SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 74
Baixar para ler offline
HISTÓRIAS DE BATUQUES
E BATUQUEIROS:
Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre
Denis Pereira Gomes
Jovani de Souza Scherer
Vinicius Pereira de Oliveira
Denis Pereira Gomes
Jovani de Souza Scherer
Vinicius Pereira de Oliveira
HISTÓRIAS DE BATUQUES
E BATUQUEIROS:
Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre
E-book
Pelotas, 2021
© Dos Autores 2021
Editoração: Denis Pereira Gomes e Luiz Felippe Leal Gomes
Capa: Denis Pereira Gomes
Imagens da capa: Acervo dos autores
Revisão: Miriam Queiroz Müller
E-book
Edição dos autores.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Oliveira, Vinicius Pereira de
Histórias de batuques e batuqueiros
[livro eletrônico] : Rio Grande, Pelotas e Porto
Alegre / Vinicius Pereira de Oliveira, Denis Pereira
Gomes, Jovani de Souza Scherer. -- Pelotas, RS :
Ed. dos Autores, 2021.
PDF
ISBN 978-65-00-31645-2
1. Batuque (Culto) - Rio Grande do Sul 2. Cultos
afro-brasileiros - Rio Grande do Sul 3. Negros - Usos
e costumes - Rio Grande do Sul 4. Orixás - Culto -
Rio Grande do Sul I. Gomes, Denis Pereira.
II. Scherer, Jovani de Souza. III. Título.
21-83422 CDD-299.8165
Índices para catálogo sistemático:
1. Rio Grande do Sul : Estado : Batuque de Nação :
Cultos afro-brasileiros : Religião 299.8165
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380
Em memória do Mestre Carlos Galvão
Krebs, pela sua doação ao estudo pioneiro do Batu-
que do Rio Grande do Sul.
Agradecemos imensamente à família do
Mestre por preservar seu acervo e permitir acesso
às informações aqui utilizadas, especialmente à sua
neta Cristina Krebs.
Carlos Galvão Krebs
Nascido em São Gabriel no ano de 1914, falecido em Porto Alegre em 1992. Foi um etnógrafo e fol-
clorista brasileiro, formado em Direito, História e Geografia e Artes Plásticas. Foi funcionário da Secretaria de
Educação do Estado do RS e fundador do Instituto de Tradição e Folclore, origem do IGTF (Instituto Gaúcho
de Tradição e Folclore), ao lado de figuras como Dante de Laytano e Paixão Cortes.
Foi um dos pioneiro no estudo etnográfico da religiosidade de matriz africana no Rio Grande do
Sul, ao lado de Dante de Laytano, Roger Bastide e Melville Herskovits. A partir de fins da década de 1940,
frequentou diversas casas de Batuque em Porto Alegre, com destaque para as de Mãe Moça de Oxum, Mãe
Andrezza de Oxum, Mãe Apolinária de Oyá, Mãe Ester de Iemanjá, Mãe Maria Horária do Bará, Pai Floren-
tino do Ogum e Irmão Laudelino Manoel de Souza (umbanda). Em uma época na qual o Batuque era alvo de
perseguições, publicou diversas reportagens em jornais e revistas do Brasil, buscando levar ao grande público
um pouco de conhecimento sobre o tema.
Dialogou com muitos folcloristas e etnógrafos como Câmara Cascudo, Peixe Grande, Edson Carnei-
ro e Veríssimo de Melo. Criou o primeiro curso de folclore do estado, nos anos 50. Entre fins da década de
1950 até 1980, voltou-se ao estudo do folclore gaúcho, em seus diversos aspectos. Temas como: congadas e
maçambique de Osório, cultura campeira, saberes e ofícios tradicionais, entre outros. Autor do livro Estudos
de Batuque (Krebs, 1988).
Sumário
1 - Introdução...............................................................................................................................................7
2 - Sobre os autores.......................................................................................................................................9
3 - Culto aos Orixás no Rio Grande do Sul...............................................................................................10
4 - As sementes do Batuque: religiosidades africanas no Rio Grande do Sul.......................................
4.1 - Os batuques nos territórios negros de Rio Grande e Pelotas..........................................................12
Pelotas e os batuques na Várzea..........................................................................................................12
Elvira: uma liderança afro religiosa na Várzea...................................................................................16
O Arroio Santa Bárbara, a Praça Cipriano Barcelos e os ritos fúnebres afro brasileiros...................16
4.2 - Os territórios negros de Rio Grande e seus batuques......................................................................20
A comunidade de africanos minas e a religiosidade afrodescendente................................................22
4.3 - As religiosidades negras na Porto Alegre do século XIX...............................................................25
Porto Alegre e o Candombe da Mãe Rita...........................................................................................25
A Irmandade do Rosário de Porto Alegre...........................................................................................28
Os Mina e os Nagô em Porto Alegre – as nações da liberdade..........................................................30
A Semente do Batuque........................................................................................................................31
Os becos do centro antigo...................................................................................................................34
5 - O território negro do Areal da Baronesa............................................................................................37
A religiosidade afro no Areal..............................................................................................................40
Lideranças Religiosas na Cidade Baixa..............................................................................................41
Custódio Joaquim de Almeida - o Príncipe africano..........................................................................41
6 - Os territórios negros da Colônia Africana e da Bacia do Mont Serrat...........................................48
6.1 - Religiosidade negra.........................................................................................................................51
Pai Antoninho da Oxum - nação Oyó.................................................................................................52
Mãe Andreza de Oxum.......................................................................................................................53
Mãe Apolinária de Oyá.......................................................................................................................
6.2- A natureza e os orixás.......................................................................................................................55
6.3- Alguns outros territórios negros.......................................................................................................56
6.4 - A expulsão da população negra da Colônia Africana e do Mont Serrat..........................................56
7 - Proposta de atividade para uso em sala de aula................................................................................58
8 - Sugestão de documentários sobre o Batuque do RS.........................................................................60
ReferênciasBibliográficas..........................................................................................................................62
Notas............................................................................................................................................................70
54
11
7
Introdução
Histórias de batuques e batuqueiros, para batuqueiros. Assim foi pensada esta publicação, que tem
como objetivo analisar a formação histórica das religiosidades de matriz africana no Rio Grande do Sul, par-
ticularmente focando no Batuque de Nação.
Mediante um leque variado de fontes históricas (documentos estatais, jornais, depoimentos orais de
afro religiosos, registros de pesquisa, etc), bem como da bibliografia especializada, buscamos oferecer ao lei-
tor um panorama sobre o tema. Mais do que responder a todas indagações e lacunas que permeiam a temática,
propomos, acima de tudo, levantar questões para o debate.
Não se trata de uma publicação sobre "fundamentos" do Batuque, ou seja, sobre a sua "liturgia", mas
sim sobre alguns aspectos da sua formação. Para tal, foi dada especial atenção à noção de território negro,
espaços onde se construíram diversas práticas de resistência e solidariedade da comunidade negra, buscando
perceber a sua importância para a questão da religiosidade.
Usufruindo da liberdade que a poesia da vida nos permite, entendemos como territórios negros os
lugares nos quais, no suor do dia a dia e no enfrentamento da incompreensão, a comunidade afrodescendente
construiu e plantou suas raízes, seu projetos de vida, seus sonhos, suas lutas, seus amores e dessabores, seus
lazeres e suas religiosidades. Firmando assim uma identidade quanto a estes espaços.
Esse caminho foi trilhado a partir dos territórios negros das cidades de Rio Grande, Pelotas e Porto
Alegre, berços do Batuque no estado, localidades que no século XIX foram não só cidades negras, mas tam-
bém africanas.
Trabalhadores e trabalhadoras escravizados, libertos e livres construíram ao longo dos tempos, com
seu trabalho, não só a prosperidade dessas terras, mas também uma importante e significativa parcela da cul-
tura nacional. Vidas negras, acima de tudo. Celebremos nossa ancestralidade negra!
As práticas de relação com o sagrado africano podem ser vistas dentro de um leque maior de expe-
riências de resistência negra, que ao longo da história englobaram também a luta pela alforria, a formação de
clubes sociais negros, de irmandades religiosas de homens de cor, bem como de formas mais radicais de re-
sistência como as fugas e a formação de quilombos. Lutas anti-racistas. Lutas coletivas. Todas elas, de formas
complementares, foram essenciais para a existência desses grupos.
Segundo o Censo de 2010, o Rio Grande do Sul é o estado do Brasil com maior percentual de pes-
soas auto-declaradas como adeptas de religiões de matriz africana. São dados que demonstram a presença
marcante, em um estado que insiste em se "vender" como branco e europeizado, de terreiros de religiosidade
de matriz africana, portadores de uma diversidade de linhagens e pertencimentos ancestrais e identitários, tais
como o Batuque de Nação, a Umbanda, a Quimbanda e em dimensão menor o Candomblé.
Mas se as narrativas tradicionais e conservadoras sobre a formação do Rio Grande do Sul nem sem-
pre contemplam a importância da população afrodescendente, nas memórias de famílias negras, nas falas dos
movimentos sociais e nas práticas dos afro religiosos ela permaneceu viva, resistindo no dia a dia de suas vidas
e lutas. Igualmente muitos pesquisadores acadêmicos - entre eles diversos afro religiosos e afrodescendentes
- têm já, há alguns bons anos, buscado contribuir para a construção de narrativas alternativas a esta invisibili-
zação da cultura negra. É a este conjunto de esforços que, modestamente, almejamos nos aproximar.
Esperamos que ao longo destas páginas o leitor possa adentrar, ainda que brevemente, nos cortiços e
territórios negros das cidades estudadas e, de lá, acompanhar as experiências dessas batuqueiras e batuqueiros
do passado. Se suas práticas eram vistas pelo olhar etnocêntrico e normatizador das classes dominantes sim-
plesmente como casos de curandeirismo e charlatanismo e tachadas de forma pejorativa e condenatória como
8
feitiçaria ou magia, por outro lado podem ser pensadas como forma de resistência, como elementos para cons-
trução de identidades, de alicerçamento de comunidades e territórios, como recurso para vivenciar o coletivo
e buscar conforto espiritual e social.
Este trabalho que ora apresentamos foi viabilizado mediante apoio do Edital Criação e Formação -
Diversidade das Culturas (SEDAC/RS), com recursos provenientes da Lei Aldir Blanc (Lei 14.017/20). É re-
sultado dos debates desenvolvidos pelo "Coletivo Moforibalé: Batuque e História", formado pelos três autores
e tem como objetivo apresentar uma abordagem introdutória sobre a formação histórica das religiosidades de
matriz africana no Estado, reservando para uma publicação futura o aprofundamento de uma série de possíveis
questões. Nele apresentaremos os resultados parciais de uma pesquisa ainda em andamento, colocando-nos o
desafio de escrever para um público diversificado (professores, estudantes, batuqueiros, ativistas de movimen-
tos sociais) sem, no entanto, abandonar o rigor teórico-metodológico e conceitual necessário.
Quanto ao conteúdo que segue, o leitor encontrará, inicialmente, uma brevíssima e simplificada des-
crição do Batuque e dos orixás cultuados no estado. No capítulo seguinte, denominado As sementes do Batu-
que, retornamos ao século XIX com o objetivo de traçar um panorama sobre as formas de religiosidade negra
visualizadas nos registros históricos. Na sequência, adentra-se o século XX a partir da análise dos territórios
negros onde o Batuque se estruturou na cidade de Porto Alegre: Areal da Baronesa, Colônia Africana e Bacia
do Mont Serrat. Algumas lideranças do Batuque receberam um pouco mais de atenção, como foi o caso de Pai
Antoninho da Oxum, Mãe Andreza, Mãe Apolinária e o lendário Príncipe Custódio Joaquim de Almeida. Por
fim, apresentamos uma sugestão de atividade didática para uso escolar, bem como, uma listagem de alguns
documentários sobre o Batuque do Rio Grande do Sul.
Optamos por colocar indicações da bibliografia utilizada, das fontes consultadas e outras observações
em notas de fim de livro, para tornar a leitura mais leve. Mas o interessado em verificar a procedência das fon-
tes documentais citadas e das afirmações colocadas, bem como no aprofundamento de alguma questão, pode
recorrer a estas notas. Muitos dos artigos, dissertações e teses citadas encontram-se disponíveis gratuitamente,
de forma online, na internet.
Colocar em destaque as matrizes africanas da nossa história é uma maneira de saudar os princípios
democráticos mais profundos na formação cultural e religiosa brasileira, em tempos cada vez mais marcados
pela intolerância com a diferença e pela crítica ao reconhecimento da diversidade, ambas alimentadas pelo
desconhecimento do passado. Entendemos não haver forma melhor de combater a ignorância do que o conhe-
cimento. Os velhos estigmas que pairam sobre a religiosidade de matriz africana e a comunidade batuqueira
não devem mais persistir no presente. Essa publicação busca potencializar a valorização da diversidade étni-
co-cultural e servir como instrumento para o enfrentamento à intolerância religiosa e ao racismo estrutural em
salas de aula, em casas de religião, e onde mais se queira discutir e ampliar a compreensão relativa ao Batuque
e sobre os batuqueiros de Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas.
9
Sobre os autores
Denis Pereira Gomes
Licenciado em História/Ulbra Canoas, Licenciado em Geografia Uniasselvi, Especialista em História do RS/
UNISINOS. Linhas de pesquisas: Rev. Federalista, Movimento tenentista de 1926, formação do Batuque em
Porto Alegre. Babalorixá Nação Cabinda.
Jovani de Souza Scherer
Licenciado em História/UFRGS (2005). Mestre em História/UNISINOS (2008). Atualmente cursa Douto-
rado em História/UFRGS, com foco na história do Príncipe Custódio Joaquim de Almeida. Tem trajetória
de pesquisa sobre temas ligados às experiências negras no Brasil Império, tais como alforrias, liberdade e
escravidão de africanos no Rio Grande do Sul e a formação do Batuque no estado. Capoeirista desde 2003,
integra a Escola de Capoeira Angola Africanamente desde 2012, onde é discípulo do Mestre Guto Obafemi.
Vinicius Pereira de Oliveira - Vinicius de Aganjú:
Licenciado em História/UFRGS (2002). Mestre em História/UNISINOS (2005) e Doutor em História/
UFRGS (2013). Pesquisa temas relacionados à trajetória da população afrodescendente no Rio Grande do
Sul, como: experiências de escravidão, liberdade e resistência; lanceiros negros farroupilhas; comunidades
remanescentes de quilombos; Batuque e afro religiosidade. Iniciado e aprontado no Batuque de Nação Jêje,
pelas mãos da Mãe Maria do Xangô (Maria Vieira Ferrão - Porto Alegre), da bacia de Joãozinho do Exu Bí.
Reafirmado na Nação Ijexá pelas mãos da Mãe Nara do Xapanã (Nara Louro - Pelotas), da bacia de Zeca
Pinheiro do Xapanã Obirobô (Porto Alegre). Autor do livro De Manoel Congo a Manoel de Paula: um afri-
cano ladino em terras meridionais (Porto Alegre: EST Edições, 2006).
10
3 - Culto aos Orixás no Rio Grande do Sul
Para os adeptos do Batuque, os orixás são representações das forças da natureza e de tudo que existe
no mundo. Os orixás cultuados no Rio Grande do Sul são originários da cultura nagô, mas o culto de Nação
Africana, como era denominado o "Batuque" até meados dos anos 60, possui também elementos da cultura
Jeje, atual região do Benin.
O Batuque ( terminologia dada pelos brancos, que foi adotada pelos seus praticantes ao longo do
tempo) é bastante difundido em todo o estado do RS e na região platina. Atualmente cultua as nações Oyó,
Ijexá, Jeje, Cabinda e Nagô.
Vejamos, a seguir, os orixás cultuados no Rio Grande do Sul e suas características:
Exu (Bará): orixá de extrema importância pois no culto faz a ligação dos homens com os deuses.
É o orixá mais próximo dos seres humanos. Sendo dono dos caminhos, tem o poder de abri-los ou fechá-los,
trancando ou destrancando situações. Representa a força que movimenta o universo. Saudação: Alupô.
Ogum: é o dono do ferro e de todos os seus derivados, como armas e ferramentas. Também é dono
da bebida alcoólica e é considerado o senhor da guerra. É esposo de Iansã. Senhor das demandas. Saudação:
Ogunhê.
Iansã/Oyá: dona dos ventos, das tempestades e dos raios, é uma orixá guerreira. Ligada aos rituais
dos eguns (espíritos). Saudação: Epaêi-o.
Xangô: orixá enérgico, é considerado o dono dos trovões e do fogo, regente dos intelectuais e de
todos que lidam com as leis e com a justiça. Seu símbolo é a balança, o livro e o machado duplo. Saudação:
Caô Cabecile.
Ibedji: considerados orixás gêmeos, são divindades infantis, os protetores das crianças. Tem seu ritu-
al ligado ao culto de Xangô e Oxum). Saudação: Iê-Iê-o Oxum Ibedje e Caô Cabecile Xangô Ibedje.
Odé/Otim: casal ligado às matas; caçadores. Saudação: Okebambo.
Obá: tem em seu culto muitos fundamentos secretos. Sua feitura é complexa sendo poucos os sacer-
dotes que a conhecem a fundo. Dona do movimento e da cura, seu símbolo é a roda. Saudação: Exó.
Ossanha: também referido como Ossae ou Ossanhe, é o médico entre os orixás. É o dono das folhas,
das plantas medicinais, sem as quais não haveria nenhum ritual. Saudação: Êu êu.
Xapanã: conhecido também como o orixá da varíola, rege as doenças (principalmente as pestes e
doenças de pele) e está ligado diretamente à saúde. Pode tanto espalhar as doenças como curá-las. Com sua
vassoura varre os males em geral, particularmente as doenças. Saudação: Ábao.
Oxum: dona das águas doces, da riqueza e do ouro, sendo assim considerada a regente da prosperida-
de. Associada à vaidade, à beleza e ao amor. Rege a fecundidade feminina, protegendo as gestações. Mulheres
grávidas ou que querem engravidar recorrem sempre a Oxum. Saudação: Iê-Iê-o.
Iemanjá: divindade das águas salgadas, é considerada a orixá do pensamento, dos oceanos, protetora
dos lares, da família e de todos que dependem do mar (marinheiros, pescadores). A grande Mãe de todos os
orixás. Saudação: Omiodo.
Oxalá: pai de todos os Orixás, rege a harmonia, o equilíbrio, a serenidade e a sabedoria. No Rio
Grande do Sul é também o Orixá do Ifá, ou seja, dono do oráculo e adivinhação pelo jogo dos búzios. É o mais
velho dos orixás. Saudação: Epaô-babá
11
4 - As sementes do Batuque: religiosidades africanas no Rio Grande do Sul
Ao andar por entre as ruas, becos e encruzilhadas de alguns dos antigos territórios negros de diversas
cidades do Brasil, é possível perceber claramente a forte presença da religiosidade de matriz africana. Em
Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas não é diferente. Estas cidades são referidas na memória de muitos afro
religiosos antigos como sendo os berços do Batuque de Nação no estado, já que a região concentrou grandes
quantidades de africanos e afrodescendentes e estava articulada com o único porto marítimo do estado, pelo
qual adentrava a maior parte destes trabalhadores.
As sementes do Batuque (culto aos orixás africanos) podem ser encontradas ao longo do século XIX
nestas cidades. Não apenas em uma ou em outra. Todas foram berços simultâneos do culto aos orixás no es-
tado. Foram importantes centros econômicos, cidades negras que rec eberam grandes levas de africanos de
diversas origens, inicialmente mais bantos (congos, cabindas, benguelas, cassanges, moçambiques), depois
com a maior entrada dos iorubanos (minas, jejes, nagôs, haussás etc). É justamente da tradição cultural destes
últimos, originários da África Ocidental, que emerge o culto aos orixás no Rio Grande do Sul1
.
POPULAÇÃO AFRICANA EM RIO GRAN-
DE E PELOTAS
A proporção de africanos entre a população de Rio
Grande e Pelotas variou ao longo do século XIX. Em Rio
Grande, até 1830, a cada cinco africanos pelo menos quatro
eram originários da África Central Atlântica, ou de Congo
e Angola. Ou seja, mais de 80% dos africanos eram bantos.
Nessa época, os africanos ocidentais, Minas e Nagôs, eram
apenas cerca de 10%.
Ao longo do século, no entanto, a proporção de pes-
soas trazidas da África Ocidental foi aumentando gradati-
vamente sua participação no total de africanos nesta cidade
portuária.. Entre 1831 e 1850 eles correspondiam a cerca de
20 % dos africanos, e entre 1850 e 1865 já chegavam a 40%.
Ocorreu um processo semelhante em Pelotas. As
pessoas provenientes da África Central Atlântica predomi-
navam entre 1830 e 1850, enquanto os africanos ocidentais
representavam cerca de 30% dos escravizados. Entre 1850
e 1888 os ocidentais tornam-se a maioria entre os africanos
escravizados, chegando a cerca de 50% da população afri-
cana.
Os africanos ocidentais viriam a ser, contudo, real-
mente atuantes no mercado da liberdade. Alcançando níveis
de alforria de quase o dobro da sua proporção entre escravi-
zados tanto em Pelotas como em Rio Grande (Scherer, 2008;
Pinto, 2012; Pinto, 2018).
Importante é reafirmar que o Batuque não descende
do Candomblé bahiano, nem do Xangô de Pernambuco. Ain-
da que a memória batuqueira refira a possíveis relações des-
tas religiões irmãs com o Batuque, mediante alguns persona-
gens de lá migrados em algum momento, todas estas práticas
de relação com o sagrado foram frutos da diáspora africana
nas américas. Cada uma representa um arranjo possível do
que chamamos, genericamente, de religiões de matriz afri-
cana ou religiões afro-diaspóricas, presentes inclusive em
outros países, como a Santeria cubana ou o Vodu haitiano.
Foi a partir das sementes plantadas ao longo de dé-
cadas de vivências negras que veio a ocorrer, no início do
século XX, o que se pode chamar de institucionalização do
Batuque no Rio Grande do Sul: o estabelecimento de um mo-
delo organizado a partir das "casas de nação", com rituais
e lideranças publicamente reconhecidas - mesmo que, por
vezes, perseguidas. Um momento de organização de uma
certa forma de vivenciar o culto aos orixás vigente até os
dias de hoje. Processo esse acompanhado, obviamente, por
mudanças, transformações e reconfigurações, uma vez que
nenhuma cultura é estática e sofre variações para que possa
continuar existindo em diferentes contextos.
Para compreender como essa tradição se construiu
historicamente, é fundamental buscar se aproximar do ponto
de vista daqueles que a viveram. Para tal, tentar reconstituir
os territórios negros onde as sementes do Batuque germina-
ram é um recurso para tentarmos ouvir hoje as vozes de ba-
tuqueiras e batuqueiros de antigamente.
12
Convidamos o leitor a percorrer alguns dos territórios negros nos quais as sementes do Batuque ger-
minaram ao longo do século XIX e XX, com destaque para as cidades de Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre.
4.1 - Os batuques nos territórios negros de Rio Grande e Pelotas
O porto de Rio Grande e as charqueadas pelotenses são dois espaços emblemáticos para os
adeptos das religiões de matriz africana. Por lá adentraram milhares de trabalhadoras e trabalhadores africa-
nos e afro-brasileiros que foram responsáveis não apenas por carregar o Brasil nas costas, mas também, por
contribuírem com a riqueza da cultura brasileira, da qual o culto aos orixás faz parte.
Pelotas e os batuques na Várzea
As mais antigas referências associadas ao batuque em Pelotas são as memórias de dois viajantes es-
trangeiros: a primeira é a descrição de um casamento de negros efetuada por Carl Seidler em 1827, às margens
do Canal São Gonçalo, onde foi utilizado um instrumento percussivo aos moldes do atualmente conhecido
tambor de sopapo (Seidler, 2003, p. 316-317)2
.
Segundo Nei Lopes: “A Diáspora africana com-
preende dois momentos principais. O primeiro, gerado
pelo comércio escravo, ocasionou a dispersão de povos
africanos tanto pelo Atlântico quanto pelo oceano Índi-
co e mar Vermelho, caracterizando um verdadeiro ge-
nocídio, a partir do século XV - quando talvez mais de
10 milhões de indivíduos foram levados, por traficantes
europeus, principalmente para as Américas. O segundo
momento ocorre a partir do século XX, com a emigra-
ção, sobretudo para a Europa, em direção às antigas
metrópoles coloniais. O termo “diáspora” serve também
para designar, por extensão de sentido, os descendentes
de africanos nas Américas e na Europa e o rico patrimô-
nio cultural que construíram.” (Lopes, 2004)
SOPAPO
O tambor de sopapo é considerado um instrumento
afro-gaúcho. Foi largamente utilizado no carnaval antigo
destas cidades e teve seu uso resgatado a partir dos anos
2000. Em agosto de 2021, foi reconhecido como Patrimô-
nio Imaterial da cidade de Pelotas (Lei n. 9615/21). Nas
palavras do músico e estudioso Marco Maia, o sopapo é:
"[...] um gênero de tambor de grandes dimensões
conhecido hoje nas cidades de Rio Grande, Pelotas e Porto
Alegre, é cercado por incertezas quanto às suas origens e
circulação. Produto da reconstrução diaspórica, atribuído
aos escravos trabalhadores nas Charqueadas em Pelotas e
Rio Grande, no século XIX, o instrumento foi amplamente
usado a partir da década de 1940 em escolas de samba nes-
tas cidades, conferindo particularidades ao samba executa-
do pelas baterias destas escolas". (Maia, 2008, p. 13-14)
Fonte: Wendroth (1982)
Fonte: Junior (2013)
Mestre Baptista com tambores de sopapo - Pelotas
13
Uma segunda referência aparece nos relatos do francês Nicolau Dreys sobre sua viagem ao Brasil
(1818-1827). Ao retratar o trabalho das charqueadas, referiu não ser raro ver os escravizados "consagrar a
seus batuques as horas de repouso que decorrem desde o fim do dia até o instante da noite em que a voz do
capataz se faz ouvir" (Dreys, 1839, p. 204)3
.
Mercado Público Municipal de Pelotas - sem data.
Fonte: Rubira (2012)
Mercado Público Municipal de Pelotas. Pátio interno, em dia de comércio - data não informada
Fonte: Rubira (2012)
14
CHARQUEADA
As primeiras charqueadas rio-grandenses surgiram em fins do séc. XVIII. Eram estabelecimentos de pro-
dução de carne seca salgada e de outros subprodutos de origem bovina como couros secos, sebo, graxa, cascos,
chifres e crinas. Esta carne seca, ou charque, tornou-se o alimento básico da escravaria em amplas regiões da
América. A escravidão era a mão de obra básica destes estabelecimentos, podendo empregar por vezes cerca
de 150 escravizados. A região de Pelotas concentrou a maior parte das charqueadas rio-grandenses, as quais
geralmente se situavam nas margens dos arroios, rios e lagoas, tanto por necessitarem das águas como local de
despejo de grande quantidade de sangue dos animais abatidos, como também pela facilidade do transporte náu-
tico do produto desta manufatura para o porto de Rio Grande e a partir daí para diversas localidades atlânticas.
Aquarela de uma Charqueada de Pelotas – Aquarela de J.B. Debret (1829)
A região da Várzea, juntamente com as margens do Arroio Pelotas, do Arroio Santa Bárbara e do
Canal São Gonçalo, foi ao longo dos séculos XIX e XX área destacada de moradia, trabalho e religiosidade
popular e afro brasileira na cidade de Pelotas (Moreira e Al- Alam, 2013, p. 135-136). O documento abaixo
noticia uma batida policial em uma casa onde se realizava um culto de matriz africana, localizada na região da
Várzea, vizinha do espaço portuário e que compreende os atuais bairros do Porto, Baixada, Fátima, Navegan-
tes e Balsa. É uma área até os dias de hoje marcada por um grande número de casas de religiosidade de matriz
africana. No dia 22/03/1885 o jornal Diário de Pelotas estampava a seguinte notícia:
"Prisão de Feiticeiros - A polícia particular efetuou anteontem, às 10 horas da noite, na
várzea, a prisão de uma tribo de feiticeiros, ou antes, de larápios industriosos; porque os feiticeiros
desapareceram na mesma ocasião em que se ocultaram para sempre os astrólogos.
Agora só há feiticeiras, e estas a polícia só cumpre-lhe tratá-las gentilmente.
O comandante da polícia particular que pensa do mesmo modo, e sabe distinguir as cousas,
conhece bem a diferença que existe entre feiticeiros e feiticeiras.
Por isso mesmo, anteontem ás 10 horas penetrou na casa de um feiticeiro e surpreendeu-o
no momento em que, precedido de sua corte, trajava vestimenta imperial, semelhante a um imperador
de comédia.
Pois assim mesmo trajado, o Sr. Comandante da polícia particular o fez seguir para o xadrez.
E não houve apelação nem agravo, imperador e Corte lá foram a caminho da prisão.
Bravo! A polícia virou a republicana.
Guerra de morte aos imperadores… feiticeiros.
- Dizem-nos que este imperador já foi preso no Rio Grande, pelo subdelegado de polícia,
Sr. Tigre Junior.
É um desgraçado o tal imperador." 4
'
15
Interessante chamar a atenção para o fato da liderança religiosa, tratada negativamente como "feiti-
ceiro", estar usando uma "vestimenta imperial". Seria um axó ("roupa" no idioma iorubá, usado como veste
ritualística nas cerimônias do Batuque)?
Trabalhadores negros no RS - 1852 - Aquarelas de Wendroth
Fonte: Wendroth (1982)
Arredores da cidade de Pelotas - 1852
Fonte: Wendroth (1982)
Mas o documento possibilita também pensar a tônica do que foi a postura recorrente da imprensa,
do estado brasileiro e da sociedade branca para com a cultura afro religiosa: o preconceito, a condenação e a
ironia. Ao denominar as práticas afro religiosas como feitiçaria, magia e curandeirismo, a cultura dominante
brasileira demonstrou a sua incompreensão e a sua intolerância para com as práticas sagradas oriundas do
continente africano. Passado ou presente?
16
Elvira: uma liderança afro religiosa na Várzea
Talvez a mais célebre afro religiosa que as fontes históricas tenham permitido conhecer para o sécu-
lo XIX em Pelotas tenha sido Elvira. Em diversos momentos, a "preta Elvira" - como é tratada nas fontes -,
aparece sendo reprimida em suas práticas, o que sugere que fosse uma importante liderança. No dia doze de
junho de 1878, por exemplo, agentes da Polícia invadiram o local onde Elvira comandava um ritual, situado na
Várzea, e apreenderam "diversos objetos de que se serviam". A maior parte dos presentes, porém, conseguiu
fugir, sendo preso apenas um único "devoto" do "manipanso" (Monquelat, 2014, p. 57-58).
No dia sete de julho de 1879, o jornal Correio Mercan-
til relatou que, em pleno dia, Elvira fora "apanhada" novamente
pelos lados da Várzea em flagrante delito por "feitiçaria". E cerca
de um ano depois Elvira volta a ser notícia, quando na noite de
25/07/1880 a polícia deu uma batida na casa desta "muito conhe-
cida feiticeira", na rua 24 de Outubro (atual Tiradentes). Nela es-
tavam presentes 14 pessoas que dançavam "ao som de berimbau e
uma gaita" (Monquelat, 2014, p. 90-91).
Apesar de ter sido detida diversas vezes, Elvira perma-
necia a praticar sua fé e a agregar pessoas escravizadas, livres e
forras, demonstrando a força e a importância desta cultura para a
comunidade negra da cidade. A polícia, porém, não compreendia o
ocorrido desta forma: todos materiais ritualísticos encontrados em
uma dessas batidas foram queimados numa fogueira no pátio do
quartel. Quantas 'Elviras' Pelotas conheceu e reprimiu?
Uma trabalhadora negra - RS (1852)
Fonte: Wendroth (1982)
O Arroio Santa Bárbara, a Praça Cipriano Barcelos e os ritos fúnebres afro brasileiros
A Praça Cipriano Barcelos é conhecida pela memória popular como a Praça dos Enforcados. Embora
não tenha sido o único local no qual ocorreram enforcamentos de escravizados condenados pela justiça, este
local acabou ecoando a lembrança destes tristes momentos5
.
No centro dessa praça, exatamente onde hoje está localizado o prédio do Pop Center (inaugurado
em 2012), antigamente corria o leito do Arroio Santa Bárbara. Tanto essa área, como a Várzea e o Porto, ti-
nham em comum serem áreas propensas a alagamentos, espaços de moradia e de intensas vivências populares
e negras. Locais onde desde o século XIX ocorriam batuques, nos quais escravizados fugidos por vezes se
escondiam em moradas de "pessoas de cor" e onde a população trabalhadora confraternizava em botequins e
cortiços, bebendo e dançando, para o desgosto da elite branca.
17
Mapa de Pelotas, século XIX
Fonte: Arquivo Nacional, Fundo Ministério da Guerra
(escritas em vermelho foram acrescidas)
18
Praça 20 de Setembro, ângulo em direção ao Centro (em primeiro plano, a antiga Praça das Carretas)
Fonte: Rubira (2012)
Antigo leito do Canal de Santa Bárbara. Ao fundo, o complexo da Cervejaria Ritter. Postal
Fonte: Rubira (2012)
19
O Santa Bárbara era ainda local de trabalho de lavadeiras negras escravizadas ou libertas, de forma
que a rua Prof. Araújo, contígua a atual Praça Cipriano Barcelos, era conhecida à época como Rua das Lava-
deiras (Maciel, 2017). Até a década de 1960 este curso d'água cruzava a Praça, quando teve seu leito desviado
para fora da área urbana mediante uma obra de grande impacto (Peter, 2004).
Lavadeiras nas margens do Arroio Santa Bárbara
Fonte: Rubira (2012)
Um relato publicado originalmente em 1922 revela o uso dos entornos da atual Praça Cipriano
Barcelos para práticas de rituais fúnebres da comunidade negra pelotense na primeira metade do século XX,
quando as águas do Arroio Santa Bárbara ainda seguiam seu fluxo original:
"Batuques –
Desde épocas muito remotas, a população africana aqui, então representada por al-
guns milhares de pretos, hoje aliás raríssimos, todos os domingos e dias santos do meio-dia à
noite, exibia-se publicamente em danças e cantigas usadas entre os gentios. O ponto dessa reu-
nião era sempre à grande sombra de cinco de nossas frondosas figueiras, dispostas em amplo
círculo que indicava o traço de um antiqüíssimo curral, oferecendo, por essa amplitude, franca
área e todas as condições para a diversão. Essa localidade é além do Arroio Santa Bárbara, à
esquerda da ponte da Rua Riachuelo, entre a Manduca Rodrigues e o referido arroio. À hora
acima indicada, do centro da cidade partia o grande grupo de africanos, cantando em altas vo-
zes, ao som de rudes tambores, chocalhos, guizos e de estranhos instrumentos feitos de grandes
porongos, revestidos de elevado número de contas, búzios, pequenos caramujos e miçangas. O
vestuário era esquisitíssimo, constituído de tangas, turbantes, capacetes, mantos, tudo das mais
vivas e variadas cores. À frente, vestida no mesmo estilo, seguia o Rei, por todos acompanhado
até o lugar do batuque como eles denominavam. Todo esse cerimonial era também executado
nos velórios, assim como nos enterros até o defunto baixar à sepultura". (Osório, 1962, p. 154)
20
Interessante pensar que a Santa Bárbara poderia ser associada à orixá Iansã, a qual, por sua vez, re-
laciona-se aos ritos que envolvem os eguns - os espíritos dos mortos, sejam ancestrais religiosos ou não. Não
podemos descartar, em nível de suposição, que esta relação tenha potencializado o significado deste espaço
para a realização dos rituais funerários aos moldes africanos na cidade de Pelotas6
.
4.2 - Os territórios negros de Rio Grande e seus batuques
Na vizinha cidade portuária de Rio Grande, as práticas afro religiosas eram "denunciadas" desde mui-
to tempo pela imprensa e pela polícia. O Jornal Gazeta Mercantil do dia 03/04/1877, por exemplo, noticiou a
realização de "sessões" de magia levadas a cabo por uma preta "especialista nos milagres do amor":
"Ali há fumigações, trípodes, catentanhas e bugigangas [...]. Grandes desordens podem lavrar no
seio das famílias incautas e desprevenidas, se algum de seus membros, levados pela ignorância ou fanatis-
mo, se deixarem possuir das sentenças de tal bruxa [...]
Às autoridades policiais recomendamos a inspirada preta, para que façam cessar tão torpe espe-
culação"7
.
A condenação era a tônica da abordagem jornalística da época. Outro episódio que ilustra a presença
de práticas sagradas africanas em Rio Grande ocorreu em agosto de 1877, quando o escravizado Joaquim, de
apelido Camundongo, é preso após ficar três meses fugido e ser encontrado com objetos "próprios da profissão
de feiticeiro que exercia o tal pretinho". Juntamente com ele, foi detido o preto Manoel Monteiro, residente na
rua Uruguaiana e acusado de acoutar neste local "o grande Manipanso" (Mello, 1994, p. 33).
Mas onde residia a população negra da cidade no século XIX e início do seguinte? Os documentos
históricos mostram que, por entre a próspera cidade portuária, com seus belos sobrados, armazéns e casas
comerciais, havia uma Rio Grande popular, constituída de pequenas moradas, muitas delas feitas de barro e
cobertas de palha (Molet, 2007). Estas moradias ficavam nas proximidades do centro e eram denominadas
como "casebres" ou "cortiços", sendo frequentemente ocupadas por diversos moradores.
O Porto de Rio Grande - 1852 Aquarela de H. Wendroth.
Fonte: Wendroth (1982)
21
Balbina Maria da Conceição talvez tenha sido uma entre tantas outras afro religiosas da cidade. Ao
falecer, em 1859, teve listado entre seus bens, um "tambor de negros de nação". Balbina deixou para seus her-
deiros cinco lances de meias águas cobertas de telhas, sendo uma delas com paredes de tijolos e as demais de
pau-a-pique, localizadas na Rua da Alfândega (atual rua Andradas), tendo como vizinha a preta forra Isabel.
(Scherer, 2008, p. 173-174). Ainda que não se saiba se este tambor fosse usado em práticas afro religiosas, a
observação de que o mesmo era "de nação" evidencia sua origem africana.
Na zona portuária de Rio Grande havia diversos territórios nos quais cotidianamente circulavam
saberes e práticas afro religiosas, como o Mercado Público, as praias e atracadouros ao seu redor (onde atual-
mente se encontra o Porto Velho e as Docas do Mercado) e a Praça da Geribanda (atual Praça Tamandaré),
local onde as lavadeiras escravizadas e libertas faziam uso das águas dos poços e das lagoas que se formavam
com as chuvas, bem como onde escravos e libertos abasteciam os barris de seus senhores8
.
Negros no Porto de Rio Grande, 1852
Fonte: Wendroth (1982)
Mapa do núcleo urbano de Rio Grande – meados do século XIX
Fonte: AHRS, Fundo Iconografia, Municípios RS, nº 494, Rio Grande.
22
GERIBANDA
O viajante Saint-Hilaire, quando da sua
passagem por Rio Grande em 1820, registrou a se-
guinte observação sobre a Praça da Geribanda:
“Ficou, dito, já, não haver aqui
nenhum manancial de água doce, mas atrás
da cidade, entre montículos de areia (em
lugar denominado Geribanda) foram fei-
tos poços onde a pequena profundidade se
encontra muito boa água. Os negros vão
buscá-la em barris, apanhando-a por meio
de chifres de bois amarrados à ponta de va-
ras compridas, instrumento esse a que dão
o nome de guampa.” (Saint-Hilaire, 1939,
p. 122).
O primeiro registro conhecido, até o mo-
mento, sobre a prática da capoeira no estado do Rio
Grande do Sul ocorreu justamente na Geribanda, no
ano de 1850, envolvendo o pardo uruguaio Alexandre
de Souza, filho de pais libertos, e Bernardo, escravi-
zado de Manoel José Correa de Sá (Oliveira, 2013, p.
162).
Fonte: obtida com a Fototeca do Centro
Municipal de Cultura de Rio Grande.
Poços da Praça da Geribanda em 1865.
Existia ainda o Largo de São Pedro, conhecido popu-
larmente como o Largo das Quitandeiras, onde mulheres negras,
em grande parte africanas, realizavam seu ofício (atualmente
é a Praça Júlio de Castilhos, na esquina das ruas Luiz Lorea e
Andradas)9
. Agachadas por sobre seus calcanhares e em frente
a panelas, fogueiras, cestos e tabuleiros, as quitandeiras prepara-
vam alimentos que eram vendidos aos trabalhadores da cidade. É
possível que as quitandas fossem também palco para a comercia-
lização de produtos de poder curativo e sobrenatural, tais como
ervas e amuletos chegados da África mediante encomendas fei-
tas junto a marinheiros inseridos nas rotas oceânicas10
.
Com o crescimento espacial da cidade a partir do início
do século XX, o bairro Getúlio Vargas, antiga Vila dos Cedros,
se tornou uma referência importante para a religiosidade de ma-
triz africana, por abrigar a população trabalhadora e algumas das
mais antigas casas de Batuque e de Umbanda11
.
A comunidade de africanos minas e a religiosidade afrodescendente
É possível que uma igreja católica ajude a contar a história do Batuque? No caso de Rio Grande, sim.
Até meados do século XX viveram na cidade três mulheres, que talvez fossem irmãs de sangue ou de santo,
conhecidas como as "minas do Bom Fim", pois residiam aos fundo da Igreja do Bom Fim (localizada na rua
Duque de Caxias). Seus nomes eram Damiana, Domingas e Gertrudes12
.
Mercado Público de Rio Grande - 1909
Autoria: Atelier Fontana. Disponível em: http://acervo.bndigital.
bn.br/sophia/index.html
23
O termo "mina" é uma referência à sua ancestralidade africana e no Brasil escravista era utilizado
para se referir a todos africanos escravizados originários da região da Costa da Mina, na África Ocidental,
onde se localizava o Castelo/Forte de São Jorge da Mina. Corresponde à região litorânea dos atuais Togo,
Gana, Nigéria e Benin, e englobava uma diversidade de etnias como os nagô, os mina, os axanti, os haussás,
os malês, os jeje, entre outros.
A Ialorixá Alzenda de Iansã, cerca de 75 anos de vida religiosa (a mais antiga mãe-de-santo viva da
Nação Nagô em Rio Grande), compartilhou suas lembranças sobre estas mulheres, traduzidas aqui nas pala-
vras de uma pesquisadora:
"As negras minas que eram do Nagô dançavam vestidas de baiana na frente da igreja do Bonfim,
na rua Duque de Caxias, e faziam romaria até a igreja da Nossa Senhora da Conceição13
, na rua Francisco
Marques, ou vice e versa. [...]
Ao falar das negras vestidas de baiana que lembram os tempos de menina, Ialorixá Alzenda
destaca a Tia Damiana de Oxum, tão delicada, trazendo sempre um balaio de vime com flores e balas que
distribuía às crianças, ao chegar ao terreiro de Mãe Margarida de Iansã." (Camargo, 2013, p. 111-112)
Já na Pelotas de 1882, em pleno carnaval, adentra no centro da cidade um grupo de cerca de vinte
africanos de origem mina "capitaneados por um personagem eminente, a julgar pelos vistosos trajes e pela
gravidade do porte", como informado pelas páginas do jornal Correio Mercantil. Tal personagem era Pai Cri-
cipim, representando o Rei Obá. Tratava-se do Club Carnavalesco Nagô.14
Dias depois, o escrivão do Club,
Pai João de Nagô, publicou no mesmo jornal o seguinte texto:
"Club C. Nagô
Esse mêmo que tá hi!!!
Cecuta lá, regara oio!!!
Pareceros!... nosso Cricipim tendo recebido oride por esse fio passa pró má, e pró esse matto turo,
e que trásse notícia prá turo fazé representa pela primeira vez a nossa tribu de Nagô, pró esse mêmo, nosso
turo juntou e vai fazé nosso passeo n'esse mêmo dia de cranabá, nosso turo pracero vae fazé ajuntamento
na casa de tia Benedita prá depois come Angú Broinha e vatapá nosso vae pro essa rua turo tocando nósso
trumento e faze viva!... a esse club de branco, e club Brocionista; e quando esse sino da igreja bate deso
hora nosso entra no barracão de Praça.
Nosso vai sahi às seis hora i pede a esse branco turo bote benção a nossa tribu.
					
Quitandeiras negras - RS (1852)
Fonte: Wendroth (1982)
O crivão
Pae João de Nagô
Pelotas, 19 de fevereiro de 1882"15
24
No ano seguinte, o Club Nagô se apresentou com um carro "representando a aurora da liberdade"
e a redenção do escravo, deixando claro o seu posicionamento frente a questão abolicionista e sua crítica ao
sistema escravista. (Mello, 1994, p. 67) Em Rio Grande existiu também um Club Mina que se apresentou no
carnaval de 1881 "com alegorias à escravidão e à liberdade, fazendo um batuque, dançando e cantando um
tango" e igualmente denunciando as relações escravistas16
.
Organizados de forma coletiva, unidos ao redor de uma identidade negra e africana, essas mulheres
e homens encontraram formas alegres e criativas de lutar contra o racismo e à segregação17
.
Um vulto afro religioso no altar da Igreja Matriz
de São Pedro
No ano de 1940, durante as atividades do SPHAN
(Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) visando o
tombamento da Igreja de São Pedro como patrimônio arquitetô-
nico e histórico, os especialistas encontraram um objeto inusita-
do. Tratava-se de uma estatueta enterrada sob a pedra do altar da
Virgem. Chamadas de "vultos" pelos batuqueiros, possivelmente
se tratava de um assentamento (objeto consagrado como repre-
sentação dos orixás) efetuado por algum afro religioso quando
da construção ou reforma do altar. Infelizmente não foi possível
localizar o objeto. (Herskovitz, 1948).
Alguns personagens
A história da resistência e da religiosidade
negra no Brasil é feita de muitos personagens. Na
impossibilidade de falar de um leque maior de nomes,
referimos uma breve trajetória de duas pessoas que
são referência à memória do Batuque e da Umbanda
no eixo sul do estado.
Uma princesa negra (e batuqueira) em Rio Gran-
de, Pelotas e Porto Alegre
Emília Fontes de Araújo, conhecida no meio
batuqueiro como Princesa Emília de Oiá Ladjá, viveu
entre os africanos na cidade de Rio Grande em data
imprecisa (fins do século XIX, início do seguinte). A
memória afro religiosa informa que teria sido criada pelo casal de "negros minos" Ozébio e Bibica e realizado
sua feitura religiosa na nação Nagô; posteriormente viveu em Pelotas, onde aprontou ao menos uma filha de
santo (Margarida de Oiá, que depois seguiu para Rio Grande, onde se estabeleceu com sua casa de nação)18
.
Seguiu para Porto Alegre, se estabelecendo na região do Areal da Baronesa, possivelmente na segunda metade
da década de 1910 ou princípios da década seguinte, onde deu origem à sua bacia religiosa na capital e passou
a ser identificada como pertencente à nação Oyó19
.
Otacílio Marques Charão e a Umbanda no RS
A primeira casa de umbanda registrada no estado foi criada em
Rio Grande em 1926 por Otacílio Marques Charão e denominada Centro
Espiritualista Reino de São Jorge (CERSJ). Esta casa está ativa até a
atualidade na Cidade Nova. Charão nasceu em Santa Maria e foi oficial
da marinha mercante. Viveu no Rio de Janeiro e no continente africano,
locais em que teria realizado a sua preparação religiosa antes de se es-
tabelecer em Rio Grande (Pereira, 2016)20
. Já em 1932 era fundado em
Porto Alegre o "Abrigo Espírita Francisco de Assis", sob liderança de
Laudelino Manuel de Souza Gomes, tenente da Marinha de Guerra (ver
capítulo sobre o Areal da Baronesa). Estes teriam sido os dois primeiros
pólos difusores da Umbanda no estado.
25
O Primeiro Congá de Otacílio Charão
Fonte: Pereira (2016, p. 165)
4.3 - As religiosidades negras na Porto Alegre do século XIX
Segundo a tradição oral, as raízes das principais nações atualmente cultuadas no Batuque do Rio
Grande do Sul se estabeleceram no final do século XIX e início do século XX21
. Durante esses anos viveram
as lideranças que são rememoradas como os baluartes das atuais nações Jeje, Nagô, Ijexá, Oyó e Cabinda. É
este período que podemos apontar como o da institucionalização do Batuque como conhecemos hoje. É nele
que vemos o marco inicial de suas árvores genealógicas.
Antes desse período, entretanto, as tradições africanas de relação com o sagrado já se faziam presen-
tes. Talvez ainda não na forma como vemos hoje o Batuque, mas, sim, como suas práticas antecessoras, as
sementes dessa expressão religiosa nas cidades de Pelotas, Porto Alegre e Rio Grande.
O solo brasileiro vivenciou reconfigurações de tradições trazidas do outro lado do Atlântico, com
continuidades, inovações e também rupturas. Tudo relacionado ao trauma de enfrentar a travessia do oceano,
a experiência do cativeiro e a busca por liberdade em terras americanas. Foi nesse contexto em que as práticas
e conhecimentos tradicionais trazidos da África propiciaram cura, alívio, amparo e solidariedade, na busca por
uma vida melhor, tanto quanto fosse possível. Caminhar pelos territórios negros de Porto Alegre dos séculos
XIX e XX é uma das formas de se aproximar desta cultura.
Porto Alegre e o Candombe da Mãe Rita
Um dos relatos mais antigos associado a tradições africanas em Porto Alegre é a descrição de Antônio
Alvares Coruja sobre o Candombe da mãe Rita, na região que atualmente está o Parque da Redenção e que
antigamente se conhecia como Várzea:
26
"Aí se reuniam, nos domingos à tarde, pretos de diversas nações, que com seus tambores, canzás,
urucungos e marimbas, cantavam e dançavam esquecendo as mágoas da escravidão, sem que causassem
maiores cuidados à polícia [...]
Nesse candombe também se ensaiavam os cucumbis que pelo Natal e nas festas da Senhora do
Rosário, levando à frente o Rei e a Rainha vestidos a caráter, com a juíza do ramalhete e a competente
aristocracia negra, iam dançar ou antes sapatear no corpo da Igreja com guizos nos tornozelos” (Coruja,
1881, p.15).
Este relato refere-se ao período anterior a 1836. O autor destaca a liderança de Mãe Rita frente a este
candombe, personagem importante para a compreensão do desenvolvimento da religiosidade de matriz afri-
cana. Para alguns estudiosos, Mãe Rita é apontada como a líder do primeiro “templo” de candomblé/batuque
em Porto Alegre, embora a escassez de fontes históricas torne difícil definir este pioneirismo (Mello, 1994;
Corrêa, 2005).
É possível que o candombe de Mãe Rita não fosse, necessariamente, uma manifestação religiosa da
tradição dos orixás, como se tornaria, posteriormente, o Batuque. Provavelmente fosse uma manifestação liga-
da a congadas ou cucumbis, uma tradição de grupos de cultura banto relacionada com as irmandades católicas
A região da Várzea (atualmente bairro Bom
Fim) era um espaço cotidiano das vivências negras e
populares de Porto Alegre da época, morada de libertos
e ponto de encontro em seus momentos de diversão
e religiosidade. Juntamente com a região do Areal da
Baronesa e dos atuais bairros Cidade Baixa, Santana,
Menino Deus e Praia de Belas, viriam a formar um
"cinturão negro" ao redor do antigo centro colonial.
Essas tradições africanas eram sobrepostas
ao catolicismo desde antes do surgimento da própria
cidade de Porto Alegre, pois remontavam ao desenvol-
vimento de um catolicismo centro-ocidental no próprio
continente africano. Na América, em um contexto do-
minado pelo colonizador cristão, a comunidade afro-
descendente e africana incorporou os seus sentidos à
cultura dominante europeia, traduzindo-a nos “seus
próprios termos, atribuindo aos santos significados
inacessíveis àqueles que não partilhavam seus códigos
culturais.” (Mello e Souza, 2002 p.146)
A luta pela manutenção dessas manifestações
africanas em solo porto alegrense, seria um, se não o
principal, dos motivos apontados para a construção da
Igreja do Rosário pela irmandade de mesmo nome.
DUAS MÃES RITAS?
Neste retrato, efetuado pelo menos sessenta anos depois
da referência de Coruja, entre 1893 e 1930 (Maciel, 2019, p.27),
vê-se uma mulher de origem africana com indumentárias afro-re-
ligiosas, aparentemente mais jovem do que seria a Mãe Rita citada
por Coruja, supostamente com cerca de cem anos de idade, na época
desta foto. Em razão da distância entre os registros é possível ques-
tionar se seria a mesma pessoa, ou se haveria outra Mãe Rita no final
do século XIX.Certamente havia um candombe na década de 1830
liderado por uma Mãe Rita. Teria havido outra liderança afro-reli-
giosa chamada Mãe Rita em Porto Alegre?
Foto de Mãe Rita - Autoria de V. Calegari
Fonte: Museu de Porto Alegre
Joaquim Felizardo
27
Campos da Redenção - década de 1900
Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.
Obtido em: Vieira (2017)
Fonte: Instituto Histórico e Geográfico do RS
Planta de Porto Alegre - 1833 (a Várzea encontra-se sinalizada por "P)
28
CONGADA
Congada: "Folguedo e ritual
da tradição afro-brasileira disseminado
por várias regiões brasileiras e ligado
aos festejos coloniais de coroação dos
'reis do Congo', mas acolhendo, no seu
entrecho, elementos de origem europeia.
Também conhecido pelos nomes de 'con-
gado', 'congos', 'bailes de congo' etc., seu
motivo básico é a evocação de lutas en-
tre grupos hostis pela dramatização de
embaixadas de guerra e paz. Entretanto,
em alguns locais o folguedo apresenta
apenas danças e cantorias, ao som de
instrumentos de percussão. O toque ritu-
alístico é dado pelo compromisso da ho-
menagem a santos católicos como Nossa
Senhora do Rosário, São Benedito, San-
ta Ifigênia, Nossa Senhora Aparecida e o
Divino Espírito Santo. As variações em
sua estrutura e apresentação decorrem
muitas vezes da concepção de quem o
organiza." (Lopes, 2004)
OS AFRICANOS BANTOS E IORUBÁS E SUAS ORIGENS
Até aproximadamente a década de 1830 havia muito mais africanos de
origem banto (angolas, congos, benguelas, cassanges) do que de origem iorubá
(mina, nagô) em Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas. Foi a partir desta década
que ocorreu um aumento significativo dos africanos deste último grupo, originá-
rios da África Ocidental (sudaneses), a chamada Costa do Ouro, onde se loca-
lizava a Fortaleza São Jorge da Mina. É a partir de referências culturais desta
última região que vai emergir o culto aos orixás no Rio Grande do Sul.
Mapa das rotas do tráfico, com indicação das regiões de procedência na
África
Fonte: Cotrim (2016)
A Irmandade do Rosário de Porto Alegre
Até 1809 a população negra realizava, com relativa condescendência senhorial, "danças de negros"
na frente e no interior da Igreja Matriz de Porto Alegre. Até que o Vigário José Inácio dos Santos as proibiu,
como resultado do desejo católico de controlar as manifestações culturais africanas autônomas (Coruja, 1881).
Igreja Matriz Madre de Deus e Capela do Divino Espírito Santo, 1890. Porto Alegre (RS).
Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.
29
Apesar das proibições do Vigário, os africanos continuaram manifestando sua devoção, não mais na
frente da Igreja Matriz, mas nos candombes como o de Mãe Rita, ou mediante a construção do seu próprio
templo cristão: a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, ironicamente situada na atual Rua Vigário José Inácio
(Machado, 1990; Müller 1999; Nascimento, 2006). Os próprios membros dos candombes aparecem nos regis-
tros históricos contribuindo com doações para a edificação da Igreja do Rosário de Porto Alegre, erguida entre
1809 e 1827 (Andreis, 2015)22
.
Coleta de contribuições para a Igreja do Rosário, Porto Alegre.
Aquarela de Jean-Baptiste Debret, de 1828.
Antiga Igreja do Rosário - Porto Alegre - de-
molida em 195123
Interessante nesse sentido é perceber que as ir-
mandades católicas constituíam o campo institucional per-
mitido para os africanos e afro-brasileiros exercerem sua
religiosidade. Fora desse espaço havia manifestações, as-
sim no plural, que eram condenadas quando não comba-
tidas e perseguidas, por apresentarem aspectos, digamos,
“africanos” demais aos olhos das autoridades. Entretanto,
é preciso ter cuidado ao observar esse passado, para não
cairmos em uma simplificação desse universo religioso,
onde de um lado estariam aqueles que compactuaram com
o catolicismo e cederam ao domínio cultural europeu cris-
tão, enquanto do outro aqueles que, resistindo, mantiveram
praticamente intactas a cultura religiosa de suas terras de
origem.
A manifestação do candombe pode ser compreen-
dida em um universo mais amplo de religiosidades, para
além da simples associação direta com o Batuque dos dias
de hoje, que por sua vez é uma tradição religiosa que cul-
tua os orixás, vinculado à população africana ocidental ou
iorubá.
Fonte: Arquivo Digital IPHAN
(autoria desconhecida)
30
As danças proibidas pelo Vigário José Inácio, em frente e
dentro da Igreja, e o candombe da várzea eram, aparentemente, reu-
niões africanas sob liderança de grupos de origem banto, mais anti-
gos e estabelecidos em posições de liderança de suas nações. Assim,
a Mãe Rita do início do século XIX lideraria um ritual com pre-
dominância de grupos da África Central (congos, angolas, bengue-
las), aberto a outras nações da África Ocidental (minas, nagôs, jejes,
haussás) e Oriental (moçambiques), ainda pouco representativas na
população africana de Porto Alegre, até, ao menos, meados da déca-
da de 1830.
Os Mina e os Nagô em Porto Alegre – as nações da liberdade
O Batuque do Rio Grande do Sul, como conhecemos hoje,
foi formado a partir da cultura iorubá, nagô e jeje, ou seja, sob a
predominância de culturas da África Ocidental. Nas palavras de Oro:
A palavra candomblé, segundo
Nei Lopes (1988, p. 165) é certamente de
origem banta, podendo derivar do quim-
bundo kiandombe (negro) e mbele (casa),
por extensão “casa de negros”, ou resulta-
do do diminutivo ka mais o termo ndume
(inciante), formando “casa de iniciação”
ou “casa de principiantes”. O termo, kian-
dombe, isoladamente, guarda uma grande
aproximação ao termo candombe, usado
para designar a manifestação negra ocorrida
nas primeiras décadas do oitocentos, tanto
por Coruja, quanto pelo livro de despesas e
receitas da Irmandade do Rosário de Porto
Alegre.
No Uruguai, ainda hoje persiste
uma manifestação afro-uruguaia denomina-
da candombe. O sentido da palavra também
ligaria o candombe uruguaio a uma mani-
festação de origem banta significando “dan-
ça dos ndombes”, ou em um sentido mais
genérico seria todo tipo de dança de origem
africana, praticado nos domingos e dias
santos (Chagas; Stalla e Borucki, 2012).
O Batuque representa a expressão mais africana desse complexo religioso, pois a linguagem li-
túrgica é yorubana, os símbolos utilizados são aqueles da tradição africana, as entidades veneradas são os
orixás e há uma identificação às “nações” africanas (Oro, 2008, p. 125)
Foi a partir da década de 1830 que ocorreu o aumento da presença de africanos iorubás na população
do Rio Grande do Sul, particularmente nas cidades de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. Ainda que os afri-
canos bantos (centro-africanos) compusessem a maioria dos africanos escravizados, esse aumento de iorubás
no período final do tráfico transatlântico causou um importante impacto simbólico na cultura negra regional.
Um passo importante para compreender a formação do Batuque de Nação.
Os estudos para as cidades de Rio Grande e Pelotas
apontaram, de uma forma geral, que a população escravizada
de africanos ocidentais (iorubás) conseguiam índices de alfor-
ria superiores - praticamente o dobro - ao número em que eram
encontrados para o restante da população escravizada (Scherer,
2008; Pinto, 2018)24
.
Em Porto Alegre, é possível afirmar que a maior inci-
dência dos africanos ocidentais entre os que obtinham alforria
atesta não apenas o aumento da sua “presença estatística, mas
também a sua maior competência enquanto grupo para agenciar
a libertação” (Moreira, 2007, p. 375). Ou seja, os minas e os
nagôs pareciam se organizar coletivamente com muito êxito na
busca de conquistar a liberdade mediante a compra de suas car-
tas de alforria.
Um possível africano mina em
Porto Alegre do século XIX
Fonte: Museu de Porto Alegre
Joaquim Felizardo
31
Fonte: https://prati.com.br/tag/doca
Doca do Mercado de Porto Alegre - final do século XX -
Local de trabalho de africanos minas
As análises sobre as cartas de
alforria demonstraram o peso que cada
nação tinha no mercado da liberdade.
Esse tipo de análise toma como obje-
tos as redes sociais criadas por escra-
vizados, libertos e livres, com desta-
que para a constituição de famílias e a
reconstrução de identidades africanas
no circuito do tráfico transatlântico. A
reorganização étnica é vista como uma
das estratégias para enfrentar o cativei-
ro (Scherer, 2012) .
É significativa a associação
entre o parentesco de nação dos africa-
nos ocidentais, observado no século XIX, e a forma como até hoje se estabelece parentescos rituais e simbóli-
cos no interior das famílias religiosas do Batuque. Com efeito, os membros das casas de nação se tornam parte
de uma família de santo, e passam a se tratar como pai, mãe, filho, avô, avó e neto e assim por diante (Corrêa,
2016).
No Rio Grande do Sul, talvez ainda não consigamos estabelecer o peso de cada nação na cons-
trução das primeiras casas de batuque. Contudo, pode-se perceber como os africanos iorubás passaram a criar
espaços para suas práticas religiosas procurando escapar da repressão e da tentativa de controle crescente das
manifestações africanas em Porto Alegre.
A Semente do Batuque
A partir da década de 1850, as manifestações religiosas africanas passaram a sofrer uma maior ofen-
siva em Porto Alegre. Um movimento de crescente tentativa de controle sobre a africanidade no interior das
irmandades católicas - que eram os espaços institucionalizados para esse tipo de tradição - através de olhares
vigilantes e pouco simpáticos dos vigários, foi acompanhado pelos primeiros relatos sobre cultos religiosos,
em espaços não tutelados pela Igreja. Esses eventos, em sua maioria, provavelmente ocorriam sob a liderança
de africanos-ocidentais.
A Irmandade do Rosário de Porto Alegre nunca fora exclusivamente de negros, e ao longo do século
XIX seus membros africanos e afro-brasileiros acabaram sendo destituídos dos cargos de liderança e daqueles
que possibilitavam alguma decisão para questões simbólicas. Ao longo dos anos tornou-se um espaço para
os negros e não dos negros. Nesse sentido, em 1883, houve a retirada do item que mencionava a intenção de
promover a “obtenção da liberdade” dos irmãos cativos no compromisso da irmandade, estabelecido quando
da inauguração da sede própria da Igreja (Tavares, 2007, p.128-132).
Nesse contexto, a irmandade católica, espaço institucionalizado por excelência que permitia alguma
manifestação africana, fechava-se ao protagonismo negro, especialmente ao africano. As folias, congadas e
cucumbis, expressões ligadas ao catolicismo continuavam a existir, mas em um espaço não autorizado, como
algo não religioso, uma espécie de “brincadeira” resiliente que se negava a sumir do cenário urbano de Porto
Alegre, como, por exemplo, nos deixa ver a presença do conjunto carnavalesco d’Os Congos, nos desfiles de
carnaval de 188325
.
32
Por outro lado, na década de 1880, um indício
significativo demonstra que as religiosidades africanas
se mantinham fortes, na rua, nas casas, nas praças, e
elas eram múltiplas.Apublicação eclesiástica chamada
“Histórias domingueiras” do jornal O Thabor, de 1882,
apresenta o seguinte quadro:
“Nos domingos é um louvar a Deus!
Esta nympha do Guaíba é um paraíso terreal!
Festas e ‘rolos’ por toda a parte.
Chiromancia e sangue de cabritos
para o lado da Floresta: [...]
Batuque na praça da Conceição.
Baile para os lados da Várzea, com-
postos de todas as cores, e quando a malta é
grande e a sala acanhada, pulam para o meio
da rua e toca a pagodeira até a meia noite ou
clair de la lune. Por fim, quando o fumo do
espírito sobe, principiam os supapos, segue-se
a paulada e acabam por ferro [...]
Esta nympha do Guaíba está saindo
fora do sério”. 26
Mulher negra em Porto Alegre - sem data
Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo
Três práticas listadas em localidades diferentes. A denominada quiromancia aponta para a existência
de casas de batuque no Bairro Floresta, apoiado pela “denúncia” da existência de sacrifícios de animais. O
Batuque na Praça da Conceição, em frente à Igreja da Conceição, onde havia nascido a irmandade de mesmo
nome, a qual dividiu-se exatamente pela presença de irmãos pardos, mais pobres, que foram posteriormente
acolhidos na do Rosário (Tavares, 2007). Por último o Baile na Várzea, mesmo local onde no início do século
ocorria o candombe de Mãe Rita. O autor chama atenção para o número excessivo de participantes, o que o
fazia com que o baile saísse à rua, quando a chamada pagodeira iria, então, até a meia-noite.
Todas essas manifestações estavam proibidas pelo código de posturas da cidade, desde pelo menos
1856. Neste ano, o artigo 122 determinava:
"Ficam proibidos os candombes ou batuques e danças de pretos na Várzea, chácaras ou outro
lugar. Pena de dezesseis mil réis de multa ao dono da casa ou chefe do batuque, e sendo escravo, a 25
açoites” 27
Em 1858, o código de posturas proibia também os chamados zungús, referindo-se não só “a festas
de pretos, fossem religiosas ou profanas”, mas também ao próprio local de habitação (Moreira, p. 61, 2003).
Trinta anos depois das proibições, os fins de semana porto-alegrenses, aos olhos do religioso redator do “His-
tórias Domingueiras”, permanecia demasiadamente africano.
Na segunda metade do XIX, é possível perceber duas dimensões que possibilitaram a emergência de
religiosidades inspiradas em outras tradições africanas, que não apenas a dos bantos. Com a mudança demo-
33
gráfica observada a partir da década de 1830 na população africana escravizada, em cidades como Porto
Alegre, Pelotas e Rio Grande, e a ação dos africanos-ocidentais (minas e nagôs) no mercado da liberdade, é
possível dizer que as lideranças religiosas passam a ser exercidas também por pessoas desta última origem.
Em Porto Alegre, com um número crescente de africanos-ocidentais libertos que conseguiram ad-
quirir imóveis, é possível afirmar que o panorama havia mudado em relação ao princípio do século (Moreira,
2019). Há indícios importantes que apontam na direção do surgimento de cultos de ordem privada, em casas
de africanos libertos ou livres – como Custódio Joaquim de Almeida (Scherer e Weimer, 2021) –, de tradições
iorubanas da África Ocidental.
ZUNGU
Zungus eram redutos que serviam de moradia ou local
de refeição coletiva para onde convergiam grupos populares diver-
sos em busca de alimento, repouso, solidariedade, vida lúdica ou
práticas religiosas.
Segundo o Dicionário da Terra e da Gente do Brasil
(Souza, 1939), zungu era “termo do Sul do Brasil, que designa
uma casa dividida em pequenos compartimentos que se alugam,
mediante diminuta paga, à gente baixa e ordinária; é uma espécie
de cortiço [...]. Também se usa muito no sentido de desordem, con-
flito mais barulhento do que grave”. O termo calunge é definido
pelo mesmo autor como: “rancho, casinha de palha[...] sinônimo
de zungu [...] que serve de couto a vagabundos e desordeiros”.
Em uma notícia intitulada “Os feiticei-
ros do Rio Grande do Sul”, do Jornal Echo do Sul,
que repercutiu na província de São Paulo, através
do Correio Paulistano, divulgou-se que no dia 16 de
novembro de 1879 mais de cinquenta pessoas fo-
ram presas por participarem de uma cerimônia reli-
giosa numa casa da atual Rua Caldas Júnior, região
central de Porto Alegre. Nessa notícia, pode-se ler
uma importante descrição daquilo que possivelmen-
te fosse um culto liderado por africanos ocidentais:
Os feiticeiros no Rio Grande do Sul - Lê-se no Echo do Sul de 16 do corrente:
GRANDE CAÇADA – A polícia tomou anteontem um fartão: prendeu em uma casa à rua Pay-
sanndú, 42 pretos, livres e escravos, e 11 pretas minas.
A caçada deu-se às 10 ½ horas da noite no momento em que o preto João celebrava uma sessão
de feitiçaria. Foi uma surpresa e um desapontamento que aqueles fiéis crentes jamais perdoarão à polícia.
O celebrante no ato em que foi preso, envergava uma opa branca, e era escutado com religiosa atenção
pelo piedoso auditório. A polícia apreendeu cabeças de galo e outros manipansos. Os principais atores da
indecente comédia foram recolhidos à cadeia e os escravos convenientemente castigados”
Correio Paulistano, São Paulo, 30 nov 1879. 28
Não foi possível saber se o referido culto era ou não vinculado à tradição dos orixás. Sabemos ape-
nas que seria, provavelmente, liderado por africanos ocidentais e que, certamente, era frequentado por pretas
minas. É significativo, entretanto, alguns detalhes do ocorrido. Um dos presentes vestia uma “opa branca”,
uma peça visivelmente religiosa, a qual o observador pôde, com seu olhar pouco acostumado, traduzir assim,
como uma referência ao universo católico ao qual estava ambientado. É possível que fosse um axó (vestimenta
afro-religiosa)? Talvez. Mas a possibilidade que fosse outra vestimenta, até mesmo de origem islâmica, não
pode ser descartada, pois há relatos no mesmo ano, na mesma região, de um culto islâmico desenvolvlido por
africanos minas ocorrendo em Porto Alegre (Moreira, 2019).
Ao longo do século XIX fica evidente o desenvolvimento de múltiplas religiosidades africanas em
Porto Alegre. Desde o Candombe da Mãe Rita até as “Histórias domingueiras”, passando pelas irmandades
católicas, os cucumbis e congadas até a “Grande Caçada” aos pretos minas na Rua Paysanndú, em 1879.
A análise dessas fontes históricas permite ao observador perceber, em algumas dessas experiências
religiosas – ainda que através de relatos enviesados e parciais das testemunhas da época – expressões do que
se tornaria o Batuque de Porto Alegre. Uma resposta criativa da população africana ao contexto específico
apresentado a ela, sem a tutela da Igreja. Um lugar de protagonismo negro. Um vislumbre, pois, da semente
34
do Batuque29
.
Os becos do centro antigo
No centro antigo de Porto Alegre existiam diversas vielas e becos ocupados pela população traba-
lhadora. Alguns deles ficaram na memória da cidade como sendo espaço de moradia, lazer e religiosidade da
população negra no século XIX.
O antigo Beco do Poço, que correspondia ao primeiro trecho da Rua General Paranhos, assim como
outros becos e vielas do centro antigo abrigou em cortiços e moradas simples muitos homens e mulheres ne-
gros, escravizados fugidos e negros de ganho, nascidos no Brasil ou no continente africano.
NEGROS DE GANHO
Negros de ganho ou ganhadores: "Denomina-
ção dada no Brasil aos escravos urbanos cuja modalidade
de trabalho consistia, geralmente, em oferecer seus serviços
de forma remunerada, repassando a seus senhores parte de
seus ganhos. Tais escravos buscavam, por conta própria, ati-
vidades que lhes garantissem a sobrevivência. Para tanto,
gozavam de autonomia e liberdade de locomoção, e muitos
deles só iam à casa de seus senhores para pagar, diária ou
semanalmente, a remuneração estipulada, executando, até
mesmo, em algumas situações, trabalho assalariado. A es-
cravidão de ganho incluía, principalmente, transportadores
de cargas e carregadores de cadeirinhas e palanquins, mas
também vendedores ambulantes, quitandeiros, barbeiros,
marinheiros, pescadores, trabalhadores na indústria, na
construção civil etc. Quanto às mulheres ganhadeiras, eram
elas que dominavam o pequeno comércio de rua de cidades
como Rio de Janeiro e Salvador." (Lopes, 2004)
Segundo o cronista Achylles Porto Alegre:
"Havia pontos da cidade onde, aos do-
mingos, o 'batuque' era infallível. O becco do Poço,
o do Jacques e a rua da Floresta eram sitios de elei-
ção para o 'batuque'. Nos dias de 'folia', já de longe
se ouviam a melopéa monotona do canto africano e
o som cavo do seu originalissimo tambôr. [...] Ha-
via também os 'batuques' ao ar livre. Nestes tomava
parte quem queria [...]. Um dos mais populares era
o do Campo do Bom Fim, em frente à capellinha
em construcção" (Porto Alegre, 1921, p. 161-162).
[grafia original]
Segundo a tradição oral, no Beco do Poço teria
vivido Antonio Gululu, uma importante referência para o
Batuque até os dias de hoje, pois teria sido pai-de-santo
de dois ícones do Batuque no século XX: Antoninho da
Oxum (Antônio da Cruz Ferrari), da nação Oyó (de quem
falaremos no capítulo sobre a Bacia do Mont Serrat) e de
Waldemar de Xangô Kamucá (Waldemar Antônio dos San-
tos), da nação Cabinda (ver capítulo sobre o Areal da Baro-
nesa). Porém, não se sabe maiores detalhes a seu respeito.
Acredita-se que tenha nascido no continente africano e que
era filho do orixá Xapanã. Já a palavra "Gululu" poderia ser
tanto uma identificação étnica, como uma referência ao seu
orixá pessoal.
O Beco do Poço - quando já se chamava Rua
General Paranhos - desapareceu da história na década de
1920, momento no qual as reformas urbanas que buscavam
modernizar a cidade demoliram diversos prédios ali exis-
tentes para dar origem à Avenida Borges de Medeiros30
.
Fonte: Acervo da Pinacoteca Aldo Loca-
teli. Obtido em: Koehler (2015, p. 154)
Beco do Poço -
Aquarela de Francis Pelichek (1925)
35
Quintais fronteiros" no antigo Beco do Império. Final do século XIX - início do XX.
Fonte: Acervo do Museu Hipólito José da Costa.
Fonte: Revista "A Máscara" - 06/02/1925
Demolição da Travessa General Paranhos, antigo Beco do Poço
36
Fonte: www.jornaldomercado.com.br
Abertura da Av. Borges de Medeiros - década de 1920
37
5 - O território negro do Areal da Baronesa
O território do Areal da Baronesa do Gravataí ficou assim conhecido pois abrigou, entre diversas
outras propriedades, uma chácara pertencente a uma baronesa de mesma nomenclatura. Inicialmente denomi-
nado como um "arraial" (lugarejo/povoado), passa a receber o uso popular de "Areal" devido às características
arenosas da região.
Se inicialmente era uma área de chácaras, olarias e matadouros situada na planície ao sul do centro
da cidade, ao longo das últimas décadas do século XIX foi sendo loteada e progressivamente se tornou uma
região de moradia popular, com grande presença de população negra livre e liberta, mesmo antes da abolição
da escravidão em 1888. Abrigou, ainda, em seus cortiços e moradias de aluguel, trabalhadores ligados aos
quartéis da Brigada Militar ali instalados a partir da década de 1890. Tratava-se de uma área baixa, frequen-
temente sujeita a alagamentos, na qual corria o leito do atual Arroio Dilúvio, antes da alteração de seu curso.
O antigo território do Areal da Baronesa corresponde ao atual entorno da Igreja Pão dos Pobres e da
Ponte de Pedra, se estendendo até a Av. Ipiranga (antiga Rua dos Pretos Forros), seguindo até a atual Av.
Getúlio Vargas (antiga Av. 13 de Maio), a rua da Olaria (atual Gal. Lima e Silva) e no sentido oposto até as
margens do Guaíba (Mattos, 2000), incluindo também a antiga Ilhota (ocupação popular que ficava próximo
ao atual Colégio Estadual Protásio Alves). Área que englobava parte dos atuais bairros Cidade Baixa, Menino
Deus e Praia de Belas.
Registros históricos citam que ao longo do século XIX a região serviu de abrigo para escravos fugi-
tivos, devido à densa vegetação existente em uma região que ficou conhecida como "emboscadas" (Mattos,
2000, p. 27-28). Interessante observar a existência até os dias de hoje da Comunidade Remanescente de Qui-
lombo do Areal, localizada na Avenida Luiz Guaranha, em pleno bairro Menino Deus.
Se durante o período da escravidão já havia a presença de escravizados, trabalhadores negros livres e
libertos vivendo e trabalhando na área, no período pós-abolição o Areal vai se efetivar enquanto um território
negro. Com o crescimento populacional da cidade, surgem muitos novos loteamentos e ruas, e a proximidade
com o centro da cidade tornou este território uma opção de moradia mais acessível para a população trabalha-
Areal da Baronesa e Cidade Baixa - Planta da
Cidade de Porto Alegre de 1906
Fonte: Arquivo Municipal Moysés Vellinho/Mapoteca.
Obtido em: Xavier (2018)
Antigo curso do Arroio Dilúvio, o Riachinho
Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo - Versão acres-
cida de nomes obtida em Vieira (2017)
38
A RUA DOS PRETOS FORROS
Parte do que hoje conhecemos como Ave-
nida Ipiranga já foi chamada de Rua dos Pretos Forros.
Trata-se do trecho entre a Av. Praia de Belas e a antiga
Rua 13 de Maio (atual Av. Getúlio Vargas). Posterior-
mente, a via teve seu nome mudado para Rua 28 de Se-
tembro, data da promulgação da Lei do Ventre Livre,
no ano de 1871: "É emblemático que o limite sul do
território do Areal da Baronesa fosse um logradouro
que fazia referência a um marco para a população ne-
gra". (Vieira, 2007, p. 105). O encontro desta via com
a Rua 13 de Maio (referência à abolição da escravidão
em 1888) torna ainda mais sugestivo o caráter do Areal
como um território negro.
EMBOSCADAS
"Nas crônicas de Achylles Porto Alegre,
as Emboscadas aparecem como uma faixa de terra que
abrangia o espaço compreendido entre as ruas Lopo
Gonçalves, Luiz Afonso, República e José do Patro-
cínio (antiga Concórdia) e 'morria' à margem do Ria-
chinho. Com vegetação de mato cerradíssimo e muitos
capões, que tornavam este sítio intransitável, serviu
durante a escravidão de refúgio aos negros fugidos."
(Mattos, 2000, p. 28)
dora, principalmente a partir das reformas urbanas que afasta-
ram os pobres da área central. Trabalhadores vinculados a ati-
vidades de prestação de serviços de baixa remuneração, como
jornaleiros (diaristas), costureiras, taverneiros, amas de leite,
embarcadiços, pedreiros e brigadianos, em grande parte negros
mas também brancos pobres (Mattos, 2000, p. 29-30).
Representação de um escravizado fugido
em um anúncio de jornal da capital de
Porto Alegre - século XIX.
Vista parcial da Cidade Baixa
Fonte: Museu da Comunicação
Hipólito José da Costa
Muitas lavadeiras negras moravam e trabalhavam no
Areal da Baronesa, formando um dos grupos que ficou na me-
mória fotográfica da cidade, ao atuarem nas margens do Riachi-
nho ou do Guaíba. Segundo reportagem de um jornal da cidade,
datada de 1897:
"As lavadeiras em grande número, formam a
sua reunião de um e outro lado da ponte de pedra, onde
em doce e agradável palestra vão desinfectando com sa-
bão as águas do Riachinho". 31
Praia do Riachinho - atual Rua Washington Luiz (1900)
Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo -
Autoria: Ferrari
39
A forte presença do carnaval e a presença da religiosidade de matriz africana são expressões da forte
identidade negra do Areal da Baronesa.
Arroio Dilúvio nas imediações do Areal da Baronesa
Fonte: Museu da Comunicação Hipólito José da Costa
Fonte: Acervo Dorvalina Fialho -
Obtido em Vieira, (2017, p. 118)
“Avenida” no Areal da Baronesa
AS "AVENIDAS" DO AREAL
Uma característica do antigo Areal são as
"Avenidas", moradias coletivas de aluguel caracterís-
ticas da região: "As avenidas eram moradias coletivas
de aluguel, com diversas casinhas de madeira ou pe-
ças contíguas, paralelas a um pátio ou corredor. Os
banheiros e tanques eram coletivos e ficavam loca-
lizados no pátio." (Vieira, 2017, p. 117). Interessante
observar que a Comunidade Quilombo do Areal, lo-
calizada na Av. Luiz Guaranha, está constituída neste
modelo espacial.
A Ilhota
"A Ilhota era uma pequena
área, totalmente circundada por uma das
curvas do Arroio Dilúvio, após o seu en-
contro com o Arroio Cascatinha. Locali-
zava-se ao sul da Praça Garibaldi, mais
precisamente entre a Rua Arlindo (atual
Rua Érico Veríssimo) e a Rua 13 de Maio
(atual Av. Getúlio Vargas), tendo como
limite sul a Rua 17 de Junho." (Vieira,
2017, p. 121).
Sua origem remonta a 1905, momento
em que o Arrioio Dilúvio, ainda não canalizado,
corria por dentro da Cidade Baixa. Na altura da
atual Av. Érico Veríssimo, formava uma curva
acentuada e, após uma intervenção em seu curso
em 1905, acabou por formar uma pequena ilha em
seu interior: a Ilhota, território negro e popular,
sujeito a frequentes alagamentos, desaparecido
em___. Lá residiu a família do famoso cantor Lu-
picínio Rodrigues. Em fins da década de 1960 a
Ilhota deixa de existir, e grande parte de seus mo-
radores vão dar origem ao bairro Restinga (Vieira,
2017, p. 121-128).
Paisagem interna da Ilhota
Fonte: Marcello Campos (Arquivo pessoal) -
Obtido em: Vieria (2017, p. 125)
40
A religiosidade afro no Areal
A memória da cidade e dos antigos batuqueiros é recorrente em apontar o território negro do Areal da
Baronesa como local de muitas casas de batuque e umbanda. Nas memórias de Waldemar de Moura Lima, o
Mestre Pernambuco, torna-se visível a relação com outros territórios e espaços sociais negros:
"Quando cheguei, em [19]48, fui morar na Duque [de Caxias]. A força do tambor me chamava.
Moleque fugia de casa e ia para o Areal da baronesa. Fugia e dava um jeito de me envolver. Era o grande es-
paço. Tínhamos a Bacia [do Mont´Serrat]. Lá eu jogava futebol com o pessoal do Mont´Serrat. Tinha outro
espaço forte, próximo ao pronto Socorro, a Santana. Ali surgiu Bambas, Praiana. Era essa a área do pessoal.
A negrada na época era alfaiate, trabalhos braçais, porteiros, área de serviço em geral. As duas sociedades,
Floresta e Prontidão, eram dirigidas pela mesma família, dois irmãos. Também o Marcílio." (entrevista ao
autor em 21/03/2006). (Campos, 2006, p. 37)
Em 1914, um episódio ocorrido na casa do "médium" Alfredo Duarte, residente na na Avenida Orien-
tal no 14, na rua Miguel Teixeira/Areal, chamou a atenção da sociedade porto alegrense. Tratava-se de uma
época de grande intolerância com as religiões de matriz africana, inclusive com relatos de que a polícia invadia
os templos e prendia seus adeptos. Em uma noite do mês de abril, dezesseis brigadianos adentraram a casa do
referido Alfredo, não o fizeram para reprimir sua religiosidade, mas sim enquanto consulentes que buscavam
assistência espiritual. Acabaram sendo surpreendidos pelo seu superior, o tenente Courseuil, que os conduziu
ao quartel (Mattos, 2000, p. 114).
Interessante pensar que os soldados da Brigada Militar eram originários justamente das camadas
Mapa Porto Alegre 1906, com destaque para:
Ilhota, traçado Av. Ipiranga e pontes sobre Arroio Dilúvio
Fonte: CD Cartografia Virtual Histórica-Urbana de Porto Alegre: século XIX e Início do XX (IHGRGS, 2005).
Elaboração: Daniele Machado. Obtido em: Vieira (2017, p. 123)
41
populares da sociedade, e consequentemente faziam parte de um universo cultural comum aos afro religiosos.
Lembremos que na década de 1890 a Brigada Militar estabeleceu quartéis na região do Areal da Baronesa, e
muitos brigadianos passaram a residir na região. Quem sabe algum desses dezesseis policiais não estivesse na
casa do "médium" Alfreto em busca de proteção junto ao axé de Ogum, orixá guerreiro, protetor dos soldados
e militares?
Lideranças Religiosas na Cidade Baixa
O Batuque, por estar baseado na transmissão oral do conhecimento e se alicerçar nas noções de an-
cestralidade e tradição, evoca a memória de antigas lideranças religiosas que viveram no passado. Na Cidade
Baixa eram numerosas essas lideranças, tais como a já referida Princesa Emília de Oyá Ladja (ver texto sobre
Rio Grande), Pai Fábio de Oxum, Príncipe Custódio de Sapatá, entre outros .
Custódio Joaquim de Almeida - o Príncipe africano
Sem dúvida o maior destaque entre as lideranças afro religiosas da região foi o Príncipe, figura que
gera polêmica ainda na atualidade, no que se refere ao seu possível título de nobreza: seria Custódio Joaquim
de Almeida um africano de linhagem nobre ou um agudá retornado?
AGUDÁ
No Benin, designação que se dá ao portador de
sobrenome de origem portuguesa, em geral descendente de
africanos libertos retornados do Brasil. O vocábulo, presen-
te no fongbé e no iorubá, parece originar-se no substantivo
“ajuda”, do nome do forte português de São João Batista da
Ajuda, pronunciado como oxítono. Os agudás formam uma
comunidade distinta do restante da população beninense, as-
sim como os amarôs na Nigéria e os tabons de Gana.
Na década de 1990 a antropóloga Maria Helena
Nunes da Silva estudou as visões sobre o Príncipe africano,
entrevistando um dos filhos de Custódio, lideranças afro-re-
ligiosas, entre outras pessoas que cultivavam uma memória
acerca da sua trajetória na capital dos gaúchos. Ainda que não
fosse seu objetivo inicial, o trabalho de Nunes da Silva (1999)
acabou por contribuir decisivamente para cristalizar uma de-
terminada visão sobre Prìncipe Custódio, na qual ele teria che-
gado em Porto Alegre com uma idade avançada, entre 1899
e 1901, a convite de Júlio de Castilhos, após escapar de uma complexa e rebuscada história de luta pela su-
cessão ao poder em seu reino na África. Lá, Custódio chamaria-se Osuanlele Oziki Erupê, o descendente e
herdeiro direto do último Obá do Benin - atual Nigéria - deposto pelos britânicos, chamado Ovonramwen.
Ainda segundo essa versão, Custódio receberia em solo
gaúcho uma polpuda soma em libras esterlinas (moeda da Grã-
-Bretanha). Uma espécie de indenização paga pelos ingleses para
“Osuanlele” deixar sua herança - e a disputa - ao trono do então
Reino do Benin, em derradeira decadência com a ação do império
britânico. No entanto, nenhuma fonte documental foi encontra-
da respaldando esses depósitos bancários, em qualquer instância,
seja no Rio Grande do Sul ou, até mesmo, em solo inglês.
É bastante provável que essa versão seja produto de uma
narrativa que buscava justificar e demonstrar as origens de um
poder negro em terras sulinas, amparado na figura do Príncipe
Custódio. Talvez estejamos diante daquilo que o sociólogo Pierre
Bourdieu define como ilusão biográfica. Uma tentativa, ainda que
inconsciente, de atribuir um sentido retrospectivo a uma trajetória
de vida. Pelo menos é o que parece ser, ao compararmos com
Pai Custódio de Sapatá (Custódio Joaquim
de Almeida), o Príncipe
42
Nessa outra pesquisa, os historiadores Rodrigo
Weimer e Jovani Scherer, apresentam Custódio Joaquim
de Almeida como um africano livre nascido em 1852, ou
1853, na cidade de Ajudá, importante porto do antigo Dao-
mé, atual República do Benin. Um documento em especial
levou a redefinição de aspectos fundamentais da trajetória
do Príncipe no contexto da diáspora africana. Essa fonte
estabelece que Custódio já se encontrava em Porto Alegre
desde 1881, com ao menos duas décadas de antecedência ao
correntemente aceito até então.
Em dezembro de 1885, no centro de Porto Alegre,
os documentos e indícios que vieram à tona em 2021, no livro No refluxo dos retornados, que trata a trajetória
de Custódio sob outro prisma (Scherer e Weimer, 2021).
ILUSÃO BIOGRÁFICA
“o fato de que a vida constitui um todo, um
conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreen-
dido como expressão unitária de uma “intenção” subjetiva
e objetiva, de um projeto. [...] Essa vida organizada como
uma história transcorre, segundo uma ordem cronológica
que também é uma ordem lógica, desde um começo, uma
origem [...] O sujeito e o objeto da biografia (o investigador
e o investigado) têm de certa forma o mesmo interesse em
aceitar o postulado de sentido da existência narrada [...] na
preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair
uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva.”
(Bordieu, 1998)
Custódio envolveu-se em um desentendimento que resultou em conflito físico com o português Ernesto Leal.
Nos trâmites do processo o Príncipe teve que se qualificar diante do juiz (identificar-se), conforme segue:
“qual seu nome, filiação, estado, idade, profissão, nacionalidade, naturalidade e se sabia ler e
escrever? respondeu chamar-se Custódio Joaquim de Almeida, filho de Joaquim de Almeida, com trinta e
dois anos de idade, solteiro, tanoeiro, africano, nascido em Ajudá, não sabe ler nem escrever." (Scherer e
Weimer, 2021)
A leitura do documento demonstra que Custódio não tinha cerca de sessenta anos ao chegar em Porto
Alegre. Ele já circulava pelas ruas da capital gaúcha “com trinta e dois anos”. Outras fontes expostas no livro
de Weimer e Scherer (2021), demonstram que o Príncipe teria chegado, segundo suas palavras, “moço” ainda
a essas terras. Nesse sentido, ganha força o ano de 1864 - data mais segura apontada pelo estudioso Alberto
da Costa e Silva - para sua chegada ao Brasil. Questão que segue, ainda, sem uma comprovação definitiva,
junto a tantas outras, incluindo se veio para cá sozinho ou acompanhado, visto ser bastante jovem. Somente
pesquisas futuras poderão resolver.
De certa forma esses novos documentos abriram espaço para compreender a trajetória de Custódio
Joaquim de Almeida de uma forma diferente. É bastante provável que seu pai tenha sido Joaquim de Almei-
da, famoso africano liberto que retornou do Brasil ao continente africano, tornando-se um dos patriarcas dos
agudás na fronteira entre os atuais Benin e o Togo. Por outro lado, sua mãe ainda nos é desconhecida. Nesse
sentido, a realeza de Custódio apresenta-se como construída mais no lado de cá do Atlântico do que na África.
Ainda que a futura descoberta de quem foi sua genitora possa associá-lo a uma linhagem real.
Vivendo nas décadas finais do século XIX em Porto Alegre, Custódio atuou como trabalhador, um
qualificado tanoeiro é verdade (fabricante de barris de madeira), mas não como aquinhoado nobre africano
bancado por britânicos. Andou a cavalo, o que certamente lhe dava ares altivos, no entanto talvez tenha sido
primeiro a trabalho e não a passeio. Com o tempo tornou-se conhecido como turfman (proprietário de cavalos
de corrida), meio pelo qual estabeleceu importantes contatos com o que havia de mais refinado na elite gaúcha.
Sua trajetória em outros aspectos, entretanto, permanece com lacunas, especialmente entre seu nascimento em
Ajudá, na África e sua idade adulta em Porto Alegre.
Por enquanto, então, é mais certo pensar que sua realeza foi construída em Porto Alegre, entre a po-
pulação que vivia no Centro, na Cidade Baixa, e em outros territórios negros. Príncipe Custódia estabelecia
43
uma ponte entre as elites porto-alegrenses e as camadas mais populares, para as quais era visto como um
benfeitor, sem dúvidas, uma importante liderança entre africanos e afro-brasileiros, consultado por muitos e
respeitado por outros ainda mais.
Seu funeral, em 1935 foi notícia em diferentes jornais do Rio Grande do Sul:
"Atendendo aos seus últimos desejos, o velório do 'príncipe' seguiu as tradições africanas, obede-
cendo ao rito indispensável à sua condição de dignatário negro [...] Fora ele, também, entusiasta turfman,
tendo tido a propriedade de vários animais que marcaram época no nosso turfe." (Fonte: Diário de Notícias,
29 de maio de 1935)32
.
Custódio é uma figura emblemática para a comunidade afro religiosa do Rio Grande do Sul. Filho do
orixá Sapatá (vodum agregado ao Batuque como uma das variantes do orixá Xapanã, relacionado à doença e
a sua cura), é rememorado por muitos como sendo o maior baluarte da nação jeje nestas terras, uma das tra-
dições até hoje cultuadas. Ao mesmo tempo, outras narrativas informam que Custódio não teria "aprontado"
nenhum filho de santo, pois, sendo um nobre africano, não iria "colocar a mão na cabeça" de pessoas comuns,
sem ascendência semelhante. "Colocar a mão", na linguagem batuqueira, é uma referência ao ritual pelo qual
um pai ou mãe de santo sacraliza a relação de um indivíduo com o seu orixá regente, considerado o "dono de
sua cabeça". Já "aprontar" significa propiciar ao filho de santo toda preparação para se tornar um babalorixá,
inclusive com a outorga do Axé de Ifá (autorização para a condução do jogo divinatório dos búzios) e Axé de
Obé (autorização para o uso ritual da faca utilizada nos sacrifícios rituais) e, sendo assim, possibilitando ao
mesmo abrir a sua própria casa de nação e o apronte de seus filhos de santo.
O acesso aos registros de pesquisa do folclorista e historiador Carlos Galvão Krebs trouxe novo
horizonte ao debate. A partir do fim da década de 1940, Krebs pesquisou o tema da religiosidade negra em
Porto Alegre, tendo vivenciado intensamente o dia a dia de importantes casas de nação. A partir das conversas
e contatos estabelecidos nestes espaços, buscou saber mais sobre a emblemática figura do Príncipe Custódio,
falecido na década anterior ao início de sua pesquisa.
Carlos G. Krebs conversou em 1953 com Domingos de Almeida, um dos filhos de Custódio, o qual
afirmou que seu pai teria deixado "quantidade de filhos de santo", porém não tendo "feito" pai-de-santo a ne-
nhum deles. Nas palavras de Domingos, seu pai "[...] dizia que a religião africana era cousa muito séria, e
que os filhos não iam fazer a cousa direito, se trabalhassem sozinhos" (Depoimento de Domingos de Almeida,
1953. Acervo Carlos Galvão Krebs).
Serafina (esposa de Custódio) e os filhos Domingos, Dionísio e Joaquina.
Imagens obtidas em Silva (1999)
44
CARLOS GALVÃO KREBS
Carlos Galvão Krebs (nascido em São Gabriel no ano de 1914, falecido em Porto Alegre em 1992). Foi um et-
nógrafo e folclorista brasileiro, formado em Direito, História e Geografia e Artes Plásticas. Foi funcionário da Secretaria de
Educação do Estado do RS e fundador do Instituto de Tradição e Folclore, origem do IGTF (Instituto Gaúcho de Tradição
e Folclore), ao lado de figuras como Dante de Laytano e Paixão Cortes. Foi pioneiro no estudo das práticas de religiosidade
de matriz africana no RS, ao lado de Laytano. A partir de fins da década de 1940, frequentou diversas casas de Batuque em
Porto Alegre, com destaque para as de Mãe Moça de Oxum, Mãe Andrezza de Oxum, Mãe Apolinária de Oiá, Mãe Ester de
Iemanjá, Mãe Maria Horária do Bará, Pai Florentino do Ogum, Irmão Laudelino Manoel de Souza (umbanda). Em uma época
na qual o Batuque era alvo de perseguições, publicou diversas reportagens em jornais e revistas do Brasil, buscando levar ao
grande público um pouco de conhecimento sobre o tema. Dialogou com muitos folcloristas e etnógrafos, como Câmara Cas-
cudo, Peixe Grande, Edson Carneiro e Veríssimo de Melo. Criou o primeiro curso de folclore do estado. Entre fins da década
de 1950 até 1980, voltou-se ao estudo do folclore gaúcho, em seus diversos aspectos. Temas como: congadas e maçambique
de Osório, cultura campeira, saberes e ofícios tradicionais, etc. Autor do livro Estudos de Batuque (Krebs, 1988).
As pesquisas de Krebs apontam um caminho quanto à dúvida sobre a descendência religiosa do
Príncipe: ele possuía casa de religião de culto africano pelo lado da nação jeje, mas não chegou a aprontar
totalmente nenhum filho de santo para que se tornasse babalorixá, ou seja, não teria concedido Axé de Ifá e de
Obé a ninguém. Mas possuía, sim, filhos-de-santo iniciados por ele, ou que passaram pela sua "mão" depois
de iniciados por outra liderança religiosa. Muitos destes devem ter tido seus aprontamentos religiosos con-
cluídos por outro pai ou mãe de santo e, assim, dado seguimento ao culto da nação jeje mediante abertura de
suas casas.
Isso não leva a afirmar que Custódio de Almeida tenha sido o primeiro pai de santo do jeje no estado,
ou o "fundador" desta nação por estas bandas. Muitos africanos auto identificados com esta nação viviam des-
de o século anterior no estado. O papel do Príncipe parece ter sido, de certa forma, o de atualizar a relação com
uma África mítica e imaginária, há muito tempo distante dos afrodescendentes aqui estabelecidos. Lembremos
que o tráfico internacional de escravos cessou para o Brasil em 1850, e que o Rio Grande do Sul não mantinha
vínculos de comércio náutico com o continente africano, como no caso da Bahia.
O último endereço de Custódio de Almeida foi na rua Lopo Gonçalves n. 498, em uma propriedade
que fazia fundos com a Travessa dos Venezianos. Os batuques e outros rituais religiosos na sua casa, apesar
de serem famosos, eram muito fechados, restritos aos filhos de santo e amigos íntimos. Já as comemorações
de seus aniversários, ou como o povo de terreiro chama “festas brasileiras”, essas sim eram grandes eventos
no bairro, por vezes contando com a presença de uma banda musical, farta comida e bebida, se estendendo
para fora do espaço da sua residência. Os convidados eram numerosos e, segundo relatos de época, chegavam
a somar cerca de oitocentas a mil pessoas, com festejos que podiam durar dias. Alguns relatos informam que
nesses momentos havia a presença inclusive de autoridades estatais, como delegados e políticos.
Uma das figuras públicas associadas a Custódio foi Antônio Augusto Borges de Medeiros, Governa-
dor do Rio Grande do Sul entre 1898-1908 e 1913-1928 (à época chamado de Presidente do Estado). As me-
mórias e escritos acerca desta relação informam que Borges de Medeiros frequentava as festas de aniversário
de Custódio de Almeida, e que talvez o governador fosse até mesmo filho-de-santo do africano, tendo sido
consagrado ao orixá Ogum. Ainda segundo relatos, a relação entre eles teria sido iniciada quando Carlinda, es-
posa de Borges, fora buscar em Custódio tratamento espiritual para o quadro de doença enfrentado por Borges
de Medeiros e para proteção frente ao cenário político. E mesmo o ex-Governador Júlio de Castilhos teria, an-
teriormente, recorrido ao Príncipe por motivos semelhantes. O Príncipe teria, assim, tornado-se inclusive um
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf
Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf

Aristeu Nogueira: a militância politica e cultural de um comunista
Aristeu Nogueira: a militância politica e cultural de um comunista Aristeu Nogueira: a militância politica e cultural de um comunista
Aristeu Nogueira: a militância politica e cultural de um comunista Portal Iraraense
 
Capoeira rondonopolitense - vpmt
Capoeira rondonopolitense - vpmtCapoeira rondonopolitense - vpmt
Capoeira rondonopolitense - vpmtlucavao2010
 
Sandro sales catimbó apresentado no gt mercosul
Sandro sales catimbó apresentado no gt mercosulSandro sales catimbó apresentado no gt mercosul
Sandro sales catimbó apresentado no gt mercosulDaniel Torquato
 
Capoeira identidade e genero
Capoeira identidade e generoCapoeira identidade e genero
Capoeira identidade e generoAlexander Duarte
 
Livro para visualizar na web
Livro para visualizar na webLivro para visualizar na web
Livro para visualizar na webXarqueadas
 
HISTÓRIA DE NOSSA GENTE.pdf
HISTÓRIA DE NOSSA GENTE.pdfHISTÓRIA DE NOSSA GENTE.pdf
HISTÓRIA DE NOSSA GENTE.pdfValdemirMaia4
 
Estudo sobre surdez - II
Estudo sobre surdez - IIEstudo sobre surdez - II
Estudo sobre surdez - IIasustecnologia
 
Caetano veloso verdade-tropical
Caetano veloso verdade-tropicalCaetano veloso verdade-tropical
Caetano veloso verdade-tropicalMarcos Ribeiro
 
História em movimento vol. 02
História em movimento vol. 02História em movimento vol. 02
História em movimento vol. 02marcosfm32
 
História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01marcosfm32
 
Catálogo de Livros Sobre Relações Étnico-Raciais, Ensino de História e Cultur...
Catálogo de Livros Sobre Relações Étnico-Raciais, Ensino de História e Cultur...Catálogo de Livros Sobre Relações Étnico-Raciais, Ensino de História e Cultur...
Catálogo de Livros Sobre Relações Étnico-Raciais, Ensino de História e Cultur...Espaço Pethistória
 
Cartilha Pré-CONEA
Cartilha Pré-CONEACartilha Pré-CONEA
Cartilha Pré-CONEAfeab_lavras
 
Cartilha preparatória - 56º CONEA
Cartilha preparatória - 56º CONEACartilha preparatória - 56º CONEA
Cartilha preparatória - 56º CONEAFeab Brasil
 
Os caminhos da revolta em Cabo Verde
Os caminhos da revolta em Cabo VerdeOs caminhos da revolta em Cabo Verde
Os caminhos da revolta em Cabo VerdeSinchaSutu
 

Semelhante a Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf (20)

Aristeu Nogueira: a militância politica e cultural de um comunista
Aristeu Nogueira: a militância politica e cultural de um comunista Aristeu Nogueira: a militância politica e cultural de um comunista
Aristeu Nogueira: a militância politica e cultural de um comunista
 
Capoeira rondonopolitense - vpmt
Capoeira rondonopolitense - vpmtCapoeira rondonopolitense - vpmt
Capoeira rondonopolitense - vpmt
 
Sandro sales catimbó apresentado no gt mercosul
Sandro sales catimbó apresentado no gt mercosulSandro sales catimbó apresentado no gt mercosul
Sandro sales catimbó apresentado no gt mercosul
 
Marketing Brasileiro - Formação Cultural do Povo Brasileiro
Marketing Brasileiro - Formação Cultural do Povo BrasileiroMarketing Brasileiro - Formação Cultural do Povo Brasileiro
Marketing Brasileiro - Formação Cultural do Povo Brasileiro
 
Capoeira identidade e genero
Capoeira identidade e generoCapoeira identidade e genero
Capoeira identidade e genero
 
Livro para visualizar na web
Livro para visualizar na webLivro para visualizar na web
Livro para visualizar na web
 
Barao cocais n4
Barao cocais n4Barao cocais n4
Barao cocais n4
 
CRENÇAS E LENDAS DO UAUPES
CRENÇAS E LENDAS DO UAUPESCRENÇAS E LENDAS DO UAUPES
CRENÇAS E LENDAS DO UAUPES
 
HISTÓRIA DE NOSSA GENTE.pdf
HISTÓRIA DE NOSSA GENTE.pdfHISTÓRIA DE NOSSA GENTE.pdf
HISTÓRIA DE NOSSA GENTE.pdf
 
federal reserve
federal reservefederal reserve
federal reserve
 
Estudo sobre surdez - II
Estudo sobre surdez - IIEstudo sobre surdez - II
Estudo sobre surdez - II
 
Caetano veloso verdade-tropical
Caetano veloso verdade-tropicalCaetano veloso verdade-tropical
Caetano veloso verdade-tropical
 
LITERATURA SANTACRUZENSE
LITERATURA SANTACRUZENSELITERATURA SANTACRUZENSE
LITERATURA SANTACRUZENSE
 
História em movimento vol. 02
História em movimento vol. 02História em movimento vol. 02
História em movimento vol. 02
 
História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01
 
Catálogo de Livros Sobre Relações Étnico-Raciais, Ensino de História e Cultur...
Catálogo de Livros Sobre Relações Étnico-Raciais, Ensino de História e Cultur...Catálogo de Livros Sobre Relações Étnico-Raciais, Ensino de História e Cultur...
Catálogo de Livros Sobre Relações Étnico-Raciais, Ensino de História e Cultur...
 
Cartilha Pré-CONEA
Cartilha Pré-CONEACartilha Pré-CONEA
Cartilha Pré-CONEA
 
Cartilha preparatória - 56º CONEA
Cartilha preparatória - 56º CONEACartilha preparatória - 56º CONEA
Cartilha preparatória - 56º CONEA
 
Livro rs negro
Livro rs negroLivro rs negro
Livro rs negro
 
Os caminhos da revolta em Cabo Verde
Os caminhos da revolta em Cabo VerdeOs caminhos da revolta em Cabo Verde
Os caminhos da revolta em Cabo Verde
 

Último

Formação de Formadores III - Documentos Concílio.pptx
Formação de Formadores III - Documentos Concílio.pptxFormação de Formadores III - Documentos Concílio.pptx
Formação de Formadores III - Documentos Concílio.pptxVivianeGomes635254
 
A Besta que emergiu do Abismo (O OITAVO REI).
A Besta que emergiu do Abismo (O OITAVO REI).A Besta que emergiu do Abismo (O OITAVO REI).
A Besta que emergiu do Abismo (O OITAVO REI).natzarimdonorte
 
Oração Pelos Cristãos Refugiados
Oração Pelos Cristãos RefugiadosOração Pelos Cristãos Refugiados
Oração Pelos Cristãos RefugiadosNilson Almeida
 
Taoismo (Origem e Taoismo no Brasil) - Carlos vinicius
Taoismo (Origem e Taoismo no Brasil) - Carlos viniciusTaoismo (Origem e Taoismo no Brasil) - Carlos vinicius
Taoismo (Origem e Taoismo no Brasil) - Carlos viniciusVini Master
 
AS FESTAS DO CRIADOR FORAM ABOLIDAS NA CRUZ?.pdf
AS FESTAS DO CRIADOR FORAM ABOLIDAS NA CRUZ?.pdfAS FESTAS DO CRIADOR FORAM ABOLIDAS NA CRUZ?.pdf
AS FESTAS DO CRIADOR FORAM ABOLIDAS NA CRUZ?.pdfnatzarimdonorte
 
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdf
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdfBaralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdf
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdfJacquelineGomes57
 
O Sacramento do perdão, da reconciliação.
O Sacramento do perdão, da reconciliação.O Sacramento do perdão, da reconciliação.
O Sacramento do perdão, da reconciliação.LucySouza16
 
Ha muitas moradas na Casa de meu Pai - Palestra Espirita
Ha muitas moradas na Casa de meu Pai - Palestra EspiritaHa muitas moradas na Casa de meu Pai - Palestra Espirita
Ha muitas moradas na Casa de meu Pai - Palestra EspiritaSessuana Polanski
 
TEMPERAMENTOS.pdf.......................
TEMPERAMENTOS.pdf.......................TEMPERAMENTOS.pdf.......................
TEMPERAMENTOS.pdf.......................CarlosJnior997101
 
O SELO DO ALTÍSSIMO E A MARCA DA BESTA .
O SELO DO ALTÍSSIMO E A MARCA DA BESTA .O SELO DO ALTÍSSIMO E A MARCA DA BESTA .
O SELO DO ALTÍSSIMO E A MARCA DA BESTA .natzarimdonorte
 
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIA
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIAMATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIA
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIAInsituto Propósitos de Ensino
 
As festas esquecidas.pdf................
As festas esquecidas.pdf................As festas esquecidas.pdf................
As festas esquecidas.pdf................natzarimdonorte
 
Série: O Conflito - Palestra 08. Igreja Adventista do Sétimo Dia
Série: O Conflito - Palestra 08. Igreja Adventista do Sétimo DiaSérie: O Conflito - Palestra 08. Igreja Adventista do Sétimo Dia
Série: O Conflito - Palestra 08. Igreja Adventista do Sétimo DiaDenisRocha28
 
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 199ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19PIB Penha
 
G6 - AULA 7.pdf ESDE G6 - MEDIUNIDADE de efeitos intelectuais
G6 - AULA 7.pdf ESDE G6 - MEDIUNIDADE  de efeitos intelectuaisG6 - AULA 7.pdf ESDE G6 - MEDIUNIDADE  de efeitos intelectuais
G6 - AULA 7.pdf ESDE G6 - MEDIUNIDADE de efeitos intelectuaisFilipeDuartedeBem
 
Formação da Instrução Básica - Congregação Mariana
Formação da Instrução Básica - Congregação MarianaFormação da Instrução Básica - Congregação Mariana
Formação da Instrução Básica - Congregação MarianaMarcoTulioMG
 
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 131 - O Mundo e a Crença
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 131 - O Mundo e a CrençaSérie Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 131 - O Mundo e a Crença
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 131 - O Mundo e a CrençaRicardo Azevedo
 

Último (20)

Formação de Formadores III - Documentos Concílio.pptx
Formação de Formadores III - Documentos Concílio.pptxFormação de Formadores III - Documentos Concílio.pptx
Formação de Formadores III - Documentos Concílio.pptx
 
A Besta que emergiu do Abismo (O OITAVO REI).
A Besta que emergiu do Abismo (O OITAVO REI).A Besta que emergiu do Abismo (O OITAVO REI).
A Besta que emergiu do Abismo (O OITAVO REI).
 
Oração Pelos Cristãos Refugiados
Oração Pelos Cristãos RefugiadosOração Pelos Cristãos Refugiados
Oração Pelos Cristãos Refugiados
 
Taoismo (Origem e Taoismo no Brasil) - Carlos vinicius
Taoismo (Origem e Taoismo no Brasil) - Carlos viniciusTaoismo (Origem e Taoismo no Brasil) - Carlos vinicius
Taoismo (Origem e Taoismo no Brasil) - Carlos vinicius
 
AS FESTAS DO CRIADOR FORAM ABOLIDAS NA CRUZ?.pdf
AS FESTAS DO CRIADOR FORAM ABOLIDAS NA CRUZ?.pdfAS FESTAS DO CRIADOR FORAM ABOLIDAS NA CRUZ?.pdf
AS FESTAS DO CRIADOR FORAM ABOLIDAS NA CRUZ?.pdf
 
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdf
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdfBaralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdf
Baralho Cigano Significado+das+cartas+slides.pdf
 
O Sacramento do perdão, da reconciliação.
O Sacramento do perdão, da reconciliação.O Sacramento do perdão, da reconciliação.
O Sacramento do perdão, da reconciliação.
 
Ha muitas moradas na Casa de meu Pai - Palestra Espirita
Ha muitas moradas na Casa de meu Pai - Palestra EspiritaHa muitas moradas na Casa de meu Pai - Palestra Espirita
Ha muitas moradas na Casa de meu Pai - Palestra Espirita
 
TEMPERAMENTOS.pdf.......................
TEMPERAMENTOS.pdf.......................TEMPERAMENTOS.pdf.......................
TEMPERAMENTOS.pdf.......................
 
VICIOS MORAIS E COMPORTAMENTAIS NA VISÃO ESPÍRITA
VICIOS MORAIS E COMPORTAMENTAIS  NA VISÃO ESPÍRITAVICIOS MORAIS E COMPORTAMENTAIS  NA VISÃO ESPÍRITA
VICIOS MORAIS E COMPORTAMENTAIS NA VISÃO ESPÍRITA
 
O SELO DO ALTÍSSIMO E A MARCA DA BESTA .
O SELO DO ALTÍSSIMO E A MARCA DA BESTA .O SELO DO ALTÍSSIMO E A MARCA DA BESTA .
O SELO DO ALTÍSSIMO E A MARCA DA BESTA .
 
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIA
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIAMATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIA
MATERIAL DE APOIO - E-BOOK - CURSO TEOLOGIA DA BÍBLIA
 
As festas esquecidas.pdf................
As festas esquecidas.pdf................As festas esquecidas.pdf................
As festas esquecidas.pdf................
 
Série: O Conflito - Palestra 08. Igreja Adventista do Sétimo Dia
Série: O Conflito - Palestra 08. Igreja Adventista do Sétimo DiaSérie: O Conflito - Palestra 08. Igreja Adventista do Sétimo Dia
Série: O Conflito - Palestra 08. Igreja Adventista do Sétimo Dia
 
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 199ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19
9ª aula - livro de Atos dos apóstolos Cap 18 e 19
 
G6 - AULA 7.pdf ESDE G6 - MEDIUNIDADE de efeitos intelectuais
G6 - AULA 7.pdf ESDE G6 - MEDIUNIDADE  de efeitos intelectuaisG6 - AULA 7.pdf ESDE G6 - MEDIUNIDADE  de efeitos intelectuais
G6 - AULA 7.pdf ESDE G6 - MEDIUNIDADE de efeitos intelectuais
 
Formação da Instrução Básica - Congregação Mariana
Formação da Instrução Básica - Congregação MarianaFormação da Instrução Básica - Congregação Mariana
Formação da Instrução Básica - Congregação Mariana
 
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 131 - O Mundo e a Crença
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 131 - O Mundo e a CrençaSérie Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 131 - O Mundo e a Crença
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 131 - O Mundo e a Crença
 
Mediunidade e Obsessão - Doutrina Espírita
Mediunidade e Obsessão - Doutrina EspíritaMediunidade e Obsessão - Doutrina Espírita
Mediunidade e Obsessão - Doutrina Espírita
 
Aprendendo a se amar e a perdoar a si mesmo
Aprendendo a se amar e a perdoar a si mesmoAprendendo a se amar e a perdoar a si mesmo
Aprendendo a se amar e a perdoar a si mesmo
 

Histórias de batuques e batuqueiros_Oliveira_Gomes_Scherer.pdf · versão 1.pdf

  • 1. HISTÓRIAS DE BATUQUES E BATUQUEIROS: Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre Denis Pereira Gomes Jovani de Souza Scherer Vinicius Pereira de Oliveira
  • 2. Denis Pereira Gomes Jovani de Souza Scherer Vinicius Pereira de Oliveira HISTÓRIAS DE BATUQUES E BATUQUEIROS: Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre E-book Pelotas, 2021
  • 3. © Dos Autores 2021 Editoração: Denis Pereira Gomes e Luiz Felippe Leal Gomes Capa: Denis Pereira Gomes Imagens da capa: Acervo dos autores Revisão: Miriam Queiroz Müller E-book Edição dos autores. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Oliveira, Vinicius Pereira de Histórias de batuques e batuqueiros [livro eletrônico] : Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre / Vinicius Pereira de Oliveira, Denis Pereira Gomes, Jovani de Souza Scherer. -- Pelotas, RS : Ed. dos Autores, 2021. PDF ISBN 978-65-00-31645-2 1. Batuque (Culto) - Rio Grande do Sul 2. Cultos afro-brasileiros - Rio Grande do Sul 3. Negros - Usos e costumes - Rio Grande do Sul 4. Orixás - Culto - Rio Grande do Sul I. Gomes, Denis Pereira. II. Scherer, Jovani de Souza. III. Título. 21-83422 CDD-299.8165 Índices para catálogo sistemático: 1. Rio Grande do Sul : Estado : Batuque de Nação : Cultos afro-brasileiros : Religião 299.8165 Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380
  • 4. Em memória do Mestre Carlos Galvão Krebs, pela sua doação ao estudo pioneiro do Batu- que do Rio Grande do Sul. Agradecemos imensamente à família do Mestre por preservar seu acervo e permitir acesso às informações aqui utilizadas, especialmente à sua neta Cristina Krebs.
  • 5. Carlos Galvão Krebs Nascido em São Gabriel no ano de 1914, falecido em Porto Alegre em 1992. Foi um etnógrafo e fol- clorista brasileiro, formado em Direito, História e Geografia e Artes Plásticas. Foi funcionário da Secretaria de Educação do Estado do RS e fundador do Instituto de Tradição e Folclore, origem do IGTF (Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore), ao lado de figuras como Dante de Laytano e Paixão Cortes. Foi um dos pioneiro no estudo etnográfico da religiosidade de matriz africana no Rio Grande do Sul, ao lado de Dante de Laytano, Roger Bastide e Melville Herskovits. A partir de fins da década de 1940, frequentou diversas casas de Batuque em Porto Alegre, com destaque para as de Mãe Moça de Oxum, Mãe Andrezza de Oxum, Mãe Apolinária de Oyá, Mãe Ester de Iemanjá, Mãe Maria Horária do Bará, Pai Floren- tino do Ogum e Irmão Laudelino Manoel de Souza (umbanda). Em uma época na qual o Batuque era alvo de perseguições, publicou diversas reportagens em jornais e revistas do Brasil, buscando levar ao grande público um pouco de conhecimento sobre o tema. Dialogou com muitos folcloristas e etnógrafos como Câmara Cascudo, Peixe Grande, Edson Carnei- ro e Veríssimo de Melo. Criou o primeiro curso de folclore do estado, nos anos 50. Entre fins da década de 1950 até 1980, voltou-se ao estudo do folclore gaúcho, em seus diversos aspectos. Temas como: congadas e maçambique de Osório, cultura campeira, saberes e ofícios tradicionais, entre outros. Autor do livro Estudos de Batuque (Krebs, 1988).
  • 6. Sumário 1 - Introdução...............................................................................................................................................7 2 - Sobre os autores.......................................................................................................................................9 3 - Culto aos Orixás no Rio Grande do Sul...............................................................................................10 4 - As sementes do Batuque: religiosidades africanas no Rio Grande do Sul....................................... 4.1 - Os batuques nos territórios negros de Rio Grande e Pelotas..........................................................12 Pelotas e os batuques na Várzea..........................................................................................................12 Elvira: uma liderança afro religiosa na Várzea...................................................................................16 O Arroio Santa Bárbara, a Praça Cipriano Barcelos e os ritos fúnebres afro brasileiros...................16 4.2 - Os territórios negros de Rio Grande e seus batuques......................................................................20 A comunidade de africanos minas e a religiosidade afrodescendente................................................22 4.3 - As religiosidades negras na Porto Alegre do século XIX...............................................................25 Porto Alegre e o Candombe da Mãe Rita...........................................................................................25 A Irmandade do Rosário de Porto Alegre...........................................................................................28 Os Mina e os Nagô em Porto Alegre – as nações da liberdade..........................................................30 A Semente do Batuque........................................................................................................................31 Os becos do centro antigo...................................................................................................................34 5 - O território negro do Areal da Baronesa............................................................................................37 A religiosidade afro no Areal..............................................................................................................40 Lideranças Religiosas na Cidade Baixa..............................................................................................41 Custódio Joaquim de Almeida - o Príncipe africano..........................................................................41 6 - Os territórios negros da Colônia Africana e da Bacia do Mont Serrat...........................................48 6.1 - Religiosidade negra.........................................................................................................................51 Pai Antoninho da Oxum - nação Oyó.................................................................................................52 Mãe Andreza de Oxum.......................................................................................................................53 Mãe Apolinária de Oyá....................................................................................................................... 6.2- A natureza e os orixás.......................................................................................................................55 6.3- Alguns outros territórios negros.......................................................................................................56 6.4 - A expulsão da população negra da Colônia Africana e do Mont Serrat..........................................56 7 - Proposta de atividade para uso em sala de aula................................................................................58 8 - Sugestão de documentários sobre o Batuque do RS.........................................................................60 ReferênciasBibliográficas..........................................................................................................................62 Notas............................................................................................................................................................70 54 11
  • 7. 7 Introdução Histórias de batuques e batuqueiros, para batuqueiros. Assim foi pensada esta publicação, que tem como objetivo analisar a formação histórica das religiosidades de matriz africana no Rio Grande do Sul, par- ticularmente focando no Batuque de Nação. Mediante um leque variado de fontes históricas (documentos estatais, jornais, depoimentos orais de afro religiosos, registros de pesquisa, etc), bem como da bibliografia especializada, buscamos oferecer ao lei- tor um panorama sobre o tema. Mais do que responder a todas indagações e lacunas que permeiam a temática, propomos, acima de tudo, levantar questões para o debate. Não se trata de uma publicação sobre "fundamentos" do Batuque, ou seja, sobre a sua "liturgia", mas sim sobre alguns aspectos da sua formação. Para tal, foi dada especial atenção à noção de território negro, espaços onde se construíram diversas práticas de resistência e solidariedade da comunidade negra, buscando perceber a sua importância para a questão da religiosidade. Usufruindo da liberdade que a poesia da vida nos permite, entendemos como territórios negros os lugares nos quais, no suor do dia a dia e no enfrentamento da incompreensão, a comunidade afrodescendente construiu e plantou suas raízes, seu projetos de vida, seus sonhos, suas lutas, seus amores e dessabores, seus lazeres e suas religiosidades. Firmando assim uma identidade quanto a estes espaços. Esse caminho foi trilhado a partir dos territórios negros das cidades de Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre, berços do Batuque no estado, localidades que no século XIX foram não só cidades negras, mas tam- bém africanas. Trabalhadores e trabalhadoras escravizados, libertos e livres construíram ao longo dos tempos, com seu trabalho, não só a prosperidade dessas terras, mas também uma importante e significativa parcela da cul- tura nacional. Vidas negras, acima de tudo. Celebremos nossa ancestralidade negra! As práticas de relação com o sagrado africano podem ser vistas dentro de um leque maior de expe- riências de resistência negra, que ao longo da história englobaram também a luta pela alforria, a formação de clubes sociais negros, de irmandades religiosas de homens de cor, bem como de formas mais radicais de re- sistência como as fugas e a formação de quilombos. Lutas anti-racistas. Lutas coletivas. Todas elas, de formas complementares, foram essenciais para a existência desses grupos. Segundo o Censo de 2010, o Rio Grande do Sul é o estado do Brasil com maior percentual de pes- soas auto-declaradas como adeptas de religiões de matriz africana. São dados que demonstram a presença marcante, em um estado que insiste em se "vender" como branco e europeizado, de terreiros de religiosidade de matriz africana, portadores de uma diversidade de linhagens e pertencimentos ancestrais e identitários, tais como o Batuque de Nação, a Umbanda, a Quimbanda e em dimensão menor o Candomblé. Mas se as narrativas tradicionais e conservadoras sobre a formação do Rio Grande do Sul nem sem- pre contemplam a importância da população afrodescendente, nas memórias de famílias negras, nas falas dos movimentos sociais e nas práticas dos afro religiosos ela permaneceu viva, resistindo no dia a dia de suas vidas e lutas. Igualmente muitos pesquisadores acadêmicos - entre eles diversos afro religiosos e afrodescendentes - têm já, há alguns bons anos, buscado contribuir para a construção de narrativas alternativas a esta invisibili- zação da cultura negra. É a este conjunto de esforços que, modestamente, almejamos nos aproximar. Esperamos que ao longo destas páginas o leitor possa adentrar, ainda que brevemente, nos cortiços e territórios negros das cidades estudadas e, de lá, acompanhar as experiências dessas batuqueiras e batuqueiros do passado. Se suas práticas eram vistas pelo olhar etnocêntrico e normatizador das classes dominantes sim- plesmente como casos de curandeirismo e charlatanismo e tachadas de forma pejorativa e condenatória como
  • 8. 8 feitiçaria ou magia, por outro lado podem ser pensadas como forma de resistência, como elementos para cons- trução de identidades, de alicerçamento de comunidades e territórios, como recurso para vivenciar o coletivo e buscar conforto espiritual e social. Este trabalho que ora apresentamos foi viabilizado mediante apoio do Edital Criação e Formação - Diversidade das Culturas (SEDAC/RS), com recursos provenientes da Lei Aldir Blanc (Lei 14.017/20). É re- sultado dos debates desenvolvidos pelo "Coletivo Moforibalé: Batuque e História", formado pelos três autores e tem como objetivo apresentar uma abordagem introdutória sobre a formação histórica das religiosidades de matriz africana no Estado, reservando para uma publicação futura o aprofundamento de uma série de possíveis questões. Nele apresentaremos os resultados parciais de uma pesquisa ainda em andamento, colocando-nos o desafio de escrever para um público diversificado (professores, estudantes, batuqueiros, ativistas de movimen- tos sociais) sem, no entanto, abandonar o rigor teórico-metodológico e conceitual necessário. Quanto ao conteúdo que segue, o leitor encontrará, inicialmente, uma brevíssima e simplificada des- crição do Batuque e dos orixás cultuados no estado. No capítulo seguinte, denominado As sementes do Batu- que, retornamos ao século XIX com o objetivo de traçar um panorama sobre as formas de religiosidade negra visualizadas nos registros históricos. Na sequência, adentra-se o século XX a partir da análise dos territórios negros onde o Batuque se estruturou na cidade de Porto Alegre: Areal da Baronesa, Colônia Africana e Bacia do Mont Serrat. Algumas lideranças do Batuque receberam um pouco mais de atenção, como foi o caso de Pai Antoninho da Oxum, Mãe Andreza, Mãe Apolinária e o lendário Príncipe Custódio Joaquim de Almeida. Por fim, apresentamos uma sugestão de atividade didática para uso escolar, bem como, uma listagem de alguns documentários sobre o Batuque do Rio Grande do Sul. Optamos por colocar indicações da bibliografia utilizada, das fontes consultadas e outras observações em notas de fim de livro, para tornar a leitura mais leve. Mas o interessado em verificar a procedência das fon- tes documentais citadas e das afirmações colocadas, bem como no aprofundamento de alguma questão, pode recorrer a estas notas. Muitos dos artigos, dissertações e teses citadas encontram-se disponíveis gratuitamente, de forma online, na internet. Colocar em destaque as matrizes africanas da nossa história é uma maneira de saudar os princípios democráticos mais profundos na formação cultural e religiosa brasileira, em tempos cada vez mais marcados pela intolerância com a diferença e pela crítica ao reconhecimento da diversidade, ambas alimentadas pelo desconhecimento do passado. Entendemos não haver forma melhor de combater a ignorância do que o conhe- cimento. Os velhos estigmas que pairam sobre a religiosidade de matriz africana e a comunidade batuqueira não devem mais persistir no presente. Essa publicação busca potencializar a valorização da diversidade étni- co-cultural e servir como instrumento para o enfrentamento à intolerância religiosa e ao racismo estrutural em salas de aula, em casas de religião, e onde mais se queira discutir e ampliar a compreensão relativa ao Batuque e sobre os batuqueiros de Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas.
  • 9. 9 Sobre os autores Denis Pereira Gomes Licenciado em História/Ulbra Canoas, Licenciado em Geografia Uniasselvi, Especialista em História do RS/ UNISINOS. Linhas de pesquisas: Rev. Federalista, Movimento tenentista de 1926, formação do Batuque em Porto Alegre. Babalorixá Nação Cabinda. Jovani de Souza Scherer Licenciado em História/UFRGS (2005). Mestre em História/UNISINOS (2008). Atualmente cursa Douto- rado em História/UFRGS, com foco na história do Príncipe Custódio Joaquim de Almeida. Tem trajetória de pesquisa sobre temas ligados às experiências negras no Brasil Império, tais como alforrias, liberdade e escravidão de africanos no Rio Grande do Sul e a formação do Batuque no estado. Capoeirista desde 2003, integra a Escola de Capoeira Angola Africanamente desde 2012, onde é discípulo do Mestre Guto Obafemi. Vinicius Pereira de Oliveira - Vinicius de Aganjú: Licenciado em História/UFRGS (2002). Mestre em História/UNISINOS (2005) e Doutor em História/ UFRGS (2013). Pesquisa temas relacionados à trajetória da população afrodescendente no Rio Grande do Sul, como: experiências de escravidão, liberdade e resistência; lanceiros negros farroupilhas; comunidades remanescentes de quilombos; Batuque e afro religiosidade. Iniciado e aprontado no Batuque de Nação Jêje, pelas mãos da Mãe Maria do Xangô (Maria Vieira Ferrão - Porto Alegre), da bacia de Joãozinho do Exu Bí. Reafirmado na Nação Ijexá pelas mãos da Mãe Nara do Xapanã (Nara Louro - Pelotas), da bacia de Zeca Pinheiro do Xapanã Obirobô (Porto Alegre). Autor do livro De Manoel Congo a Manoel de Paula: um afri- cano ladino em terras meridionais (Porto Alegre: EST Edições, 2006).
  • 10. 10 3 - Culto aos Orixás no Rio Grande do Sul Para os adeptos do Batuque, os orixás são representações das forças da natureza e de tudo que existe no mundo. Os orixás cultuados no Rio Grande do Sul são originários da cultura nagô, mas o culto de Nação Africana, como era denominado o "Batuque" até meados dos anos 60, possui também elementos da cultura Jeje, atual região do Benin. O Batuque ( terminologia dada pelos brancos, que foi adotada pelos seus praticantes ao longo do tempo) é bastante difundido em todo o estado do RS e na região platina. Atualmente cultua as nações Oyó, Ijexá, Jeje, Cabinda e Nagô. Vejamos, a seguir, os orixás cultuados no Rio Grande do Sul e suas características: Exu (Bará): orixá de extrema importância pois no culto faz a ligação dos homens com os deuses. É o orixá mais próximo dos seres humanos. Sendo dono dos caminhos, tem o poder de abri-los ou fechá-los, trancando ou destrancando situações. Representa a força que movimenta o universo. Saudação: Alupô. Ogum: é o dono do ferro e de todos os seus derivados, como armas e ferramentas. Também é dono da bebida alcoólica e é considerado o senhor da guerra. É esposo de Iansã. Senhor das demandas. Saudação: Ogunhê. Iansã/Oyá: dona dos ventos, das tempestades e dos raios, é uma orixá guerreira. Ligada aos rituais dos eguns (espíritos). Saudação: Epaêi-o. Xangô: orixá enérgico, é considerado o dono dos trovões e do fogo, regente dos intelectuais e de todos que lidam com as leis e com a justiça. Seu símbolo é a balança, o livro e o machado duplo. Saudação: Caô Cabecile. Ibedji: considerados orixás gêmeos, são divindades infantis, os protetores das crianças. Tem seu ritu- al ligado ao culto de Xangô e Oxum). Saudação: Iê-Iê-o Oxum Ibedje e Caô Cabecile Xangô Ibedje. Odé/Otim: casal ligado às matas; caçadores. Saudação: Okebambo. Obá: tem em seu culto muitos fundamentos secretos. Sua feitura é complexa sendo poucos os sacer- dotes que a conhecem a fundo. Dona do movimento e da cura, seu símbolo é a roda. Saudação: Exó. Ossanha: também referido como Ossae ou Ossanhe, é o médico entre os orixás. É o dono das folhas, das plantas medicinais, sem as quais não haveria nenhum ritual. Saudação: Êu êu. Xapanã: conhecido também como o orixá da varíola, rege as doenças (principalmente as pestes e doenças de pele) e está ligado diretamente à saúde. Pode tanto espalhar as doenças como curá-las. Com sua vassoura varre os males em geral, particularmente as doenças. Saudação: Ábao. Oxum: dona das águas doces, da riqueza e do ouro, sendo assim considerada a regente da prosperida- de. Associada à vaidade, à beleza e ao amor. Rege a fecundidade feminina, protegendo as gestações. Mulheres grávidas ou que querem engravidar recorrem sempre a Oxum. Saudação: Iê-Iê-o. Iemanjá: divindade das águas salgadas, é considerada a orixá do pensamento, dos oceanos, protetora dos lares, da família e de todos que dependem do mar (marinheiros, pescadores). A grande Mãe de todos os orixás. Saudação: Omiodo. Oxalá: pai de todos os Orixás, rege a harmonia, o equilíbrio, a serenidade e a sabedoria. No Rio Grande do Sul é também o Orixá do Ifá, ou seja, dono do oráculo e adivinhação pelo jogo dos búzios. É o mais velho dos orixás. Saudação: Epaô-babá
  • 11. 11 4 - As sementes do Batuque: religiosidades africanas no Rio Grande do Sul Ao andar por entre as ruas, becos e encruzilhadas de alguns dos antigos territórios negros de diversas cidades do Brasil, é possível perceber claramente a forte presença da religiosidade de matriz africana. Em Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas não é diferente. Estas cidades são referidas na memória de muitos afro religiosos antigos como sendo os berços do Batuque de Nação no estado, já que a região concentrou grandes quantidades de africanos e afrodescendentes e estava articulada com o único porto marítimo do estado, pelo qual adentrava a maior parte destes trabalhadores. As sementes do Batuque (culto aos orixás africanos) podem ser encontradas ao longo do século XIX nestas cidades. Não apenas em uma ou em outra. Todas foram berços simultâneos do culto aos orixás no es- tado. Foram importantes centros econômicos, cidades negras que rec eberam grandes levas de africanos de diversas origens, inicialmente mais bantos (congos, cabindas, benguelas, cassanges, moçambiques), depois com a maior entrada dos iorubanos (minas, jejes, nagôs, haussás etc). É justamente da tradição cultural destes últimos, originários da África Ocidental, que emerge o culto aos orixás no Rio Grande do Sul1 . POPULAÇÃO AFRICANA EM RIO GRAN- DE E PELOTAS A proporção de africanos entre a população de Rio Grande e Pelotas variou ao longo do século XIX. Em Rio Grande, até 1830, a cada cinco africanos pelo menos quatro eram originários da África Central Atlântica, ou de Congo e Angola. Ou seja, mais de 80% dos africanos eram bantos. Nessa época, os africanos ocidentais, Minas e Nagôs, eram apenas cerca de 10%. Ao longo do século, no entanto, a proporção de pes- soas trazidas da África Ocidental foi aumentando gradati- vamente sua participação no total de africanos nesta cidade portuária.. Entre 1831 e 1850 eles correspondiam a cerca de 20 % dos africanos, e entre 1850 e 1865 já chegavam a 40%. Ocorreu um processo semelhante em Pelotas. As pessoas provenientes da África Central Atlântica predomi- navam entre 1830 e 1850, enquanto os africanos ocidentais representavam cerca de 30% dos escravizados. Entre 1850 e 1888 os ocidentais tornam-se a maioria entre os africanos escravizados, chegando a cerca de 50% da população afri- cana. Os africanos ocidentais viriam a ser, contudo, real- mente atuantes no mercado da liberdade. Alcançando níveis de alforria de quase o dobro da sua proporção entre escravi- zados tanto em Pelotas como em Rio Grande (Scherer, 2008; Pinto, 2012; Pinto, 2018). Importante é reafirmar que o Batuque não descende do Candomblé bahiano, nem do Xangô de Pernambuco. Ain- da que a memória batuqueira refira a possíveis relações des- tas religiões irmãs com o Batuque, mediante alguns persona- gens de lá migrados em algum momento, todas estas práticas de relação com o sagrado foram frutos da diáspora africana nas américas. Cada uma representa um arranjo possível do que chamamos, genericamente, de religiões de matriz afri- cana ou religiões afro-diaspóricas, presentes inclusive em outros países, como a Santeria cubana ou o Vodu haitiano. Foi a partir das sementes plantadas ao longo de dé- cadas de vivências negras que veio a ocorrer, no início do século XX, o que se pode chamar de institucionalização do Batuque no Rio Grande do Sul: o estabelecimento de um mo- delo organizado a partir das "casas de nação", com rituais e lideranças publicamente reconhecidas - mesmo que, por vezes, perseguidas. Um momento de organização de uma certa forma de vivenciar o culto aos orixás vigente até os dias de hoje. Processo esse acompanhado, obviamente, por mudanças, transformações e reconfigurações, uma vez que nenhuma cultura é estática e sofre variações para que possa continuar existindo em diferentes contextos. Para compreender como essa tradição se construiu historicamente, é fundamental buscar se aproximar do ponto de vista daqueles que a viveram. Para tal, tentar reconstituir os territórios negros onde as sementes do Batuque germina- ram é um recurso para tentarmos ouvir hoje as vozes de ba- tuqueiras e batuqueiros de antigamente.
  • 12. 12 Convidamos o leitor a percorrer alguns dos territórios negros nos quais as sementes do Batuque ger- minaram ao longo do século XIX e XX, com destaque para as cidades de Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre. 4.1 - Os batuques nos territórios negros de Rio Grande e Pelotas O porto de Rio Grande e as charqueadas pelotenses são dois espaços emblemáticos para os adeptos das religiões de matriz africana. Por lá adentraram milhares de trabalhadoras e trabalhadores africa- nos e afro-brasileiros que foram responsáveis não apenas por carregar o Brasil nas costas, mas também, por contribuírem com a riqueza da cultura brasileira, da qual o culto aos orixás faz parte. Pelotas e os batuques na Várzea As mais antigas referências associadas ao batuque em Pelotas são as memórias de dois viajantes es- trangeiros: a primeira é a descrição de um casamento de negros efetuada por Carl Seidler em 1827, às margens do Canal São Gonçalo, onde foi utilizado um instrumento percussivo aos moldes do atualmente conhecido tambor de sopapo (Seidler, 2003, p. 316-317)2 . Segundo Nei Lopes: “A Diáspora africana com- preende dois momentos principais. O primeiro, gerado pelo comércio escravo, ocasionou a dispersão de povos africanos tanto pelo Atlântico quanto pelo oceano Índi- co e mar Vermelho, caracterizando um verdadeiro ge- nocídio, a partir do século XV - quando talvez mais de 10 milhões de indivíduos foram levados, por traficantes europeus, principalmente para as Américas. O segundo momento ocorre a partir do século XX, com a emigra- ção, sobretudo para a Europa, em direção às antigas metrópoles coloniais. O termo “diáspora” serve também para designar, por extensão de sentido, os descendentes de africanos nas Américas e na Europa e o rico patrimô- nio cultural que construíram.” (Lopes, 2004) SOPAPO O tambor de sopapo é considerado um instrumento afro-gaúcho. Foi largamente utilizado no carnaval antigo destas cidades e teve seu uso resgatado a partir dos anos 2000. Em agosto de 2021, foi reconhecido como Patrimô- nio Imaterial da cidade de Pelotas (Lei n. 9615/21). Nas palavras do músico e estudioso Marco Maia, o sopapo é: "[...] um gênero de tambor de grandes dimensões conhecido hoje nas cidades de Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre, é cercado por incertezas quanto às suas origens e circulação. Produto da reconstrução diaspórica, atribuído aos escravos trabalhadores nas Charqueadas em Pelotas e Rio Grande, no século XIX, o instrumento foi amplamente usado a partir da década de 1940 em escolas de samba nes- tas cidades, conferindo particularidades ao samba executa- do pelas baterias destas escolas". (Maia, 2008, p. 13-14) Fonte: Wendroth (1982) Fonte: Junior (2013) Mestre Baptista com tambores de sopapo - Pelotas
  • 13. 13 Uma segunda referência aparece nos relatos do francês Nicolau Dreys sobre sua viagem ao Brasil (1818-1827). Ao retratar o trabalho das charqueadas, referiu não ser raro ver os escravizados "consagrar a seus batuques as horas de repouso que decorrem desde o fim do dia até o instante da noite em que a voz do capataz se faz ouvir" (Dreys, 1839, p. 204)3 . Mercado Público Municipal de Pelotas - sem data. Fonte: Rubira (2012) Mercado Público Municipal de Pelotas. Pátio interno, em dia de comércio - data não informada Fonte: Rubira (2012)
  • 14. 14 CHARQUEADA As primeiras charqueadas rio-grandenses surgiram em fins do séc. XVIII. Eram estabelecimentos de pro- dução de carne seca salgada e de outros subprodutos de origem bovina como couros secos, sebo, graxa, cascos, chifres e crinas. Esta carne seca, ou charque, tornou-se o alimento básico da escravaria em amplas regiões da América. A escravidão era a mão de obra básica destes estabelecimentos, podendo empregar por vezes cerca de 150 escravizados. A região de Pelotas concentrou a maior parte das charqueadas rio-grandenses, as quais geralmente se situavam nas margens dos arroios, rios e lagoas, tanto por necessitarem das águas como local de despejo de grande quantidade de sangue dos animais abatidos, como também pela facilidade do transporte náu- tico do produto desta manufatura para o porto de Rio Grande e a partir daí para diversas localidades atlânticas. Aquarela de uma Charqueada de Pelotas – Aquarela de J.B. Debret (1829) A região da Várzea, juntamente com as margens do Arroio Pelotas, do Arroio Santa Bárbara e do Canal São Gonçalo, foi ao longo dos séculos XIX e XX área destacada de moradia, trabalho e religiosidade popular e afro brasileira na cidade de Pelotas (Moreira e Al- Alam, 2013, p. 135-136). O documento abaixo noticia uma batida policial em uma casa onde se realizava um culto de matriz africana, localizada na região da Várzea, vizinha do espaço portuário e que compreende os atuais bairros do Porto, Baixada, Fátima, Navegan- tes e Balsa. É uma área até os dias de hoje marcada por um grande número de casas de religiosidade de matriz africana. No dia 22/03/1885 o jornal Diário de Pelotas estampava a seguinte notícia: "Prisão de Feiticeiros - A polícia particular efetuou anteontem, às 10 horas da noite, na várzea, a prisão de uma tribo de feiticeiros, ou antes, de larápios industriosos; porque os feiticeiros desapareceram na mesma ocasião em que se ocultaram para sempre os astrólogos. Agora só há feiticeiras, e estas a polícia só cumpre-lhe tratá-las gentilmente. O comandante da polícia particular que pensa do mesmo modo, e sabe distinguir as cousas, conhece bem a diferença que existe entre feiticeiros e feiticeiras. Por isso mesmo, anteontem ás 10 horas penetrou na casa de um feiticeiro e surpreendeu-o no momento em que, precedido de sua corte, trajava vestimenta imperial, semelhante a um imperador de comédia. Pois assim mesmo trajado, o Sr. Comandante da polícia particular o fez seguir para o xadrez. E não houve apelação nem agravo, imperador e Corte lá foram a caminho da prisão. Bravo! A polícia virou a republicana. Guerra de morte aos imperadores… feiticeiros. - Dizem-nos que este imperador já foi preso no Rio Grande, pelo subdelegado de polícia, Sr. Tigre Junior. É um desgraçado o tal imperador." 4 '
  • 15. 15 Interessante chamar a atenção para o fato da liderança religiosa, tratada negativamente como "feiti- ceiro", estar usando uma "vestimenta imperial". Seria um axó ("roupa" no idioma iorubá, usado como veste ritualística nas cerimônias do Batuque)? Trabalhadores negros no RS - 1852 - Aquarelas de Wendroth Fonte: Wendroth (1982) Arredores da cidade de Pelotas - 1852 Fonte: Wendroth (1982) Mas o documento possibilita também pensar a tônica do que foi a postura recorrente da imprensa, do estado brasileiro e da sociedade branca para com a cultura afro religiosa: o preconceito, a condenação e a ironia. Ao denominar as práticas afro religiosas como feitiçaria, magia e curandeirismo, a cultura dominante brasileira demonstrou a sua incompreensão e a sua intolerância para com as práticas sagradas oriundas do continente africano. Passado ou presente?
  • 16. 16 Elvira: uma liderança afro religiosa na Várzea Talvez a mais célebre afro religiosa que as fontes históricas tenham permitido conhecer para o sécu- lo XIX em Pelotas tenha sido Elvira. Em diversos momentos, a "preta Elvira" - como é tratada nas fontes -, aparece sendo reprimida em suas práticas, o que sugere que fosse uma importante liderança. No dia doze de junho de 1878, por exemplo, agentes da Polícia invadiram o local onde Elvira comandava um ritual, situado na Várzea, e apreenderam "diversos objetos de que se serviam". A maior parte dos presentes, porém, conseguiu fugir, sendo preso apenas um único "devoto" do "manipanso" (Monquelat, 2014, p. 57-58). No dia sete de julho de 1879, o jornal Correio Mercan- til relatou que, em pleno dia, Elvira fora "apanhada" novamente pelos lados da Várzea em flagrante delito por "feitiçaria". E cerca de um ano depois Elvira volta a ser notícia, quando na noite de 25/07/1880 a polícia deu uma batida na casa desta "muito conhe- cida feiticeira", na rua 24 de Outubro (atual Tiradentes). Nela es- tavam presentes 14 pessoas que dançavam "ao som de berimbau e uma gaita" (Monquelat, 2014, p. 90-91). Apesar de ter sido detida diversas vezes, Elvira perma- necia a praticar sua fé e a agregar pessoas escravizadas, livres e forras, demonstrando a força e a importância desta cultura para a comunidade negra da cidade. A polícia, porém, não compreendia o ocorrido desta forma: todos materiais ritualísticos encontrados em uma dessas batidas foram queimados numa fogueira no pátio do quartel. Quantas 'Elviras' Pelotas conheceu e reprimiu? Uma trabalhadora negra - RS (1852) Fonte: Wendroth (1982) O Arroio Santa Bárbara, a Praça Cipriano Barcelos e os ritos fúnebres afro brasileiros A Praça Cipriano Barcelos é conhecida pela memória popular como a Praça dos Enforcados. Embora não tenha sido o único local no qual ocorreram enforcamentos de escravizados condenados pela justiça, este local acabou ecoando a lembrança destes tristes momentos5 . No centro dessa praça, exatamente onde hoje está localizado o prédio do Pop Center (inaugurado em 2012), antigamente corria o leito do Arroio Santa Bárbara. Tanto essa área, como a Várzea e o Porto, ti- nham em comum serem áreas propensas a alagamentos, espaços de moradia e de intensas vivências populares e negras. Locais onde desde o século XIX ocorriam batuques, nos quais escravizados fugidos por vezes se escondiam em moradas de "pessoas de cor" e onde a população trabalhadora confraternizava em botequins e cortiços, bebendo e dançando, para o desgosto da elite branca.
  • 17. 17 Mapa de Pelotas, século XIX Fonte: Arquivo Nacional, Fundo Ministério da Guerra (escritas em vermelho foram acrescidas)
  • 18. 18 Praça 20 de Setembro, ângulo em direção ao Centro (em primeiro plano, a antiga Praça das Carretas) Fonte: Rubira (2012) Antigo leito do Canal de Santa Bárbara. Ao fundo, o complexo da Cervejaria Ritter. Postal Fonte: Rubira (2012)
  • 19. 19 O Santa Bárbara era ainda local de trabalho de lavadeiras negras escravizadas ou libertas, de forma que a rua Prof. Araújo, contígua a atual Praça Cipriano Barcelos, era conhecida à época como Rua das Lava- deiras (Maciel, 2017). Até a década de 1960 este curso d'água cruzava a Praça, quando teve seu leito desviado para fora da área urbana mediante uma obra de grande impacto (Peter, 2004). Lavadeiras nas margens do Arroio Santa Bárbara Fonte: Rubira (2012) Um relato publicado originalmente em 1922 revela o uso dos entornos da atual Praça Cipriano Barcelos para práticas de rituais fúnebres da comunidade negra pelotense na primeira metade do século XX, quando as águas do Arroio Santa Bárbara ainda seguiam seu fluxo original: "Batuques – Desde épocas muito remotas, a população africana aqui, então representada por al- guns milhares de pretos, hoje aliás raríssimos, todos os domingos e dias santos do meio-dia à noite, exibia-se publicamente em danças e cantigas usadas entre os gentios. O ponto dessa reu- nião era sempre à grande sombra de cinco de nossas frondosas figueiras, dispostas em amplo círculo que indicava o traço de um antiqüíssimo curral, oferecendo, por essa amplitude, franca área e todas as condições para a diversão. Essa localidade é além do Arroio Santa Bárbara, à esquerda da ponte da Rua Riachuelo, entre a Manduca Rodrigues e o referido arroio. À hora acima indicada, do centro da cidade partia o grande grupo de africanos, cantando em altas vo- zes, ao som de rudes tambores, chocalhos, guizos e de estranhos instrumentos feitos de grandes porongos, revestidos de elevado número de contas, búzios, pequenos caramujos e miçangas. O vestuário era esquisitíssimo, constituído de tangas, turbantes, capacetes, mantos, tudo das mais vivas e variadas cores. À frente, vestida no mesmo estilo, seguia o Rei, por todos acompanhado até o lugar do batuque como eles denominavam. Todo esse cerimonial era também executado nos velórios, assim como nos enterros até o defunto baixar à sepultura". (Osório, 1962, p. 154)
  • 20. 20 Interessante pensar que a Santa Bárbara poderia ser associada à orixá Iansã, a qual, por sua vez, re- laciona-se aos ritos que envolvem os eguns - os espíritos dos mortos, sejam ancestrais religiosos ou não. Não podemos descartar, em nível de suposição, que esta relação tenha potencializado o significado deste espaço para a realização dos rituais funerários aos moldes africanos na cidade de Pelotas6 . 4.2 - Os territórios negros de Rio Grande e seus batuques Na vizinha cidade portuária de Rio Grande, as práticas afro religiosas eram "denunciadas" desde mui- to tempo pela imprensa e pela polícia. O Jornal Gazeta Mercantil do dia 03/04/1877, por exemplo, noticiou a realização de "sessões" de magia levadas a cabo por uma preta "especialista nos milagres do amor": "Ali há fumigações, trípodes, catentanhas e bugigangas [...]. Grandes desordens podem lavrar no seio das famílias incautas e desprevenidas, se algum de seus membros, levados pela ignorância ou fanatis- mo, se deixarem possuir das sentenças de tal bruxa [...] Às autoridades policiais recomendamos a inspirada preta, para que façam cessar tão torpe espe- culação"7 . A condenação era a tônica da abordagem jornalística da época. Outro episódio que ilustra a presença de práticas sagradas africanas em Rio Grande ocorreu em agosto de 1877, quando o escravizado Joaquim, de apelido Camundongo, é preso após ficar três meses fugido e ser encontrado com objetos "próprios da profissão de feiticeiro que exercia o tal pretinho". Juntamente com ele, foi detido o preto Manoel Monteiro, residente na rua Uruguaiana e acusado de acoutar neste local "o grande Manipanso" (Mello, 1994, p. 33). Mas onde residia a população negra da cidade no século XIX e início do seguinte? Os documentos históricos mostram que, por entre a próspera cidade portuária, com seus belos sobrados, armazéns e casas comerciais, havia uma Rio Grande popular, constituída de pequenas moradas, muitas delas feitas de barro e cobertas de palha (Molet, 2007). Estas moradias ficavam nas proximidades do centro e eram denominadas como "casebres" ou "cortiços", sendo frequentemente ocupadas por diversos moradores. O Porto de Rio Grande - 1852 Aquarela de H. Wendroth. Fonte: Wendroth (1982)
  • 21. 21 Balbina Maria da Conceição talvez tenha sido uma entre tantas outras afro religiosas da cidade. Ao falecer, em 1859, teve listado entre seus bens, um "tambor de negros de nação". Balbina deixou para seus her- deiros cinco lances de meias águas cobertas de telhas, sendo uma delas com paredes de tijolos e as demais de pau-a-pique, localizadas na Rua da Alfândega (atual rua Andradas), tendo como vizinha a preta forra Isabel. (Scherer, 2008, p. 173-174). Ainda que não se saiba se este tambor fosse usado em práticas afro religiosas, a observação de que o mesmo era "de nação" evidencia sua origem africana. Na zona portuária de Rio Grande havia diversos territórios nos quais cotidianamente circulavam saberes e práticas afro religiosas, como o Mercado Público, as praias e atracadouros ao seu redor (onde atual- mente se encontra o Porto Velho e as Docas do Mercado) e a Praça da Geribanda (atual Praça Tamandaré), local onde as lavadeiras escravizadas e libertas faziam uso das águas dos poços e das lagoas que se formavam com as chuvas, bem como onde escravos e libertos abasteciam os barris de seus senhores8 . Negros no Porto de Rio Grande, 1852 Fonte: Wendroth (1982) Mapa do núcleo urbano de Rio Grande – meados do século XIX Fonte: AHRS, Fundo Iconografia, Municípios RS, nº 494, Rio Grande.
  • 22. 22 GERIBANDA O viajante Saint-Hilaire, quando da sua passagem por Rio Grande em 1820, registrou a se- guinte observação sobre a Praça da Geribanda: “Ficou, dito, já, não haver aqui nenhum manancial de água doce, mas atrás da cidade, entre montículos de areia (em lugar denominado Geribanda) foram fei- tos poços onde a pequena profundidade se encontra muito boa água. Os negros vão buscá-la em barris, apanhando-a por meio de chifres de bois amarrados à ponta de va- ras compridas, instrumento esse a que dão o nome de guampa.” (Saint-Hilaire, 1939, p. 122). O primeiro registro conhecido, até o mo- mento, sobre a prática da capoeira no estado do Rio Grande do Sul ocorreu justamente na Geribanda, no ano de 1850, envolvendo o pardo uruguaio Alexandre de Souza, filho de pais libertos, e Bernardo, escravi- zado de Manoel José Correa de Sá (Oliveira, 2013, p. 162). Fonte: obtida com a Fototeca do Centro Municipal de Cultura de Rio Grande. Poços da Praça da Geribanda em 1865. Existia ainda o Largo de São Pedro, conhecido popu- larmente como o Largo das Quitandeiras, onde mulheres negras, em grande parte africanas, realizavam seu ofício (atualmente é a Praça Júlio de Castilhos, na esquina das ruas Luiz Lorea e Andradas)9 . Agachadas por sobre seus calcanhares e em frente a panelas, fogueiras, cestos e tabuleiros, as quitandeiras prepara- vam alimentos que eram vendidos aos trabalhadores da cidade. É possível que as quitandas fossem também palco para a comercia- lização de produtos de poder curativo e sobrenatural, tais como ervas e amuletos chegados da África mediante encomendas fei- tas junto a marinheiros inseridos nas rotas oceânicas10 . Com o crescimento espacial da cidade a partir do início do século XX, o bairro Getúlio Vargas, antiga Vila dos Cedros, se tornou uma referência importante para a religiosidade de ma- triz africana, por abrigar a população trabalhadora e algumas das mais antigas casas de Batuque e de Umbanda11 . A comunidade de africanos minas e a religiosidade afrodescendente É possível que uma igreja católica ajude a contar a história do Batuque? No caso de Rio Grande, sim. Até meados do século XX viveram na cidade três mulheres, que talvez fossem irmãs de sangue ou de santo, conhecidas como as "minas do Bom Fim", pois residiam aos fundo da Igreja do Bom Fim (localizada na rua Duque de Caxias). Seus nomes eram Damiana, Domingas e Gertrudes12 . Mercado Público de Rio Grande - 1909 Autoria: Atelier Fontana. Disponível em: http://acervo.bndigital. bn.br/sophia/index.html
  • 23. 23 O termo "mina" é uma referência à sua ancestralidade africana e no Brasil escravista era utilizado para se referir a todos africanos escravizados originários da região da Costa da Mina, na África Ocidental, onde se localizava o Castelo/Forte de São Jorge da Mina. Corresponde à região litorânea dos atuais Togo, Gana, Nigéria e Benin, e englobava uma diversidade de etnias como os nagô, os mina, os axanti, os haussás, os malês, os jeje, entre outros. A Ialorixá Alzenda de Iansã, cerca de 75 anos de vida religiosa (a mais antiga mãe-de-santo viva da Nação Nagô em Rio Grande), compartilhou suas lembranças sobre estas mulheres, traduzidas aqui nas pala- vras de uma pesquisadora: "As negras minas que eram do Nagô dançavam vestidas de baiana na frente da igreja do Bonfim, na rua Duque de Caxias, e faziam romaria até a igreja da Nossa Senhora da Conceição13 , na rua Francisco Marques, ou vice e versa. [...] Ao falar das negras vestidas de baiana que lembram os tempos de menina, Ialorixá Alzenda destaca a Tia Damiana de Oxum, tão delicada, trazendo sempre um balaio de vime com flores e balas que distribuía às crianças, ao chegar ao terreiro de Mãe Margarida de Iansã." (Camargo, 2013, p. 111-112) Já na Pelotas de 1882, em pleno carnaval, adentra no centro da cidade um grupo de cerca de vinte africanos de origem mina "capitaneados por um personagem eminente, a julgar pelos vistosos trajes e pela gravidade do porte", como informado pelas páginas do jornal Correio Mercantil. Tal personagem era Pai Cri- cipim, representando o Rei Obá. Tratava-se do Club Carnavalesco Nagô.14 Dias depois, o escrivão do Club, Pai João de Nagô, publicou no mesmo jornal o seguinte texto: "Club C. Nagô Esse mêmo que tá hi!!! Cecuta lá, regara oio!!! Pareceros!... nosso Cricipim tendo recebido oride por esse fio passa pró má, e pró esse matto turo, e que trásse notícia prá turo fazé representa pela primeira vez a nossa tribu de Nagô, pró esse mêmo, nosso turo juntou e vai fazé nosso passeo n'esse mêmo dia de cranabá, nosso turo pracero vae fazé ajuntamento na casa de tia Benedita prá depois come Angú Broinha e vatapá nosso vae pro essa rua turo tocando nósso trumento e faze viva!... a esse club de branco, e club Brocionista; e quando esse sino da igreja bate deso hora nosso entra no barracão de Praça. Nosso vai sahi às seis hora i pede a esse branco turo bote benção a nossa tribu. Quitandeiras negras - RS (1852) Fonte: Wendroth (1982) O crivão Pae João de Nagô Pelotas, 19 de fevereiro de 1882"15
  • 24. 24 No ano seguinte, o Club Nagô se apresentou com um carro "representando a aurora da liberdade" e a redenção do escravo, deixando claro o seu posicionamento frente a questão abolicionista e sua crítica ao sistema escravista. (Mello, 1994, p. 67) Em Rio Grande existiu também um Club Mina que se apresentou no carnaval de 1881 "com alegorias à escravidão e à liberdade, fazendo um batuque, dançando e cantando um tango" e igualmente denunciando as relações escravistas16 . Organizados de forma coletiva, unidos ao redor de uma identidade negra e africana, essas mulheres e homens encontraram formas alegres e criativas de lutar contra o racismo e à segregação17 . Um vulto afro religioso no altar da Igreja Matriz de São Pedro No ano de 1940, durante as atividades do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) visando o tombamento da Igreja de São Pedro como patrimônio arquitetô- nico e histórico, os especialistas encontraram um objeto inusita- do. Tratava-se de uma estatueta enterrada sob a pedra do altar da Virgem. Chamadas de "vultos" pelos batuqueiros, possivelmente se tratava de um assentamento (objeto consagrado como repre- sentação dos orixás) efetuado por algum afro religioso quando da construção ou reforma do altar. Infelizmente não foi possível localizar o objeto. (Herskovitz, 1948). Alguns personagens A história da resistência e da religiosidade negra no Brasil é feita de muitos personagens. Na impossibilidade de falar de um leque maior de nomes, referimos uma breve trajetória de duas pessoas que são referência à memória do Batuque e da Umbanda no eixo sul do estado. Uma princesa negra (e batuqueira) em Rio Gran- de, Pelotas e Porto Alegre Emília Fontes de Araújo, conhecida no meio batuqueiro como Princesa Emília de Oiá Ladjá, viveu entre os africanos na cidade de Rio Grande em data imprecisa (fins do século XIX, início do seguinte). A memória afro religiosa informa que teria sido criada pelo casal de "negros minos" Ozébio e Bibica e realizado sua feitura religiosa na nação Nagô; posteriormente viveu em Pelotas, onde aprontou ao menos uma filha de santo (Margarida de Oiá, que depois seguiu para Rio Grande, onde se estabeleceu com sua casa de nação)18 . Seguiu para Porto Alegre, se estabelecendo na região do Areal da Baronesa, possivelmente na segunda metade da década de 1910 ou princípios da década seguinte, onde deu origem à sua bacia religiosa na capital e passou a ser identificada como pertencente à nação Oyó19 . Otacílio Marques Charão e a Umbanda no RS A primeira casa de umbanda registrada no estado foi criada em Rio Grande em 1926 por Otacílio Marques Charão e denominada Centro Espiritualista Reino de São Jorge (CERSJ). Esta casa está ativa até a atualidade na Cidade Nova. Charão nasceu em Santa Maria e foi oficial da marinha mercante. Viveu no Rio de Janeiro e no continente africano, locais em que teria realizado a sua preparação religiosa antes de se es- tabelecer em Rio Grande (Pereira, 2016)20 . Já em 1932 era fundado em Porto Alegre o "Abrigo Espírita Francisco de Assis", sob liderança de Laudelino Manuel de Souza Gomes, tenente da Marinha de Guerra (ver capítulo sobre o Areal da Baronesa). Estes teriam sido os dois primeiros pólos difusores da Umbanda no estado.
  • 25. 25 O Primeiro Congá de Otacílio Charão Fonte: Pereira (2016, p. 165) 4.3 - As religiosidades negras na Porto Alegre do século XIX Segundo a tradição oral, as raízes das principais nações atualmente cultuadas no Batuque do Rio Grande do Sul se estabeleceram no final do século XIX e início do século XX21 . Durante esses anos viveram as lideranças que são rememoradas como os baluartes das atuais nações Jeje, Nagô, Ijexá, Oyó e Cabinda. É este período que podemos apontar como o da institucionalização do Batuque como conhecemos hoje. É nele que vemos o marco inicial de suas árvores genealógicas. Antes desse período, entretanto, as tradições africanas de relação com o sagrado já se faziam presen- tes. Talvez ainda não na forma como vemos hoje o Batuque, mas, sim, como suas práticas antecessoras, as sementes dessa expressão religiosa nas cidades de Pelotas, Porto Alegre e Rio Grande. O solo brasileiro vivenciou reconfigurações de tradições trazidas do outro lado do Atlântico, com continuidades, inovações e também rupturas. Tudo relacionado ao trauma de enfrentar a travessia do oceano, a experiência do cativeiro e a busca por liberdade em terras americanas. Foi nesse contexto em que as práticas e conhecimentos tradicionais trazidos da África propiciaram cura, alívio, amparo e solidariedade, na busca por uma vida melhor, tanto quanto fosse possível. Caminhar pelos territórios negros de Porto Alegre dos séculos XIX e XX é uma das formas de se aproximar desta cultura. Porto Alegre e o Candombe da Mãe Rita Um dos relatos mais antigos associado a tradições africanas em Porto Alegre é a descrição de Antônio Alvares Coruja sobre o Candombe da mãe Rita, na região que atualmente está o Parque da Redenção e que antigamente se conhecia como Várzea:
  • 26. 26 "Aí se reuniam, nos domingos à tarde, pretos de diversas nações, que com seus tambores, canzás, urucungos e marimbas, cantavam e dançavam esquecendo as mágoas da escravidão, sem que causassem maiores cuidados à polícia [...] Nesse candombe também se ensaiavam os cucumbis que pelo Natal e nas festas da Senhora do Rosário, levando à frente o Rei e a Rainha vestidos a caráter, com a juíza do ramalhete e a competente aristocracia negra, iam dançar ou antes sapatear no corpo da Igreja com guizos nos tornozelos” (Coruja, 1881, p.15). Este relato refere-se ao período anterior a 1836. O autor destaca a liderança de Mãe Rita frente a este candombe, personagem importante para a compreensão do desenvolvimento da religiosidade de matriz afri- cana. Para alguns estudiosos, Mãe Rita é apontada como a líder do primeiro “templo” de candomblé/batuque em Porto Alegre, embora a escassez de fontes históricas torne difícil definir este pioneirismo (Mello, 1994; Corrêa, 2005). É possível que o candombe de Mãe Rita não fosse, necessariamente, uma manifestação religiosa da tradição dos orixás, como se tornaria, posteriormente, o Batuque. Provavelmente fosse uma manifestação liga- da a congadas ou cucumbis, uma tradição de grupos de cultura banto relacionada com as irmandades católicas A região da Várzea (atualmente bairro Bom Fim) era um espaço cotidiano das vivências negras e populares de Porto Alegre da época, morada de libertos e ponto de encontro em seus momentos de diversão e religiosidade. Juntamente com a região do Areal da Baronesa e dos atuais bairros Cidade Baixa, Santana, Menino Deus e Praia de Belas, viriam a formar um "cinturão negro" ao redor do antigo centro colonial. Essas tradições africanas eram sobrepostas ao catolicismo desde antes do surgimento da própria cidade de Porto Alegre, pois remontavam ao desenvol- vimento de um catolicismo centro-ocidental no próprio continente africano. Na América, em um contexto do- minado pelo colonizador cristão, a comunidade afro- descendente e africana incorporou os seus sentidos à cultura dominante europeia, traduzindo-a nos “seus próprios termos, atribuindo aos santos significados inacessíveis àqueles que não partilhavam seus códigos culturais.” (Mello e Souza, 2002 p.146) A luta pela manutenção dessas manifestações africanas em solo porto alegrense, seria um, se não o principal, dos motivos apontados para a construção da Igreja do Rosário pela irmandade de mesmo nome. DUAS MÃES RITAS? Neste retrato, efetuado pelo menos sessenta anos depois da referência de Coruja, entre 1893 e 1930 (Maciel, 2019, p.27), vê-se uma mulher de origem africana com indumentárias afro-re- ligiosas, aparentemente mais jovem do que seria a Mãe Rita citada por Coruja, supostamente com cerca de cem anos de idade, na época desta foto. Em razão da distância entre os registros é possível ques- tionar se seria a mesma pessoa, ou se haveria outra Mãe Rita no final do século XIX.Certamente havia um candombe na década de 1830 liderado por uma Mãe Rita. Teria havido outra liderança afro-reli- giosa chamada Mãe Rita em Porto Alegre? Foto de Mãe Rita - Autoria de V. Calegari Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo
  • 27. 27 Campos da Redenção - década de 1900 Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo. Obtido em: Vieira (2017) Fonte: Instituto Histórico e Geográfico do RS Planta de Porto Alegre - 1833 (a Várzea encontra-se sinalizada por "P)
  • 28. 28 CONGADA Congada: "Folguedo e ritual da tradição afro-brasileira disseminado por várias regiões brasileiras e ligado aos festejos coloniais de coroação dos 'reis do Congo', mas acolhendo, no seu entrecho, elementos de origem europeia. Também conhecido pelos nomes de 'con- gado', 'congos', 'bailes de congo' etc., seu motivo básico é a evocação de lutas en- tre grupos hostis pela dramatização de embaixadas de guerra e paz. Entretanto, em alguns locais o folguedo apresenta apenas danças e cantorias, ao som de instrumentos de percussão. O toque ritu- alístico é dado pelo compromisso da ho- menagem a santos católicos como Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, San- ta Ifigênia, Nossa Senhora Aparecida e o Divino Espírito Santo. As variações em sua estrutura e apresentação decorrem muitas vezes da concepção de quem o organiza." (Lopes, 2004) OS AFRICANOS BANTOS E IORUBÁS E SUAS ORIGENS Até aproximadamente a década de 1830 havia muito mais africanos de origem banto (angolas, congos, benguelas, cassanges) do que de origem iorubá (mina, nagô) em Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas. Foi a partir desta década que ocorreu um aumento significativo dos africanos deste último grupo, originá- rios da África Ocidental (sudaneses), a chamada Costa do Ouro, onde se loca- lizava a Fortaleza São Jorge da Mina. É a partir de referências culturais desta última região que vai emergir o culto aos orixás no Rio Grande do Sul. Mapa das rotas do tráfico, com indicação das regiões de procedência na África Fonte: Cotrim (2016) A Irmandade do Rosário de Porto Alegre Até 1809 a população negra realizava, com relativa condescendência senhorial, "danças de negros" na frente e no interior da Igreja Matriz de Porto Alegre. Até que o Vigário José Inácio dos Santos as proibiu, como resultado do desejo católico de controlar as manifestações culturais africanas autônomas (Coruja, 1881). Igreja Matriz Madre de Deus e Capela do Divino Espírito Santo, 1890. Porto Alegre (RS). Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.
  • 29. 29 Apesar das proibições do Vigário, os africanos continuaram manifestando sua devoção, não mais na frente da Igreja Matriz, mas nos candombes como o de Mãe Rita, ou mediante a construção do seu próprio templo cristão: a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, ironicamente situada na atual Rua Vigário José Inácio (Machado, 1990; Müller 1999; Nascimento, 2006). Os próprios membros dos candombes aparecem nos regis- tros históricos contribuindo com doações para a edificação da Igreja do Rosário de Porto Alegre, erguida entre 1809 e 1827 (Andreis, 2015)22 . Coleta de contribuições para a Igreja do Rosário, Porto Alegre. Aquarela de Jean-Baptiste Debret, de 1828. Antiga Igreja do Rosário - Porto Alegre - de- molida em 195123 Interessante nesse sentido é perceber que as ir- mandades católicas constituíam o campo institucional per- mitido para os africanos e afro-brasileiros exercerem sua religiosidade. Fora desse espaço havia manifestações, as- sim no plural, que eram condenadas quando não comba- tidas e perseguidas, por apresentarem aspectos, digamos, “africanos” demais aos olhos das autoridades. Entretanto, é preciso ter cuidado ao observar esse passado, para não cairmos em uma simplificação desse universo religioso, onde de um lado estariam aqueles que compactuaram com o catolicismo e cederam ao domínio cultural europeu cris- tão, enquanto do outro aqueles que, resistindo, mantiveram praticamente intactas a cultura religiosa de suas terras de origem. A manifestação do candombe pode ser compreen- dida em um universo mais amplo de religiosidades, para além da simples associação direta com o Batuque dos dias de hoje, que por sua vez é uma tradição religiosa que cul- tua os orixás, vinculado à população africana ocidental ou iorubá. Fonte: Arquivo Digital IPHAN (autoria desconhecida)
  • 30. 30 As danças proibidas pelo Vigário José Inácio, em frente e dentro da Igreja, e o candombe da várzea eram, aparentemente, reu- niões africanas sob liderança de grupos de origem banto, mais anti- gos e estabelecidos em posições de liderança de suas nações. Assim, a Mãe Rita do início do século XIX lideraria um ritual com pre- dominância de grupos da África Central (congos, angolas, bengue- las), aberto a outras nações da África Ocidental (minas, nagôs, jejes, haussás) e Oriental (moçambiques), ainda pouco representativas na população africana de Porto Alegre, até, ao menos, meados da déca- da de 1830. Os Mina e os Nagô em Porto Alegre – as nações da liberdade O Batuque do Rio Grande do Sul, como conhecemos hoje, foi formado a partir da cultura iorubá, nagô e jeje, ou seja, sob a predominância de culturas da África Ocidental. Nas palavras de Oro: A palavra candomblé, segundo Nei Lopes (1988, p. 165) é certamente de origem banta, podendo derivar do quim- bundo kiandombe (negro) e mbele (casa), por extensão “casa de negros”, ou resulta- do do diminutivo ka mais o termo ndume (inciante), formando “casa de iniciação” ou “casa de principiantes”. O termo, kian- dombe, isoladamente, guarda uma grande aproximação ao termo candombe, usado para designar a manifestação negra ocorrida nas primeiras décadas do oitocentos, tanto por Coruja, quanto pelo livro de despesas e receitas da Irmandade do Rosário de Porto Alegre. No Uruguai, ainda hoje persiste uma manifestação afro-uruguaia denomina- da candombe. O sentido da palavra também ligaria o candombe uruguaio a uma mani- festação de origem banta significando “dan- ça dos ndombes”, ou em um sentido mais genérico seria todo tipo de dança de origem africana, praticado nos domingos e dias santos (Chagas; Stalla e Borucki, 2012). O Batuque representa a expressão mais africana desse complexo religioso, pois a linguagem li- túrgica é yorubana, os símbolos utilizados são aqueles da tradição africana, as entidades veneradas são os orixás e há uma identificação às “nações” africanas (Oro, 2008, p. 125) Foi a partir da década de 1830 que ocorreu o aumento da presença de africanos iorubás na população do Rio Grande do Sul, particularmente nas cidades de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. Ainda que os afri- canos bantos (centro-africanos) compusessem a maioria dos africanos escravizados, esse aumento de iorubás no período final do tráfico transatlântico causou um importante impacto simbólico na cultura negra regional. Um passo importante para compreender a formação do Batuque de Nação. Os estudos para as cidades de Rio Grande e Pelotas apontaram, de uma forma geral, que a população escravizada de africanos ocidentais (iorubás) conseguiam índices de alfor- ria superiores - praticamente o dobro - ao número em que eram encontrados para o restante da população escravizada (Scherer, 2008; Pinto, 2018)24 . Em Porto Alegre, é possível afirmar que a maior inci- dência dos africanos ocidentais entre os que obtinham alforria atesta não apenas o aumento da sua “presença estatística, mas também a sua maior competência enquanto grupo para agenciar a libertação” (Moreira, 2007, p. 375). Ou seja, os minas e os nagôs pareciam se organizar coletivamente com muito êxito na busca de conquistar a liberdade mediante a compra de suas car- tas de alforria. Um possível africano mina em Porto Alegre do século XIX Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo
  • 31. 31 Fonte: https://prati.com.br/tag/doca Doca do Mercado de Porto Alegre - final do século XX - Local de trabalho de africanos minas As análises sobre as cartas de alforria demonstraram o peso que cada nação tinha no mercado da liberdade. Esse tipo de análise toma como obje- tos as redes sociais criadas por escra- vizados, libertos e livres, com desta- que para a constituição de famílias e a reconstrução de identidades africanas no circuito do tráfico transatlântico. A reorganização étnica é vista como uma das estratégias para enfrentar o cativei- ro (Scherer, 2012) . É significativa a associação entre o parentesco de nação dos africa- nos ocidentais, observado no século XIX, e a forma como até hoje se estabelece parentescos rituais e simbóli- cos no interior das famílias religiosas do Batuque. Com efeito, os membros das casas de nação se tornam parte de uma família de santo, e passam a se tratar como pai, mãe, filho, avô, avó e neto e assim por diante (Corrêa, 2016). No Rio Grande do Sul, talvez ainda não consigamos estabelecer o peso de cada nação na cons- trução das primeiras casas de batuque. Contudo, pode-se perceber como os africanos iorubás passaram a criar espaços para suas práticas religiosas procurando escapar da repressão e da tentativa de controle crescente das manifestações africanas em Porto Alegre. A Semente do Batuque A partir da década de 1850, as manifestações religiosas africanas passaram a sofrer uma maior ofen- siva em Porto Alegre. Um movimento de crescente tentativa de controle sobre a africanidade no interior das irmandades católicas - que eram os espaços institucionalizados para esse tipo de tradição - através de olhares vigilantes e pouco simpáticos dos vigários, foi acompanhado pelos primeiros relatos sobre cultos religiosos, em espaços não tutelados pela Igreja. Esses eventos, em sua maioria, provavelmente ocorriam sob a liderança de africanos-ocidentais. A Irmandade do Rosário de Porto Alegre nunca fora exclusivamente de negros, e ao longo do século XIX seus membros africanos e afro-brasileiros acabaram sendo destituídos dos cargos de liderança e daqueles que possibilitavam alguma decisão para questões simbólicas. Ao longo dos anos tornou-se um espaço para os negros e não dos negros. Nesse sentido, em 1883, houve a retirada do item que mencionava a intenção de promover a “obtenção da liberdade” dos irmãos cativos no compromisso da irmandade, estabelecido quando da inauguração da sede própria da Igreja (Tavares, 2007, p.128-132). Nesse contexto, a irmandade católica, espaço institucionalizado por excelência que permitia alguma manifestação africana, fechava-se ao protagonismo negro, especialmente ao africano. As folias, congadas e cucumbis, expressões ligadas ao catolicismo continuavam a existir, mas em um espaço não autorizado, como algo não religioso, uma espécie de “brincadeira” resiliente que se negava a sumir do cenário urbano de Porto Alegre, como, por exemplo, nos deixa ver a presença do conjunto carnavalesco d’Os Congos, nos desfiles de carnaval de 188325 .
  • 32. 32 Por outro lado, na década de 1880, um indício significativo demonstra que as religiosidades africanas se mantinham fortes, na rua, nas casas, nas praças, e elas eram múltiplas.Apublicação eclesiástica chamada “Histórias domingueiras” do jornal O Thabor, de 1882, apresenta o seguinte quadro: “Nos domingos é um louvar a Deus! Esta nympha do Guaíba é um paraíso terreal! Festas e ‘rolos’ por toda a parte. Chiromancia e sangue de cabritos para o lado da Floresta: [...] Batuque na praça da Conceição. Baile para os lados da Várzea, com- postos de todas as cores, e quando a malta é grande e a sala acanhada, pulam para o meio da rua e toca a pagodeira até a meia noite ou clair de la lune. Por fim, quando o fumo do espírito sobe, principiam os supapos, segue-se a paulada e acabam por ferro [...] Esta nympha do Guaíba está saindo fora do sério”. 26 Mulher negra em Porto Alegre - sem data Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo Três práticas listadas em localidades diferentes. A denominada quiromancia aponta para a existência de casas de batuque no Bairro Floresta, apoiado pela “denúncia” da existência de sacrifícios de animais. O Batuque na Praça da Conceição, em frente à Igreja da Conceição, onde havia nascido a irmandade de mesmo nome, a qual dividiu-se exatamente pela presença de irmãos pardos, mais pobres, que foram posteriormente acolhidos na do Rosário (Tavares, 2007). Por último o Baile na Várzea, mesmo local onde no início do século ocorria o candombe de Mãe Rita. O autor chama atenção para o número excessivo de participantes, o que o fazia com que o baile saísse à rua, quando a chamada pagodeira iria, então, até a meia-noite. Todas essas manifestações estavam proibidas pelo código de posturas da cidade, desde pelo menos 1856. Neste ano, o artigo 122 determinava: "Ficam proibidos os candombes ou batuques e danças de pretos na Várzea, chácaras ou outro lugar. Pena de dezesseis mil réis de multa ao dono da casa ou chefe do batuque, e sendo escravo, a 25 açoites” 27 Em 1858, o código de posturas proibia também os chamados zungús, referindo-se não só “a festas de pretos, fossem religiosas ou profanas”, mas também ao próprio local de habitação (Moreira, p. 61, 2003). Trinta anos depois das proibições, os fins de semana porto-alegrenses, aos olhos do religioso redator do “His- tórias Domingueiras”, permanecia demasiadamente africano. Na segunda metade do XIX, é possível perceber duas dimensões que possibilitaram a emergência de religiosidades inspiradas em outras tradições africanas, que não apenas a dos bantos. Com a mudança demo-
  • 33. 33 gráfica observada a partir da década de 1830 na população africana escravizada, em cidades como Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande, e a ação dos africanos-ocidentais (minas e nagôs) no mercado da liberdade, é possível dizer que as lideranças religiosas passam a ser exercidas também por pessoas desta última origem. Em Porto Alegre, com um número crescente de africanos-ocidentais libertos que conseguiram ad- quirir imóveis, é possível afirmar que o panorama havia mudado em relação ao princípio do século (Moreira, 2019). Há indícios importantes que apontam na direção do surgimento de cultos de ordem privada, em casas de africanos libertos ou livres – como Custódio Joaquim de Almeida (Scherer e Weimer, 2021) –, de tradições iorubanas da África Ocidental. ZUNGU Zungus eram redutos que serviam de moradia ou local de refeição coletiva para onde convergiam grupos populares diver- sos em busca de alimento, repouso, solidariedade, vida lúdica ou práticas religiosas. Segundo o Dicionário da Terra e da Gente do Brasil (Souza, 1939), zungu era “termo do Sul do Brasil, que designa uma casa dividida em pequenos compartimentos que se alugam, mediante diminuta paga, à gente baixa e ordinária; é uma espécie de cortiço [...]. Também se usa muito no sentido de desordem, con- flito mais barulhento do que grave”. O termo calunge é definido pelo mesmo autor como: “rancho, casinha de palha[...] sinônimo de zungu [...] que serve de couto a vagabundos e desordeiros”. Em uma notícia intitulada “Os feiticei- ros do Rio Grande do Sul”, do Jornal Echo do Sul, que repercutiu na província de São Paulo, através do Correio Paulistano, divulgou-se que no dia 16 de novembro de 1879 mais de cinquenta pessoas fo- ram presas por participarem de uma cerimônia reli- giosa numa casa da atual Rua Caldas Júnior, região central de Porto Alegre. Nessa notícia, pode-se ler uma importante descrição daquilo que possivelmen- te fosse um culto liderado por africanos ocidentais: Os feiticeiros no Rio Grande do Sul - Lê-se no Echo do Sul de 16 do corrente: GRANDE CAÇADA – A polícia tomou anteontem um fartão: prendeu em uma casa à rua Pay- sanndú, 42 pretos, livres e escravos, e 11 pretas minas. A caçada deu-se às 10 ½ horas da noite no momento em que o preto João celebrava uma sessão de feitiçaria. Foi uma surpresa e um desapontamento que aqueles fiéis crentes jamais perdoarão à polícia. O celebrante no ato em que foi preso, envergava uma opa branca, e era escutado com religiosa atenção pelo piedoso auditório. A polícia apreendeu cabeças de galo e outros manipansos. Os principais atores da indecente comédia foram recolhidos à cadeia e os escravos convenientemente castigados” Correio Paulistano, São Paulo, 30 nov 1879. 28 Não foi possível saber se o referido culto era ou não vinculado à tradição dos orixás. Sabemos ape- nas que seria, provavelmente, liderado por africanos ocidentais e que, certamente, era frequentado por pretas minas. É significativo, entretanto, alguns detalhes do ocorrido. Um dos presentes vestia uma “opa branca”, uma peça visivelmente religiosa, a qual o observador pôde, com seu olhar pouco acostumado, traduzir assim, como uma referência ao universo católico ao qual estava ambientado. É possível que fosse um axó (vestimenta afro-religiosa)? Talvez. Mas a possibilidade que fosse outra vestimenta, até mesmo de origem islâmica, não pode ser descartada, pois há relatos no mesmo ano, na mesma região, de um culto islâmico desenvolvlido por africanos minas ocorrendo em Porto Alegre (Moreira, 2019). Ao longo do século XIX fica evidente o desenvolvimento de múltiplas religiosidades africanas em Porto Alegre. Desde o Candombe da Mãe Rita até as “Histórias domingueiras”, passando pelas irmandades católicas, os cucumbis e congadas até a “Grande Caçada” aos pretos minas na Rua Paysanndú, em 1879. A análise dessas fontes históricas permite ao observador perceber, em algumas dessas experiências religiosas – ainda que através de relatos enviesados e parciais das testemunhas da época – expressões do que se tornaria o Batuque de Porto Alegre. Uma resposta criativa da população africana ao contexto específico apresentado a ela, sem a tutela da Igreja. Um lugar de protagonismo negro. Um vislumbre, pois, da semente
  • 34. 34 do Batuque29 . Os becos do centro antigo No centro antigo de Porto Alegre existiam diversas vielas e becos ocupados pela população traba- lhadora. Alguns deles ficaram na memória da cidade como sendo espaço de moradia, lazer e religiosidade da população negra no século XIX. O antigo Beco do Poço, que correspondia ao primeiro trecho da Rua General Paranhos, assim como outros becos e vielas do centro antigo abrigou em cortiços e moradas simples muitos homens e mulheres ne- gros, escravizados fugidos e negros de ganho, nascidos no Brasil ou no continente africano. NEGROS DE GANHO Negros de ganho ou ganhadores: "Denomina- ção dada no Brasil aos escravos urbanos cuja modalidade de trabalho consistia, geralmente, em oferecer seus serviços de forma remunerada, repassando a seus senhores parte de seus ganhos. Tais escravos buscavam, por conta própria, ati- vidades que lhes garantissem a sobrevivência. Para tanto, gozavam de autonomia e liberdade de locomoção, e muitos deles só iam à casa de seus senhores para pagar, diária ou semanalmente, a remuneração estipulada, executando, até mesmo, em algumas situações, trabalho assalariado. A es- cravidão de ganho incluía, principalmente, transportadores de cargas e carregadores de cadeirinhas e palanquins, mas também vendedores ambulantes, quitandeiros, barbeiros, marinheiros, pescadores, trabalhadores na indústria, na construção civil etc. Quanto às mulheres ganhadeiras, eram elas que dominavam o pequeno comércio de rua de cidades como Rio de Janeiro e Salvador." (Lopes, 2004) Segundo o cronista Achylles Porto Alegre: "Havia pontos da cidade onde, aos do- mingos, o 'batuque' era infallível. O becco do Poço, o do Jacques e a rua da Floresta eram sitios de elei- ção para o 'batuque'. Nos dias de 'folia', já de longe se ouviam a melopéa monotona do canto africano e o som cavo do seu originalissimo tambôr. [...] Ha- via também os 'batuques' ao ar livre. Nestes tomava parte quem queria [...]. Um dos mais populares era o do Campo do Bom Fim, em frente à capellinha em construcção" (Porto Alegre, 1921, p. 161-162). [grafia original] Segundo a tradição oral, no Beco do Poço teria vivido Antonio Gululu, uma importante referência para o Batuque até os dias de hoje, pois teria sido pai-de-santo de dois ícones do Batuque no século XX: Antoninho da Oxum (Antônio da Cruz Ferrari), da nação Oyó (de quem falaremos no capítulo sobre a Bacia do Mont Serrat) e de Waldemar de Xangô Kamucá (Waldemar Antônio dos San- tos), da nação Cabinda (ver capítulo sobre o Areal da Baro- nesa). Porém, não se sabe maiores detalhes a seu respeito. Acredita-se que tenha nascido no continente africano e que era filho do orixá Xapanã. Já a palavra "Gululu" poderia ser tanto uma identificação étnica, como uma referência ao seu orixá pessoal. O Beco do Poço - quando já se chamava Rua General Paranhos - desapareceu da história na década de 1920, momento no qual as reformas urbanas que buscavam modernizar a cidade demoliram diversos prédios ali exis- tentes para dar origem à Avenida Borges de Medeiros30 . Fonte: Acervo da Pinacoteca Aldo Loca- teli. Obtido em: Koehler (2015, p. 154) Beco do Poço - Aquarela de Francis Pelichek (1925)
  • 35. 35 Quintais fronteiros" no antigo Beco do Império. Final do século XIX - início do XX. Fonte: Acervo do Museu Hipólito José da Costa. Fonte: Revista "A Máscara" - 06/02/1925 Demolição da Travessa General Paranhos, antigo Beco do Poço
  • 36. 36 Fonte: www.jornaldomercado.com.br Abertura da Av. Borges de Medeiros - década de 1920
  • 37. 37 5 - O território negro do Areal da Baronesa O território do Areal da Baronesa do Gravataí ficou assim conhecido pois abrigou, entre diversas outras propriedades, uma chácara pertencente a uma baronesa de mesma nomenclatura. Inicialmente denomi- nado como um "arraial" (lugarejo/povoado), passa a receber o uso popular de "Areal" devido às características arenosas da região. Se inicialmente era uma área de chácaras, olarias e matadouros situada na planície ao sul do centro da cidade, ao longo das últimas décadas do século XIX foi sendo loteada e progressivamente se tornou uma região de moradia popular, com grande presença de população negra livre e liberta, mesmo antes da abolição da escravidão em 1888. Abrigou, ainda, em seus cortiços e moradias de aluguel, trabalhadores ligados aos quartéis da Brigada Militar ali instalados a partir da década de 1890. Tratava-se de uma área baixa, frequen- temente sujeita a alagamentos, na qual corria o leito do atual Arroio Dilúvio, antes da alteração de seu curso. O antigo território do Areal da Baronesa corresponde ao atual entorno da Igreja Pão dos Pobres e da Ponte de Pedra, se estendendo até a Av. Ipiranga (antiga Rua dos Pretos Forros), seguindo até a atual Av. Getúlio Vargas (antiga Av. 13 de Maio), a rua da Olaria (atual Gal. Lima e Silva) e no sentido oposto até as margens do Guaíba (Mattos, 2000), incluindo também a antiga Ilhota (ocupação popular que ficava próximo ao atual Colégio Estadual Protásio Alves). Área que englobava parte dos atuais bairros Cidade Baixa, Menino Deus e Praia de Belas. Registros históricos citam que ao longo do século XIX a região serviu de abrigo para escravos fugi- tivos, devido à densa vegetação existente em uma região que ficou conhecida como "emboscadas" (Mattos, 2000, p. 27-28). Interessante observar a existência até os dias de hoje da Comunidade Remanescente de Qui- lombo do Areal, localizada na Avenida Luiz Guaranha, em pleno bairro Menino Deus. Se durante o período da escravidão já havia a presença de escravizados, trabalhadores negros livres e libertos vivendo e trabalhando na área, no período pós-abolição o Areal vai se efetivar enquanto um território negro. Com o crescimento populacional da cidade, surgem muitos novos loteamentos e ruas, e a proximidade com o centro da cidade tornou este território uma opção de moradia mais acessível para a população trabalha- Areal da Baronesa e Cidade Baixa - Planta da Cidade de Porto Alegre de 1906 Fonte: Arquivo Municipal Moysés Vellinho/Mapoteca. Obtido em: Xavier (2018) Antigo curso do Arroio Dilúvio, o Riachinho Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo - Versão acres- cida de nomes obtida em Vieira (2017)
  • 38. 38 A RUA DOS PRETOS FORROS Parte do que hoje conhecemos como Ave- nida Ipiranga já foi chamada de Rua dos Pretos Forros. Trata-se do trecho entre a Av. Praia de Belas e a antiga Rua 13 de Maio (atual Av. Getúlio Vargas). Posterior- mente, a via teve seu nome mudado para Rua 28 de Se- tembro, data da promulgação da Lei do Ventre Livre, no ano de 1871: "É emblemático que o limite sul do território do Areal da Baronesa fosse um logradouro que fazia referência a um marco para a população ne- gra". (Vieira, 2007, p. 105). O encontro desta via com a Rua 13 de Maio (referência à abolição da escravidão em 1888) torna ainda mais sugestivo o caráter do Areal como um território negro. EMBOSCADAS "Nas crônicas de Achylles Porto Alegre, as Emboscadas aparecem como uma faixa de terra que abrangia o espaço compreendido entre as ruas Lopo Gonçalves, Luiz Afonso, República e José do Patro- cínio (antiga Concórdia) e 'morria' à margem do Ria- chinho. Com vegetação de mato cerradíssimo e muitos capões, que tornavam este sítio intransitável, serviu durante a escravidão de refúgio aos negros fugidos." (Mattos, 2000, p. 28) dora, principalmente a partir das reformas urbanas que afasta- ram os pobres da área central. Trabalhadores vinculados a ati- vidades de prestação de serviços de baixa remuneração, como jornaleiros (diaristas), costureiras, taverneiros, amas de leite, embarcadiços, pedreiros e brigadianos, em grande parte negros mas também brancos pobres (Mattos, 2000, p. 29-30). Representação de um escravizado fugido em um anúncio de jornal da capital de Porto Alegre - século XIX. Vista parcial da Cidade Baixa Fonte: Museu da Comunicação Hipólito José da Costa Muitas lavadeiras negras moravam e trabalhavam no Areal da Baronesa, formando um dos grupos que ficou na me- mória fotográfica da cidade, ao atuarem nas margens do Riachi- nho ou do Guaíba. Segundo reportagem de um jornal da cidade, datada de 1897: "As lavadeiras em grande número, formam a sua reunião de um e outro lado da ponte de pedra, onde em doce e agradável palestra vão desinfectando com sa- bão as águas do Riachinho". 31 Praia do Riachinho - atual Rua Washington Luiz (1900) Fonte: Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo - Autoria: Ferrari
  • 39. 39 A forte presença do carnaval e a presença da religiosidade de matriz africana são expressões da forte identidade negra do Areal da Baronesa. Arroio Dilúvio nas imediações do Areal da Baronesa Fonte: Museu da Comunicação Hipólito José da Costa Fonte: Acervo Dorvalina Fialho - Obtido em Vieira, (2017, p. 118) “Avenida” no Areal da Baronesa AS "AVENIDAS" DO AREAL Uma característica do antigo Areal são as "Avenidas", moradias coletivas de aluguel caracterís- ticas da região: "As avenidas eram moradias coletivas de aluguel, com diversas casinhas de madeira ou pe- ças contíguas, paralelas a um pátio ou corredor. Os banheiros e tanques eram coletivos e ficavam loca- lizados no pátio." (Vieira, 2017, p. 117). Interessante observar que a Comunidade Quilombo do Areal, lo- calizada na Av. Luiz Guaranha, está constituída neste modelo espacial. A Ilhota "A Ilhota era uma pequena área, totalmente circundada por uma das curvas do Arroio Dilúvio, após o seu en- contro com o Arroio Cascatinha. Locali- zava-se ao sul da Praça Garibaldi, mais precisamente entre a Rua Arlindo (atual Rua Érico Veríssimo) e a Rua 13 de Maio (atual Av. Getúlio Vargas), tendo como limite sul a Rua 17 de Junho." (Vieira, 2017, p. 121). Sua origem remonta a 1905, momento em que o Arrioio Dilúvio, ainda não canalizado, corria por dentro da Cidade Baixa. Na altura da atual Av. Érico Veríssimo, formava uma curva acentuada e, após uma intervenção em seu curso em 1905, acabou por formar uma pequena ilha em seu interior: a Ilhota, território negro e popular, sujeito a frequentes alagamentos, desaparecido em___. Lá residiu a família do famoso cantor Lu- picínio Rodrigues. Em fins da década de 1960 a Ilhota deixa de existir, e grande parte de seus mo- radores vão dar origem ao bairro Restinga (Vieira, 2017, p. 121-128). Paisagem interna da Ilhota Fonte: Marcello Campos (Arquivo pessoal) - Obtido em: Vieria (2017, p. 125)
  • 40. 40 A religiosidade afro no Areal A memória da cidade e dos antigos batuqueiros é recorrente em apontar o território negro do Areal da Baronesa como local de muitas casas de batuque e umbanda. Nas memórias de Waldemar de Moura Lima, o Mestre Pernambuco, torna-se visível a relação com outros territórios e espaços sociais negros: "Quando cheguei, em [19]48, fui morar na Duque [de Caxias]. A força do tambor me chamava. Moleque fugia de casa e ia para o Areal da baronesa. Fugia e dava um jeito de me envolver. Era o grande es- paço. Tínhamos a Bacia [do Mont´Serrat]. Lá eu jogava futebol com o pessoal do Mont´Serrat. Tinha outro espaço forte, próximo ao pronto Socorro, a Santana. Ali surgiu Bambas, Praiana. Era essa a área do pessoal. A negrada na época era alfaiate, trabalhos braçais, porteiros, área de serviço em geral. As duas sociedades, Floresta e Prontidão, eram dirigidas pela mesma família, dois irmãos. Também o Marcílio." (entrevista ao autor em 21/03/2006). (Campos, 2006, p. 37) Em 1914, um episódio ocorrido na casa do "médium" Alfredo Duarte, residente na na Avenida Orien- tal no 14, na rua Miguel Teixeira/Areal, chamou a atenção da sociedade porto alegrense. Tratava-se de uma época de grande intolerância com as religiões de matriz africana, inclusive com relatos de que a polícia invadia os templos e prendia seus adeptos. Em uma noite do mês de abril, dezesseis brigadianos adentraram a casa do referido Alfredo, não o fizeram para reprimir sua religiosidade, mas sim enquanto consulentes que buscavam assistência espiritual. Acabaram sendo surpreendidos pelo seu superior, o tenente Courseuil, que os conduziu ao quartel (Mattos, 2000, p. 114). Interessante pensar que os soldados da Brigada Militar eram originários justamente das camadas Mapa Porto Alegre 1906, com destaque para: Ilhota, traçado Av. Ipiranga e pontes sobre Arroio Dilúvio Fonte: CD Cartografia Virtual Histórica-Urbana de Porto Alegre: século XIX e Início do XX (IHGRGS, 2005). Elaboração: Daniele Machado. Obtido em: Vieira (2017, p. 123)
  • 41. 41 populares da sociedade, e consequentemente faziam parte de um universo cultural comum aos afro religiosos. Lembremos que na década de 1890 a Brigada Militar estabeleceu quartéis na região do Areal da Baronesa, e muitos brigadianos passaram a residir na região. Quem sabe algum desses dezesseis policiais não estivesse na casa do "médium" Alfreto em busca de proteção junto ao axé de Ogum, orixá guerreiro, protetor dos soldados e militares? Lideranças Religiosas na Cidade Baixa O Batuque, por estar baseado na transmissão oral do conhecimento e se alicerçar nas noções de an- cestralidade e tradição, evoca a memória de antigas lideranças religiosas que viveram no passado. Na Cidade Baixa eram numerosas essas lideranças, tais como a já referida Princesa Emília de Oyá Ladja (ver texto sobre Rio Grande), Pai Fábio de Oxum, Príncipe Custódio de Sapatá, entre outros . Custódio Joaquim de Almeida - o Príncipe africano Sem dúvida o maior destaque entre as lideranças afro religiosas da região foi o Príncipe, figura que gera polêmica ainda na atualidade, no que se refere ao seu possível título de nobreza: seria Custódio Joaquim de Almeida um africano de linhagem nobre ou um agudá retornado? AGUDÁ No Benin, designação que se dá ao portador de sobrenome de origem portuguesa, em geral descendente de africanos libertos retornados do Brasil. O vocábulo, presen- te no fongbé e no iorubá, parece originar-se no substantivo “ajuda”, do nome do forte português de São João Batista da Ajuda, pronunciado como oxítono. Os agudás formam uma comunidade distinta do restante da população beninense, as- sim como os amarôs na Nigéria e os tabons de Gana. Na década de 1990 a antropóloga Maria Helena Nunes da Silva estudou as visões sobre o Príncipe africano, entrevistando um dos filhos de Custódio, lideranças afro-re- ligiosas, entre outras pessoas que cultivavam uma memória acerca da sua trajetória na capital dos gaúchos. Ainda que não fosse seu objetivo inicial, o trabalho de Nunes da Silva (1999) acabou por contribuir decisivamente para cristalizar uma de- terminada visão sobre Prìncipe Custódio, na qual ele teria che- gado em Porto Alegre com uma idade avançada, entre 1899 e 1901, a convite de Júlio de Castilhos, após escapar de uma complexa e rebuscada história de luta pela su- cessão ao poder em seu reino na África. Lá, Custódio chamaria-se Osuanlele Oziki Erupê, o descendente e herdeiro direto do último Obá do Benin - atual Nigéria - deposto pelos britânicos, chamado Ovonramwen. Ainda segundo essa versão, Custódio receberia em solo gaúcho uma polpuda soma em libras esterlinas (moeda da Grã- -Bretanha). Uma espécie de indenização paga pelos ingleses para “Osuanlele” deixar sua herança - e a disputa - ao trono do então Reino do Benin, em derradeira decadência com a ação do império britânico. No entanto, nenhuma fonte documental foi encontra- da respaldando esses depósitos bancários, em qualquer instância, seja no Rio Grande do Sul ou, até mesmo, em solo inglês. É bastante provável que essa versão seja produto de uma narrativa que buscava justificar e demonstrar as origens de um poder negro em terras sulinas, amparado na figura do Príncipe Custódio. Talvez estejamos diante daquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu define como ilusão biográfica. Uma tentativa, ainda que inconsciente, de atribuir um sentido retrospectivo a uma trajetória de vida. Pelo menos é o que parece ser, ao compararmos com Pai Custódio de Sapatá (Custódio Joaquim de Almeida), o Príncipe
  • 42. 42 Nessa outra pesquisa, os historiadores Rodrigo Weimer e Jovani Scherer, apresentam Custódio Joaquim de Almeida como um africano livre nascido em 1852, ou 1853, na cidade de Ajudá, importante porto do antigo Dao- mé, atual República do Benin. Um documento em especial levou a redefinição de aspectos fundamentais da trajetória do Príncipe no contexto da diáspora africana. Essa fonte estabelece que Custódio já se encontrava em Porto Alegre desde 1881, com ao menos duas décadas de antecedência ao correntemente aceito até então. Em dezembro de 1885, no centro de Porto Alegre, os documentos e indícios que vieram à tona em 2021, no livro No refluxo dos retornados, que trata a trajetória de Custódio sob outro prisma (Scherer e Weimer, 2021). ILUSÃO BIOGRÁFICA “o fato de que a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreen- dido como expressão unitária de uma “intenção” subjetiva e objetiva, de um projeto. [...] Essa vida organizada como uma história transcorre, segundo uma ordem cronológica que também é uma ordem lógica, desde um começo, uma origem [...] O sujeito e o objeto da biografia (o investigador e o investigado) têm de certa forma o mesmo interesse em aceitar o postulado de sentido da existência narrada [...] na preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva.” (Bordieu, 1998) Custódio envolveu-se em um desentendimento que resultou em conflito físico com o português Ernesto Leal. Nos trâmites do processo o Príncipe teve que se qualificar diante do juiz (identificar-se), conforme segue: “qual seu nome, filiação, estado, idade, profissão, nacionalidade, naturalidade e se sabia ler e escrever? respondeu chamar-se Custódio Joaquim de Almeida, filho de Joaquim de Almeida, com trinta e dois anos de idade, solteiro, tanoeiro, africano, nascido em Ajudá, não sabe ler nem escrever." (Scherer e Weimer, 2021) A leitura do documento demonstra que Custódio não tinha cerca de sessenta anos ao chegar em Porto Alegre. Ele já circulava pelas ruas da capital gaúcha “com trinta e dois anos”. Outras fontes expostas no livro de Weimer e Scherer (2021), demonstram que o Príncipe teria chegado, segundo suas palavras, “moço” ainda a essas terras. Nesse sentido, ganha força o ano de 1864 - data mais segura apontada pelo estudioso Alberto da Costa e Silva - para sua chegada ao Brasil. Questão que segue, ainda, sem uma comprovação definitiva, junto a tantas outras, incluindo se veio para cá sozinho ou acompanhado, visto ser bastante jovem. Somente pesquisas futuras poderão resolver. De certa forma esses novos documentos abriram espaço para compreender a trajetória de Custódio Joaquim de Almeida de uma forma diferente. É bastante provável que seu pai tenha sido Joaquim de Almei- da, famoso africano liberto que retornou do Brasil ao continente africano, tornando-se um dos patriarcas dos agudás na fronteira entre os atuais Benin e o Togo. Por outro lado, sua mãe ainda nos é desconhecida. Nesse sentido, a realeza de Custódio apresenta-se como construída mais no lado de cá do Atlântico do que na África. Ainda que a futura descoberta de quem foi sua genitora possa associá-lo a uma linhagem real. Vivendo nas décadas finais do século XIX em Porto Alegre, Custódio atuou como trabalhador, um qualificado tanoeiro é verdade (fabricante de barris de madeira), mas não como aquinhoado nobre africano bancado por britânicos. Andou a cavalo, o que certamente lhe dava ares altivos, no entanto talvez tenha sido primeiro a trabalho e não a passeio. Com o tempo tornou-se conhecido como turfman (proprietário de cavalos de corrida), meio pelo qual estabeleceu importantes contatos com o que havia de mais refinado na elite gaúcha. Sua trajetória em outros aspectos, entretanto, permanece com lacunas, especialmente entre seu nascimento em Ajudá, na África e sua idade adulta em Porto Alegre. Por enquanto, então, é mais certo pensar que sua realeza foi construída em Porto Alegre, entre a po- pulação que vivia no Centro, na Cidade Baixa, e em outros territórios negros. Príncipe Custódia estabelecia
  • 43. 43 uma ponte entre as elites porto-alegrenses e as camadas mais populares, para as quais era visto como um benfeitor, sem dúvidas, uma importante liderança entre africanos e afro-brasileiros, consultado por muitos e respeitado por outros ainda mais. Seu funeral, em 1935 foi notícia em diferentes jornais do Rio Grande do Sul: "Atendendo aos seus últimos desejos, o velório do 'príncipe' seguiu as tradições africanas, obede- cendo ao rito indispensável à sua condição de dignatário negro [...] Fora ele, também, entusiasta turfman, tendo tido a propriedade de vários animais que marcaram época no nosso turfe." (Fonte: Diário de Notícias, 29 de maio de 1935)32 . Custódio é uma figura emblemática para a comunidade afro religiosa do Rio Grande do Sul. Filho do orixá Sapatá (vodum agregado ao Batuque como uma das variantes do orixá Xapanã, relacionado à doença e a sua cura), é rememorado por muitos como sendo o maior baluarte da nação jeje nestas terras, uma das tra- dições até hoje cultuadas. Ao mesmo tempo, outras narrativas informam que Custódio não teria "aprontado" nenhum filho de santo, pois, sendo um nobre africano, não iria "colocar a mão na cabeça" de pessoas comuns, sem ascendência semelhante. "Colocar a mão", na linguagem batuqueira, é uma referência ao ritual pelo qual um pai ou mãe de santo sacraliza a relação de um indivíduo com o seu orixá regente, considerado o "dono de sua cabeça". Já "aprontar" significa propiciar ao filho de santo toda preparação para se tornar um babalorixá, inclusive com a outorga do Axé de Ifá (autorização para a condução do jogo divinatório dos búzios) e Axé de Obé (autorização para o uso ritual da faca utilizada nos sacrifícios rituais) e, sendo assim, possibilitando ao mesmo abrir a sua própria casa de nação e o apronte de seus filhos de santo. O acesso aos registros de pesquisa do folclorista e historiador Carlos Galvão Krebs trouxe novo horizonte ao debate. A partir do fim da década de 1940, Krebs pesquisou o tema da religiosidade negra em Porto Alegre, tendo vivenciado intensamente o dia a dia de importantes casas de nação. A partir das conversas e contatos estabelecidos nestes espaços, buscou saber mais sobre a emblemática figura do Príncipe Custódio, falecido na década anterior ao início de sua pesquisa. Carlos G. Krebs conversou em 1953 com Domingos de Almeida, um dos filhos de Custódio, o qual afirmou que seu pai teria deixado "quantidade de filhos de santo", porém não tendo "feito" pai-de-santo a ne- nhum deles. Nas palavras de Domingos, seu pai "[...] dizia que a religião africana era cousa muito séria, e que os filhos não iam fazer a cousa direito, se trabalhassem sozinhos" (Depoimento de Domingos de Almeida, 1953. Acervo Carlos Galvão Krebs). Serafina (esposa de Custódio) e os filhos Domingos, Dionísio e Joaquina. Imagens obtidas em Silva (1999)
  • 44. 44 CARLOS GALVÃO KREBS Carlos Galvão Krebs (nascido em São Gabriel no ano de 1914, falecido em Porto Alegre em 1992). Foi um et- nógrafo e folclorista brasileiro, formado em Direito, História e Geografia e Artes Plásticas. Foi funcionário da Secretaria de Educação do Estado do RS e fundador do Instituto de Tradição e Folclore, origem do IGTF (Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore), ao lado de figuras como Dante de Laytano e Paixão Cortes. Foi pioneiro no estudo das práticas de religiosidade de matriz africana no RS, ao lado de Laytano. A partir de fins da década de 1940, frequentou diversas casas de Batuque em Porto Alegre, com destaque para as de Mãe Moça de Oxum, Mãe Andrezza de Oxum, Mãe Apolinária de Oiá, Mãe Ester de Iemanjá, Mãe Maria Horária do Bará, Pai Florentino do Ogum, Irmão Laudelino Manoel de Souza (umbanda). Em uma época na qual o Batuque era alvo de perseguições, publicou diversas reportagens em jornais e revistas do Brasil, buscando levar ao grande público um pouco de conhecimento sobre o tema. Dialogou com muitos folcloristas e etnógrafos, como Câmara Cas- cudo, Peixe Grande, Edson Carneiro e Veríssimo de Melo. Criou o primeiro curso de folclore do estado. Entre fins da década de 1950 até 1980, voltou-se ao estudo do folclore gaúcho, em seus diversos aspectos. Temas como: congadas e maçambique de Osório, cultura campeira, saberes e ofícios tradicionais, etc. Autor do livro Estudos de Batuque (Krebs, 1988). As pesquisas de Krebs apontam um caminho quanto à dúvida sobre a descendência religiosa do Príncipe: ele possuía casa de religião de culto africano pelo lado da nação jeje, mas não chegou a aprontar totalmente nenhum filho de santo para que se tornasse babalorixá, ou seja, não teria concedido Axé de Ifá e de Obé a ninguém. Mas possuía, sim, filhos-de-santo iniciados por ele, ou que passaram pela sua "mão" depois de iniciados por outra liderança religiosa. Muitos destes devem ter tido seus aprontamentos religiosos con- cluídos por outro pai ou mãe de santo e, assim, dado seguimento ao culto da nação jeje mediante abertura de suas casas. Isso não leva a afirmar que Custódio de Almeida tenha sido o primeiro pai de santo do jeje no estado, ou o "fundador" desta nação por estas bandas. Muitos africanos auto identificados com esta nação viviam des- de o século anterior no estado. O papel do Príncipe parece ter sido, de certa forma, o de atualizar a relação com uma África mítica e imaginária, há muito tempo distante dos afrodescendentes aqui estabelecidos. Lembremos que o tráfico internacional de escravos cessou para o Brasil em 1850, e que o Rio Grande do Sul não mantinha vínculos de comércio náutico com o continente africano, como no caso da Bahia. O último endereço de Custódio de Almeida foi na rua Lopo Gonçalves n. 498, em uma propriedade que fazia fundos com a Travessa dos Venezianos. Os batuques e outros rituais religiosos na sua casa, apesar de serem famosos, eram muito fechados, restritos aos filhos de santo e amigos íntimos. Já as comemorações de seus aniversários, ou como o povo de terreiro chama “festas brasileiras”, essas sim eram grandes eventos no bairro, por vezes contando com a presença de uma banda musical, farta comida e bebida, se estendendo para fora do espaço da sua residência. Os convidados eram numerosos e, segundo relatos de época, chegavam a somar cerca de oitocentas a mil pessoas, com festejos que podiam durar dias. Alguns relatos informam que nesses momentos havia a presença inclusive de autoridades estatais, como delegados e políticos. Uma das figuras públicas associadas a Custódio foi Antônio Augusto Borges de Medeiros, Governa- dor do Rio Grande do Sul entre 1898-1908 e 1913-1928 (à época chamado de Presidente do Estado). As me- mórias e escritos acerca desta relação informam que Borges de Medeiros frequentava as festas de aniversário de Custódio de Almeida, e que talvez o governador fosse até mesmo filho-de-santo do africano, tendo sido consagrado ao orixá Ogum. Ainda segundo relatos, a relação entre eles teria sido iniciada quando Carlinda, es- posa de Borges, fora buscar em Custódio tratamento espiritual para o quadro de doença enfrentado por Borges de Medeiros e para proteção frente ao cenário político. E mesmo o ex-Governador Júlio de Castilhos teria, an- teriormente, recorrido ao Príncipe por motivos semelhantes. O Príncipe teria, assim, tornado-se inclusive um