme Os desajustados, menos trabalhosa. Pouco se percebe do romancista de folga: os de Arthur Miller e John Huston, e na fantasia histórica de Philip floreios literários são poucos, e não se nota nenhum sinal daque- Roth Complô contra a América, ternos mais três versões sem re- la voz interna antes rabugenta que marca boa parte da ficção toques dos Estados Unidos no século xx. É possível perceber recente de Coetzee. (Podemos sentir, no entanto, a solidarieda- 12 13
  • 7. de que lhe inspira a luta do escritor para manter-se fiel à sua vo- moestava seu colega romancista por não ter se posto a serviço cação apesar de tudo.) Coetzee não hesita em emitir julgamen- . das demandas éticas e políticas da África do Sul daquela época. tos, mas é um leitor generoso, aberto a uma ampla variedade de Coetzee, que se manifestou ele próprio em tom severo em ava- temas e estilos. liações anteriores da obra de Gordimer, mostra-se aqui generoso E quanto ao segundo motivo para ler estes ensaios, as possí- ao reconhecer a busca da justiça como o princípio constante e veis revelações sobre a obra ficcional do próprio Coetzee? Será supremo da escritora; e ao assinalar que O engate, que ele classi- que o leitor deste livro, voltando aos seus romances, irá desco- fica de "um livro extraordinário", introduz uma nota espiritual brir que de alguma forma se modificaram? Um efeito pode ser inédita na obra da autora, parecendo recebê-Ia num campo em descobrir oquanto lhe é inadequado o rótulo de escritor "sul-afri- que já transitava, nem sempre com conforto, havia algum tem- cano" (ou, nos dias que correm, "australiano"): a criação de Coet- po. Pois, se existem vislumbres de transcendência nos romances zee se dá a partir de um rico diálogo com escritores de várias de Coetzee, eles não são sugestões de uma justiça possível, mas de tradições. Em especial, seu fascínio evidente pelos romancistas uma justiça animada, além de posta à prova, por uma deman- europeus da primeira metade do século XX sugere que, embora da mais obscura ainda, que a definição de "espiritual" se limita jamais tenha morado na Europa continental, ele é, visto de certo a indicar - uma demanda já prenunciada, desde Dostoiévski, ângulo, um escritor profundamente europeu. Igualmente óbvio por seus formidáveis antecessores europeus. é seu interesse profundo pelas mais minuciosas questões da lin- guagem: os ensaios sobre os escritores que não escreveram ori- Derek Attridge ginalmente em inglês sempre trazem um exame detalhado do ofício dos tradutores. E, para dar o exemplo de uma conexão mais específica, os leitores de Infância ficarão intrigados com os co- mentários sobre a criação de um alter ego autobiográfico por Philip Roth em Complô contra a América. Entretanto, muitos leitores à procura de pistas sobre a cria- ção literária do próprio Coetzee ficarão tentados a debruçar-se sobre o único capítulo dedicado a outra romancista da África do Sul, seus comentários ao romance O engate, escrito por Nadine Gordimer em 2001. O questionamento que Coetzee faz a Nadi- ne Gordimer só pode ser lido como uma pergunta que também coloca para si próprio: "Que papel histórico está disponível para uma escritora como ela, nascida numa comunidade colonial tar- dia?". Nadine Gordimer escreveu uma conhecida resenha sobre Vida e época de Michael K, romance de Coetzee, em que ad- 14 15
  • 8. 1. Italo Svevo Um homem - um homem imenso, ao lado do qual você se sente muito pequeno - decide convidá-Io para conhecer suas filhas, a fim de escolher uma delas para esposa. Elas são quatro, todas com os nomes começando em A; o seu nome começa com Z. Você vai visitá-Ias em casa e tenta travar uma conversa civili- zada, mas não consegue evitar que insultos se despejem da sua boca. Você se descobre contando piadas indecentes, que são re- cebidas com um silêncio glacial. No escuro, você murmura pa- lavras sedutoras para a mais bonita das A; quando as luzes se acendem, descobre que quem vinha cortejando era a A de olhos estrábicos. Você se apoia descuidado em seu guarda-chuva; o guarda-chuva se parte ao meio; todos riem. Isso tudo parece, se não um pesadelo, um desses sonhos que, nas mãos de um vienense devidamente habilitado para interpre- tá-Ios, como por exemplo Sigmund Freud, acabam revelando muita coisa embaraçosa a seu respeito. Entretanto não se trata de um sonho, e sim de um dia na vida de Zeno Cosini, herói de A consciência de Zeno, romance de Halo Svevo (1861-1928). Se 17
  • 9. Svevo é de fato um romancista freudiano, será freudiano na me- ticos alemães. Não obstante as vantagens que seu aprendizado dida em que mostra o quanto a vida das pessoas comuns é reple- alemão podia trazer a seus negócios no Império Austro-Húngaro, ta de lapsos, parapraxias e símbolos, ou na medida em que, usan- acabaram por privá-Io de uma formação literária italiana. do como fontes A interpretação dos sonhos, O chiste e sua relação De volta a Trieste, Svevo matriculou-se aos dezessete anos com o inconsciente e Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, no Instituto Superiore Commerciale. Seus sonhos de tornar-se ele cria uma personagem cuja vida interior obedece às linhas des- ator tiveram fim quando foi recusado num teste devido à sua critas pelos manuais freudianos? Ou será ainda que tanto Freud elocução defeituosa do italiano. quanto Svevo pertencem a uma era em que cachimbos, charu- Em 1880, Schmitz pai sofreu reveses financeiros e seu filho tos, bolsas e guarda-chuvas pareciam impregnados de significa- 1 precisou interromper os estudos. Obteve um emprego na filial dos secretos, enquanto nos dias de hoje um cachimbo é apenas em Trieste do Unionbank de Viena e, pelos dezenove anos se- um cachimbo? guintes, trabalhou no banco. Fora do expediente, lia os clássicos italianos e a vanguarda europeia em geral. Zola tornou-se o seu "Italo Svevo" (Italo, o Suevo) é obviamente um pseudôni- ídolo. Frequentava salons artísticos e escrevia para um jornal sim- mo. O nome original de Svevo era Aron Ettore Schmitz. Seu avô pático ao nacionalismo italiano. paterno era um judeu vindo da Hungria e estabelecido em Tries- Entre os trinta e os quarenta anos, tendo experimentado o te. Seu pai começou a vida como mascate e acabou como um sabor de publicar um romance (Una vita, 1892 [Uma vida]) por bem-sucedido comerciante de artigos de vidro; sua mãe vinha de conta própria e vê-Io ignorado pelos críticos, e prestes a repetir a uma família judaica de Trieste. Os Schmitz eram judeus pra- experiência com Senilidade (1898), Svevo casou-se com uma re- ticantes, mas de observância não muito rígida. Aron Ettore ca- presentante da proeminente família Veneziani, proprietários de sou-se com uma convertida ao catolicismo, e por pressão dela aca- um estabelecimento que revestia cascos de navios com uma subs- bou se convertendo ele também (um tanto a contragosto, vale tância patenteada que retardava a corrosão e impedia o cresci- dizer). A breve autobiografia publicada sob seu nome num mo- mento de cracas. Svevo foi admitido na empresa, onde era en- mento posterior da vida, quando Trieste se tornara parte da Itália carregado da preparação da tinta a partir de uma fórmula secreta e a Itália se tornara fascista, é bastante vaga quanto a seus ante- e supervisionava os demais funcionários. cedentes judaicos e não italianos. As memórias que sua mulher Os Veneziani já eram contratados por várias forças navais Livia publicou a seu respeito - com uma certa tendência hagio- de todo o mundo. Quando o Almirantado Britânico assinalou gráfica, embora plenamente legíveis - são igualmente discretas seu interesse, apressaram-se em abrir uma representação em Lon- na matéria.' Em seus escritos, não se encontram personagens ou dres, gerenciada por Svevo. Para aperfeiçoar seu inglês, Svevo temas abertamente judaicos. teve aulas com um irlandês chamado James Joyce, que leciona- O pai de Svevo - uma influência dominante em sua vida va no curso Berlitz de Trieste. Depois do fracasso de Senilida- - mandou os filhos para um colégo interno de comércio na Ale- f I de, desistira de escrever a sério. Agora, porém, no novo professor, manha, onde em suas horas vagas Svevo mergulhou nos român- encontrou alguém que gostava dos seus livros e entendia as suas 18 19
  • 10. intenções. Animado, retomou o que chamava de suas garatujas, mo uma espécie à parte, coexistindo às turras com os tipos sau- embora só voltasse a publicar alguma coisa na década de 1920. dáveis e irreflexivos que poderiam ser definidos como os "mais aptos" do jargão darwiniano. Com Darwin - lido através de Predominantemente italiana em sua cultura, a Trieste dos uma lente schopenhaueriana - Svevo manteve uma teimosa tempos de Svevo ainda assim fazia parte do império dos Habs- implicância a vida inteira. Seu primeiro romance pretendia tra- burgo. Era uma cidade próspera, o principal porto marítimo de zer no título uma alusão a Darwin: Un inetto, "um inepto", ou Viena, onde uma classe média esclarecida tocava uma econo- "mal-adaptado". Mas seu editor foi contrário, e ele acabou esco- mia baseada na navegação, nos seguros e nas finanças. A imigra- lhendo o bem mais inexpressivo Una vita. Num estilo exemplar- ção levara para lá gregos, alemães e judeus; o trabalho braçal mente naturalista, o livro acompanha a história de um jovem era feito por eslovenos e croatas. Em sua heterogeneidade, Tries- bancário que, quando finalmente se vê obrigado a admitir que te era um microcosmo de um império etnicamente variado em sua vida é desprovida de qualquer desejo ou ambição, toma a pro- que eram cada vez maiores as dificuldades para manter sob con- vidência correta do ponto de vista evolucionário, e se suicida. trole inúmeros ressentimentos interétnicos. Quando esses ódios Num ensaio posterior, intitulado "O homem e a teoria dar- explodiram, em 1914, o império mergulhou na guerra, arrastan- winiana", Svevo mostra Darwin por um viés mais otimista, que do a Europa consigo. acaba conduzindo às páginas de Zeno. Nossa sensação de nunca Embora acompanhassem Florença nas questões culturais, estarmos à vontade no mundo, sugere ele, resulta de um certo os intelectuais triestinos tendiam a mostrar-se mais abertos às inacabamento da evolução humana. Para fugir a essa triste con- correntes do norte que seus equivalentes da Itália. No caso de dição, há os que tentam adaptar-se a seu meio. Outros preferem Svevo, primeiro Schopenhauer e Darwin, e mais tarde Freud, des- o contrário. De fora, os inadaptados podem parecer formas rejei- tacam-se como as principais influências filosóficas. tadas pela natureza, mas, paradoxalmente, podem mostrar-se mais Como qualquer bom burguês do seu tempo, Svevo preo- aptos que seus vizinhos bem-adaptados para enfrentar o que o cupava-se muito com sua saúde: o que constituiria a boa saú- futuro imprevisível possa nos trazer. de, de que modo podia ser adquirida, e como mantê-Ia? Em sua obra, a saúde acabou assumindo uma ampla gama de sentidos, A língua de casa de Svevo era o triestino, uma variante do indo do físico e do psíquico ao social e ético. De onde vem a dialeto veneziana. Para tornar-se escritor, ele precisava dominar sensação insatisfeita, própria da humanidade, que nos diz que o italiano literário, baseado no dialeto toscano. Mas jamais alcan- não estamos bem e de que tanto desejaríamos ver-nos curados? çou o domínio que almejava. Para aumentar suas dificuldades, E essa cura, será possível? E se nos obrigar a nos conformarmos tinha pouca sensibilidade para as qualidades estéticas da lingua- com a maneira como as coisas são, será essa cura necessariamen- gem, e especialmente nenhum ouvido para a poesia. Arreliava te uma coisa boa? seu amigo, o jovem poeta Eugenio Montale, dizendo que lhe pa- Aos olhos de Svevo, Schopenhauer foi o primeiro filósofo a recia um desperdício usar apenas uma parte da página em bran- tratar as pessoas acometidas do mal do pensamento reflexivo co- co quando pagara por toda ela. P. N. Furbank, um dos melhores 20 21
  • 11. tradutores de Svevo [para o inglês], rotula sua prosa de "uma escrever em italiano. [... ] Com cada palavra toscana que em- espécie de italiano 'comercial', quase um esperanto - uma lin- pregamos, nós mentimos!") Aqui, Svevo trata a passagem de um guagem bastarda e desgraciosa, totalmente desprovida de poesia dialeto a outro, do triestino em que foi alfabetizado ao italiano ou ressonância".2 Logo depois do seu lançamento, Una vita foi em que escrevia, como inerentemente traiçoeira (traditore tra- criticado por seus erros gramaticais, por seu uso indiscriminado duttore). Só em triestino ele podia dizer a verdade. A questão que do dialeto e pela pobreza geral da sua prosa. E muito foi dito na tanto os não italianos quanto os italianos devem ponderar é se mesma linha sobre Senilidade. Quando Svevo ficou famoso, e existiriam de fato verdades triestinas que Svevo sentia jamais con- Senilidade foi, pois, reeditado, ele concordou em reler o texto seguir traçar na página em italiano. e corrigir seu italiano, mas sem aplicar muito esforço à tarefa. De si para si, parecia duvidar de que meras alterações editoriais A origem de Senilidade foi um caso amoroso que Svevo man- pudessem produzir algum efeito. teve em 1891-2 com uma jovem, como diz delicadamente um Até certo ponto, a controvérsia quanto ao domínio do italia- dos seus críticos, de profissão indeterminada, que mais tarde se no por Svevo pode ser ignorada como uma questão que só in- transformaria em equestrienne de circo. No livro, ela se chama teressa aos italianos, irrelevante para estrangeiros que o leem em Angiolina. Emilio Brentani, o protagonista, vê Angiolina como tradução. Para o tradutor, porém, o italiano de Svevo coloca uma uma inocente que ele irá instruir nos aspectos mais sutis da vida substancial questão de princípio. Será que seus defeitos, numa ga- enquanto ela, em contrapartida, irá dedicar-se ao seu bem-estar. ma que vai do uso de preposições erradas ao emprego de um fra- Mas é Angiolina quem, na prática, dá as lições; e a iniciação que seado arcaico ou livresco e a um estilo em geral laborioso, devem ela proporciona a Emilio nas evasões e nas baixezas da vida eró- ser reproduzidos ou corrigidos em silêncio? Ou, para formular tica bem valeria o dinheiro que ela o faz gastar a rodo, não esti- a questão na forma inversa, como é que, sem lançar mão de uma vesse ele envolvido demais no autoengano da sua fantasia para prosa deliberadamente truncada, o tradutor poderá transmitir absorvê-Ia devidamente. Anos depois de Angiolina ter fugido com uma ideia do que Montale chama de "esclerose" do mundo de um escriturário de banco, Emilio irá relembrar o tempo que pas- Svevo, impregnada em sua própria linguagem? sou com ela filtrando-o por uma névoa rosada (Joyce sabia de cor Svevo não era indiferente ao problema. Sua recomendação as maravilhosas últimas páginas do livro, banhadas em clichês ao tradutor de Zeno para o alemão foi traduzir seu italiano por românticos e ironia impiedosa, e chegou a recitá-Ias para Svevo). um alemão gramaticalmente correto, mas sem embelezar ou me- A verdade é que esse caso amoroso fora senil desde o início, no lhorar seu texto. sentido único que Svevo dá à palavra: nada tinha de juvenil ou vi- Svevo costumava definir o triestino, em tom de desprezo, tal, mas antes subsistindo desde o início graças à mentira egoísta. como um dialettaccio, um dialeto menor, ou uma linguetta, uma Em Senilidade, o autoengano é um estado da existência deli- sublíngua, mas não estava sendo sincero. Muito mais convin- berado mas não reconhecido. A ficção que Emilio constrói para si cente é Zeno quando deplora que os estrangeiros "não sabem o mesmo quanto a quem ele é, quanto a quem é Angiolina e quan- que representa para aqueles de nós que falam dialeto [il dialetto] to ao que os dois fazem juntos é ameaçada pelo fato de Angiolina 22 23
  • 12. dormir promiscuamente com outros homens e mostrar-se incom- a fim de livrar-se da "infamia" (a desonra, mas também o horror) petente, indiferente ou maliciosa demais para escondê-Ia. Ao la- do toque desse homem, mergulha imediatamente na cama com do de A sonata Kreutzer e No caminho de Swann, Senilidade é outro. O texto de Svevo quase não é metafórico: com um segun- um dos grandes romances do ciúme sexual masculino, explo- do ato sexual Angiolina tentaria limpar-se ("nettarsí") dos vestí- rando o repertório técnico legado por Flaubert a seus sucessores gios que Volpini deixara nela. De Zoete omite a limpeza: Angio- para entrar e sair da consciência de uma personagem com um lina "busca refugiar-se daquele enlace infame".4 mínimo de incômodo e emitir juízos sem parecer fazê-Io. A ma- Noutros pontos, De Zoete simplesmente elide ou sinteti- neira como Svevo mostra as relações entre Emilio e seus rivais é za trechos que - com ou sem razão - julga não terem contri- especialmente perceptiva. Emilio quer e ao mesmo tempo não buição para o sentido do texto, ou serem coloquiais demais para quer que seus amigos cortejem sua amante; quanto mais clara- funcionarem em inglês. Também acontece de superinterpretar, mente consegue visualizar Angiolina com outro homem, mais acrescentando o que ela acha estar acontecendo entre as per- intensamente ele a deseja, a ponto de chegar a desejá-Ia porque sonagens quando o próprio original se cala. As metáforas comer- ela esteve com outro homem. (A presença de correntes homos- ciais que caracterizam a relação entre Emilio e as mulheres às sexuais no triângulo do ciúme foi evidentemente assinalada por vezes se perdem. Numa ocasião, De Zoete interpreta o sentido Freud, mas só anos depois de Tolstói e Svevo.) de uma delas de maneira catastroficamente errada, atribuindo a As traduções-padrão [para o inglês] de Senilidade e Zeno Emilio a decisão de forçar Angiolina a uma relação sexual ("ele são até aqui as de Beryl de Zoete, uma britânica de ascendên- a possui"), quando o protagonista só pretendia esclarecer quem cia holandesa e conectada ao grupo de Bloomsbury cuja faceta seria seu proprietário ("ele é seu possuidor"). mais famosa é ter sido uma das pioneiras mundiais no estudo da A nova tradução de Senilidade, de autoria de Beth Archer dança balinesa. Na apresentação da sua nova tradução de Zeno, Brombert, constitui um avanço considerável. Invariavelmente, William Weaver discute as soluções de De Zoete e sugere, com recupera as metáforas submersas que De Zoete prefere ignorar. a delicadeza possível, que bem pode ter chegado a hora de tirá-Ias Seu inglês, embora claramente datado do final do século xx, tem de circulação. uma formalidade que reflete de certa forma uma era anterior. Se A tradução de Senilidade publicada por De Zoete em 1932, alguma crítica pode ser feita é que num esforço excessivo para com o título As a Man Grows Older [Enquanto um homem en- mostrar-se atualizada ela emprega expressões que tendem a enve- velhece], é particularmente datada. Senilidade fala muito de sexo; lhecer em pouco tempo.5 o sexo usado como arma na batalha entre os sexos, o sexo como Os títulos de Svevo sempre representaram uma dor de ca- mercadoria negociada. Embora sua linguagem nunca seja exa- beça para seus tradutores e editores. Como título, Una vita é tamente imprópria, Svevo tampouco pisa em ovos em torno da simplesmente banal. Por recomendação de Joyce, Senilidade questão. A versão de De Zoete, porém, é de um decoro excessi- foi lançado em inglês com o título As a Man Grows Older, em- vo. Por exemplo, Emilio pensa nos feitos sexuais de Angiolina e bora o romance nada tenha a ver com o envelhecimento. Beth imagina que ela deixa a cama do rico mas repulsivo Volponi, e, Brombert reverte a um título de trabalho anterior, Emilio's Car- 24 25
  • 13. nival [A orgia de Emilio], apesar de na edição revista em italiano cia como industrial à Confederação Fascista das Indústrias. E Svevo se ter recusado a abrir mão de Senilidade: "Eu teria a sen- sua mulher foi participante ativa do "Fascio das Mulheres"J sação de estar mutilando o livro ... Esse título foi o meu guia, era Se ficou moralmente comprometido devido à sua associa- ele que me orientava".fi ção com os Veneziani, Svevo/Schmitz pelo menos não escondia isso de si mesmo, a julgar pelo que escrevia. Basta lembrar do A carreira literária de Svevo se estende por quatro décadas velho do conto "La novella deI buon vecchio e della bella fan- turbulentas da história de Trieste, mas ainda assim muitíssimo ciulla" [A história do bom velho e da moça bonita]' escrito em pouco dessa história se reflete, direta ou indiretamente, em sua 1926 mas ambientado durante a Primeira Guerra: "Todos os si- obra ficcional. A partir do que contam os dois primeiros livros, nais da guerra lhe lembravam, dolorosamente, que, graças a ela, ambientados na Trieste da década de 1890, jamais se poderia ele ganhava tanto dinheiro. A guerra lhe trouxera riqueza e hu- imaginar que àquela época a classe média italiana de Trieste vi- milhação ... Já estava acostumado ao remorso causado por seu via entregue a uma febre típica do Risorgimento, reivindicando sucesso nos negócios, e continuava ganhando dinheiro a despei- a união com a pátria-mãe. E, embora as confissões de Zeno te- to do seu remorso".8 nham sido supostamente escritas durante a guerra de 1914-8, o A atmosfera moral desse texto tardio pode ser mais sombria, conflito só vai lançar alguma sombra sobre a obra em suas últi- e a autocrítica, mais corrosiva, do que encontramos no essencial- mas páginas. mente cômico Zeno, mas isso é apenas uma questão de grau de Graças aos contratos com o governo de Viena, a família Ve- sombra ou potencial de corrosão. De Sócrates a Freud, a filoso- neziani ganhou muito dinheiro com a guerra. Ao mesmo tempo, fia ética do Ocidente subscreveu ao Conhece-ti a ti mesmo délfi- seus membros apresentavam-se em Trieste como irredentistas co. No entanto, de que serve conhecer a si mesmo se, seguidor apaixonados, partidários da incorporação ao solo italiano de to- do caminho apontado por Schopenhauer, um indivíduo acre- dos os territórios sob domínio estrangeiro. John Gatt-Rutter, bió- dita que o caráter se baseia num substrato de vontade, e duvida grafo de Svevo, classifica essa atitude de "farsa hipócrita", e acredi- que a vontade queira mudar? ta que o próprio Svevo foi no mínimo conivente com a encenação. Gatt-Rutter critica acerbamente as posições políticas de Svevo Zeno Cosini, o herói do terceiro romance de Svevo, sua durante a guerra e depois da tomada do poder pelos fascistas em obra-prima da maturidade, é um homem de meia-idade, confor- 1922. Como muitos triestinos da classe alta, os Veneziani apoia- tavelmente casado, próspero, ocioso, vivendo de uma renda que ram Mussolini. O próprio Svevo parece ter acatado o novo regime recebe do negócio fundado por seu pai. Por um capricho, a fim de um modo que Gatt-Rutter define como "de perfeita má-fé", de ver se consegue curar-se de seja lá qual for o seu problema, considerando o fascismo um mal menor que o bolchevismo. Em submete-se à psicanálise. Preliminarmente, seu terapeuta, o dr. S., 1925, na pessoa de Ettore Schmitz, ele aceitou uma comenda pede-lhe que escreva suas memórias da maneira como lhe ocor- menor do Estado pelos serviços que prestou à indústria nacional. rerem. Zeno obedece, produzindo cinco capítulos da extensão Embora nunca se tenha tornado um fascista de carteira, perten- de um conto cada, cujos temas são: o fumo; a morte do seu pai; 26 27
  • 14. seu namoro; um dos seus casos amorosos; uma das suas socieda- Zeno tem dúvidas quanto aos poderes terapêuticos da psicanáli- des comerciais. . se, assim como tem suas dúvidas diante da própria ideia da cura; Decepcionado com o dr. S., que considera obtuso e dogmá- no entanto, quem se atreveria a dizer que o paradoxo que aca- tico, Zeno para de manter suas notas sistemáticas. Visando inde- ba adotando ao final da sua história - de que a suposta doença nizar-se pelos honorários perdidos, o dr. S. publica o manuscrito é parte da condição humana, de que a verdadeira saúde consiste de Zeno. E eis o que constitui o livro que temos à nossa frente: em aceitar quem você é ("ao contrário das outras moléstias ... não as memórias de Zeno mais a narrativa que lhe serve de moldu- existe cura para a vida") - não instiga ele próprio uma interro- ra, sobre como elas foram escritas, "uma autobiografia, mas não gação cética e zenoniana?lO a minha", como diz Svevo numa carta a Montale. E Svevo ainda A psicanálise era uma espécie de mania na Trieste da época explica como sonhava aventuras para Zeno, plantava-as em seu em que Svevo trabalhava em Zeno. Gatt-Rutter cita um professor próprio passado e depois, ignorando deliberadamente a divisa en- triestino: "Aderentes fanáticos à psicanálise [... viviam trocando :1 tre a fantasia e a memória, "'lembrava-se' delas".9 histórias, interpretações de sonhos e lapsos significativos, produ- Zeno é um fumante compulsivo que quer parar de fumar, zindo eles próprios seus diagnósticos amadores" (p. 306). O pró- embora sem força de vontade suficiente para consegui-Io de fa- prio Svevo colaborou numa tradução da Interpretação dos sonhos, to. Não duvida que fumar lhe faça mal, e sonha com os pul- de Freud. Apesar das aparências, não achava que Zeno fosse um mões cheios de ar fresco - as três grandes cenas de morte em ataque contra a psicanálise em si, só contra suas pretensões cura- Svevo, uma em cada romance, mostram pessoas que morrem tivas. A seu ver, não era um seguidor de Freud mas um seu igual, arquejando e lutando desesperadas para respirar -, mas ainda dedicado também por seu lado a investigar o inconsciente e o assim revolta-se contra a cura. Desistir do cigarro, sabe ele em domínio do inconsciente sobre a vida consciente; considerava algum nível instintivo, é reconhecer a primazia de pessoas como seu livro fiel ao espírito cético da psicanálise da maneira como a sua mulher e o dr. S., que, com a melhor das intenções, gosta- era praticada pelo próprio Freud, embora não por seus discípu- riam de transformá-Io num cidadão comum e saudável, subtrain- los, e chegou a enviar um exemplar a Freud (que entretanto não do-lhe assim os poderes que cultiva: o poder de pensar, o poder acusou o recebimento). E de fato, visto de uma perspectiva mais de escrever. Com um simbolismo tão grosseiro que nem mesmo ampla, Zeno é mais que uma simples aplicação da psicanálise a Zeno consegue deixar de rir, o cigarro, a caneta e o falo acabam uma vida ficcional, ou que um mero questionamento cômico da representando uns aos outros. O conto "La novella deI buon psicanálise. É uma exploração das paixões, inclusive as mais mes- vecchio e della bella fanciulla" termina com o velho morto em quinhas, como a cobiça, a inveja e o ciúme, na tradição do roman- sua escrivaninha, uma caneta presa entre os dentes cerrados. ce europeu, paixões para as quais a psicanálise acaba sendo ape- Dizer que Zeno é ambivalente sobre o fumo e, portanto, nas um guia muito parcial. A doença da qual Zeno quer e não quer sobre a possibilidade de cura de sua doença indefinida não passa ser curado é, no fim das contas, não menos que o mal du síiJele de um arranhão na superfície do ceticismo corrosivo porém en- da própria Europa, uma crise da civilização a que tanto a teoria graçado de Svevo quanto à nossa capacidade de aprimoramento. freudiana como A consciência de Zeno procuram responder. 28 29
  • 15. ':' ':' * em vez de mais atualizados teóricos da psique, na verdade ela atribui os males do marido a uma predisposição de caráter. E A consciência de Zeno [La coscienza di Zeno] é mais um essa sua intervenção leva Zeno e seus amigos a longas conversas dos títulos difíceis de Svevo. "Coscienza" pode significar o que de muitas páginas sobre o fenômeno do malato immaginario modernamente se chama de "consciência"; mas também pode em contraposição ao malato reale ou malato vero: não pode uma significar o que em inglês se chama de "self-consciousness" [a doença provinda da imaginação ser mais grave que uma doença "consciência de si mesmo" ou "o embaraço"]' como na frase "verdadeira" ou "real", embora não seja genuína? E Zeno leva de Hamlet "A consciência nos converte a todos em covardes" a interrogação ainda mais além quando pergunta se, em nosso [Conscience does make cowards of us all]. No livro, Svevo alterna tempo, o mais doente de todos pode não ser o sano immaginario, o tempo todo entre os dois significados, de um modo que o in- o homem que se imagina são. glês moderno não tem como imitar. Evitando o problema, De Toda a disquisição é conduzida com muito mais precisão Zoete deu à sua tradução de 1930 o título de Confessions ofZeno. e humor no italiano de Svevo do que seria possível num inglês Em sua nova tradução, William Weaver capitula ante a ambi- circunlocutório. Aqui, De Zoete está um passo à frente de Wea- guidade e usa Zeno's Conscience. ver ao desistir do inglês e recorrer ao francês: "malade imaginaire" Weaver publicou traduções, entre outros escritores italia- para "malato immaginario". nos, de Luigi Pirandello, Cado Emilio Cadda, EIsa Morante, Italo Calvino e Umberto Eco. Sua tradução de Zeno numa pro- Publicado às expensas do próprio Svevo em 1923, quando sa inglesa devidamente comedida e discreta é do melhor padrão. contava 62 anos de idade, Zeno foi resenhado em algumas publi- Num detalhe, porém, é a própria língua inglesa que trai o seu cações, mas nunca por algum dos líderes da opinião crítica. Um trabalho. Zeno costuma contrastar muito o malato immaginario resenhista triestino declarou ter sido pressionado a ignorar o livro, com o sano immaginario, traduzidos por Weaver como "imagina- posto que, fosse o que fosse, era um insulto evidente à cidade. ry sick man" e "imaginary healthy man". (pp. 171, 176; capítulo 6 Em nome dos velhos tempos, Svevo enviou um exemplar do original) No entanto, "immaginario", aqui, não corresponde para Joyce em Paris. Joyce mostrou o livro a Valéry Larbaud e estritamente ao inglês "imaginary", mas a "self-imaginedly", e um outras figuras influentes da cena literária francesa. A reação foi malato immaginario não é, no sentido próprio, um imaginário de entusiasmo. Callim'ard encomendou uma tradução, com a homem doente ("ímaginary sick man"), mas um homem que se condição de serem feitos certos cortes; uma revista literária pu- imagina doente ("a man who imagines himself sick"). blicou todo um número sobre Svevo; o PEN clube organizou um O malato immaginario de Zeno vem da mesma origem que banquete em homenagem a Svevo em Paris. o malade imaginaire de Moliere, e é sem dúvida Moliere que a Em Milão, foi publicada uma nova apreciação positiva da mulher de Zeno tem em mente quando, depois de ouvi-Io falar obra de Svevo, assinada por Montale. Senilidade foi relança- durante horas sobre os seus males, explode numa risada e diz-lhe do em versão revista. Os italianos começaram a ler amplamente que ele não passa de um malato immaginario. Ao invocar Moliere Svevo; uma nova geração de romancistas adotou-o como patro- 3° 31
  • 16. no. A direita reagiu com hostilidade. "Na vida real, Italo Svevo 2. Robert Walser tem um nome semita - Ettore Schmitz", escreveu La Sera, e sugeriu que toda aquela onda em torno de Svevo fazia parte de uma vasta conspiração judaica." Envaidecido com o sucesso inesperado de Zeno, exultante com sua nova fama, Svevo pôs-se a trabalhar numa série de tex- tos cujo tema comum era o envelhecimento e os apetites insacia- dos da velhice. Talvez pretendesse usá-los num quarto romance, uma continuação de Zeno. Em inglês, podem ser encontrados, em traduções de P. N. Furbank e outros, nos volumes 4 e 5 da edição uniformizada em cinco volumes das obras de Svevo pu- blicada na década de 1960 pela U niversity of California Press nos Estados Unidos e por Secker & Warburg na Grã-Bretanha, mas hoje fora de catálogo. Já é mais que tempo de uma reedição. a volume 5 contém ainda uma tradução da peça teatral La No dia de Natal de 1956, a polícia da cidade de Herisau, no Rígenerazíone [Regeneração]' obra tardia. Svevo nunca perdeu leste da Suíça, recebeu um telefonema: um grupo de crianças o interesse pelo teatro, e escreveu inúmeras peças ao longo dos tinha tropeçado no corpo de um homem que morrera congela- anos, mesmo enquanto trabalhava para os Veneziani. Só uma do num campo nevado. Chegando ao local, primeiro os policiais delas, Terzetto sjJezzato [a triângulo partido], foi encenada du- tiraram algumas fotos e depois removeram o corpo. rante a sua vida. a morto logo foi identificado: era Robert Walser, de 78 anos, Svevo morreu em 1928 de complicações provocadas por um que desaparecera de um hospital psiquiátrico local. Na juventu- acidente automobilístico sem importância. Foi enterrado no ce- de, Walser conquistara certa reputação, na Suíça e também na mitério católico de Trieste com o nome de Aron Hector Schmitz. Alemanha, como escritor. Alguns de seus livros ainda estavam Livia Veneziani Svevo, reclassificada como judia, passou os anos em catálogo; outro fora publicado a seu respeito, uma biografia. da guerra, juntamente com a filha do casal e o terceiro filho des- Ao longo de um quarto de século passado de hospício em hospí- ta, escondida dos esquadrões de purificação. Esse terceiro filho cio, entretanto, sua obra acabara secando. Longas caminhadas foi morto pelos alemães por ocasião do levante triestino de 1945. pelo campo - como aquela em que finalmente faleceu - ti- A essa altura, seus dois irmãos mais velhos já tinham morrido na nham se transformado na sua principal distração. frente russa, lutando pela Itália e pelo Eixo. As fotografias da polícia mostram um velho de sobretudo e botas estendido na neve, com os olhos muito abertos e o maxilar (2002) distendido. Essas fotos foram ampla (e descaradamente) reprodu- zidélSna literatura crítica sobre Walser que vem florescendo des- 32 33
  • 17. de a década de 1960.1 A suposta loucura de Walser, sua morte pelo nome de "Monsieur Robert". Em pouco tempo, todavia, solitária e o esconderijo postumamente encontrado de escritos descobriu que poderia sustentar-se com os proventos do que es- secretos tornaram-se os pilares sobre os quais se erigiu toda uma crevia. Seus textos começaram a aparecer em revistas literárias lenda que tem em Walser um gênio escandalosamente negligen- de prestígio; passou a ser admitido nos círculos artísticos mais ciado. E o repentino crescimento do interesse por Walser tor- sérios. Mas o papel de intelectual da metrópole não lhe era fácil. nou-se também parte do escândalo. "Eu me pergunto", escreveu Algumas doses de bebida e ele tendia a mostrar-se grosseiro e Elias Canetti em 1973, "se, entre todos os que constroem uma agressivamente provinciano. Aos poucos foi se retirando da so- vida acadêmica confortável, segura e regular a partir da existên- ciedade, refugiando-se numa vida solitária e frugal em modes- cia de um escritor que viveu na miséria e no desespero, existe tos conjugados. E nesse cenário escreveu quatro romances, dos um único que sinta vergonha de si mesmo."2 quais três sobreviveram: Os irmãos Tanner (1906), Der Gehülfe [O factótum) (1908), e Jakob von Gunten (1909). Em todos eles Robert Walser nasceu em 1878 no cantão de Berna. Foi o os temas foram extraídos das experiências do autor; mas no caso sétimo de oito irmãos e irmãs. Seu pai, treinado no ofício de de Jakob von Gunten - merecidamente o mais conhecido dos encadernador, mantinha uma papelaria. Aos catorze anos, Ro- três - essas vivências são assombrosamente transmutadas. bert foi tirado da escola e começou a trabalhar como aprendiz num banco, onde cumpria exemplarmente seus deveres de es- "Aqui se aprende muito pouco", observa o jovem Jakob von criturário até o dia em que, sem aviso, dominado pelo sonho de Gunten ao final do seu primeiro dia no Instituto Benjamenta, tornar-se ator, abandonou o emprego e fugiu para Stuttgart. Lá onde se matriculou como estudante. Um único livro é usado, fez um teste, que resultou num fracasso humilhante: foi reprova- O que pretende a Escola Benjamenta para Rapazes?, e uma úni- do por se mostrar muito rígido e inexpressivo. Abandonando as ca matéria é lecionada, "Como um menino deve se comportar". ambições cênicas, decidiu tornar-se - "com a ajuda de Deus" Os professores da escola são inertes como mortos. E toda a ati- - poeta.> Andou de emprego em emprego, sempre escrevendo vidade efetiva de ensino cabe à srta. Lisa Benjamenta, irmã do poemas, pequenos textos em prosa e pequenas peças teatrais em diretor. O próprio sr. Benjamenta não sai nunca do seu gabinete, verso ("dramolets") para a imprensa periódica, não sem algum onde conta e reconta seu dinheiro como um ogro de conto de sucesso. Logo foi contratado pela Insel Yerlag, editora de Rilke e fadas. Na verdade, a escola parece um mero embuste.4 Hofmannstahl, que publicou seu primeiro livro. Ainda assim, tendo deixado o que define como "uma me- Em 1905, pensando no progresso de sua carreira literária, trópole muitíssimo pequena" em troca de uma cidade grande acompanhou seu irmão mais velho, ilustrador de livros e cenó- - cujo nome não é revelado mas só pode ser Berlim -, Jakob grafo teatral de sucesso, numa viagem a Berlim. Por medida de não tem a menor intenção de recuar. Procura se dar bem com os prudência, matriculou-se ao mesmo tempo numa escola de for- seus colegas; não se incomoda de usar o uniforme da Benjamen- mação de criados domésticos, e trabalhou por algum tempo co- ta; além disso, adora ir ao centro da cidade para andar de elevador, mo mordamo numa casa de campo, onde usava libré e atendia o que o faz sentir-se um filho pleno da era moderna (p. 40). 34 35
  • 18. Jakob von Gunten alega ser um diário mantido por Jakob Quanto ao sr. Benjamenta, hostil a Jakob num primeiro durante sua permanência no Instituto. Contém principalmen- . momento, logo acaba manipulado ao ponto de suplicar ao rapaz te suas reflexões sobre o tipo de formação que recebe ali - uma que se torne seu amigo, deixando a escola para trás e saindo para educação na humildade - e sobre o estranho par de irmãos correr o mundo em sua companhia. Jakob declina com modos responsável por ela. A humildade lecionada pelos irmãos Benja- afetados: "Mas como irei comer, senhor diretor? ... Seu dever é menta não é da variedade religiosa. A maioria dos rapazes que se me conseguir um emprego decente. Tudo que quero é um em- formam na escola aspira ao ofício de criado ou mordomo, e não prego". Ainda assim, na última página do seu diário, Jakob anun- à santidade. Mas Jakob é um caso à parte, um aluno para quem cia que mudou de ideia: decidiu abandonar a pena e partir para as lições de humildade adquirem uma ressonância interior su- o desconhecido na companhia do sr. Benjamenta. Ao que o lei- plementar. "Como tenho sorte", escreve ele, "de não ver em mim tor só pode reagir pensando: Com um companheiro desse cali- nada digno de ser respeitado ou observado! Ser pequeno e per- bre, Deus proteja o sr. Benjamenta! (p. 172) manecer pequeno." (p. 155) Como personagem literária, Jakob von Gunten não deixa de Os irmãos Benjamenta são um par misterioso e, à primeira ter seus precedentes. No prazer que sente em criticar seus pró- vista, intimidador. E Jakob decide assumir a tarefa de desven- ,prios motivos, lembra o Homem do Subterrâneo de Dostoiévski dar o mistério dos dois. E passa a tratá-l os não com respeito, mas e, por trás deste, o Jean-Jacques Rousseau das Confissões. Mas com a autossuficiência atrevida das crianças acostumadas a ter - como afirma a primeira tradutora de Walser para o francês, suas travessuras perdoadas e julgadas adoráveis. Combina a des- Marthe Robert - há também em Jakob algo do herói dos contos façatez com uma autodepreciação evidentemente insincera, rin- tradicionais populares alemães, o rapaz que invade o castelo do do à socapa da sua insinceridade e confiando que a candura de- gigante e emerge vitorioso. Franz Kafka admirava a obra de Wal- sarmará qualquer crítica, e não se incomodando muito quando ser (Max Brod registra com quanto encantamento Kafka lia em isso não acontece. A palavra que desejaria aplicar a si mesmo, a voz alta as passagens mais engraçadas de Walser). Barnabas e Je- palavra que gostaria que o mundo aplicasse a ele, é endiabrado. remias, os "assistentes" demoniacamente obstrutivos do agrimen- Um diabrete é um espírito malicioso; mas é também um demô- sor K. em O castelo, têm seu protótipo em Jakob. mo menor. Em Kafka também podemos perceber alguns ecos da prosa Logo Jakob começa a adquirir uma certa ascendência so- de Walser, com sua lúcida organização sintática, suas justaposi- bre os irmãos Benjamenta. A srta. Benjamenta dá-lhe a enten- ções casuais do elevado com o banal, e sua lógica paradoxal as- der que se afeiçoou a ele, que em resposta faz de conta que sustadoramente convincente. Aqui temos Jakob numa disposição não entendeu. Na verdade, ela acaba revelando que o que sen- reflexiva: te por ele pode ser mais que simples carinho: talvez seja amor. Jakob responde com um longo discurso evasivo repleto de sen- Usamos uniformes. Ora, usar um uniforme nos humilha e ao timentos respeitosos. Rejeitada, a srta. Benjamenta definha e aca- mesmo tempo nos exalta. Parecemos gente sem liberdade, o que ba morrendo. é possivelmente uma desgraça, mas também ficamos bem em 36 37
  • 19. nossos uniformes, o que nos distingue da desgraça profunda des- e seu gosto por pregar peças maliciosas nos outros - todos es- sas pessoas que andam pelas ruas com suas próprias roupas, mas ses traços, vistos em conjunto, apontam para o tipo de peque- sujas e esfarrapadas. Para mim, por exemplo, usar um uniforme no-burguês do sexo masculino que, num tempo de confusão é muito agradável porque eu nunca sabia, antes, que roupa devia social mais intensa, podia sentir-se atraído pelos camisas pardas usar. Mas nisso, também, permaneço por enquanto um mistério de Hitler. (p. 124) para mim mesmo. Walser nunca foi um escritor declaradamente político. Ain- da assim, seu envolvimento emocional com a classe de que pro- Qual é o mistério em si mesmo ou acerca de si mesmo que vinha, a classe dos pequenos comerciantes, dos funcionários e Jakob acha tão instigante? Num ensaio sobre Walser especial- dos professores primários, era profundo. Berlim lhe acenava com mente notável por basear-se num conhecimento muito incom- uma oportunidade clara de escapar a suas origens sociais e tras- pleto da sua obra, Walter Benjamin sugere que as pessoas mos- ladar-se, como fez seu irmão, para a intelligentsia cosmopolita tradas por Walser são como personagens de um conto de fadas dos déclassés. Walser tenta o mesmo caminho, mas fracassa, ou que chegou ao fim, personagens que a partir desse momento desiste, preferindo retomar aos braços da Suíça provinciana. Mas passam a viver no mundo real. Todas são marcadas por "uma nunca perdeu de vista - na verdade, nunca lhe foi permitido superficialidade sistematicamente dilacerante e desumana", co- perder de vista - as tendências iliberais e conformistas da sua mo se, tendo sido libertadas da loucura (ou de um feitiço), de- classe, e a intolerância que esta sempre manifestou diante de pes- vessem agir com muita cautela por medo de serem novamente engolfadas pelo delírio.5 soas como ele próprio, os sonhadores e vagabundos. Jakob é uma criatura tão estranha, e o ar que respira no Ins- tituto Benjamenta, tão rarefeito, tão próximo da alegoria, que é Em 1913 Walser deixou Berlim e voltou para a Suíça "um difícil imaginá-Io como uma personagem representativa de qual- escritor ridicularizado e sem sucesso" (em suas próprias palavras quer elemento da sociedade. Entretanto, o cinismo de Jakob quan- autodepreciativas).6 Alugou um quarto num hotel que não servia to à civilização e aos valores em geral, seu desprezo pela vida bebidas, na cidade industrial de Biel, perto da sua irmã, e passou mental, suas convicções simplistas sobre o modo como o mundo os sete anos seguintes vivendo precariamente, de textos curtos realmente funciona (é comandado pelas grandes empresas para para suplementos literários. Fora isso, fazia longas caminhadas explorar o homem comum), sua elevação da obediência à qua- pelos campos e ainda cumpriu seu serviço na Guarda Nacional. lidade de mais alta das virtudes, sua determinação de não fazer Nas coletâneas de sua poesia e prosa curta que continuavam a nada à espera do chamamento do destino, sua alegação de des- ser publicadas, cada vez falava mais da paisagem social e na- cender de nobres e guerreiros (ao mesmo tempo em que a eti- tural da Suíça. Além dos três romances mencionados, escreveu mologia que ele próprio indica para o nome Von Gunten - von ainda mais dois. O manuscrito do primeiro, Theodor, foi perdi- unten, "de baixo" - sugere o contrário), bem como o prazer que do pelos seus editores; o segundo, Tobold, foi destruído pelo pró- encontra no ambiente exclusivamente masculino do internato prio Walser. 38 39
  • 20. Depois da Primeira Guerra Mundial, o gosto do público pe- da, e Walser preferiu permanecer internado. Em 1933, sua fa- lo tipo de literatura que respondia pelos rendimentos de Walser, . mília o transferiu para o asilo de Herisau, onde ele recebia uma textos descartáveis de caráter excêntrico e beletrístico, reduziu-se pensão e preenchia seu tempo com tarefas simples como colar muito. Ele vivia afastado demais da sociedade alemã mais ampla sacos de papel e separar feijões. Permanecia em plena posse das para manter-se a par das novas correntes de pensamento; quanto suas faculdades; continuava a ler jornais e revistas populares; mas, à Suíça, o público leitor local era pequeno demais para susten- depois de 1932, não escreveu mais. "Não estou aqui para escre- tar um corpo significativo de escritores. Embora se orgulhasse da ver, estou aqui para ser louco", disse ele a um visitante.lO Além sua frugalidade, Walser acabou precisando fechar o que chama- disso, o tempo dos líttérateurs tinha ficado para trás. va de "minha pequena oficina de peças em prosa" J Seu precá- (Anos depois da morte de Walser, um dos funcionários do rio equilíbrio mental começou a falhar. Sentia-se cada vez mais asilo de Herisau afirmou que via Walser escrevendo sistemati- oprimido pelos olhares de censura dos vizinhos, pela exigência camente durante seus plantões. No entanto, mesmo que isso se- de respeitabilidade que o cercava. Deixou Biel, mudando-se pa- ja verdade, nenhum manuscrito de data posterior a 1932 chegou ra Berna, onde assumiu um cargo no Arquivo Nacional; mas ao aos nossos dias.) cabo de poucos meses foi demitido por insubordinação. Vivia mudando de residência. Bebia muito; sofria de insônia, ouvia vo- Ser um escritor, uma pessoa que usa as mãos para transfor- zes imaginárias, tinha pesadelos e ataques de ansiedade. Tentou mar pensamentos em traços no papel, era difícil para Walser no o suicídio, fracassando porque, como admitiu com desconcertan- mais elementar dos níveis. Na juventude, ele tinha uma letra ní- te sinceridade, "nem um laço eu consegui fazer certo". 8 tida e bem desenhada de que se orgulhava muito. Os manuscri- Ficou claro que não podia mais morar sozinho. Vinha de tos que conhecemos desses dias - as versões finais de seus textos uma família que, na terminologia da época, era degenerada: sua - são verdadeiros modelos de bela caligrafia. A caligrafia, entre- mãe sofria de depressão crônica; um dos seus irmãos se suicida- tanto, foi uma das primeiras áreas em que as perturbações psíqui- ra; outro morrera num hospício. Pressionaram uma de suas irmãs cas de Walser se manifestaram. Em algum momento entre os seus a recebê-Io em casa, mas ela recusou. E assim ele permitiu que trinta e os seus quarenta anos de idade (ele é vago quanto à da- o internassem no sanatório de Waldau. "Acentuadamente depri- ta), começou a sofrer de cãibras psicossomáticas na mão direita. mido e gravemente inibido", afirma seu primeiro relatório mé- Atribuía o problema a uma animosidade inconsciente contra a dico. "Deu respostas evasivas às perguntas quanto a estar farto caneta como instrumento de trabalho, e só conseguiu superá-Ias da vida."9 quando finalmente abandonou a caneta em favor do lápis. Em avaliações posteriores, os médicos de Walser discor- Escrever a lápis era tão importante que Walser batizou o pro- dariam quanto à natureza do seu problema, se é que problema cesso de "sistema do lápis" ou "método do lápis"." E o método havia, e chegariam mesmo a insistir com ele para que voltasse do lápis significava bem mais que o mero uso de um lápis. Quando a morar no mundo exterior. No entanto, a rotina da instituição passou a escrever a lápis, Walser também mudou radicalmente parece ter-se transformado numa base indispensável para sua vi- sua caligrafia. Ao morrer, deixou cerca de quinhentas folhas de 4° 41
  • 21. papel cobertas de fora a fora de linhas de delicados sinais cali- terrupto, introvertido, movido a sonho, que se tornara indispen- gráficos diminutos, desenhados a lápis, uma letra tão difícil de sável para a sua postura criadora. ler que num primeiro momento seu inventariante julgou ter à sua frente um diário escrito num código secreto. Mas Walser não A mais longa das obras tardias de Walser é Der Riiuber, es- mantinha um diário, nem essa escrita é um código. Seus ma- crita em 1925-6, mas decifrada e publicada apenas em 1972. A nuscritos tardios foram na verdade compostos em alemão lite- história é tão rala que chega a ser insubstancial. Narra os envol- rário, mas com tantas abreviações idiossincráticas que, mesmo vimentos sentimentais de um homem de meia-idade conheci- para os editores mais familiarizados com ela, sua decifração ine- do simplesmente como o Ladrão, um homem sem ocupação quívoca nem sempre é possível. E foi só em rascunhos produ- que consegue subsistir à margem da sociedade cultivada de Ber- zidos pelo "método do lápis" que as inúmeras obras tardias de na graças a um legado modesto. Walser, entre elas seu romance Der Riiuber [O Ladrão] (24 folhas Entre as mulheres que o Ladrão persegue com muita reser- de microescrita, correspondentes a cerca de 150 páginas impres~ va, há uma garçonete chamada Edith; entre as mulheres que com sas), chegaram até nós. reserva pouco menor perseguem a ele estão várias proprietárias Mais interessante que decifrar a letra propriamente dita é a de imóveis que o querem, seja para as suas filhas ou para elas questão do que o método do lápis permitia a Walser mas a cane- próprias. A ação culmina numa cena em que o Ladrão sobe ao ta não era mais capaz de produzir (embora ele ainda fosse ca- púlpito e, perante uma vasta assembleia, reprova Edith por pre- paz de usar a caneta quando apenas transcrevia, ou para escrever ferir um rival medíocre a ele. Enfurecida, Edith dispara um re- cartas). A resposta parece ser que, como um desenhista com um vólver contra ele, ferindo-o de raspão. Segue-se uma torrente de bastão de carvão entre os dedos, Walser precisava desencadear comentários animados. Quando a poeira baixa, o Ladrão está um movimento regular e rítmico da mão antes de conseguir en- colaborando com um escritor profissional para contar o seu lado trar num estado de espírito em que o devaneio, a composição e o fluxo do instrumento de escrita se tornavam uma coisa só. Num da história. texto intitulado "Bleistiftskizze" [Esboço a lápis], datado de 1926-7, Por que ele deu o nome "o Ladrão" [der Riiuber] a esse con- ele menciona a "bem-aventurança singular" que o método do lá- quistador inseguro? A palavra remete, claro, a "Robert", o nome pis lhe permitia." "Ele me acalma e me anima", disse noutra oca- do próprio Walser. Um quadro de Karl Walser, irmão de Robert, sião.'3 Esses textos de Walser avançam não de acordo com a lógi- nos fornece mais uma pista. Na aquarela de Karl, Robert, aos ca nem acompanhando uma narrativa, mas segundo mudanças quinze anos, aparece vestido como seu herói predileto, Karl de humor, fantasias e associações: por temperamento, ele é me- Moor, da peça da juventude de Schiller Die Riiuber [Os ladrões, nos um pensador que persegue uma argumentação ou mesmo 1781]. O Ladrão da história de Walser, entretanto, não é um sal- um contador de histórias seguindo a linha de uma narrativa que teador heroico como o de Schiller, mas um plagiário desonesto um autêntico beletrista. O lápis e a notação estenográfica de sua que se limita a roubar o afeto de algumas jovens e as fórmulas da invenção lhe permitiam um movimento manual produtivo, inin- ficção popular. 42 43
  • 22. Por trás do Ladrão, ou Robert/Rauber, assoma uma figura, Ele estava sempre [00.] só como um pobre cordeirinho perdido. o autor nominal do livro, que o trata ora como um protegido, ora As pessoas o perseguiam para ajudá-lo a aprender como se vive. como um rival, ora como um simples fantoche a ser conduzido Ele dava uma impressão tão vulnerável. Parecia a folha que um de situação em situação. Esse diretor de cena o critica por cuidar menino separa do tronco com um golpe de vara só porque sua mal das suas finanças, por sair com moças da classe operária e, singularidade a torna conspícua. Noutras palavras, ele atraía a de maneira geral, por comportar-se como um Tagedíeb, um ocio- perseguição. (p. 40) so ou "ladrão de dias", em vez de proceder como um bom bur- guês suíço, muito embora, admite ele, precise estar sempre to- Como Walser também observa, com igual ironia mas ín mando cuidado para não confundir a si próprio com Robert/ propría persona, numa carta do mesmo período: "Às vezes me Rauber. Seu caráter lembra muito o do rival, zombando de si sinto devorado, ou melhor, parcial ou totalmente consumido, mesmo enquanto cumpre suas rotinas sociais sem sentido. De pelo amor, pela preocupação e pelo interesse de meus tão ex- celentes concidadãos" .14 tempos em tempos sente uma pontada de ansiedade quanto ao Der Riiuber nunca foi preparado para publicação. Na ver- livro que está escrevendo debaixo dos nossos olhos - porque a dade, em nenhuma de suas muitas conversas com seu amigo e obra progride devagar, porque seu conteúdo é trivial, por causa da vacuidade do seu herói. benfeitor durante seus anos de internação, Carl Seelig, Walser sequer mencionou a existência da obra. Ela se baseia em epi- Fundamentalmente, Der Riiuber "trata" apenas da aven- sódios mal disfarçados da sua vida; ainda assim, precisamos de tura da sua própria composição. Seu encanto reside nas suas sur- muita cautela se quisermos considerá-Ia um texto autobiográ- preendentes reviravoltas e mudanças de direção, no seu trata- fico. Robert/Rauber só encarna um dos aspectos de Walser. Em- mento delicadamente irônico das fórmulas do jogo amoroso, e bora haja referências a vozes persecutórias, e embora ele sofra do em sua exploração flexível e inventiva dos recursos da língua ale- que, no jargão psiquiátrico e psicanalítico, é chamado de delírio mã. A figura do seu autor, alvoroçado diante da multiplicidade de referência - suspeitando que haja significados ocultos, por de fios narrativos que precisa administrar depois que o lápis em exemplo, na maneira como os homens assoam o nariz na sua suas mãos entra em movimento, lembra acima de tudo Laurence presença -, o lado mais melancólico e mais autodestrutivo do Sterne, o Sterne tardio, mais suave, livre da malícia e dos duplos Walser real mantém-se sistematicamente fora do quadro. sentidos. Num episódio crucial, Robert/Rauber procura um médico Os efeitos de distanciamento produzidos pela identidade de e, com grande franqueza, lhe descreve seus problemas sexuais. autor que se destaca da personagem de Robert/Rauber, e por um Nunca sentiu o desejo de passar a noite com uma mulher, diz, estilo em que o sentimento é admitido desde que coberto por um mas acumula "estoques assustadores de potencial amoroso", tan- véu fino de paródia, permitem a Walser momentos em que con- to que "toda vez que saio para a rua, começo imediatamente a segue falar de maneira pungente sobre seu próprio desamparo - me apaixonar". O estratagema que imaginou para alcançar a fe- ou seja, de Robert/Rauber - às margens da sociedade suíça: licidade é inventar histórias envolvendo o objeto do seu desejo 44 45
  • 23. em que ele próprio se transforma no [indivíduo] "subordinado, A engenhosidade do neologismo "emborboletado" (em in- obediente, sacrificado, dissecado e tutelado". Na verdade, con- glês "embutterflíed") para "umschmetterlíngelt" é admirável, as- fessa, às vezes acha que no fundo é uma garota. Ao mesmo tem- sim como o talento de Bernofsky para adiar o impacto da frase po, contudo, também tem um menino dentro de si, um menino até sua última palavra. Mas a frase também serve para ilustrar que se comporta mal (sombras de Jakob von Gunten). A reação um dos problemas mais exasperantes dos textos microescritos do médico é eminentemente sensata. O senhor parece se conhe- de Walser. A palavra aqui traduzida como "jovem aristocrata", cer muito bem, diz ele - não tente mudar. (pp. 105-6) "Herrentochter", é decifrada por outro dos editores do original de Noutra passagem notável Walser simplesmente deixa o lá- Walser como "Saaltochter", que no alemão da Suíça quer dizer pis correr (deixa o censor dormir) e conduzi-Io, a partir dos pra- "garçonete". (A mulher em questão, Edith, é sem dúvida uma zeres da vivência imaginária de uma vida interior feminina, a garçonete, nem de longe uma aristocrata.) Se não podemos ter uma participação de intenso erotismo na experiência de um casal certeza do texto, será possível confiar na sua tradução? de amantes operísticos, para os quais a bem-aventurança de ex- Aqui e ali, Walser propõe desafios a cuja altura Bernofsky ternar seu amor na forma de canto e a bem-aventurança do amor não consegue responder. Não tenho certeza de que a expressão propriamente dito são uma coisa só. (p. 101) em inglês "scalawaggíng hís way through [the) arcades" ["zigue zaguendo em meio aos arcos"] evoque exatamente a imagem Christopher Middleton foi um dos pioneiros do estudo da que Walser pretendia, a de um menino que mata aula. Uma das obra de Walser, e um dos grandes mediadores da literatura ale- viúvas com quem Rauber/Robert flerta é caracterizada como eín mã moderna para o mundo de língua inglesa. Sua exemplar Dummchen; e pelas duas páginas seguintes Walser opera mudan- tradução de Jakob von Gunten foi lançada em 1969. Em sua tra- ças em todos os aspectos da palavra "Dummchen". Bernofsky em- dução de 2000 para Der Rduber, intitulada The Robber, Susan prega sistematicamente "nínny" [aproximadamente "pateta", ou Bernofsky sai-se igualmente bem do desafio da obra posterior de "tola"] para "Dummchen", e "nínníhood" [mais ou menos "pate- Walser, especialmente no caso dos jogos do autor com as forma- tice"] para "Dummheít". Mas "nínny" tem conotações claras de ções derivadas que o alemão permite tão bem.'5 incompetência mental e até mesmo de idiotice, ausentes das pa- Num ensaio acerca de alguns dos problemas que Walser apre- lavras em Dumm- em alemão, e de qualquer modo é vocábulo senta para o tradutor, Bernofsky nos dá como ilustração a seguin- raro no inglês de hoje. Nem "nínny" nem nenhuma outra palavra te passagem: única em inglês poderia ser usada para traduzir sistematicamen- te "Dummchen", que às vezes tem o sentido de "dummy" [mais Ele estava sentado no tal jardim, entrelaçado de cipós, emborbo- aproximadamente "imbecil", pessoa que é estúpida ou tapada- letado de melodias, e arrebatado pela radicalidade do seu amor sentido mais forte no inglês americano que no britânico], às ve- pela mais linda jovem aristocrata a jamais baixar dos céus do abri- zes de "nítwít" ["bobo"], e às vezes de "cabeça-oca". (pp. 42, 26-27) go paterno para a apreciação do público de modo a, com seus Walser escrevia em alemão literário (Hochdeutsch), a lín- encantos, desferir no peito de um Ladrão uma fatal estocacla.,6 gua que as crianças suíças aprendem na escola. O alemão literá- 46 47
  • 24. l:~ ,;, ,;, rio difere em inúmeros detalhes linguísticos, e ainda no tempe- ramento, do alemão suíço que é a língua materna de três quartos do povo suíço. Escrever em alemão literário - a única escolha Der Rduber é mais ou menos contemporâneo, em sua com- possível para Walser, se pretendia ganhar alguma coisa com sua posição, do Ulysses de Joyce e dos derradeiros volumes de Em pena - acarretava automaticamente uma postura cortês e so- busca do tempo perdido de Proust. Caso tivesse sido publicado cialmente refinada, atitude que não o deixava confortável. Em- em 1926, poderia ter afetado o curso da moderna literatura ale- bora tivesse pouco tempo para uma literatura regional (Heimat- mã, inaugurando e até legitimando como tema as aventur~s da líteratur)suíça, dedicada a reproduzir o folclore helvético e a identidade que escreve (ou sonha) e da linha de tinta (ou lápis) celebrar costumes populares obsolescentes, Walser, depois de cheia de meandros que emerge ao correr da mão. Mas não foi sua volta ao país natal, começou a introduzir deliberadamente assim. Embora um projeto de reunir os textos de Walser tenha o alemão suíço em seus textos, e de maneira geral tentava soar sido iniciado antes da sua morte, foi só depois que começaram a distintamente suíço. aparecer os primeiros volumes de uma edição mais criteriosa de A coexistência de duas versões da mesma língua no mesmo suas Obras Reunidas em 1966, e depois de chamar a atenção espaço social é um fenômeno pouco familiar ao mundo metro- de leitores na Inglaterra e na França, que Walser atraiu uma am- politano de língua inglesa, e cria problemas insolúveis por quem pla atenção na Alemanha. traduz esses textos para o inglês. A resposta de Bernofsky aos usos Hoje Walser é valorizado principalmente por seus roman- do dialeto por Walser - que não se limitam à inclusão ocasional ces, muito embora estes só constituam um quinto da sua produ- de uma palavra ou expressão local, mas produzem todo um co- ção total e o romance não tenha sido propriamente o seu forte 10l·idosuíço de sua linguagem que é difícil atribuir precisamente (as quatro obras de ficção mais longas que deixou pertencem na a um ou outro elemento - é, candidamente, a de ignorá-los, ou verdade à tradição menos ambiciosa da novela). Walser está mais pelo menos não fazer qualquer esforço em favor de sua reprodu- à vontade em formas mais breves. Contos como "Helbling" (1914) ção. Como diz ela com razão, traduzir os momentos em que o ou "Kleist in Thun" (1913), em que nuances aquareladas de sen- alemão de Walser é mais suíço lançando mão de algum diale- timento são esquadrinhadas com a mais ligeira das ironias e a to regional ou social do inglês produziria apenas uma falsifica- prosa responde a lufadas ocasionais de sentimento com a sensi- ção cultural. 17 bilidade das asas de uma borboleta, mostram Walser no seu me- Tanto Middleton quanto Bernofsky escrevem apresentações lhor. Seu único tema verdadeiro foi sua vida pouco movimen- muito instrutivas das suas traduções, embora a esta altura o texto tada mas, a seu modo, muito pungente. Cada um dos seus textos de Middleton esteja desatualizado em relação aos estudos sobre em prosa, sugeriu ele em retrospecto, pode ser lido como um Walser. Nenhum dos dois recorre a notas explicativas. A ausên- capítulo de uma "narrativa longa, realista e sem enredo", um "li- cia de notas é sentida especialmente em The Robber, salpicado vro recortado ou desmembrado do eu [Ich-Buch]" .•8 de fartas referências à literatura, inclusive os confins mais obs- Mas terá sido Walser um grande escritor? Se no final das curos da literatura suíça. contas ainda hesitamos em qualificá-lo de grande, assinala Ca- 48 49
  • 25. netti, é só porque nada poderia ser-lhe mais estranho que a gran- deza.'9 Num poema tardio, Walser escreveu: 3. Robert Musil, O jovem Torless Não desejaria a ninguém que fosse eu. Só eu sou capaz de me suportar. Saber tanto, ter visto tanto, e Não dizer nada, ou quase nada.20 (2000) Robert Musil nasceu em 1880 em Klagenfurt, na província austríaca da Caríntia. A mãe, proveni~nte da alta burguesia, era uma mulher muito nervosa e interessada pelas artes, o pai, um engenheiro empregado no governo imperial que, mais adiante, acabaria recompensado por seus serviços com um título menor de nobreza. O casamento era "progressista": Musil pai aceitava sem reclamar uma ligação entre sua mulher e um homem mais jovem, Heinrich Reiter, iniciada logo após o nascimento de seu filho. Reiter acabaria indo morar com o casal Musil, num ménage à trais que persistiria por um quarto de século. O próprio Musil era filho único. Mais jovem e menor que seus colegas de escola, cultivava uma força física que conser- varia pela vida inteira. A atmosfera em casa parece ter sido tem- pestuosa; a pedido da mãe - e, diga-se de passagem, com o consentimento entusiástico do próprio menino -, ele foi in- ternado aos onze anos numa Unterrealschule militar nos arredo- res de Viena. De lá transferiu-se em 1894 para a Oberrealschule em Mahrisch-Weisskirchen perto de Brno, capital da Morávia, 5° 51
  • 26. onde passou três anos. Essa escola tornou-se o modelo para o cantou-se com MaIlarmé e Maeterlinck, rejeitando o credo na- "W." de O jovem Torless. turalista segundo o qual a obra de arte precisava refletir fiel- Decidindo não seguir uma carreira militar, aos dezessete mente ("objetivamente") a realidade que já existia. Buscou apoio anos Musil ingressou na Technische Hochschule em Brno, onde filosófico em Kant, Schopenhauer e (especialmente) Nietzsche. se entregou a intensos estudos de engenharia, desdenhando as Em seus diários, criou para si mesmo a persona artística de "Mon- humanidades e o tipo de estudante atraído por elas. Seus diários sieur le vivisecteur", um homem dado a explorar os estados de da época revelam-no preocupado com o sexo, mas de um modo consciência e as relações afetivas com um bisturi intelectual. Prá- incomumente consciente. Relutava em aceitar o papel sexual ticava imparcialmente suas técnicas de vivissecção, em si mes- que os costumes da sua classe prescreviam para os rapazes, a sa- mo e nos seus familiares e amigos. ber, que espalhasse a sua semente com prostitutas e jovens tra- Apesar de suas emergentes aspirações literárias, Musil con- balhadoras até que chegasse a hora de um casamento adequado. tinuava a preparar-se para a carreira de engenheiro. Passou com Embarcou numa relação com uma moça tcheca chamada Her- distinção nos exames e mudou-se para Stuttgart como assisten- ma Dietz que trabalhara na casa da sua avó; enfrentando a resis- te de pesquisa na prestigiosa TechnÍsche HochsGlwle. Mas o tra- tência da mãe, e correndo o risco de perder seus amigos, insta- balho científico começou a entediá-Io. Enquanto ainda escrevia lou-se com Herma primeiro em Brno e depois em Berlim. artigos técnicos e trabalhava num aparelho que inventara para Ligando-se a Herma, Musil deu um passo importante no ser usado em experimentos de óptica (mais tarde patentearia o sentido de romper o magnetismo erótico que sua mãe exercia instrumento, na esperança não muito realista de conseguir viver sobre ele. Por alguns anos, Herma continuou a ser o foco da sua do que a invenção rendesse), embarcou num primeiro roman- vida emocional. A relação do casal - mais objetiva da parte de ce, O jovem Torless. Começou também a preparar o terreno pa- Herma, mais complexa e ambivalente da parte de Robert - se- ra uma guinada acadêmica. Em 1903, abandonou formalmen- ria mais tarde a base para o conto "Tonka", publicado na coletâ- te a engenharia e partiu para Berlim disposto a estudar filosofia nea Três mulheres (1924). e psicologia. Em conteúdo intelectual, a educação que Musil recebeu O jovem Torless ficou pronto no início de 1905. Depois que em suas escolas militares foi decididamente inferior à oferecida foi recusado por três editoras, Musil encaminhou o original pa- nos Cymnasia clássicos. Ainda em Brno, começou a frequentar ra ser comentado pelo respeitado crítico berlinense Alfred Kerr. concertos e conferências sobre literatura. O que começou como Kerr deu apoio a Musil, sugeriu revisões e resenhou o livro em um projeto de alcançar seus contemporâneos de melhor forma- termos entusiasmados quando foi lançado, em 1906. Apesar do ção logo se transformou numa absorvente aventura intelectual. sucesso de O jovem Torless, entretanto, e apesar da marca que Os anos de 1898 a 1902 marcam uma primeira fase de aprendi- começava a deixar nos círculos artísticos de Berlim, Musil sen- zado literário. O jovem Musil se identificava especialmente com tia-se inseguro demais quanto ao seu talento para se comprome- os escritores e intelectuais da geração que florescera na década ter com toda uma vida de produção literária. Continuou seus es- de 1890 e tanto contribuíra para o movimento modernista. En- tudos de filosofia, obtendo o grau de doutor em 1908. 52 53