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Capa<br />contracapa<br />Os Marados de Gadamael<br />e os dias da<br />Batalha de Guidaje<br />Daniel de MatosUnir as Pontas da Memória <br />(À laia de introdução)<br />É estranho e deveras angustiante participarmos em cerimónias fúnebres de camaradas que morreram ao nosso lado, coladinhos ao nosso corpo, no mesmo buraco, mas há… 36 anos e meio! Ainda por cima quando além de camaradas de armas eram já amigos do peito e quando, devido a circunstâncias que demoram a explicar, tivemos de os enterrar algures no mato, sem a convicção absoluta de que os depositávamos nas suas últimas moradas, tendo todas as incertezas do Mundo quanto ao destino que poderiam levar os respectivos corpos.<br />O regresso e a devolução às respectivas famílias dos corpos do furriel Machado, do primeiro-cabo Telo e do soldado Geraldes, as honrarias militares a que tiveram direito junto ao “Monumento Nacional aos Combatentes do Ultramar”, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Belém/Lisboa, e as homenagens que lhes foram rendidas nos funerais efectuados nas respectivas terras natais, – em Valpaços, no Paul do Mar/Madeira e no Vimioso – vieram reactivar memórias que repousavam no arquivo dos tempos idos. Já antes, durante a bem organizada campanha para a exumação e trasladação de alguns dos outros corpos sepultados em Guidaje, e quando os três pára-quedistas da CPP 121 regressaram a Portugal e às suas famílias, algo voltou a agitar as nossas consciências e nos fez recuar no tempo e no espaço. É que, vistas desta maneira, afinal as coisas não decorreram assim há tanto tempo, foram ontem, estão mesmo a acontecer, agora.<br />Existem múltiplos relatos dos acontecimentos de Maio de 1973 em Guidaje – livros, depoimentos diversos, testemunhos, documentos na internet, – e, no entanto, que eu conheça, em lado nenhum figuram referências à CCaç 3518. Excepto… nas campas! E isso tem conduzido muita gente a perguntar por que raio estaria nesses dias tanto pessoal de Os Marados de Gadamael em… Guidaje? O que fazia, como foi lá parar? Quem foram Os Marados e, se o nome próprio refere outro local, o que os levou a Guidaje numa altura tão crítica como a que por lá se viveu durante esse mês?<br />Eu próprio, em conversa (por e-mail) com um grande e velho amigo, – o coronel A. Marques Lopes, agora na reserva, – ao informá-lo que tinha estado em Guidaje e fora “utente” do infausto abrigo de que muitos hoje falam, mas de que (felizmente para os próprios) poucos lhe conheceram os horrores, recebi dele a seguinte resposta: “o coronel Ayala Botto, que foi adjunto do Spínola, e foi com ele a Guidaje em 1973, põe em dúvida que a tua companhia estivesse em Guidaje na altura do cerco. Diz mais coisas. Ou escreve para o Blogue!!! A. Marques Lopes” (o blogue a que se refere é o conhecidíssimo, e de grande mérito, “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que contém uma quantidade apreciável de textos, fotografias e testemunhos, muitos dos quais de relevância e interesse históricos). <br />A verdade é que estão inventariadas em inúmeros textos as unidades que participaram na batalha de Guidaje, sendo omissas referências à nossa companhia. Bem, mas se para alguns é duvidosa e difícil de explicar a presença d’Os Marados de Gadamael tão em cima da fronteira norte com o Senegal, pior se tornará se tentarem explicar como raio é que no cemitério improvisado de Guidaje ficaram enterrados três dos mortos que ali sofremos!... <br />O reavivar do assunto, devido ao processo de trasladação das ossadas em 2009, e esperando que este hiato de tempo tenha esfriado a sensibilidade dos familiares para que hoje em dia já se possam confrontar melhor com a realidade dos acontecimentos – que, confirmou-se durante as recentes exéquias, até então desconheciam, – leva-me a redigir estas linhas que serão um misto das memórias desse tempo, – sempre falíveis graças à “PDI” (toda a gente de geração mais avançada sabe o que isso é). Mas por recear as traições dessa mesma memória, houve que ligar algumas pontas, que a misturar com o resultado a consultas diversas e com o cruzamento de informações que por aí circulam, disponíveis na comunicação social, em livros e na web. <br />Porém, que fique claro que esta nem é a História d’Os Marados, longe disso, muito menos a dos acontecimentos de Guidaje, embora espere que possa contribuir com alguns dados para historiadores que saibam da poda e queiram um dia pegar neste assunto. Não sendo um especialista, certamente serei perdoado por eventuais imprecisões (espero que não as tenha em demasia). Do mesmo modo, este texto não advém de um diário (que nunca escrevi), não visa enaltecer nem as nossas aventuras nem as desventuras, muito menos acicatar a rivalidade imbecil entre unidades daqui e dacolá. Até porque, – valha-nos isso! – integrámos uma companhia do exército (“tropa macaca”), que tal como todas as outras (de todas as armas) foi composta por gente normalíssima, sem a mania das grandezas, mas com a sorte de não contar no seu seio com gabarolices de heróis de pacotilha nem com falsos protagonistas, em resumo, uma companhia sem “rambos” nem “schwarzeneegers” obtusos.<br />Com estas linhas pretendo, tão-só, escrevinhar alguns apontamentos que, na minha óptica, respondam às dúvidas que muitos camaradas colocam amiúde sobre o que realmente se passou em Maio de 1973 naquela região e, já agora, explicar como apareceram Os Marados de Gadamael nesta crise… <br />Provavelmente não acrescentarei nada de novo ao que já é conhecido. Mas se este trabalho contribuir para que alguns ex-combatentes nele se revejam e dele se sirvam para contar aos netos o que nos custou aquilo tudo, terá valido a pena e dar-me-ei por satisfeito. Também nunca foi meu hábito escrever na primeira pessoa do singular. Só que, para se contar esta história, forçosamente tem de haver um narrador. Por isso, aqui vai…<br />Por onde andaram e com quem estiveram Os Marados?<br />“Os Marados de Gadamael” foi a divisa – não muito abonatória, é certo, – escolhida para e pelo pessoal da Companhia de Caçadores Independente nº 3518, formada no Funchal (no Batalhão Independente de Infantaria nº 19/BII19) durante o segundo semestre de 1971 (formalmente, am 15 de Novembro, “destinada a combater no Ultramar nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 20º do Decreto-Lei º 49107, de 7 de Julho de 1969”). <br />Como companhia “madeirense” (de onde são naturais os soldados atiradores e o capitão miliciano Manuel Nunes de Sousa, – que as praças especialistas e os graduados vieram do Continente), receberia o guião das mãos do presidente da Câmara Municipal de Santana, a 16 de Novembro de 1971. <br />Houve também entre os “Marados” dois açorianos e dois guineenses: o furriel miliciano Nuno Álvares Brasil Pessoa, – que faleceu depois do regresso à ilha natal de S. Jorge; vindo em rendição individual, em 27 de Julho de 1972, o soldado atirador António Henrique Paiva Valente, de Santa Maria, então como hoje, distinto locutor do Clube Asas do Atlântico, em Vila do Porto; o guineense, de ascendência cabo-verdiana, Florentino José Lopes de Almeida, (para os amigos, o Fontino), furriel miliciano de operações especiais; e ainda o soldado Malan Seidi, – veio transferido da CCaç 3.<br />Com destino à Guiné Portuguesa, a companhia embarcou na cidade do Funchal no dia 20 de Dezembro desse ano, às 3 da madrugada (!), tendo chegado a Bissau no dia 24 seguinte (embora já estivéssemos ao largo do rio Geba desde as 23 horas do dia 23, quem poderá esquecer-se de tão bela consoada?). No mesmo paquete, – o Angra do Heroísmo, – e com igual proveniência, viajaram a CCaç 3519 (que iria parar a Barro) e a CCaç 3520 (cujo destino foi Cacine), mais o BCaç 3872, que já embarcara em Lisboa e que viria a instalar-se em Galomaro. Pisámos terras da Guiné a partir das 15 horas. <br />Passámos o dia de Natal a desfazer malas e no dia 26 registou-se a cerimónia de boas-vindas, presidida pelo comandante-chefe, – General António de Spínola, figura grada entre os soldados, ou não fosse também ele um madeirense (filho de madeirenses, se bem que nascido em Estremoz) e, ainda por cima, um líder – perante quem desfilámos e que em seguida nos passou revista. A 22 de Janeiro de 1972 terminámos o IAO (Instrução e Aproveitamento Operacional) no CMI (Centro Militar de Instrução), situado no Cumeré. No dia seguinte, a bordo de uma LDG, às 19 horas, abalámos do porto de Bissau – ao lado do histórico cais de Pindjiguiti, – para Gadamael Porto. <br />Após o transbordo em Cacine para uma LDM, (aí se despedindo dos camaradas da irmã gémea CCaç 3520 – “Estrelas do Sul”), e em duas levas de dois pelotões cada, a primeira alcançou o pequeno desembarcadouro de Gadamael, no rio Sapo (afluente do Cacine), pelas 15 horas do dia 24 de Janeiro, onde a companhia ficou uma temporada em sobreposição com a unidade que foi render (a CCaç 2796, que depois marcharia para Quinhamel), integrada no dispositivo de manobra do BCaç 2930, depois do BCaç 4510/72 e, depois ainda, do COP 5 (Guileje). <br />Juntamente com Os Marados, estiveram em Gadamael os homens do Pelotão de Reconhecimento Fox nº 2260 “Unidos Venceremos” (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria Alexandre Costa Gomes e pelos furriéis milicianos Manuel Vitoriano, José Soares, Joaquim Manso, José António Barreiros e António Rio). A 28 de Abril de 1972, após cerimónia de despedida, presidida in loco pelo governador e comandante-chefe Spínola, o pelotão marcha para Bissau, a fim de aguardar aí transporte de regresso à metrópole. <br />O Pel. Rec. Fox 2260 foi substituído oito dias antes (21 de Abril) pelo Pelotão de Reconhecimento Fox 3115/Rec.8 (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria José Manuel da Costa Mouzinho e pelos furriéis Sérgio Luís Moinhos da Costa, Alfredo João Matias da Silva, José de Jesus Garcia e Fernando Manuel Ramos Custódio).<br />Também em Gadamael, estiveram adidos à companhia o 23º Pelotão de Artilharia, (comandado pelo alferes miliciano de artilharia José Augusto de Oliveira Trindade e pelos furriéis milicianos Armando Figueiredo Carvalheda, António Luís Lopes de Oliveira (este, logo substituído pelo furriel miliciano João Manuel Duarte Costa), e ainda os Pelotões de Milícias 235 e 236. O comandante de pelotão 235 era Mamadú Embaló e os comandantes de secção, Camisa Conté, Abdulai Baldé e Mamadú Biai; o comandante de pelotão 236 era Jam Samba Camará e os comandantes de secção, Satalá Colubali, Amadú Bari e Mussa Colubali. O Camisa Conté, – quanto a mim a mais bem preparada de todas as milícias, de grande inteligência, disponibilidade constante e invulgar simpatia, – morrerá na célebre “batalha” de Guileje, diz-se que num “acidente com arma de fogo”, (ouvimos em Bissau alguém contar que foi a tentar desmontar uma mina AC armadilhada) a 12 de Maio de 1973. Posteriormente, dizem-nos que na mesma tentativa pereceu também o seu camarada Satalá Colubali. Por outro lado, o Jam Samba viria a morrer em combate, dias mais tarde, também em Guileje, a 18 de Maio de 1973. <br />Nas acções de guerrilha que em Maio e Junho de 1973 viriam a culminar no abandono de Guileje e na tentativa de cerco de Gadamael Porto, morreriam igualmente em combate os soldados milícias do pelotão 235, Corca Djaló, Abdulai Silá e Malan Sambú e, do pelotão 236, o Braima Cassamá. Enquanto estivemos no sul, todos eles acompanharam os pelotões da CCaç 3518 nas patrulhas e demais operações efectuadas. Desses, recordo com maior saudade o Braima Cassamá, que foi meu aluno nas aulas do Posto Escolar Militar nº 23 que funcionou em Gadamael. Eu e o soldado africano Ricardo Lima da Costa  e, mais tarde, com os também monitores escolares, primeiro-cabo Manuel Nuno de Sousa e o soldado António Henrique Paiva Valente, fomos os professores diurnos de perto de quarenta crianças da população. À noite, nas noites em que não estávamos de prevenção ou naquelas em que não teríamos de sair para o mato na madrugada seguinte, demos aulas a uma dúzia de voluntários adultos, praticamente todos da milícia. E como era difícil explicar matérias a quem mal entendia o português! Isto, sem falar noutros assuntos que constavam no programa de ensino, – mas que obviamente não respeitávamos, como o fazer os Africanos empinarem as linhas ferroviárias, (ninguém sabia sequer o que era um comboio), ou as cordilheiras da metrópole (aquelas crianças nem um monte viram ao longo das suas curtas vidas na Guiné)! Na prática, o que todos queriam era aprender a ler e escrever em português (alguns já o faziam em árabe, quanto mais não fosse para lerem a “Tábua de Moisés”). O Braima, excelente rapaz, era dos mais interessados e não me lembro que alguma vez tenha faltado a uma aula. Em separado, devido à compreensão da língua, dei aulas aos soldados. Tínhamos mais de trinta praças da companhia que não possuíam a 4ª classe quando foram incorporados, algumas eram mesmo analfabetas. No final da comissão quase todas fariam o exame e seriam aprovadas (já na escola primária de Bafatá), o que se revelou vital para os seus futuros (muitos soldados pretendiam emigrar para a Venezuela e África do Sul mal se vissem livres da tropa) ou, quanto mais não fosse, para poderem tirar a carta de condução.<br />Enquanto em Gadamael, o território operacional e os locais de minagem, patrulhamento e montagem de emboscadas foram essencialmente os seguintes: antigas tabancas de Viana, Ganturé, Bendugo, Gadamael Fronteira, Missirá, Madina, Bricama Nova, Bricama Velha, Tambambofa, Jabicunda, Campreno Nalú, Campreno Beafada, Mejo, Tarcuré, Sangonhá, Caúr e Cacoca. A zona fronteiriça com a Guiné-Conacry e a picada para Guileje (estrada que outrora ligava a Aldeia Formosa e ao Saltinho) foram os locais com mais frequente número de operações. Todo o abastecimento por via terrestre às unidades e população instaladas em Guileje se efectuava, durante a estação seca, através de colunas efectuadas a partir de Gadamael Porto, sendo o nosso pessoal responsável não só pelas viaturas que transportavam para Guileje os géneros que os batelões descarregavam em Gadamael, mas também pela segurança de metade do percurso. Por diversas vezes, pelotões da companhia, o pelotão Fox e os pelotões da milícia passaram temporadas em reforço das unidades locais (como, por exemplo, da CCaç 3477, “Os Gringos de Guileje”, até Dezembro de 1972, e a CCav 8530, na parte final da nossa estada no sul). <br />Ao recordar aqui quem connosco palmilhou longas distâncias em patrulhamentos, montou emboscadas e alinhou em segurança a colunas no sul da “província ultramarina”, seria injusto não mencionar os guias (suponho que havia dois), mas muito especialmente o Queba Mané, expoente máximo em simpatia e disponibilidade fosse para o que fosse, e de grande resistência física, pois num africano os cabelos brancos denunciam muitas vezes a avançada idade e nunca dei por que se sentisse fatigado. Uma ou outra vez o capitão enviou-o sozinho ao outro lado da fronteira, com a missão de recolher informes sobre a presença, guarnição e movimentações IN. Contornava sem dificuldade as armadilhas que eu e o Ângelo Silva tínhamos sempre montadas no caminho (algumas dezenas em toda a zona operacional).<br />Outros homens importantes foram os caçadores nativos, à conta dos quais nos deliciámos inúmeras vezes com peças de caça, especialmente os bifes de gazela de tão boa memória. Um deles era o experiente nº 4/65, Aliú Jaló; o outro, Ussumane (Baldé?), que viria a distrair-se e a pisar uma mina antipessoal já perto do cruzamento de Ganturé (debaixo de um velho e já meio ressequido limoeiro bravo). Certa altura, ao cair da noite, ouvimos um rebentamento que logo identificámos como proveniente de um desses engenhos.<br />Aconteceu muitas vezes sentirmos rebentamentos originados pela passagem de animais (os de maior porte) que pisavam minas ou accionavam armadilhas e morriam. Por exemplo, uma hiena – em vão, ainda tentámos alimentar durante uns dias, com leite em pó, um dos filhotes que sobreviveu ao rebentamento; um leopardo, – infelizmente para o Lopes Silva, que bem tentou “baratinar” o Camisa Conté a retirar-lhe a pele para mandar curtir e enviar à namorada, mas já tinham passado três ou quatro dias quando lá fomos e naquele estado de decomposição o persuadido negou-se; houve pintadas (galinhas-do-mato) que arrastaram fios-de-tropeçar, e, num belo dia, ao fundo da pista velha, um lindíssimo e corpulento gorila sucumbiria aos ferimentos duma mina AUPS. <br />Na manhã seguinte, bem cedinho, a família de Ussumane (tinha várias mulheres) entrou pelo aquartelamento dentro a reclamar que o fôssemos buscar a Ganturé, pois de certeza teria sido ele, saído na caça, quem accionara a mina. Lá me levantei da cama, mobilizei uma secção do 2º pelotão e fui a esfregar os olhos picada adiante, com as mulheres a algaraviar atrás de nós (infrutíferas as tentativas para que se calassem ou nos ficassem a aguardar pelo caminho). No local não encontrei corpo algum, só um monte cintilante de formigas negras e luzidias. Depois de as vergastarmos com arbustos e ramos de árvore é que começou a aparecer o corpo do caçador. Tinha um pé amputado e devia ter perdido muito sangue durante a noite. Porém, a expressão com que se finou sugeria que a causa da morte devia ter sido a asfixia, devido aos milhões de formigas que se apoderaram do corpo ainda vivo mas imobilizado no chão, cobrindo-o literalmente.<br />Há muito esperados, chegaram em três lanchas os homens da rendição, era o dia 8 de Fevereiro do ano da graça de 1973! Os periquitos ficaram connosco durante um período de sobreposição. Assim, fomos rendidos no subsector de Gadamael pela CCaç 4743/72, de origem açoriana, comandada pelo capitão miliciano de infantaria, Manuel Bernardino Maia Rodrigues, Seguimos para Bissau no dia 4 de Março, a partir das 7 horas (a bordo de uma LDG), onde efectuámos também um período de sobreposição e rendemos a CCaç 3373. Os Marados de Gadamael passaram a efectuar a protecção e segurança das instalações e populações da área e a colaborar em escoltas a colunas de reabastecimento a Farim. Uma dessas colunas, envolvendo dois pelotões nossos, “estendeu-se” a Binta e a Guidaje, aí permanecendo sitiada durante quinze dias. <br />É a memória testemunhal, e também opinativa, desses longos dias, que vou tentar transcrever nas páginas seguintes. Tentarei integrá-la no contexto histórico que se vivia na Guiné no já longínquo mês de Maio de 1973, embora a generalidade das explicações se destine, como é óbvio, sobretudo àqueles que por lá não passaram e nunca tiveram qualquer familiaridade com a Guiné nem as causas e efeitos da tão dura quanto injusta e desnecessária guerra que ali se travou. Algumas das unidades (ou partes delas) com quem os dois pelotões da CCaç 3518 estiveram, ou com quem se cruzaram durante tão malfadado período: Companhia de Caçadores 19 (africana, sediada em Guidaje, criada em Dezembro de 1971), Companhias de Caçadores nº 3, nº 14 (também africanas), Companhia de Comandos nº 38, Pelotão de Artilharia nº 24, Companhia de Caçadores Pára-quedistas nº 121, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 7, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 1, Pelotão de Morteiros nº 4247, Batalhão de Caçadores 4512, Companhia de Cavalaria 3420, Companhia de Caçadores sediada em Cuntima, Batalhão de Comandos Africanos e Grupo Especial do Centro de Operações Especiais do alferes Marcelino da Mata (entretanto, coronel na reserva). <br />A companhia viria a ser substituída a 5 de Julho de 1973 no subsector de Brá (COMBIS) pela CCaç 3414, tendo sido transferida para Bafatá na semana seguinte (dia 11) a fim de substituir a CCav 3463. A 13 de Julho de 1973 (dia do meu 23º aniversário em que exagerei nos festejos, estando de sargento de dia, e em que ia sendo preso, mas isso é outra história!) a companhia assumiu a responsabilidade do subsector de Bafatá e, cumulativamente, a função de intervenção e reserva do BCaç 3884, tendo ainda actuado em reforço de outros sectores da Zona Leste, por períodos curtos. Os quatro pelotões da companhia estiveram frequentemente deslocados e reforçaram temporariamente unidades das regiões vizinhas (missões de serviço com as companhias do BCaç 3884, CCaç 3549, BArt 6523/73, CCaç 3548, CAOP 2, etc., mantendo actividade operacional nomeadamente em locais como Contuboel, Geba, Sonaco, Sare Banda, Xime, Xitole, Alimo, Canquelifá, Sare Bacar, Ponta Guerra, Porto Gole, Bambadinca Tabanca, Cheque, Cantauda, Bigine/Colufe, Maum de Meta, Cheual, Bajocunda, Sincha Bakar, Ponta Luís Dias, Enxalé… <br />Entre 15 e 22 de Dezembro de 1973 os quatro pelotões participaram nas grandes operações “Dragão Feroz” e “Tudo Verde”. Na primeira, estivemos com o BArt 3873, CArt 3493 (então, em Fá Mandinga), CCaç 12, CCaç 21 (de Bambadinca, na altura comandada pelo tenente Jamanca), 20º e 27º pelotões de artilharia (10,5 e 14) e os Gemil’s 309 e 310; na segunda, todas com quatro grupos de combate, participaram ao nosso lado a CArt 3494, mais uma vez as CArt 3493 e CCaç 21, bem como o 27º pelotão de artilharia (14 mm), instalado em Ganjuará. Nestes dias de emboscadas, golpes-de-mão e combates causaram-se baixas ao IN (um morto e vários feridos confirmados e, a julgar pelos rastos de sangue abundantes, mais mortes não confirmadas) e capturou-se algum material (por exemplo, uma espingarda semi-automática Simonov). Houve dois feridos graves das NT, evacuados de helicóptero, que não pertenciam à nossa companhia. No percurso Mansambo/Jombocari/Mina, vários soldados foram vítimas de intoxicação alimentar, e vários deles desmaiaram, devido à má qualidade da ração de combate (nº 20) que lhes tinha sido distribuída. O principal objectivo da segunda operação seria destruir um suposto hospital IN que, diziam as informações, estaria a funcionar em Fiofioli (de facto, antiga base guerrilheira, ainda nos anos sessenta). Todavia, quando após várias peripécias chegámos ao destino, nada se confirmou, nem sequer havia quaisquer vestígios IN no local.<br />Estas informações, geralmente não se obtinham através dos serviços especializados do exército, era a PIDE/DGS que dizia obtê-las através de informadores próprios. A polícia política praticamente determinava as operações que as forças armadas deveriam efectuar. À excepção do chefe Allas, – que há quem diga ter sido tecnicamente competente nesse domínio (por se comportar mais como militar do que como polícia), – pelo menos na região de Bafatá, enquanto lá estivemos, as informações vindas daquelas bandas revelaram-se na esmagadora maioria das vezes uma grande treta, falsas ou ineficazes, criadas provavelmente só para mostrar serviço. O certo é que bastava qualquer agente “botar faladura” no comando operacional que esta, em vez de mandar confirmar as tais fontes, fazia a vontade à corporação e lá íamos nós feitos otários à pesca de cubanos e gajos loiros no mato, à cata de “armazéns do povo” e hospitais, como quem vai aos “gambuzinos”… Também dizem os especialistas que a polícia política teve, durante determinados períodos, alguns informadores e agentes infiltrados nas fileiras do PAIGC, inclusive em contacto ou com acesso aos mais altos responsáveis do partido, (e isso viria a confirmar-se a propósito do assassinato de Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, em Conacry), mas nós ficámos sempre com a ideia de que os informadores a um nível mais baixo deveriam ser muito fraquinhos. Na Guiné, a PIDE tinha uma delegação em Bissau, sub-delegações em Bafatá, Mansoa, Bissorã, Bula, Teixeira Pinto, Cacheu, Farim, Cuntima, Cambaju, Sare Bacar, Pirada e Nova Lamego, e ainda postos em São Domingos, Ilha Caravela e Cacine. Os quadros nem eram muitos (entre 75 e 85 no ano de 1973): cinco inspectores e inspector adjunto, dois subinspectores, sete chefes de brigada, dezoito agentes de primeira classe, vinte e oito de segunda e estagiários, quatro motoristas e três guardas prisionais. Possuía ainda meia dúzia de funcionários técnicos (rádio-montadores e rádio-telegrafistas), outros tantos contínuos e serventes, além de quatro escriturários para as folhas de caixa e processamento de salários, subsídios extraordinários e ajudas de custo. Depois, é claro, havia uma rede de informadores e, para sua vergonha, os comandos militares tinham instruções rigorosas de como proceder com eles (na Guiné, instruções dimanadas da Directiva 63/68.SECRETO.AM). Em suma, “autóctone que se apresente para prestar informações exclusivamente à PIDE/DGS deve ser considerado informador secreto, canalizado para o agente local ou, não existindo, deve-se providenciar o transporte para Bissau e entregá-lo na delegação desta polícia”. É expressamente proibido fazer interrogatórios a estes informadores! Ao arrepio dos interesses e da estratégia militar, a PIDE chegou a ser considerada responsável por provocações sangrentas com o objectivo de criar ondas de terror e responsabilizar o PAIGC. Em Novembro de 1965, em Farim, teria mandado lançar uma bomba para o meio de uma festa popular, provocando a morte de uma centena de pessoas, para colocar a culpa nos “terroristas” e revoltar os cidadãos locais. A propaganda, ou notícia de choque sobre a “explosão terrorista”, chegou à opinião pública internacional, mormente através das páginas do New York Times… Os serviços de “Informações e Operações de Infantaria” revelaram-se muito mais eficientes na observação dos movimentos IN, enviando às “zonas libertadas” ou aos outros lados das fronteiras, milícias, caçadores nativos, guias, etc., até a pretexto de irem visitar familiares e, no regresso, ficávamos a conhecer, por exemplo, o número de efectivos, as deslocações havidas, o armamento recebido. Aliás, o PAIGC fazia rigorosamente o mesmo, no sentido contrário.  <br />Nos dias seguintes (23 a 31 de Dezembro de 1973) a companhia executou o plano “Bafatá Impenetrável”, do BCaç 3884, que contou com diversas operações, e, já em 1974, na mesma zona de acção, as operações “Garota Nua”, “Madeirense Teimoso”, “Zorro Galante”, “Indomáveis Patifes” e “Leme Seguro” (cito apenas as operações em que participámos lado a lado com outras unidades e não todas as que efectuámos ao longo da prolongada comissão de mais de 27 meses). <br />Embora terminando a comissão em Outubro de 1973, após diversas datas prováveis para o regresso ao Funchal, (sempre com a frustração do desmentido posterior), a 15 de Fevereiro de 1974 fomos rendidos pela CArt 6252/72, recolhendo ao Cumeré para aguardar o regresso. Juntamente com as unidades que em finais de 1971 a tinham acompanhado na viagem para a Guiné (CCaç 3519, CCaç 3520 e BCaç 3872), a CCaç 3518 embarcaria no paquete Niassa a 28 de Março, com destino à Madeira, onde desembarcou a maior parte das praças e o capitão, tendo o pessoal do Continente alcançado a Rocha do Conde d’Óbidos (Lisboa) ao romper do dia 4 de Abril de 1974.<br />Os Dias da Batalha de Guidaje<br />Levar a lenha e sair queimado! <br />Após cerca de 13 meses claustrofóbicos em Gadamael, estar sediado em Brá (COMBIS), a poucos quilómetros do centro de Bissau, era estar no paraíso! Mantendo a operacionalidade, passámos a prestar serviços diversos, entre os quais, fazendo escala para a segurança ao anel de Bissau, turnos de sentinela, por exemplo, no Quartel-General e no edifício do estúdio radiofónico do PFA (lê-se “PêFêÀ”, Programa das Forças Armadas), no Hospital Militar de Bissau, na residência do comandante-adjunto operacional (brigadeiro Leitão Marques), protecção às portas da rede da cidade, missões de patrulhamento e vigilância suburbana, nomeadamente aos bairros de Bandim (e mercado), Chão de Papel, Alto do Crim, Mindara, tabancas da Pedreira e Fábrica da Telha, do Reino e Gambefada, zona entre as bombas da SACOR e a segunda Avenida de Cintura, estrada do Aeroporto, Belém e estrada de Bor, Bairro da Ajuda, incluindo Madina e Missirá e, com uma periodicidade incerta, escoltando as tais colunas para Farim. Faziam-se sempre num só dia, ida e volta. <br />Nesse tempo, com bom piso e unidades militares ao longo da estrada, nomeadamente em Nhacra, Jugudul, Mansoa, Mansabá e no destacamento K3, – locais onde passa a estrada para Farim, – o percurso não se revelava demasiado perigoso. No essencial, é a proximidade da zona sul da mata do Oio, no enfiamento do Olossato e, cá mais para baixo, da base do Mores, que obriga a redobrado respeitinho, pois é sítio que fez História pelas muitas emboscadas aí efectuadas pelos guerrilheiros do PAIGC, retraçando corpos ao longo dos anos.<br />Ora, a 14 de Maio de 1973, o pessoal dos primeiro e segundo pelotões parte de manhãzinha (cinco horas e trinta minutos) para mais uma rotineira coluna a Farim, levando simplesmente nos bolsos alguns trocos para comprar cigarros e beber uns copos no local de destino. E é sabido que nem todos terão a possibilidade de o fazer, já que a uma parte dos homens nem é permitido atravessar o rio Cacheu, não só porque a preguiçosa, rangente e fumegante jangada é peça única e, no seu vagar, efectua o vaivém entre margens atulhada de camionetas civis e de passageiros, mas também porque alguém tem de ficar a montar segurança às viaturas militares que permanecem na margem sul a aguardar a viagem de regresso. <br />As colunas que chegam de Bissau visam abastecer a região com os mais variados géneros. Embora o Cacheu seja navegável até Binta, mesmo por barcos de razoável envergadura (alguns podem mesmo atingir Farim, apesar das grandes curvas do rio e do cotovelo mais apertado, poucos quilómetros antes da cidade), considera-se muito mais lógico e seguro o transporte por terra, e não é por acaso que, tal como outras, aquela estrada estratégica só foi alcatroada em plenos anos da guerra, tantas vidas e sacrifícios tendo custado aos militares que nessa fase por lá andaram. O último troço, entre Bironque e o destacamento K3, concluiu-se em 1970/71. De facto, antes da guerra colonial ter eclodido na Guiné, o território possuía míseros sessenta quilómetros de estradas asfaltadas (e existiam em 1969 mais de mil quilómetros de vias rodoviárias)! <br />O mesmo princípio se aplica ao reduzidíssimo número de escolas: até há poucos anos, em todo o território, apenas se podia estudar até ao 2º ano do primeiro ciclo; nos anos setenta, mais de 75% dos professores pertencem à tropa; filhos da terra (não europeus) licenciados na metrópole, serão apenas 6 (o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral é um deles)… Ora, em escassos anos de guerra, o PAIGC já conseguira formar em diversos países (de diferentes regimes) dezenas e dezenas de quadros guineenses e cabo-verdianos, com licenciaturas em distintas áreas. A penúria e o subdesenvolvimento são generalizados, o abandono por parte das autoridades é total. Pensemos em hospitais e postos de assistência médica e sanitária? Pois um mês antes do 25 de Abril, o próprio comandante-chefe, general Bettencourt Rodrigues, constata que dos 82 médicos existentes no território, 76 são militares e dois são família de militares! A generalidade do que existe, e não é muito, foi construído só depois do massacre do Pindjiguiti (greve de estivadores barbaramente reprimida pela polícia, a 3 de Agosto de 1959) e do consequente início da “luta armada de libertação nacional” do PAIGC, mais acentuadamente em 1961 e 1963, entre a margem direita do Cacheu e a fronteira senegalesa. Aliás, e como é óbvio, por alguma razão se desencadearia uma guerra pela independência da Guiné!...<br />Neste dia, portanto, as viaturas civis e também algumas GMC a pedir reforma seguem carregadinhas de sibe – madeira para reordenamentos. Reordenamentos, são construções alinhadas em aldeias estratégicas, que a dado momento começaram a construir-se concentrando populações num mesmo espaço, sempre coladas aos aquartelamentos das forças armadas e cercadas por redes duplas de arame farpado. Entre estas, montavam-se fornilhos (explosivos de segurança accionados electricamente, – geralmente ligados a uma bateria de automóvel – e compostos por granadas de mão, cuja fragmentação seria reforçada com materiais “fora de prazo”, tais como granadas de avião, de artilharia e de morteiro que por qualquer razão não haviam explodido quando utilizadas e que rebentariam “por simpatia” se conectadas a outra subtileza explosiva). Com os reordenamentos, dizem os responsáveis, impedem-se fugas e contactos com o exterior, “protege-se” a população e faz-se dela um escudo, pois se o IN bombardear o quartel, poderá é estar a matar os seus próprios familiares. <br />A construção de reordenamentos do território (aldeias estratégicas) não é de agora. Foi o general Arnaldo Schultz (governador da Guiné antes de Spínola, tido como um duro do regime e nomeado directamente por Salazar) que iniciou a política dos aldeamentos estratégicos, com grande propaganda, como se isso fosse uma maravilha para as populações guineenses. Pretendia suster o avanço da guerrilha e controlar os movimentos das populações rurais. Segundo Cabral, os reordenamentos “não têm dado os resultados positivos esperados pelos portugueses, por serem criados sobretudo nas zonas sujeitas à influência dos chefes tradicionais” (de súbito, forte aposta das autoridades coloniais), “especialmente na região de savanas do centro, maioritariamente fulas”. “Mais realista que esses chefes, o Povo foge quando pode e prefere o refúgio das agruras da guerra nos países vizinhos”. A agravante foi o impor determinadas chefias ao povo, que não as respeitava, ou por pertencerem eventualmente a etnias rivais, ou por estarem em desuso, ou por serem inclusivamente contra-natura. Por exemplo, a etnia balanta (a mais numerosa, que representa 30% da população, seguida, por esta ordem, pelos fulas, manjacos e mandingas) dispensava bem ter chefes a mandar, estava habituada desde sempre a resolver os seus problemas e a decidir em comunidade, exercendo um tipo de democracia com que a “civilização ocidental” tinha, e tem, muito a aprender! Além disso, a colagem dos chefes tribais nomeados pela governação da “província” contribuiu ainda mais para aumentar a desconfiança popular. Esse servilismo nota-se aos mais diversos níveis. A política incrementada já por Spínola, que incide na acção psicológica da “Guiné de Hoje, Guiné Melhor”, organizou os chamados Congressos do Povo em que, para representar esse mesmo Povo, são convocados essencialmente esses chefes tribais, – régulos, sipaios, etc.. Tipificando o comportamento desses dignos representantes, lembro uma cena passada em Bafatá, num desses congressos. Usa da palavra o Al Hagi Zacarias Baú, chefe religioso que viveu sete anos em Meca (Al Hagi, também Alaio, significa O Peregrino, e todos os fiéis que fazem a peregrinação a Meca passam a usar essa designação colada ao nome). A dado passo, – qual Dr. Luís Filipe Menezes a bramar contra os sulistas num congresso do PPD/PSD, – foge-lhe “a boca para a verdade” e exclama: “a guerra só acabará quando os brancos forem para casa”! Os cerca de dois mil delegados convidados a participar neste IV Congresso tossem, ficam estupefactos, geram burburinho. O régulo de Ganadu (a regedoria a que Zacarias Jau pertence) exige que o homem lhe seja entregue, pois “sabe muito bem o que lhe há-de fazer”. Passado algum tempo, já em Bissau, o régulo de Badora, Mamadú Bonco Sanhá (condecorado com a Cruz de Guerra de 1ª classe), disse: “Nós costumamos pescar à gamboa. Às vezes, o peixe pescado à gamboa apodrece e temos que o deitar fora. Al Hagi Zacarias Jau é o peixe podre. É bom que nos desembaracemos dele!”<br />Às 6 horas, a coluna passa pelo Quartel-General, aí incorporando as viaturas que transportam o tal material de construção civil. Em progressão lenta, a longuíssima coluna/auto pára dez minutos em Mansoa quando são oito horas, passa por Mansabá quando faltam vinte minutos para as nove e chega a Farim (à margem esquerda do Cacheu) às nove e meia.<br />Tudo decorre dentro da normalidade quando, à chegada, “por decisão superior”, os alferes Igreja e Cruz são informados que, desta vez, também os Unimog e Berliet devem atravessar o rio, a bordo da jangada. Regressarão a Bissau as viaturas Daimler, de cavalaria, em protecção de alguns camiões civis, mal estes descarreguem as mercadorias. Os Marados de Gadamael recebem a notícia de que tão depressa não voltam a Bissau e que nessa noite pernoitarão em Farim e ficarão em reforço ao BCaç 4512/72 (“Firmes, Constantes”). Os homens são apanhados desprevenidos: não tinham levado, sequer, as rações de combate que lhes haviam distribuído, já que esperavam voltar ao COMBIS ainda a tempo de almoçar de faca e garfo. Mas essa dificuldade é superada quando os informam que podem almoçar e jantar na cantina e nas messes de Farim. Quanto a despesas (bebidas, mancarra, tabaco) podem efectuá-las por “requisição” (vales), que as contas irão parar à respectiva companhia, com quem as acertarão mais tarde (e assim viria a suceder, dois meses depois, até ao último centavo!). <br />Entretanto, tomamos conhecimento de que no dia seguinte participaremos em nova coluna, tendo por missão transportar até Guidaje parte do sibe que trouxemos de Bissau. E vamos ouvindo extraordinários relatos da situação operacional naquelas paragens e nos últimos dias: sabemos dos muitos mortos em ciladas recentes e das muitas horas debaixo de fogo que uma companhia teve de aguentar no acesso à aldeia de Guidaje, já sitiada! Nestas histórias, é sabido, quem as relata em geral nem foi participante activo e fala só do que ouviu falar, costumando cometer excessos e exagerar na dramatização dos acontecimentos. Todavia, nos dias que correm, e nos casos em apreço, nem têm necessidade de o fazer, tamanhos são os temores e a carnificina. <br />Importa aqui referir que em mais de um ano de estada em Gadamael a companhia contou com múltiplos ataques de artilharia, sofreu 4 mortes e alguns feridos, quer devido a flagelações quer por causa do accionamento de minas, sobretudo na picada para Guileje. Em Bissau, por múltiplas razões, a actividade operacional passou a ser diferente, e muitos dos homens que dantes não saíam “ao mato” passaram a alinhar por escala nos diferentes serviços e colunas. Isto para referir que entre os efectivos que se preparam para amanhã levar a “lenha” ao destino e ter muito prováveis contactos com o IN (asseguram-nos que uma emboscada num local chamado Cufeu será inevitável), há quem nunca tenha, tão-pouco, feito uma patrulha ou saído da porta de armas.<br />Também por isso, custa a passar esta noite de insónias. Embora reforçados com alguns fuzileiros de Ganturé, soldados africanos e um grupo de milícias – e enquadrados por um capitão do batalhão local, que conhece a zona, – como será possível que dois pelotões possam chegar a bom porto (Guidaje) se, à excepção da coluna de 12 de Maio, outras tropas, até especiais e muito mais bem equipadas, não conseguiram fazê-lo? <br />Os Dias da Batalha<br />(Antecedentes à nossa chegada)<br />Realmente, o cenário não é dado a optimismos. Sabemos que a 8 de Maio o PAICG começou o cerco. Logo nesse dia Guidaje esteve cinco vezes debaixo de fogo (num total de duas horas de fogacho). Uma coluna escoltada por dois pelotões do exército (um grupo de combate da 1ª CCaç do BCaç 4512, de Nema, e outro da CCaç 14, de Farim) e por fuzileiros da DFE-7, que também partira de Farim, viu uma das suas Berliet accionar uma mina anticarro. Seguiu-se uma emboscada que os encurralou e obrigou a recuar, acabando por terem de pernoitar no mato. A emboscada causou alguns ferimentos e, pelo menos um “fuzo” que estava a socorrer um camarada, viria a perder uma perna. Contam-nos em Farim que o PAIGC dispõe de um forte e bem treinado efectivo a muito poucos quilómetros dali, dentro de Senegal, estimado em seis a sete centenas de guerrilheiros com grande formação e treino militares. Conhecendo a estratégia do IN para isolar/envolver a região, o tenente-coronel António Valadares Correia de Campos, transfere-se neste dia, conjuntamente com o comando do COP3, de Bigene para Guidaje.<br />Os mesmos homens voltaram no dia seguinte (9 de Maio) a ser sobressaltados com nova emboscada, ainda de maior envergadura! Os camaradas milicianos que em Farim me alojaram no seu quarto (e, creio, que também aos furriéis Machado e Ângelo Silva), contaram durante a noite que o pessoal só tinha aguentado as quatro a cinco horas que esteve debaixo de fogo por ser portador de um abastecimento extraordinário de granadas para morteiretes. Assim, enquanto os pequenos prato-base não se enterraram no solo e os canos dos morteiros não se derreteram nem lhes derreteram as mãos, conseguiram aguentar-se e responder ao fogo. Entretanto, tinham sido reforçados com pessoal a 1ª CCaç do BCaç 4512, de Binta, e mais duas esquadras do DFE-4, vindas de Ganturé. Mas todos estes efectivos não conseguiram evitar pesadas baixas, entre as quais, quatro mortes, cujos corpos haviam de ficar tombados no caminho, uma vintena de feridos, oito deles com gravidade, deixando também na picada quatro viaturas destruídas e não conseguindo, mais uma vez, chegar ao destino. De notar que, no mesmo dia e quase em simultâneo, Guidaje “lerpou” mais quatro vezes, o que demonstra a grande concentração de guerrilheiros que o IN tem na região… <br />Mais três flagelações se abateram sobre o casario de Guidaje a 10 de Maio. No mesmo dia tenta-se romper o cerco. Uma avultada força, dirigida pelo tenente-coronel António Vaz Antunes (comandante do batalhão de Farim/4512) inicia nova operação que envolve distintas unidades: dois grupos de combate da CCaç 14, de Farim, dois grupos de combate da 38ª de Comandos, uma secção do pelotão de Morteiros 4247, um grupo da Companhia Africana Eventual, de Cuntima, três grupos do BCaç 4512, sendo dois deles de Nema (1ª CCaç) e o terceiro de Jumbembém (2ª CCaç). Mas a coluna também consente um morto (o soldado Manuel Geraldes, precisamente de Jumbembém, cujo corpo foi dilacerado por efeito do rebentamento da mina em que caiu), e dois feridos, que seguiam atrás dele. Logrando ultrapassar todos os impedimentos, nomeadamente as dezenas de abatises, (árvores de grande porte serradas, os troncos tombados atravessando a picada, escassos quilómetros depois de Binta), a coluna consegue chegar ao objectivo, atingindo Guidaje. <br />(Muitos anos depois, em conversa com o primeiro-cabo guineense Fati, atirador do lança-granadas foguete Instalaza de 8,9 cm, (mais conhecido por bazuca), e que ficou ferido neste combate, tive a oportunidade de aquilatar o volume do fogo inimigo e a incapacidade de reacção ofensiva do pessoal da sua unidade para sair por cima neste combate). <br />Ao mesmo tempo, e depois do tiroteio trocado por dois pelotões da CCaç 3, que de véspera patrulhava a região de Samoge, vindos no sentido inverso com a intenção de proteger o itinerário a norte, um efectivo da CCaç19 saiu de Guidaje e a curta distância  do mesmo local experimentou cinco contactos com o IN, de que resultaram mais oito (cinco ? Post 5310) mortos e nove feridos para as NT. A situação aqui não foi menos grave porque, rareando as munições para ripostar ao fogo, tiveram de bater em retirada e deixar no mato os corpos de três mortos, não os conseguindo recuperar. <br />No relatório desta acção, o seu comandante descreve assim a violência do contacto de fogo: quot;
...em relação às NT, o IN estava de frente, dos dois lados da picada, e foi impossível fazer uma reacção conveniente pelo fogo. A primeira sessão pelo fogo causou-nos imediatamente três mortos ( ... ) o IN voltou à carga com maior ímpeto, mas as NT já estavam preparadas para o receber e aqui teve as primeiras baixas. Estando um cabo gravemente ferido com um estilhaço no pescoço, o soldado auxiliar de enfermeiro correu para junto dele a fim de o socorrer. Estando ajoelhado a seu lado foi atingido por uma rajada que lhe provocou a morte. Começavam a escassear as munições e foi dada ordem para fazer fogo de precisão, tanto quanto possível. Quando o fogo parou por escassos segundos um dos furriéis tentou chegar junto dos mortos para recuperar os corpos. Quando se levantava para realizar esta acção, pela terceira vez o IN atacou as nossas posições. Notando a impossibilidade de recuperar os corpos dos mortos e porque a falta de munições era quase total, o comandante viu-se coagido a ordenar a retirada... quot;
 (in sítio do BCaç 4512).<br />A 11 de Maio, os 2º e 4º grupos da 38ª Companhia de Comandos, que no dia 9 se tinha deslocado de Mansoa para Farim integrando uma coluna de abastecimento, avança com a mesma coluna e um pelotão da guarnição de Binta em direcção a Guidaje, levando na frente sapadores que vão analisar as crateras abertas pelas minas rebentadas anteriormente e orientar a picagem a efectuar durante o percurso. A marcha é, por isso, extremamente lenta (cada dois quilómetros demoram cerca de uma hora a percorrer), esperando-se que as minas que vão sendo detectadas na frente da coluna sejam feitas explodir. Deparam-se com um grupo de viaturas desventradas e há também diversos cadáveres pelo chão, muitos já “bicados” por djugudés (abutres, também “jagudis”). Há novas abatises espalhadas a dificultar a progressão. A CCaç 19 sai de Guidaje e vem ao encontro destes homens, mas ao passar por uma ponte é atacada. Não tem grandes condições de reagir e pede apoio aéreo. Passados quarenta minutos chegam dois Fiat G-91 que, no entanto, e apesar dos apelos constantes via rádio, se recusam a abrir fogo porque as forças em presença estarão demasiado próximas. Contam-se muitas baixas neste confronto. Também entre os comandos as coisas não correm bem: ao ouvirem os rebentamentos e o tiroteio da emboscada os homens saltam das viaturas. Um deles, – o primeiro-cabo Filipe, – acciona uma mina A/P e perde um pé. Mais adiante apanham do chão o cadáver dum soldado que também caíra numa mina e ficou irreconhecível, embrulham-no num poncho e levam-no sobre o estrado de um Unimog. No local da emboscada da CCaç 19 o cenário é dantesco, com inúmeros cadáveres espalhados pela picada fora e nas imediações. Ao cabo de mais de 10 horas de marcha, esgotados, atingem Guidaje já no lusco-fusco, refugiam-se nas valas, agachados, e pouco depois o quartel é flagelado, o que aconteceu mais algumas vezes durante essa noite. Já nos primeiros raios solares de 12 de Maio, durante uma flagelação de foguetes 122 e morteiros 82, o soldado comando José Luís Inácio Raimundo é atingido nas valas e morre nesse instante. Finalmente, a coluna de reabastecimento constituída pelos Destacamentos de Fuzileiros Especiais nº (1?) 3 e nº 4 e um grupo de combate da CCaç 3, de Bigene, chega a Guidaje, aonde permanecerá vários dias. <br />Efectivos que chegaram na coluna do dia 10, regressaram a Farim a 13? No dia 13, comandados pelo capitão Alves Jesus, os fuzileiros do DFE-4 tentam caminhar para Farim, e daí regressar a Ganturé. Levam consigo viaturas carregadas de populares. Morre o soldado condutor Ludgero Rodrigues da Silva, da CCS do BCaç 4512. Sofrem uma emboscada, permanecem uma hora debaixo de fogo e são obrigados a regressar. No sentido contrário também uma coluna de reabastecimento tinha saído de Farim, mas não logrou avançar além do Cufeu. Passa mais uma noite e, a 14 de Maio, um forte rebentamento atinge com um estilhaço fatal um grumete do DFE-7. Esta manhã poisa no canto mais recuado da parada um “héli”. Transporta um caixão para levar o corpo do infeliz fuzileiro. <br />Estiveram na Guiné, nos anos da guerra, vinte e seis destacamentos de fuzileiros especiais (dois dos quais, africanos) e onze companhias de fuzileiros navais. No total, estas unidades sofreram oitenta e seis mortos, cinquenta e cinco deles, em combate.<br />A alvorada seguinte, de terça-feira, começa a clarear. Em abono da verdade, neste tempo, pouco ou nada nos importa saber em que dia da semana estamos! Para quê, se os dias correm todos enjoativa e implacavelmente iguais?<br />Talvez só os domingos de futebol se safassem, caso pudéssemos ouvir os relatos que a Emissora Oficial da Guiné transmitia em directo: “atenção amigo ouvinte, constituição da equipa do Benfica: José Henrique; Artur, Humberto, Messias e Adolfo; Jaime Graça e Toni; e na linha avançada temos Nené, Jordão, Eusébio e Simões”. E quando o locutor se esganiçava e gritava «golo!» as casernas também explodiam, mas de alegria! De certa vez o escritor António Lobo Antunes (autor que começou a sua carreira literária publicando grandes livros sobre a  guerra colonial) contou mais ou menos isto: um golo do Benfica fazia parar a guerra, interrompia os combates, pois de um lado e de outro das trincheiras, à mesma hora, estava toda a gente a vibrar. Com efeito, muitas pessoas que admirávamos eram oposicionistas do regime e mesmo, encapotada ou clandestinamente, simpatizantes e militantes dos movimentos de libertação nacional. Já se falava de Hilário, um dos melhores defesas de sempre do futebol do Sporting como provável simpatizante da FRELIMO, e, como ele, os benfiquistas Coluna, e até de Eusébio, (figura, no entanto, cujo prestígio foi aproveitado pela propaganda do salazarismo e do marcelismo) e havia outros, por exemplo, no atletismo do SLB, como Barceló de Carvalho (que é o cantor angolano Bonga) velocista e recordista nacional durante vários anos, ou o também recordista nacional e cantor angolano Rui Mingas, cujas cantigas (dois LP’s e vários “singles” gravados desde 1969) não enganavam ninguém nem escondiam a óbvia simpatia pelo MPLA e pelas suas causas. Antes da incorporação no serviço militar obrigatório assisti, com o meu amigo de infância Cipriano Simões, ao lançamento de um dos seus discos, no estúdio da Rádio Renascença, em directo. Suponho que era o “long-play” que incluía o extraordinário tema Monangamba, da autoria do poeta e intelectual António Jacinto, um branco angolano que não regateava as origens do musseque luandense, e que por se meter em “aventuras” apanhou muito mais do que uma dúzia de anos de Tarrafal. Nessa noite (programa “Tempo ZIP”?) eu estava muito longe de imaginar que um par de anos mais tarde teria o privilégio de contar com o António Jacinto como um grande amigo e cuja morte viria a deixar-me profundamente triste e a empobrecer as literaturas de expressão portuguesa. Quanto a Mingas, é nos anos 60/70 uma espécie de cantor oficial da Casa de Estudantes do Império, – ao Arco Cego, em Lisboa, – conhecido “coio” de africanos do chamado reviralho, pejado de amigos dos “terroristas”, mas onde, malgrado a contínua perseguição da PIDE, se divulgam e publicam peças literárias do melhor que existe em língua portuguesa, sobretudo na poesia. O desporto e a cultura criam laços que unem muitos combatentes de ambos os lados da guerra. O comandante N’Dalu (António dos Santos França, que já como ministro e Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Populares de Angola vim também a conhecer pessoalmente), estudou em Coimbra e, antes de fugir do país para ir ter formação militar, suponho que na Argélia e mais tarde em países do leste europeu), granjeou amigos e adeptos a jogar na Académica, onde era conhecido por “França”. Alguém pensou que viria a tornar-se um elemento determinante, mesmo decisivo para a independência de Angola, por comandar e vencer a célebre batalha de Kinfangondo, contra o exército zairense de Mobutu Sese Seko que acompanhava a FNLA e um batalhão de mercenários, quarenta quilómetros a norte de Luanda, nas vésperas do 11 de Novembro de 1975? Por estas e por outras Amílcar Cabral, que considerava ser a luta armada também um acto de cultura, não se cansava de afirmar que a luta de libertação do povo da Guiné e Cabo Verde (e dos povos das outras colónias) não era uma luta contra o povo português, mas contra o regime que oprimia ambos os povos (referindo-se ao fascismo em Lisboa e ao colonialismo em África). E, também por estas e por outras, ao vermos amigos em barricadas opostas, muitos de nós começamos em plena campanha a meditar por que raio andaremos aqui aos tiros uns aos outros?<br />Os Dias de Guidaje<br />15 de Maio<br />Terça? Quarta? Digamos, tão-só, que estava a romper o dia 15. Já tínhamos mastigado um pedaço de casqueiro besuntado com manteiga, bebido um copo de leite tornado em tons de creme com o café-chicória do costume e perfilámo-nos junto às viaturas, aguardando as ordens do capitão, em Farim. Os nossos dois pelotões, um grupo de combate da Companhia Africana Eventual de Cuntima e o GEMIL (Grupo Especial de Milícias) 322, de Jumbembém, seguem motorizados até Binta, que efectivamente não dista muito da vila. Como se circula em razoável piso, o andamento é rápido. Apeamo-nos à chegada, metemos bala na câmara e, sob o comando do capitão Pereira da Silva, da 2ª CCaç do BCaç 4512, de Jumbembém, começamos prudentemente a caminhada que, avisa-me um camarada que conhece o trajecto, não será pêra doce, deveremos dar corda aos sapatos e caminhar entre dezassete a dezoito quilómetros. Organizamos então duas filas em que os homens, mantendo distâncias generosas dos camaradas da frente, se põem em andamento, tão devagar quanto o dita o rigor da picagem, pois é garantida a existência de minas ao longo do percurso. Entre os talvez quarenta metros que separam as duas filas humanas seguem as viaturas, à boleia das quais apenas se vislumbram os condutores, rodeados de sacos de areia, para melhor protecção dos corpos e para fazer peso e evitar que a viatura seja projectada, caso um pneu aziago accione o engenho mais inopinado. Na frente, a rebenta-minas, uma Berliet já amachucada, leva tanto saco sobre as rodas e na carlinga que o condutor se vê em palpos de aranha para espreitar a trajectória a seguir, parece guiar de pé. Não leva mais viaturas no encalço, a que se segue vem lá muito para trás, a não menos de duzentos metros.<br />Ouvimos, bem de longe, dois rebentamentos e depois uma série de rajadas. Parámos. Cada pelotão leva um rádio AVP-1 e somos informados que uma força vinda de Guidaje ao fazer rebentar minas fora emboscada logo em seguida. Soubemos mais tarde tratar-se dos fuzileiros especiais que chegaram a Guidaje no dia 12 (DFO-3 e DFO-4) e que tentavam cruzar-se connosco e regressar a Farim. A única coisa que conseguiram foi o revés de mais sete feridos, cinco na emboscada e dois (graves), cada qual accionando a sua mina.<br />As minas são cada vez mais as armas que mais baixas provocam nesta guerra e as que maiores temores causam dum lado e doutro das barricadas. Usadas isoladamente ou no despoletar de emboscadas, estima-se que mais de metade das baixas das forças armadas foram ocasionadas devido a minas e armadilhas, e isto nos três teatros de guerra. E muitas dessas minas foram detectadas em devido tempo, poderão ter posto os nervos em franja aos sapadores e aos camaradas que, como eu, foram “formados” em Tancos, na Escola Prática de Engenharia, mas nada mais do que isso. Só no ano transacto (1972) o PAIGC teria à volta de quinhentas minas e armadilhas implantadas no terreno (perto de quatrocentas antipessoal e de cem anticarro, das quais foram neutralizadas cerca de trezentas e setenta. E nem todas as armadilhas são montadas com engenhos sofisticados: uma simples granada de mão presa a uma estaca ou num tronco de árvore, com um fio-de-tropeçar atado à cavilha de segurança e esticado a partir do outro lado dum trilho, pode ser armadilha eficiente e, logo, fatal!<br />Damos com as viaturas desventradas pelas minas e por combates recentes. Há peças espalhadas ao longo de centenas de metros, pedaços de bancos, jantes, faróis, chaparia amarrotada como folhas de papel. Mas nem tudo foi destroçado pelo IN. No dia 9 a força aérea avistou sobre as viaturas abandonadas guerrilheiros a descarregar o material, e não era pouco, (recorde-se que pertenciam a colunas de reabastecimento e em geral levavam armas e munições, em especial Morteiros 81 e respectivas granadas). O capitão José Manuel Pinto Ferreira (hoje tenente-coronel piloto-aviador, já reformado) recebeu instruções para bombardear as viaturas por forma a tudo destruir, e assim fez! O bombardeamento foi tão intenso que o ferro-velho se alastrou por alguns quilómetros. Mas veio-se a apurar que as bombas já foram algo tardias, pois muitos morteiros e munições já haviam sido apanhados pelo PAIGC, provavelmente durante a noite.<br />Tentamos contornar os campos de minas, rasgando uma nova passagem, paralela à existente. A planura e o facto da vegetação não ser muito densa facilitam o trabalho. Enquanto na frente as milícias picam o terreno nos desvios que o capitão pretende efectuar, calhou-me ficar instalado cerca de um quarto de hora a metro e meio de um cadáver. Com tanta mosca a levantar voo do meio das larvas e da carne putrefacta e a cirandar sobre a minha cabeça, eu não ter vomitado os fígados já foi acto de grande heroicidade! O estado em que se encontra não permite apurar se é branco ou preto nem que tipo de farda será o que resta da sua. Embora eu não os veja do local onde estou, oiço dizer que também há (ou houve) corpos de guerrilheiros abandonados por ali. O sangue seco tingiu completamente da mesma cor o camuflado, tornando muito difícil a destrinça. Os corpos expostos ao sol e ao calor estão já em decomposição, o cheiro e o aspecto são asquerosos… <br />Os sete ou oito quilómetros que se seguem demoram três horas a transpor. Depois disso, a marcha é mais célere e, por fim, respiramos de alívio e avistamos a aldeia, um punhado de moranças, um grosso embondeiro, palmeiras espaçadas, um pequeno grupo de soldados africanos na recepção a dar-nos indicações, já as sabíamos mais ou menos, caminhar sempre pertinho das valas e procurar abrigos. Aos soldados é indicada a caserna (penso que um antigo armazém) onde devem instalar-se, podendo levantar colchões e mantas logo ali ao lado. <br />Para nos ter deixado chegar ao destino, o PAIGC ou nos preparava um grande castigo ou nem teria sequer desconfiado que alguém nos tinha deitado ao caminho e só por isso corremos o percurso de Binta à fronteira sem uma beliscadura física (mentais permaneceram umas quantas, vida fora).<br />A crise militar já estava de tal modo instalada que, já neste dia 15 de Maio, se efectua uma alta reunião de comandos em Bissau para debater a situação. Spínola convocou os comandantes dos três ramos das forças armadas, – exército, força aérea e marinha, – o comandante adjunto operacional, o chefe do estado-maior do comandante-chefe e os chefes das repartições de operações especiais. Na reunião, o brigadeiro Leitão Marques alerta que o PAIGC “está a preparar as necessárias condições para a conquista e destruição de guarnições menos apoiadas por dificuldade de acesso (Guidaje, Buruntuma, Guileje, Gadamael, etc.), a fim de obter os êxitos indispensáveis à sua propaganda internacional e manobra psicológica, – e isto está já ao alcance das suas possibilidades militares”. <br />O momento não dá para satisfazer grandes curiosidades, mas sempre percebemos que a linha de fronteira com o Senegal fica mesmo em frente, à perpendicular dos nossos olhos. A extrema da pista de aviação já é estrangeiro e numa boa parte do arame farpado bem poderíamos instalar a alfândega! Sobre as árvores que avistamos a cerca de duas centenas de metros garantem-nos que há “turras” a vigiar-nos e a atacar-nos quando querem. Certamente que já deram pela nossa chegada, contemos então que não demorem a dar-nos as boas-vindas com o fogo de artifício de canhões sem recuo, morteiros e foguetes (passariam, no entanto, as primeiras horas sem se confirmar o esperado ataque).<br />Por toda a parte existem valas, algumas de escavação recente. Circundam todo o quartel e ligam todos os edifícios, um por um, independentemente da dimensão. O furriel Machado, que é de Valpaços, vem com o contacto (leia-se cunha) de um furriel também transmontano, de Vimioso, que ali se encontra, e de um primeiro-cabo do pelotão de artilharia, para cujo abrigo nos dirigimos eu, o próprio Machado e o Ângelo Silva. O abrigo do Obus 10,5 ao fundo, é subterrâneo e a dois passos da fronteira. Em redor do Obus há uma circunferência desenhada por bidões atulhados de terra e bem encostados uns aos outros. No sítio onde faltam dois bidões é a entrada, que dá directamente acesso às valas e à portinhola do quarto (abrigo subterrâneo). <br />O “dono” do quarto é um furriel pertencente ao Pelotão de Artilharia nº 24, que está ausente, de férias na metrópole. Deixara naquele buraco meia dúzia de coisas, entre as quais a cama, um baú e um gravador de bobinas vertical Akay, (que virão a desfazer-se…) O quarto é acanhado. Da porta descaem cinco degraus irregulares, altos e toscos, e do lado esquerdo, encostadas cada qual à sua parede, estão duas camas, – a dele e a ocupada pelo nosso cabo artilheiro que o ficou a substituir naquele posto. Não cabe mais nada, o “corredor” entre as camas quase nem permite que duas pessoas se cruzem. Cá em cima, à superfície, o tecto do abrigo lembra um enorme quisto. Presumo a existência de uma placa de cimento, que não é visível por ter em cima duas fiadas de troncos de madeira bem unidos e cobertos de uma camada redonda de terra, como as que cobrem muitos fornos de aldeia. Aparentemente, é o local mais seguro pois não se imagina que uma granada qualquer consiga destruir um tecto daqueles. <br />16 de Maio<br />Para aqui estamos, os 200 que já cá “moravam” (essencialmente a companhia africana nº 19 e o pelotão de artilharia de 10,5 mm), mais os acabados de chegar. Se o IN nos poupou às boas-vindas, o certo é que não foi preciso esperarmos vinte e quatro horas para levarmos com a primeira chuva de granadas. Regista-se um morto, – o soldado Martinho Cá, apontador de metralhadora da CCaç 3. Também um dos nossos homens (CCaç 3518) é ferido ligeiramente com o ricochete de um estilhaço, mas nada de grave.<br />Se no sul nos diziam que quem comandava directamente os guerrilheiros era o temível Nino Vieira, aqui também não fazem a coisa por menos: os renhidos combates que se estão a travar em redor de Guidaje mobilizam largas centenas de homens do PAIGC, que cada vez mais nos apertam o cerco, comandados pelos já conhecidos (de nome, pelo menos) Francisco Mendes e Manuel dos Santos.<br />Francisco Mendes (também Chico Mendes, ou Chico Té) esteve com Amílcar Cabral e outros dirigentes históricos nos primeiros cursos de formação, em Praga (antiga Checoslováquia). Foi assassinado em 7 de Julho de 1988, após uma independência pela qual lutou a vida inteira. Mas diz a sabedoria popular, em crioulo, que “dinti mora ku lingu, ma i ta daju i murdil” (os dentes moram com a língua, mas às vezes mordem-na – provérbio guineense)! Chegaria a primeiro-ministro da Guiné-Bissau. Quanto a Manuel dos Santos (Manecas), que além de dirigir guerrilheiros é um dos comissários políticos que coordena quem vive nas “áreas libertadas” e, nesta altura, comanda a Frente Norte, é responsável pelas operações dos mísseis terra/ar em todo o território. Estivera na União Soviética a receber formação específica para operar e ensinar a manejar os Strela. Será ministro da informação logo no primeiro governo da Guiné-Bissau, após a retirada das autoridades portuguesas. Nasceu em Santo Antão, Cabo Verde, em 1943 e será dos raros dirigentes cabo-verdianos do PAIGC que permanecem nos governos de Bissau depois do “14 de Novembro” (golpe de estado de Nino Vieira). Logicamente que na investida contra Guidaje estiveram envolvidos mais quadros do PAIGC, entre eles, Manuel saturnino da Costa, que chegaria a ser secretário-geral do partido e primeiro-ministro da Guiné-Bissau independente, e alguns intermédios, como Lúcio Soares, Joaquim Biagué e Bobo Queita.<br />Logo a seguir ao primeiro ataque, o furriel Bernardo Monteiro e os alferes Igreja e Cruz foram não sei onde desencantar mais duas camas e colchões, trouxeram-nas para o abrigo e, sobrepondo-as às existentes, montaram-nas em camarata. O quarto do furriel artilheiro ausente, onde há duas ou três semanas só ele residia, transformou-se num dormitório apertado, onde passamos a pernoitar sete almas. Virá também a juntar-se ao grupo o furriel Fernandes, da CCaç 19 (o tal outro transmontano que alguém de Farim indicou ao Machado).<br />17 de Maio<br />Acordo estremunhado sob o efeito de novos ataques de artilharia, com granadas a cair bem no interior do quartel. Os Obus 10,5 reagem prontamente sob as ordens do comandante (tenente-coronel Correia de Campos) e fazem um longo batimento de zona, conseguindo calar os disparos inimigos. Os canos são também apontados para o interior senegalês, dizem-me que visam certamente atingir a base de Koumbamory. São disparados mais de 40 tiros de Obus. O nosso cabo artilheiro que coabita o quarto subterrâneo que “ocupámos” confidenciou-me que em todo o quartel restam unicamente 39 granadas de calibre 10,5 e que as deve poupar para qualquer eventualidade futura. O certo é que nos dias seguintes a artilharia deixará mesmo de reagir aos repetidos ataques inimigos, essa tarefa ficará a cargo dos Morteiros 81, talvez somente para marcar presença, para demonstrar que estamos vivos!<br />Entretanto, está em andamento a grande operação Ametista Real. Com efeito, prepara-se uma acção de gigantescas proporções para o envolvimento da principal base inimiga. O Objectivo é aniquilar ou reduzir a capacidade bélica de um IN que contará com cerca de 650 efectivos concentrados ali à volta, uma acção que ponha fim ao actual isolamento da guarnição de Guidaje, que nos permita evacuar os feridos e tratar do reabastecimento de géneros, de medicamentos, até mesmo de urnas!... <br />18 de Maio<br />No cerne da operação, que será comandada pelo major João de Almeida Bruno (antigo comandante do Centro de Operações Especiais) e pelos capitães António Ramos (agrupamento Romeu, do tenente Quiseco), Matos Gomes (agrupamento Bombox, do tenente Zacarias Saiegh) e Raul Folques (agrupamento Centauro, do tenente Jamanca), está o Batalhão de Comandos Africanos. A par do agrupamento Romeu desloca-se o Grupo Especial (do Centro de Operações Especiais), hábil em demolições, comandado pelo alferes Marcelino da Mata.<br />O capitão António Ramos já faleceu; os capitães Raul Folques e Matos Gomes são hoje coronéis. Este último tem sido porventura o militar mais empenhado em estudar e contar a História das guerras coloniais (nas três frentes – Guiné, Angola e Moçambique); e também tem obra relevante publicada no domínio da ficção/literatura de guerra, sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz (destaco Nó Cego, obra inspirada na operação Nó Górdio, em Moçambique ordenada pelo general Kaúlza de Arriaga e condenada por toda a comunidade internacional), entre os seus romances de ficção ASP – De Passo Trocado, Soldado, Os Lobos Não Usam Coleira, este adaptado ao cinema por António Pedro de Vasconcelos com o título”Os Imortais”, O Livro das Maravilhas e Flamingos Dourados).<br />Os cerca de 450 homens envolvidos na Operação Ametista Real saem este sábado de Bissau e chegam a Ganturé, transportados a bordo de uma LDG (lancha de desembarque grande) e duas LFG (lanchas de fiscalização grandes). <br />A base fluvial de Ganturé, a 5 quilómetros de Bigene e na margem do Cacheu, quase não tinha estruturas. Contou-nos um marinheiro, de rosto bem queimado pelo abrasador sol africano e que chefiava uma esquadra, que foi o Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4 que recebeu a incumbência de as (re)construir, desde o mês passado. Assim, receberam em Abril, por via fluvial, uma montanha de bidões de combustível vazios, a que haviam que cortar as tampas e encher de terra, com o que montaram a estrutura lateral do “quartel”, colocando por cima as chapas de zinco, como era de uso na engenharia tradicional dos tempos de guerra. Em simultâneo, cavaram abrigos subterrâneos e as imprescindíveis valas, não esquecendo o insubstituível bar para as horas de ócio…<br />Diz-se que o batalhão de comandos africanos é especializado em acções fora do território, talhado para intervir nos países vizinhos. Daí os comandos vestirem muitas vezes fardas turras e usarem, também com frequência, o mesmo armamento (à medida que se vão capturando as Kalashnikov, os lança-granadas foguete RPG-2 e RPG-7, as espingardas automáticas Simonov, as metralhadoras ligeiras Degtyarev e pesada Goryounov, utilizadas pelo PAIGC)… <br />As Kalashnikov usam balas de calibre idêntico (7,62 mm) às das G3 que nós utilizamos. Manejam-se, contudo, com muito mais facilidade: desde logo, por serem mais leves (menos 225 gramas) e quinze centímetros mais curtas; e porque os seus carregadores comportam trinta cartuchos, mais dez que os vinte da nossa G3. Ora, salvo em situações/operações excepcionais, cada soldado das NT leva para o mato um carregador na arma (permite-lhe dar vinte tiros) e quatro cartucheiras no cinturão (cada uma com um carregador de vinte, o que permite dar oitenta tiros, – cem no total); enquanto que um guerrilheiro do PAIGC, com menos peso e melhor operacionalidade, pode disparar por cento e cinquenta vezes…<br />19 de Maio <br />De madrugada, depois de breve paragem em Bigene, de onde saíram por volta da meia-noite, os comandos africanos alcançam os caminhos de Koumbamory e aguardam pelo ataque aéreo e em força dos Fiat G-91, cujo bombardeamento à base, por volta das oito horas e vinte minutos, consegue destruir paióis do PAIGC. A operação nem começa mal, pois sabe-se que a base IN se situa algures naquela região, mas a sua o localização exacta é desconhecida. Nós, na aldeia de Guidaje, os que conhecemos mal os azimutes do terreno, ouvimos rebentamentos sobre rebentamentos e de início pensámos ser Bigene a “embrulhar”. A antiga sede do COP3 fica longe, a dezanove quilómetros e na margem do Cacheu, e as bernardas que ali rebentam só se ouvem muito longinquamente desde que o vento sopre de feição. Afinal, quem desta vez “embrulha” mesmo são as forças IN! <br />Tropas portuguesas a entrar em território estrangeiro não estaria muito de acordo com as normas do Direito Internacional, nem mesmo invocando o muito controverso “direito de perseguição”. Militarmente, se os acessos a Guidaje estavam vedados por todos os lados menos pela linha de fronteira (norte), tinha toda a lógica esta incursão à retaguarda do IN. Dir-se-á que também o PAIGC tinha as bases do outro lado, mas aos olhos do Mundo (entenda-se, das Nações Unidas) trata-se de um movimento de guerrilha e não de um Estado soberano (pelo menos até 24 de Setembro de 1973, em que a proclamação de independência em Madina do Boé viria a ser reconhecida internacionalmente, de imediato, por 86 países, não apenas os aliados mais tradicionais do PAIGC, como os países socialistas, africanos, a China e até europeus, – casos da Suécia e da vizinha Noruega, cujo governo aprovou um subsídio solidário à guerrilha em 27 de Março de 1973, – mas em especial os países “não alinhados”. E ter bases em território estrangeiro, não é a mesma coisa do que desferir ataques a partir das mesmas, embora por vezes déssemos conta disso mesmo. O isolamento de Portugal era tão grande no Mundo que os líderes da guerrilha na Guiné, Angola e Moçambique haviam sido recebidos no Vaticano, em Junho de 1970, pelo Papa Paulo VI, o mesmo que três anos antes viera a Fátima e se recusara a aterrar em Lisboa para não participar em cerimónias oficiais ao lado de governantes da ditadura, preferindo aterrar em Monte Real. Em Roma, realizava-se nesses dias (27 a 29 de Junho) a Conferência Internacional de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas. A delegação que Paulo VI recebeu era composta pelo angolano Agostinho Neto, o moçambicano Marcelino dos Santos e o guineense/cabo-verdiano Amílcar Cabral. Este foi o porta-voz que, entre outras coisas, disse: “pedimos a Sua Santidade que interceda junto do Governo de Portugal para que respeite as leis internacionais e a posição da Igreja definida na Encíclica ‘Populorum Progressio’ para que os colonialistas portugueses, que se afirmam católicos, cessem os massacres das nossas populações, principalmente dos velhos, mulheres e crianças”. O Papa respondeu, “estamos do lado daqueles que sofrem”, “somos pela Paz, a liberdade e a independência de todos os povos, em especial, dos africanos”. Tudo isto à revelia da hierarquia da igreja católica portuguesa, que muito maioritariamente (não foi só o cardeal Cerejeira, longe disso), sempre se evidenciou servil ao poder, raras vezes se demarcou da ideologia e das atrocidades da ditadura, quer em Portugal quer nas colónias. Talvez seja essa a principal razão porque muitos da minha geração saíram agnósticos, – termo adocicado para não dizer ateu… E pensarmos, muitos de nós, que o “argumento” da defesa do colonialismo é o de espalhar a fé e a “civilização cristã”!? Para o ilustrar, recordemos um excerto de uma mensagem do Presidente da República, general Óscar Carmona, no V Centenário do Descobrimento da Guiné: “quinhentos anos de presença nessa região representam uma sobre-humana soma de esforços despendidos, primeiro, no reconhecimento da costa, depois na penetração no Continente, no comércio e na evangelização; por fim, na ocupação e pacificação, abrindo ao trânsito seguro de todos os homens os caminhos do mato e levando à população indígena as luzes da cultura europeia e cristã” (sublinhados meus). Palavras para quê!?<br />Numa curta flagelação morre num abrigo subterrâneo, vítima de granada perfurante, um soldado da CCaç 19 que ali tinha sido posto já muito desalentado, crivado com estilhaços de uma morteirada que o atingiu dias antes, quando ia a atravessar a parada.<br />Passa das nove quando os comandos (o agrupamento Bombox na frente) efectuam o assalto, – como se fosse um golpe-de-mão, – provocando o primeiro contacto com o PAIGC, logrando destruir grande quantidade de material e provocar baixas importantes. Os combates duram a manhã inteira, numa verdadeira batalha com explosões incessantes de granadas-de-mão, tiros e rajadas de todo o calibre. A certa altura têm de se retirar, também em consequência da reacção do IN que, de surpresa, investe com blindados que nem disparos de bazuca conseguem destruir. A retirada é penosa, têm de transportar dez corpos de camaradas abatidos e progredir no terreno com mais de uma vintena de feridos graves. Perdem três camaradas pelo caminho. No termo do dia o batalhão de comandos chega ordenadamente a território português e recolhe-se em Guidaje, tal como estava programado.<br />As baixas causadas ao IN foram em número bem superior, estimando-se em 67 mortos (entre os quais se contariam uma médica e um cirurgião cubanos e quatro mauritanos), e um incontável número de feridos. Quanto ao material destruído: vinte e dois depósitos de material de guerra, duas metralhadoras anti-aéreas, cinquenta mil munições de armas ligeiras, cento e doze costureirinhas (pistolas PPSH), quinhentas e sessenta granadas-de-mão, quatrocentas minas antipessoal, trezentas espingardas Kalashnikov, vinte e uma rampas de Foguetes 122, onze Morteiros 82 e mil e cem granadas para os mesmos, cem Morteiros 60, cento e trinta e oito RPG-7 e quatrocentos e cinquenta RPG-2.<br />A base de Koumbamory ainda recentemente recebera seis dezenas de combatentes recém-formados na Argélia e em Cuba e era confirmadamente o ponto principal de abastecimento aonde os guerrilheiros se iam municiar. Veremos, doravante, até que ponto este rombo causado pela investida dos comandos fará diminuir a sua importância.<br />O PAIGC possui outras bases de reabastecimento no país do paladino da teoria da negritude Léopold Senghor (em parceria com o também poeta martiniquense Aimé Césaire), como a localizada em Zinguinchor, a dez quilómetros da fronteira, mas mais para o litoral, e onde ainda se fala fundamentalmente o crioulo “português” e são frequentes apelidos como Barbosa, Silva, Fonseca… A cidade é a capital de Casamance, território que outrora foi pertença da Guiné Portuguesa e que se estende até ao mar e a todo o comprido da língua da Gâmbia. Na sequência da Conferência de Berlim, em que as potências coloniais ditaram entre si a partilha de África, – com as sangrentas consequências que não se sabe se encontrarão solução nem ao longo do século XXI, – essa região guineense foi trocada com a França por uma parcela do sul (zona de Cacine), a 13 de Maio de 1886. Casamance, graças às margens do rio com o mesmo nome, produz grandes quantidades de arroz, e não só, sendo considerada o celeiro do Senegal, zona agrícola e de potencial turístico, cujo território para norte se vai tornando cada vez mais árido devido à progressão do deserto do Sahel. Graças à troca, a França reconheceria a Portugal o “direito” de exercer a sua influência nos territórios do chamado Mapa Cor-de-Rosa, (a ambição dos colonialistas portugueses de então, de unir Angola a Moçambique, de costa a costa do continente negro; Capelo e Ivens fizeram a viagem entre Luanda e Tete cerca de dois anos antes, mas tal sonho seria desfeito pelo Ultimato de tubarões mais poderosos: os ingleses, que com tal mapa veriam contrariado o plano de domínio britânico “do Cabo ao Cairo”). Bastou aos dois estados uma simples reunião a nível de embaixadores para efectuar o negócio! Falar português à volta de Zinguinchor é um acto de resistência. Ainda hoje, à beira de trinta e sete anos sobre a proclamação da independência da Guiné-Bissau, o povo de Casamanse (“Casa di Mansa”, em crioulo), étnica, social e culturalmente mais próxima de guineenses do que de senegaleses, luta pela autonomia, havendo também quem sustente a ideia da reintegração no território da Guiné-Bissau; e ainda hoje a Guiné-Bissau e o Senegal se dirimem em fóruns e tribunais internacionais pela posse do território, se bem que por razões bem mais interesseiras: veio a descobrir-se no respectivo solo a existência de bauxites e de outras riquezas capazes de reduzir a pobreza e a falta de recursos de ambos os países, e até nas águas territoriais, – que se alteraram em resultado da troca, mas cuja delimitação as antigas potências nunca chegaram a definir com clareza, – há “garantias” da existência de reservas de petróleo. E é aí que entram em jogo interesses como os dos franceses, que no Senegal se opõem ao direito do povo de Casamanse à autodeterminação e à independência, mas que fazem precisamente o oposto em Angola, através de “lobbies”, manobras e financiamentos, – atribuídos, nomeadamente, à ELF Aquitaine, – no que concerne ao incentivo aos separatistas no enclave de Cabinda (aonde, por mera coincidência, há petróleo a jorros)… Ora, esta “consanguinidade” entre as populações do norte da Guiné e do sul do Senegal cimenta laços fortes e mesmo familiares entre povos de idênticas etnias, hábitos e costumes (balantas, mancanhas, felupes (diolas), manjacos e mesmo fulas e mandingas). Nestes anos de guerra imensos refugiados instalaram-se em Casamanse com o apoio dos residentes locais. Ao contrário, o presidente Senghor, teme o que possa acontecer, pois falhado o projecto “Senegâmbia” (anexação da Gâmbia pelo Senegal) quer manter o país com as fronteiras actuais. Com efeito, Casamanse nunca foi integrada legalmente e nem desde a independência senegalesa em 1960 reconhece a soberania de Dakar. Estamos em 1973 e neste momento vigora um acordo de coabitação por um período de 20 anos, só que em conflito permanente. Não espanta que o PAIGC se movimente tão bem na região… Porém, nem sempre foi assim. A linha política de Senghor simboliza uma aposta de alguma social-democracia europeia para África (da própria “Internacional Socialista”, já que o seu modelo é único no continente, permite eleições periódicas, embora a democracia seja limitada, pois partidos que cheirem a marxismo são excluídos de nelas participar, como o PAI do actual presidente Abdulai Wade)! A grande questão é que ao longo dos anos o Senegal nunca evoluiu nem resolveu melhor os problemas da fome e do subdesenvolvimento do que qualquer outro regime em África que não estivesse em guerra interna ou externamente. Ora, além de Zinguinhor o PAIGC tem as bases de Yeran e Kolda que, por via rodoviária, rapidamente dão apoio às forças que no terreno fazem a vida negra a Bigene e Guidaje, pelo menos... Mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo os apoios de Senghor ao PAIGC foram tímidos. Outrora, o presidente do Senegal via com mais simpatia a chamada FLING, movimento impulsionado por ele próprio com o beneplácito do sistema colonial português, cuja fundação visou dividir os “independentistas”, aproveitando ter à frente um par de ambiciosos intelectuais que se manifestavam claramente contra Amílcar Cabral. Senghor temia que um novo país liderado por Cabral se aliasse militarmente ao de Sekou Touré (Conakry) e juntos consumassem uma ideia antiga do lado francófono, de criar uma grande Guiné, potência regional. Mas o correr do tempo desmentiu tal propósito. Também lhe fazia confusão a diversidade de apoios que o PAIGC tinha no Globo inteiro, da China aos países socialistas e africanos, passando por muitas forças progressistas europeias e sul-americanas. Apesar de tudo há muito que o PAIGC tinha sede em Dakar (Rue Félix Faure) e neste período havia adquirido novos edifícios no centro da cidade para ampliar a sua representação. As mais recentes tentativas de diálogo entre Senghor e Spínola, para eventualmente patrocinarem uma solução política do tipo neo-colonial, fracassaram devido à liminar recusa de Marcelo Caetano, que preferia uma derrota militar a um entendimento com os “terroristas”. O radicalismo do ditador contribui para que Senghor abra, noutros moldes, as portas à actividade dos guerrilheiros no território senegalês. As pressões internacionais (ONU, OUA, Organização dos Países Não-Alinhados, etc.), e também a clarificação das dúvidas que Senghor tinha em relação à sua política futura quanto a uma eventual tentativa de anexação de Casamance, ou um entendimento sobre esta matéria, o terão feito mudar de ideias. Foi elaborado um protocolo de acordo quanto ao estacionamento e transporte de armamentos no território. No entanto, o que está demonstrado é que houve quase sempre colaboração entre militares do Senegal e a tropa portuguesa. Alguns exemplos: o comandante do destacamento do exército senegalês em Nianao contribuía para a normalidade da situação militar em Pirada; o comandante de Setikénie jurava a pés juntos que pelo seu território os guerrilheiros nunca passariam para atacar a Guiné (Cambaju); e o comandante da CCaç 4147 (Sare Bacar) escrevia à PIDE a enaltecer o papel do agente Raul Alfredo Silva “nas relações estabelecidas com as autoridades do Senegal” (bla bla bla).<br />Nesse mesmo dia os dois pelotões da CCaç 3518, mais os militares que connosco chegaram no dia 15 (o grupo de combate da Companhia Africana Eventual de Cuntima e o Grupo Especial de Milícias 322, de Jumbembém), organizamos uma tentativa de regresso “a casa”. Na frente, na cola dos picadores, segue também pessoal dos DFE-3 e DFE-4. À partida, a escolha da data não poderia ser melhor, julgamos que as forças da guerrilha estão prioritariamente envolvidas na defesa de Koumbamory. Puro engano: arcámos com uma emboscada violentíssima ao alcançarmos a fatídica casa amarela no Cufeu, onde diversos combates se tinham travado desde a primeira semana do mês. O campo de minas alargou-se e diversas foram accionadas, até por membros da população que, querendo fugir ao inferno que se vivia também na tabanca de Guidaje, se tinham agarrado às viaturas, forçando a boleia, para irem procurar refúgio em Binta, Farim, ou o mais longe possível. <br />Quando a emboscada rebentou, uma “roquetada” lateral cortou ramos da árvore sob a qual me abrigava e que me caíram nos ombros. Assustei-me, olhei para o lado de onde veio o disparo e precipitei-me a disparar às cegas, desperdiçando mais de meio carregador de munições. Outras ogivas de lança-granadas foguete RPG vieram da frente da coluna, gemidos sibilantes que pareciam passar à tangente das nossas cabeças e troar pela estrada fora, não dava para ver aonde. A essas não podia responder, sob pena de pôr em risco o físico de outros camaradas, na linha de fogo. De súbito, dou com uma jovem mulher a saltar da MG estacionada à força trinta metros à minha frente, desatar a correr e pisar de seguida uma mina, dando um pinote tremendo e vindo estatelar-se não muito afastada do local onde me encontro. Ali ficou, imóvel, olhos em pânico, mas sem visíveis ferimentos além do sangramento do pé e alguns rasgões no pano-de-saia. Já não me lembro quem foi o soldado que com a faca de mato lhe rasgou um pedaço desse pano e lhe atou o pé a ver se o sangue estancava, enquanto outro gritava pelo enfermeiro, que já andava a acudir noutras paragens. As balas inimigas não param de silvar sobre nós e cada qual rastejou e abrigou-se o melhor que pôde, buscando com a mira da G3 um alvo que mexesse no horizonte próximo, mas daquele local não havia inimigos à vista. Um pedaço de capim que pareceu mexer-se logo foi imobilizado por uma M-62 (granada ofensiva) que um dos nossos soldados arremessou com notáveis impulso de braço e pontaria. Mas não se confirmou que tivesse causado ferimentos a quem quer que fosse.<br />O sopro da mina pareceu-me de “efeito dirigido”, ou seja, amputou-lhe metade dum pé e deixou um corte tão perfeito como se desferido por uma catana afiada (um “terçado”, na Guiné). Apesar da minha especialidade ser “minas e armadilhas”, não pude certificar-me pessoalmente se o modelo dos novos engenhos utilizados pelo PAIGC na região era o que se dizia: minas anti-picagem, – quer as antipessoal quer as anticarro. Teriam uma pequena bateria, ou pilha, no interior, e a detonação era provocada por duas folhas de estanho paralelas, uma usada como pólo positivo e outra negativo, disfarçavam-nas com uma finíssima camada de terra por cima e a mais leve pressão da “pica” provocaria o rebentamento imediato. À testa da coluna, um picador, curvado para a frente no desempenho da sua tarefa, accionara instantes antes uma “coisa” idêntica e o “corte” que ficou no corpo apresentou-se nos mesmos moldes. Só que, – isso sim, fui confirmar quando terminou a troca de fogachal, – o suposto efeito de sopro fez-lhe desaparecer o queixo e o rosto; o que restou da cabeça ficou espantosamente guilhotinado, na vertical. Tal como na “badjuda” nenhum outro ferimento se via no corpo, nem uma beliscadura, já que a mina provocou um cilindro vertical de deslocação de ar, mas não produziu estilhaços… Ainda assim, o soldado Vieira saltou para cima da MG onde sabia estar um Morteiro M2 60 mm e caixas de granadas, acartou o que pôde para a berma da picada (regos abertos pelos rodados das viaturas), afastou-se da ramaria das árvores e lançou uma série de projécteis na direcção de onde lhe parecia que o ataque tinha mais força. <br />Quando a situação parecia mais calma, – pois já não sentíamos tiros na nossa direcção, – através do rádio-banana que o nosso cabo das transmissões lhe cedeu, o alferes Igreja recebeu ordens para que os dois pelotões d’Os Marados de Gadamael mudassem de posição, formando um “L” em relação à posição da coluna, isto para evitar tentativas de envolvimento por parte do IN. Quem mostrou má cara por ter que se erguer e arrastar para outro lado foi o alferes Cruz. Estava branco (provavelmente tão branco como eu estaria, mas faltou-me ali o espelho para comparar), enjoado com o cheiro intenso dos explosivos. Tinha chegado recentemente à companhia, vindo da metrópole em rendição do Dino Álvaro Mendes Duarte, também alferes miliciano “Marado” mas, quem sabe se em boa ou má hora?, transferido para a companhia africana sediada em Bedanda (CCaç 6), – onde também passou as “passas do Algarve”, o mesmo sucedendo ao furriel miliciano Manuel Fernando Urbano Neves e, mais tarde, ao furriel Manuel Baptista Fidalgo, – pelo que, na sua condição de, relativamente, periquito (o Cruz chegou a Os Marados a 12 de Outubro de 1972 e no início de 1973 foi temporariamente deslocado para Bambadinca como instrutor do 1º turno de milícias), estava a “tirar os três” no mato, e logo daquela maneira… <br />Na frente da coluna, o combate foi violento, o ataque frontal em linha do PAIGC causou muitos danos logo de início, ferindo alguns camaradas. Não foi fácil ao pessoal recompor-se e reagrupar-se. Passados vinte e tantos minutos, deixámos de ouvir o matraquear das Costureirinhas e das G3, pois assomam-se dois Fiat que cortam o ar em voo rasante sobre as árvores, bombardeiam duas vezes, – e de que maneira!, – a cento e cinquenta metros de nós, ou talvez um pouco mais. Depois passam novamente em sentido contrário e o chão volta a estremecer por duas vezes, a cada embate das “ameixas” que deviam ser das de 200 quilos! Logo a seguir, – a dois, três quilómetros? –  ouvem-se disparos secos e estranhos assobios. No céu, os mísseis Strela (Flecha, em russo) perseguem os aviões e deixam um estreito rasto de fumo branco a marcar o itinerário. Para se defenderem, os Fiat sobem a pique, o mais rápida e verticalmente que podem, até que os mísseis perseguidores rebentam lá nas alturas. É certo que acima dos dez mil pés deixam de correr perigo, mas a verdade é que, a essa altitude, também deixam de o causar ao IN, pois a tamanha distância dificilmente têm êxito a escolher um alvo e a bombardeá-lo... Os aviões desta vez não são atingidos, mas escusado será dizer que o nosso apoio aéreo termina neste momento. E respondendo ao ímpeto inicial da emboscada e à tentativa de envolvimento que efectivamente se seguiu, muitos de nós ficamos sem munições de G3. Também o pessoal das metralhadoras e de armas pesadas precisava de se reabastecer com granadas. Embora sem se temer nova investida do IN, pelo menos de imediato (as bojardas da aviação provocaram estragos em quem nos atacou) o pronto retorno a Guidaje foi inevitável.<br />Houve o registo do morto (picador) e de sete feridos, mas suponho que sem contar com os elementos da população, principalmente a jovem guineense que perdeu o pé. Entre Os Marados de Gadamael nenhuma baixa há a lamentar. Mas todo o pessoal envolvido na coluna, que tinha por objectivo atingir Farim e zarpar dali para fora, mas que agora é obrigado a recuar, fica ainda mais desmoralizado por não conseguir abandonar a tormentosa guarnição de Guidaje e por não ter perspectivas de como e quando conseguirá romper o cerco movido pelo PAIGC. Com o apoio limitado da aviação e com os acessos cortados, os feridos sem evacuação possível e corpos a agonizar, a situação é já de algum desespero. Psicologicamente abatidos, com munições a escassear, começamos a temer um ataque ao arame.<br />20 de Maio <br />As flagelações sucedem-se dia após dia e praticamente todos os edifícios já sofreram danos. O nosso abrigo, qual cabeça de cogumelo pousada no chão, e muito poucos outros telhados são o que resta de construções por esburacar. Sem conseguir dormir, fumo mais um Português Suave e caminho ao longo das valas repletas de homens deitados no fundo. O dia rompe, preguiçoso. Avisto Marcelino da Mata, palma da mão direita para cima, quatro dedos a dobrarem-se e esticarem-se com intermitência, “toca a levantar”, assim acorda os homens que pernoitaram na mesma vala ziguezagueante que nós, só que lá no extremo oposto.<br />Ele e este seu grupo já tinham estado connosco em Gadamael, (na altura, um grupo reduzido de dezasseis ou dezoito elementos), de lá saíram para uma operação de que não tivemos informações. Só sei que lhes abri as armadilhas à saída da pista de aviação e, mais adiante, em Viana, para poderem passar. Seguiram acompanhados do guia Queba Mané, (que regressou sozinho quarenta minutos depois) em direcção a Gadamael Fronteira (daí em diante era chão da Guiné-Conacry). Não os vi carregados de mochilas e mantas, nem de bornais e rações de combate, acartavam apenas dois cantis de água cada um e cinturões pejados de armamento. Só voltaram à base passados três dias, onde um batelão os aguardava para os transportar, julgo que para Cacine. Era um grupo mítico de que se contavam estórias, inclusive as mais idiotas e macabras, tais como a de coleccionarem orelhas de inimigos abatidos ou apanhados, serem antropófagos, levarem apitos e desatarem a correr atrás do IN disparando e apitando ao mesmo tempo, etc.. Mas estas estórias (verdadeiras ou não, tão condenáveis como os actos, porém, que ficaram na História!) apenas se contavam para ilustrar a destreza destes homens, alguns deles evidenciando bastante juventude ainda, durante as operações mais secretas e bicudas para onde eram mandados.<br />Ouviram-se rebentamentos breves vindos de leste, alvitram-se bombas lançadas pela aviação nos arredores de Fajonquito. Quanto a nós, a partir de hoje veremos que consequências teve a operação levada a cabo pelos comandos africanos e a destruição da base de Koumbamory, fosse ela total ou parcial. Será que vão reduzir-se os ataques?<br />Antes da investida dos comandos e do bombardeamento da força aérea, o PAIGC dispunha no local das seguintes unidades: corpo de exército 199/B/70, com quatro bigrupos de infantaria e uma bateria de artilharia; corpo de exército 199/C/70, com cinco bigrupos de infantaria e uma bateria de artilharia; grupo de foguetes da frente norte, com quatro rampas; três bigrupos de infantaria, um grupo de reconhecimento e uma bateria de artilharia do CE/A/70, deslocadas de Sare Lali (zona leste); e um pelotão de morteiros de 120 milímetros.<br />O pessoal do batalhão de comandos arranca em direcção ao sul. Desloca-se a pé (em bicha de pirilau e sem viaturas), não podendo assim transportar nem os dez mortos resultantes dos confrontos de Koumbamory nem os vinte e dois feridos graves resultantes da operação Ametista Real. Há outros homens que, com mazelas e ferimentos mais ligeiros não estão em condições de aguentar a marcha, ou de a consumar com segurança e ficam também em Guidaje.<br />Os dez corpos, cuja identificação mencionarei mais adiante, virão mais tarde a ser aqui sepultados. Não há notícia dos três desaparecidos em combate, cujos corpos ficaram tombados em território senegalês. Em toda a acção, os comandos africanos dispararam 26.700 munições de G3 e 4.600 de Kalashnikov (todas de 7,62mm), 292 granadas de lança-granadas foguete (6 e 8,9 cm), 71 granadas de RPG-2 e RPG-7, 195 munições de morteiro e 268 granadas de mão (ofensivas e defensivas). <br />Num terreno descampado do lado de lá da fronteira, três crianças de varapaus controlam de longe a numerosa manada que levam a pastar, o que há muito tempo não é habitual ver-se por ali, até porque existem áreas com mais e melhor verdura para o efeito. <br />Alguém sugeriu mais tarde que o PAIGC desconfiara que o exército português havia minado aquele corredor fronteiriço, para vedar a passagem. Dificilmente as NT conseguiriam colocar minas nesse terreno sem despertar a atenção dos vigias, que controlariam permanentemente os nossos movimentos. Na impossibilidade de enviar picadores para se certificar (ficariam ao alcance das nossas armas ligeiras), as vacas a calcorrear o terreno seriam a forma de o testar. Porém, nenhum animal foi pelos ares…<br />Não consigo recordar-me de quantas vezes terei ido à messe sentar-me e comer uma refeição. Primeiro, porque as horas do tacho são trocadas constantemente e tenho pouca sorte na escolha dos momentos de investida; segundo, porque enquanto duram alguns restos de rações de combate que o pessoal “anfitrião” sacou do armazém, aproveito-me da sua generosidade; terceiro, porque já começo a enjoar-me das salsichas de lata, só o cheiro me dá náuseas. Neste dia começa a faltar o pão, parece que já estão a racionar a farinha, vem uma pequena fatia na borda do prato de cada um e é o que há! E uma bernarda certeira no cocuruto do depósito de géneros arrasou as já de si insignificantes esperanças de um dia nos brindarem com rancho melhorado… <br />Bem, mas de sentir fome lembro-me perfeitamente (ou talvez não seja fome e apenas pensar que devo mastigar alguma coisa), e dirijo-me à messe, que desta vez está a servir refeições e cheia que nem um ovo. Olho para o fundo e calculo que deve ser naquele balcão que nos devemos servir, tipo self-service, do tal esparguete salsicheiro, prato do dia, não ao almoço e ao jantar, mas à hora de abertura que parece tirada às sortes. <br />É sabido que os graduados não usam divisas nem galões nos ombros quando partem em operação, em virtude da ideia de que o inimigo pretende sempre aniquilar quem comanda, em primeiro lugar. Portanto, todos nós, quando saímos do COMBIS de manhãzinha deixámos nos cacifos essas identificações hierárquicas. Entro na messe e oiço um berro estridente, vindo de uma das mesas. Pelos cabelos brancos só pode ser de pessoal do quadro. Deduzo tratar-se do comandante, e é de facto o tenente-coronel Correia de Campos que vejo apontar na minha direcção, de indicador em riste:<br />– “Adonde” é que você pensa que vai? Ponha-se lá fora imediatamente! Apresente-se primeiro e peça autorização para entrar! <br />Por decoro, não vou agora descrever o que balbuciei na altura, enquanto rangia os dentes, nem o que me apeteceu e estive mesmo para fazer… Recuei até à entrada da messe, ou refeitório, ou espelunca o lá o que era aquilo. Como não trazia quico não podia fazer continência, pus-me em sentido:<br />– Apresenta-se o furriel miliciano nº 197.116/71, Daniel Rosa de Matos. V. Exa, meu comandante, dá-me licença que entre?<br />– Entre! – respondeu sem me olhar, a boca cheia a mastigar o esparguete.<br />De pronto, virei as costas e saí. Confesso que o que queria mesmo era arremessar-lhe qualquer coisa às ventas, não sei bem o quê, o que apanhasse à mão de semear para lhe dar o troco do enxovalho. Só não o fiz porque alguém me puxou pelo braço e me disse “tem juízo pá, caga mas é no gajo, que é um xico de merda, e vem comer” e acabei por atacar mas foi a dose reduzida de salsicha, apesar do fastio. Sentei-me numa mesa corrida, – não muito distante da do tenente-coronel, – onde já estavam de prato vazio milicianos de outras unidades. O que me sussurrou os insultos ao comandante e me arrastou para ir buscar o prato ao balcão, contou então certas histórias de atitudes que o homem teria tomado em Pirada, – e que não têm cabimento aqui, – e garantiu-me que se não havia whisky na messe era porque ele tinha açambarcado para o seu quarto as cerca de quarenta garrafas que há poucos dias constavam no inventário do depósito de géneros. É claro, os outros camaradas que estavam à mesa confirmaram tudo, puseram até os adjectivos no superlativo, mas nunca me convenci que não fosse mais um daqueles boatos que circulam sem se saber como nasceram
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Os Marados de Gadamael na Batalha de Guidaje

  • 1. Capa<br />contracapa<br />Os Marados de Gadamael<br />e os dias da<br />Batalha de Guidaje<br />Daniel de MatosUnir as Pontas da Memória <br />(À laia de introdução)<br />É estranho e deveras angustiante participarmos em cerimónias fúnebres de camaradas que morreram ao nosso lado, coladinhos ao nosso corpo, no mesmo buraco, mas há… 36 anos e meio! Ainda por cima quando além de camaradas de armas eram já amigos do peito e quando, devido a circunstâncias que demoram a explicar, tivemos de os enterrar algures no mato, sem a convicção absoluta de que os depositávamos nas suas últimas moradas, tendo todas as incertezas do Mundo quanto ao destino que poderiam levar os respectivos corpos.<br />O regresso e a devolução às respectivas famílias dos corpos do furriel Machado, do primeiro-cabo Telo e do soldado Geraldes, as honrarias militares a que tiveram direito junto ao “Monumento Nacional aos Combatentes do Ultramar”, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Belém/Lisboa, e as homenagens que lhes foram rendidas nos funerais efectuados nas respectivas terras natais, – em Valpaços, no Paul do Mar/Madeira e no Vimioso – vieram reactivar memórias que repousavam no arquivo dos tempos idos. Já antes, durante a bem organizada campanha para a exumação e trasladação de alguns dos outros corpos sepultados em Guidaje, e quando os três pára-quedistas da CPP 121 regressaram a Portugal e às suas famílias, algo voltou a agitar as nossas consciências e nos fez recuar no tempo e no espaço. É que, vistas desta maneira, afinal as coisas não decorreram assim há tanto tempo, foram ontem, estão mesmo a acontecer, agora.<br />Existem múltiplos relatos dos acontecimentos de Maio de 1973 em Guidaje – livros, depoimentos diversos, testemunhos, documentos na internet, – e, no entanto, que eu conheça, em lado nenhum figuram referências à CCaç 3518. Excepto… nas campas! E isso tem conduzido muita gente a perguntar por que raio estaria nesses dias tanto pessoal de Os Marados de Gadamael em… Guidaje? O que fazia, como foi lá parar? Quem foram Os Marados e, se o nome próprio refere outro local, o que os levou a Guidaje numa altura tão crítica como a que por lá se viveu durante esse mês?<br />Eu próprio, em conversa (por e-mail) com um grande e velho amigo, – o coronel A. Marques Lopes, agora na reserva, – ao informá-lo que tinha estado em Guidaje e fora “utente” do infausto abrigo de que muitos hoje falam, mas de que (felizmente para os próprios) poucos lhe conheceram os horrores, recebi dele a seguinte resposta: “o coronel Ayala Botto, que foi adjunto do Spínola, e foi com ele a Guidaje em 1973, põe em dúvida que a tua companhia estivesse em Guidaje na altura do cerco. Diz mais coisas. Ou escreve para o Blogue!!! A. Marques Lopes” (o blogue a que se refere é o conhecidíssimo, e de grande mérito, “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que contém uma quantidade apreciável de textos, fotografias e testemunhos, muitos dos quais de relevância e interesse históricos). <br />A verdade é que estão inventariadas em inúmeros textos as unidades que participaram na batalha de Guidaje, sendo omissas referências à nossa companhia. Bem, mas se para alguns é duvidosa e difícil de explicar a presença d’Os Marados de Gadamael tão em cima da fronteira norte com o Senegal, pior se tornará se tentarem explicar como raio é que no cemitério improvisado de Guidaje ficaram enterrados três dos mortos que ali sofremos!... <br />O reavivar do assunto, devido ao processo de trasladação das ossadas em 2009, e esperando que este hiato de tempo tenha esfriado a sensibilidade dos familiares para que hoje em dia já se possam confrontar melhor com a realidade dos acontecimentos – que, confirmou-se durante as recentes exéquias, até então desconheciam, – leva-me a redigir estas linhas que serão um misto das memórias desse tempo, – sempre falíveis graças à “PDI” (toda a gente de geração mais avançada sabe o que isso é). Mas por recear as traições dessa mesma memória, houve que ligar algumas pontas, que a misturar com o resultado a consultas diversas e com o cruzamento de informações que por aí circulam, disponíveis na comunicação social, em livros e na web. <br />Porém, que fique claro que esta nem é a História d’Os Marados, longe disso, muito menos a dos acontecimentos de Guidaje, embora espere que possa contribuir com alguns dados para historiadores que saibam da poda e queiram um dia pegar neste assunto. Não sendo um especialista, certamente serei perdoado por eventuais imprecisões (espero que não as tenha em demasia). Do mesmo modo, este texto não advém de um diário (que nunca escrevi), não visa enaltecer nem as nossas aventuras nem as desventuras, muito menos acicatar a rivalidade imbecil entre unidades daqui e dacolá. Até porque, – valha-nos isso! – integrámos uma companhia do exército (“tropa macaca”), que tal como todas as outras (de todas as armas) foi composta por gente normalíssima, sem a mania das grandezas, mas com a sorte de não contar no seu seio com gabarolices de heróis de pacotilha nem com falsos protagonistas, em resumo, uma companhia sem “rambos” nem “schwarzeneegers” obtusos.<br />Com estas linhas pretendo, tão-só, escrevinhar alguns apontamentos que, na minha óptica, respondam às dúvidas que muitos camaradas colocam amiúde sobre o que realmente se passou em Maio de 1973 naquela região e, já agora, explicar como apareceram Os Marados de Gadamael nesta crise… <br />Provavelmente não acrescentarei nada de novo ao que já é conhecido. Mas se este trabalho contribuir para que alguns ex-combatentes nele se revejam e dele se sirvam para contar aos netos o que nos custou aquilo tudo, terá valido a pena e dar-me-ei por satisfeito. Também nunca foi meu hábito escrever na primeira pessoa do singular. Só que, para se contar esta história, forçosamente tem de haver um narrador. Por isso, aqui vai…<br />Por onde andaram e com quem estiveram Os Marados?<br />“Os Marados de Gadamael” foi a divisa – não muito abonatória, é certo, – escolhida para e pelo pessoal da Companhia de Caçadores Independente nº 3518, formada no Funchal (no Batalhão Independente de Infantaria nº 19/BII19) durante o segundo semestre de 1971 (formalmente, am 15 de Novembro, “destinada a combater no Ultramar nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 20º do Decreto-Lei º 49107, de 7 de Julho de 1969”). <br />Como companhia “madeirense” (de onde são naturais os soldados atiradores e o capitão miliciano Manuel Nunes de Sousa, – que as praças especialistas e os graduados vieram do Continente), receberia o guião das mãos do presidente da Câmara Municipal de Santana, a 16 de Novembro de 1971. <br />Houve também entre os “Marados” dois açorianos e dois guineenses: o furriel miliciano Nuno Álvares Brasil Pessoa, – que faleceu depois do regresso à ilha natal de S. Jorge; vindo em rendição individual, em 27 de Julho de 1972, o soldado atirador António Henrique Paiva Valente, de Santa Maria, então como hoje, distinto locutor do Clube Asas do Atlântico, em Vila do Porto; o guineense, de ascendência cabo-verdiana, Florentino José Lopes de Almeida, (para os amigos, o Fontino), furriel miliciano de operações especiais; e ainda o soldado Malan Seidi, – veio transferido da CCaç 3.<br />Com destino à Guiné Portuguesa, a companhia embarcou na cidade do Funchal no dia 20 de Dezembro desse ano, às 3 da madrugada (!), tendo chegado a Bissau no dia 24 seguinte (embora já estivéssemos ao largo do rio Geba desde as 23 horas do dia 23, quem poderá esquecer-se de tão bela consoada?). No mesmo paquete, – o Angra do Heroísmo, – e com igual proveniência, viajaram a CCaç 3519 (que iria parar a Barro) e a CCaç 3520 (cujo destino foi Cacine), mais o BCaç 3872, que já embarcara em Lisboa e que viria a instalar-se em Galomaro. Pisámos terras da Guiné a partir das 15 horas. <br />Passámos o dia de Natal a desfazer malas e no dia 26 registou-se a cerimónia de boas-vindas, presidida pelo comandante-chefe, – General António de Spínola, figura grada entre os soldados, ou não fosse também ele um madeirense (filho de madeirenses, se bem que nascido em Estremoz) e, ainda por cima, um líder – perante quem desfilámos e que em seguida nos passou revista. A 22 de Janeiro de 1972 terminámos o IAO (Instrução e Aproveitamento Operacional) no CMI (Centro Militar de Instrução), situado no Cumeré. No dia seguinte, a bordo de uma LDG, às 19 horas, abalámos do porto de Bissau – ao lado do histórico cais de Pindjiguiti, – para Gadamael Porto. <br />Após o transbordo em Cacine para uma LDM, (aí se despedindo dos camaradas da irmã gémea CCaç 3520 – “Estrelas do Sul”), e em duas levas de dois pelotões cada, a primeira alcançou o pequeno desembarcadouro de Gadamael, no rio Sapo (afluente do Cacine), pelas 15 horas do dia 24 de Janeiro, onde a companhia ficou uma temporada em sobreposição com a unidade que foi render (a CCaç 2796, que depois marcharia para Quinhamel), integrada no dispositivo de manobra do BCaç 2930, depois do BCaç 4510/72 e, depois ainda, do COP 5 (Guileje). <br />Juntamente com Os Marados, estiveram em Gadamael os homens do Pelotão de Reconhecimento Fox nº 2260 “Unidos Venceremos” (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria Alexandre Costa Gomes e pelos furriéis milicianos Manuel Vitoriano, José Soares, Joaquim Manso, José António Barreiros e António Rio). A 28 de Abril de 1972, após cerimónia de despedida, presidida in loco pelo governador e comandante-chefe Spínola, o pelotão marcha para Bissau, a fim de aguardar aí transporte de regresso à metrópole. <br />O Pel. Rec. Fox 2260 foi substituído oito dias antes (21 de Abril) pelo Pelotão de Reconhecimento Fox 3115/Rec.8 (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria José Manuel da Costa Mouzinho e pelos furriéis Sérgio Luís Moinhos da Costa, Alfredo João Matias da Silva, José de Jesus Garcia e Fernando Manuel Ramos Custódio).<br />Também em Gadamael, estiveram adidos à companhia o 23º Pelotão de Artilharia, (comandado pelo alferes miliciano de artilharia José Augusto de Oliveira Trindade e pelos furriéis milicianos Armando Figueiredo Carvalheda, António Luís Lopes de Oliveira (este, logo substituído pelo furriel miliciano João Manuel Duarte Costa), e ainda os Pelotões de Milícias 235 e 236. O comandante de pelotão 235 era Mamadú Embaló e os comandantes de secção, Camisa Conté, Abdulai Baldé e Mamadú Biai; o comandante de pelotão 236 era Jam Samba Camará e os comandantes de secção, Satalá Colubali, Amadú Bari e Mussa Colubali. O Camisa Conté, – quanto a mim a mais bem preparada de todas as milícias, de grande inteligência, disponibilidade constante e invulgar simpatia, – morrerá na célebre “batalha” de Guileje, diz-se que num “acidente com arma de fogo”, (ouvimos em Bissau alguém contar que foi a tentar desmontar uma mina AC armadilhada) a 12 de Maio de 1973. Posteriormente, dizem-nos que na mesma tentativa pereceu também o seu camarada Satalá Colubali. Por outro lado, o Jam Samba viria a morrer em combate, dias mais tarde, também em Guileje, a 18 de Maio de 1973. <br />Nas acções de guerrilha que em Maio e Junho de 1973 viriam a culminar no abandono de Guileje e na tentativa de cerco de Gadamael Porto, morreriam igualmente em combate os soldados milícias do pelotão 235, Corca Djaló, Abdulai Silá e Malan Sambú e, do pelotão 236, o Braima Cassamá. Enquanto estivemos no sul, todos eles acompanharam os pelotões da CCaç 3518 nas patrulhas e demais operações efectuadas. Desses, recordo com maior saudade o Braima Cassamá, que foi meu aluno nas aulas do Posto Escolar Militar nº 23 que funcionou em Gadamael. Eu e o soldado africano Ricardo Lima da Costa e, mais tarde, com os também monitores escolares, primeiro-cabo Manuel Nuno de Sousa e o soldado António Henrique Paiva Valente, fomos os professores diurnos de perto de quarenta crianças da população. À noite, nas noites em que não estávamos de prevenção ou naquelas em que não teríamos de sair para o mato na madrugada seguinte, demos aulas a uma dúzia de voluntários adultos, praticamente todos da milícia. E como era difícil explicar matérias a quem mal entendia o português! Isto, sem falar noutros assuntos que constavam no programa de ensino, – mas que obviamente não respeitávamos, como o fazer os Africanos empinarem as linhas ferroviárias, (ninguém sabia sequer o que era um comboio), ou as cordilheiras da metrópole (aquelas crianças nem um monte viram ao longo das suas curtas vidas na Guiné)! Na prática, o que todos queriam era aprender a ler e escrever em português (alguns já o faziam em árabe, quanto mais não fosse para lerem a “Tábua de Moisés”). O Braima, excelente rapaz, era dos mais interessados e não me lembro que alguma vez tenha faltado a uma aula. Em separado, devido à compreensão da língua, dei aulas aos soldados. Tínhamos mais de trinta praças da companhia que não possuíam a 4ª classe quando foram incorporados, algumas eram mesmo analfabetas. No final da comissão quase todas fariam o exame e seriam aprovadas (já na escola primária de Bafatá), o que se revelou vital para os seus futuros (muitos soldados pretendiam emigrar para a Venezuela e África do Sul mal se vissem livres da tropa) ou, quanto mais não fosse, para poderem tirar a carta de condução.<br />Enquanto em Gadamael, o território operacional e os locais de minagem, patrulhamento e montagem de emboscadas foram essencialmente os seguintes: antigas tabancas de Viana, Ganturé, Bendugo, Gadamael Fronteira, Missirá, Madina, Bricama Nova, Bricama Velha, Tambambofa, Jabicunda, Campreno Nalú, Campreno Beafada, Mejo, Tarcuré, Sangonhá, Caúr e Cacoca. A zona fronteiriça com a Guiné-Conacry e a picada para Guileje (estrada que outrora ligava a Aldeia Formosa e ao Saltinho) foram os locais com mais frequente número de operações. Todo o abastecimento por via terrestre às unidades e população instaladas em Guileje se efectuava, durante a estação seca, através de colunas efectuadas a partir de Gadamael Porto, sendo o nosso pessoal responsável não só pelas viaturas que transportavam para Guileje os géneros que os batelões descarregavam em Gadamael, mas também pela segurança de metade do percurso. Por diversas vezes, pelotões da companhia, o pelotão Fox e os pelotões da milícia passaram temporadas em reforço das unidades locais (como, por exemplo, da CCaç 3477, “Os Gringos de Guileje”, até Dezembro de 1972, e a CCav 8530, na parte final da nossa estada no sul). <br />Ao recordar aqui quem connosco palmilhou longas distâncias em patrulhamentos, montou emboscadas e alinhou em segurança a colunas no sul da “província ultramarina”, seria injusto não mencionar os guias (suponho que havia dois), mas muito especialmente o Queba Mané, expoente máximo em simpatia e disponibilidade fosse para o que fosse, e de grande resistência física, pois num africano os cabelos brancos denunciam muitas vezes a avançada idade e nunca dei por que se sentisse fatigado. Uma ou outra vez o capitão enviou-o sozinho ao outro lado da fronteira, com a missão de recolher informes sobre a presença, guarnição e movimentações IN. Contornava sem dificuldade as armadilhas que eu e o Ângelo Silva tínhamos sempre montadas no caminho (algumas dezenas em toda a zona operacional).<br />Outros homens importantes foram os caçadores nativos, à conta dos quais nos deliciámos inúmeras vezes com peças de caça, especialmente os bifes de gazela de tão boa memória. Um deles era o experiente nº 4/65, Aliú Jaló; o outro, Ussumane (Baldé?), que viria a distrair-se e a pisar uma mina antipessoal já perto do cruzamento de Ganturé (debaixo de um velho e já meio ressequido limoeiro bravo). Certa altura, ao cair da noite, ouvimos um rebentamento que logo identificámos como proveniente de um desses engenhos.<br />Aconteceu muitas vezes sentirmos rebentamentos originados pela passagem de animais (os de maior porte) que pisavam minas ou accionavam armadilhas e morriam. Por exemplo, uma hiena – em vão, ainda tentámos alimentar durante uns dias, com leite em pó, um dos filhotes que sobreviveu ao rebentamento; um leopardo, – infelizmente para o Lopes Silva, que bem tentou “baratinar” o Camisa Conté a retirar-lhe a pele para mandar curtir e enviar à namorada, mas já tinham passado três ou quatro dias quando lá fomos e naquele estado de decomposição o persuadido negou-se; houve pintadas (galinhas-do-mato) que arrastaram fios-de-tropeçar, e, num belo dia, ao fundo da pista velha, um lindíssimo e corpulento gorila sucumbiria aos ferimentos duma mina AUPS. <br />Na manhã seguinte, bem cedinho, a família de Ussumane (tinha várias mulheres) entrou pelo aquartelamento dentro a reclamar que o fôssemos buscar a Ganturé, pois de certeza teria sido ele, saído na caça, quem accionara a mina. Lá me levantei da cama, mobilizei uma secção do 2º pelotão e fui a esfregar os olhos picada adiante, com as mulheres a algaraviar atrás de nós (infrutíferas as tentativas para que se calassem ou nos ficassem a aguardar pelo caminho). No local não encontrei corpo algum, só um monte cintilante de formigas negras e luzidias. Depois de as vergastarmos com arbustos e ramos de árvore é que começou a aparecer o corpo do caçador. Tinha um pé amputado e devia ter perdido muito sangue durante a noite. Porém, a expressão com que se finou sugeria que a causa da morte devia ter sido a asfixia, devido aos milhões de formigas que se apoderaram do corpo ainda vivo mas imobilizado no chão, cobrindo-o literalmente.<br />Há muito esperados, chegaram em três lanchas os homens da rendição, era o dia 8 de Fevereiro do ano da graça de 1973! Os periquitos ficaram connosco durante um período de sobreposição. Assim, fomos rendidos no subsector de Gadamael pela CCaç 4743/72, de origem açoriana, comandada pelo capitão miliciano de infantaria, Manuel Bernardino Maia Rodrigues, Seguimos para Bissau no dia 4 de Março, a partir das 7 horas (a bordo de uma LDG), onde efectuámos também um período de sobreposição e rendemos a CCaç 3373. Os Marados de Gadamael passaram a efectuar a protecção e segurança das instalações e populações da área e a colaborar em escoltas a colunas de reabastecimento a Farim. Uma dessas colunas, envolvendo dois pelotões nossos, “estendeu-se” a Binta e a Guidaje, aí permanecendo sitiada durante quinze dias. <br />É a memória testemunhal, e também opinativa, desses longos dias, que vou tentar transcrever nas páginas seguintes. Tentarei integrá-la no contexto histórico que se vivia na Guiné no já longínquo mês de Maio de 1973, embora a generalidade das explicações se destine, como é óbvio, sobretudo àqueles que por lá não passaram e nunca tiveram qualquer familiaridade com a Guiné nem as causas e efeitos da tão dura quanto injusta e desnecessária guerra que ali se travou. Algumas das unidades (ou partes delas) com quem os dois pelotões da CCaç 3518 estiveram, ou com quem se cruzaram durante tão malfadado período: Companhia de Caçadores 19 (africana, sediada em Guidaje, criada em Dezembro de 1971), Companhias de Caçadores nº 3, nº 14 (também africanas), Companhia de Comandos nº 38, Pelotão de Artilharia nº 24, Companhia de Caçadores Pára-quedistas nº 121, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 7, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 1, Pelotão de Morteiros nº 4247, Batalhão de Caçadores 4512, Companhia de Cavalaria 3420, Companhia de Caçadores sediada em Cuntima, Batalhão de Comandos Africanos e Grupo Especial do Centro de Operações Especiais do alferes Marcelino da Mata (entretanto, coronel na reserva). <br />A companhia viria a ser substituída a 5 de Julho de 1973 no subsector de Brá (COMBIS) pela CCaç 3414, tendo sido transferida para Bafatá na semana seguinte (dia 11) a fim de substituir a CCav 3463. A 13 de Julho de 1973 (dia do meu 23º aniversário em que exagerei nos festejos, estando de sargento de dia, e em que ia sendo preso, mas isso é outra história!) a companhia assumiu a responsabilidade do subsector de Bafatá e, cumulativamente, a função de intervenção e reserva do BCaç 3884, tendo ainda actuado em reforço de outros sectores da Zona Leste, por períodos curtos. Os quatro pelotões da companhia estiveram frequentemente deslocados e reforçaram temporariamente unidades das regiões vizinhas (missões de serviço com as companhias do BCaç 3884, CCaç 3549, BArt 6523/73, CCaç 3548, CAOP 2, etc., mantendo actividade operacional nomeadamente em locais como Contuboel, Geba, Sonaco, Sare Banda, Xime, Xitole, Alimo, Canquelifá, Sare Bacar, Ponta Guerra, Porto Gole, Bambadinca Tabanca, Cheque, Cantauda, Bigine/Colufe, Maum de Meta, Cheual, Bajocunda, Sincha Bakar, Ponta Luís Dias, Enxalé… <br />Entre 15 e 22 de Dezembro de 1973 os quatro pelotões participaram nas grandes operações “Dragão Feroz” e “Tudo Verde”. Na primeira, estivemos com o BArt 3873, CArt 3493 (então, em Fá Mandinga), CCaç 12, CCaç 21 (de Bambadinca, na altura comandada pelo tenente Jamanca), 20º e 27º pelotões de artilharia (10,5 e 14) e os Gemil’s 309 e 310; na segunda, todas com quatro grupos de combate, participaram ao nosso lado a CArt 3494, mais uma vez as CArt 3493 e CCaç 21, bem como o 27º pelotão de artilharia (14 mm), instalado em Ganjuará. Nestes dias de emboscadas, golpes-de-mão e combates causaram-se baixas ao IN (um morto e vários feridos confirmados e, a julgar pelos rastos de sangue abundantes, mais mortes não confirmadas) e capturou-se algum material (por exemplo, uma espingarda semi-automática Simonov). Houve dois feridos graves das NT, evacuados de helicóptero, que não pertenciam à nossa companhia. No percurso Mansambo/Jombocari/Mina, vários soldados foram vítimas de intoxicação alimentar, e vários deles desmaiaram, devido à má qualidade da ração de combate (nº 20) que lhes tinha sido distribuída. O principal objectivo da segunda operação seria destruir um suposto hospital IN que, diziam as informações, estaria a funcionar em Fiofioli (de facto, antiga base guerrilheira, ainda nos anos sessenta). Todavia, quando após várias peripécias chegámos ao destino, nada se confirmou, nem sequer havia quaisquer vestígios IN no local.<br />Estas informações, geralmente não se obtinham através dos serviços especializados do exército, era a PIDE/DGS que dizia obtê-las através de informadores próprios. A polícia política praticamente determinava as operações que as forças armadas deveriam efectuar. À excepção do chefe Allas, – que há quem diga ter sido tecnicamente competente nesse domínio (por se comportar mais como militar do que como polícia), – pelo menos na região de Bafatá, enquanto lá estivemos, as informações vindas daquelas bandas revelaram-se na esmagadora maioria das vezes uma grande treta, falsas ou ineficazes, criadas provavelmente só para mostrar serviço. O certo é que bastava qualquer agente “botar faladura” no comando operacional que esta, em vez de mandar confirmar as tais fontes, fazia a vontade à corporação e lá íamos nós feitos otários à pesca de cubanos e gajos loiros no mato, à cata de “armazéns do povo” e hospitais, como quem vai aos “gambuzinos”… Também dizem os especialistas que a polícia política teve, durante determinados períodos, alguns informadores e agentes infiltrados nas fileiras do PAIGC, inclusive em contacto ou com acesso aos mais altos responsáveis do partido, (e isso viria a confirmar-se a propósito do assassinato de Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, em Conacry), mas nós ficámos sempre com a ideia de que os informadores a um nível mais baixo deveriam ser muito fraquinhos. Na Guiné, a PIDE tinha uma delegação em Bissau, sub-delegações em Bafatá, Mansoa, Bissorã, Bula, Teixeira Pinto, Cacheu, Farim, Cuntima, Cambaju, Sare Bacar, Pirada e Nova Lamego, e ainda postos em São Domingos, Ilha Caravela e Cacine. Os quadros nem eram muitos (entre 75 e 85 no ano de 1973): cinco inspectores e inspector adjunto, dois subinspectores, sete chefes de brigada, dezoito agentes de primeira classe, vinte e oito de segunda e estagiários, quatro motoristas e três guardas prisionais. Possuía ainda meia dúzia de funcionários técnicos (rádio-montadores e rádio-telegrafistas), outros tantos contínuos e serventes, além de quatro escriturários para as folhas de caixa e processamento de salários, subsídios extraordinários e ajudas de custo. Depois, é claro, havia uma rede de informadores e, para sua vergonha, os comandos militares tinham instruções rigorosas de como proceder com eles (na Guiné, instruções dimanadas da Directiva 63/68.SECRETO.AM). Em suma, “autóctone que se apresente para prestar informações exclusivamente à PIDE/DGS deve ser considerado informador secreto, canalizado para o agente local ou, não existindo, deve-se providenciar o transporte para Bissau e entregá-lo na delegação desta polícia”. É expressamente proibido fazer interrogatórios a estes informadores! Ao arrepio dos interesses e da estratégia militar, a PIDE chegou a ser considerada responsável por provocações sangrentas com o objectivo de criar ondas de terror e responsabilizar o PAIGC. Em Novembro de 1965, em Farim, teria mandado lançar uma bomba para o meio de uma festa popular, provocando a morte de uma centena de pessoas, para colocar a culpa nos “terroristas” e revoltar os cidadãos locais. A propaganda, ou notícia de choque sobre a “explosão terrorista”, chegou à opinião pública internacional, mormente através das páginas do New York Times… Os serviços de “Informações e Operações de Infantaria” revelaram-se muito mais eficientes na observação dos movimentos IN, enviando às “zonas libertadas” ou aos outros lados das fronteiras, milícias, caçadores nativos, guias, etc., até a pretexto de irem visitar familiares e, no regresso, ficávamos a conhecer, por exemplo, o número de efectivos, as deslocações havidas, o armamento recebido. Aliás, o PAIGC fazia rigorosamente o mesmo, no sentido contrário. <br />Nos dias seguintes (23 a 31 de Dezembro de 1973) a companhia executou o plano “Bafatá Impenetrável”, do BCaç 3884, que contou com diversas operações, e, já em 1974, na mesma zona de acção, as operações “Garota Nua”, “Madeirense Teimoso”, “Zorro Galante”, “Indomáveis Patifes” e “Leme Seguro” (cito apenas as operações em que participámos lado a lado com outras unidades e não todas as que efectuámos ao longo da prolongada comissão de mais de 27 meses). <br />Embora terminando a comissão em Outubro de 1973, após diversas datas prováveis para o regresso ao Funchal, (sempre com a frustração do desmentido posterior), a 15 de Fevereiro de 1974 fomos rendidos pela CArt 6252/72, recolhendo ao Cumeré para aguardar o regresso. Juntamente com as unidades que em finais de 1971 a tinham acompanhado na viagem para a Guiné (CCaç 3519, CCaç 3520 e BCaç 3872), a CCaç 3518 embarcaria no paquete Niassa a 28 de Março, com destino à Madeira, onde desembarcou a maior parte das praças e o capitão, tendo o pessoal do Continente alcançado a Rocha do Conde d’Óbidos (Lisboa) ao romper do dia 4 de Abril de 1974.<br />Os Dias da Batalha de Guidaje<br />Levar a lenha e sair queimado! <br />Após cerca de 13 meses claustrofóbicos em Gadamael, estar sediado em Brá (COMBIS), a poucos quilómetros do centro de Bissau, era estar no paraíso! Mantendo a operacionalidade, passámos a prestar serviços diversos, entre os quais, fazendo escala para a segurança ao anel de Bissau, turnos de sentinela, por exemplo, no Quartel-General e no edifício do estúdio radiofónico do PFA (lê-se “PêFêÀ”, Programa das Forças Armadas), no Hospital Militar de Bissau, na residência do comandante-adjunto operacional (brigadeiro Leitão Marques), protecção às portas da rede da cidade, missões de patrulhamento e vigilância suburbana, nomeadamente aos bairros de Bandim (e mercado), Chão de Papel, Alto do Crim, Mindara, tabancas da Pedreira e Fábrica da Telha, do Reino e Gambefada, zona entre as bombas da SACOR e a segunda Avenida de Cintura, estrada do Aeroporto, Belém e estrada de Bor, Bairro da Ajuda, incluindo Madina e Missirá e, com uma periodicidade incerta, escoltando as tais colunas para Farim. Faziam-se sempre num só dia, ida e volta. <br />Nesse tempo, com bom piso e unidades militares ao longo da estrada, nomeadamente em Nhacra, Jugudul, Mansoa, Mansabá e no destacamento K3, – locais onde passa a estrada para Farim, – o percurso não se revelava demasiado perigoso. No essencial, é a proximidade da zona sul da mata do Oio, no enfiamento do Olossato e, cá mais para baixo, da base do Mores, que obriga a redobrado respeitinho, pois é sítio que fez História pelas muitas emboscadas aí efectuadas pelos guerrilheiros do PAIGC, retraçando corpos ao longo dos anos.<br />Ora, a 14 de Maio de 1973, o pessoal dos primeiro e segundo pelotões parte de manhãzinha (cinco horas e trinta minutos) para mais uma rotineira coluna a Farim, levando simplesmente nos bolsos alguns trocos para comprar cigarros e beber uns copos no local de destino. E é sabido que nem todos terão a possibilidade de o fazer, já que a uma parte dos homens nem é permitido atravessar o rio Cacheu, não só porque a preguiçosa, rangente e fumegante jangada é peça única e, no seu vagar, efectua o vaivém entre margens atulhada de camionetas civis e de passageiros, mas também porque alguém tem de ficar a montar segurança às viaturas militares que permanecem na margem sul a aguardar a viagem de regresso. <br />As colunas que chegam de Bissau visam abastecer a região com os mais variados géneros. Embora o Cacheu seja navegável até Binta, mesmo por barcos de razoável envergadura (alguns podem mesmo atingir Farim, apesar das grandes curvas do rio e do cotovelo mais apertado, poucos quilómetros antes da cidade), considera-se muito mais lógico e seguro o transporte por terra, e não é por acaso que, tal como outras, aquela estrada estratégica só foi alcatroada em plenos anos da guerra, tantas vidas e sacrifícios tendo custado aos militares que nessa fase por lá andaram. O último troço, entre Bironque e o destacamento K3, concluiu-se em 1970/71. De facto, antes da guerra colonial ter eclodido na Guiné, o território possuía míseros sessenta quilómetros de estradas asfaltadas (e existiam em 1969 mais de mil quilómetros de vias rodoviárias)! <br />O mesmo princípio se aplica ao reduzidíssimo número de escolas: até há poucos anos, em todo o território, apenas se podia estudar até ao 2º ano do primeiro ciclo; nos anos setenta, mais de 75% dos professores pertencem à tropa; filhos da terra (não europeus) licenciados na metrópole, serão apenas 6 (o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral é um deles)… Ora, em escassos anos de guerra, o PAIGC já conseguira formar em diversos países (de diferentes regimes) dezenas e dezenas de quadros guineenses e cabo-verdianos, com licenciaturas em distintas áreas. A penúria e o subdesenvolvimento são generalizados, o abandono por parte das autoridades é total. Pensemos em hospitais e postos de assistência médica e sanitária? Pois um mês antes do 25 de Abril, o próprio comandante-chefe, general Bettencourt Rodrigues, constata que dos 82 médicos existentes no território, 76 são militares e dois são família de militares! A generalidade do que existe, e não é muito, foi construído só depois do massacre do Pindjiguiti (greve de estivadores barbaramente reprimida pela polícia, a 3 de Agosto de 1959) e do consequente início da “luta armada de libertação nacional” do PAIGC, mais acentuadamente em 1961 e 1963, entre a margem direita do Cacheu e a fronteira senegalesa. Aliás, e como é óbvio, por alguma razão se desencadearia uma guerra pela independência da Guiné!...<br />Neste dia, portanto, as viaturas civis e também algumas GMC a pedir reforma seguem carregadinhas de sibe – madeira para reordenamentos. Reordenamentos, são construções alinhadas em aldeias estratégicas, que a dado momento começaram a construir-se concentrando populações num mesmo espaço, sempre coladas aos aquartelamentos das forças armadas e cercadas por redes duplas de arame farpado. Entre estas, montavam-se fornilhos (explosivos de segurança accionados electricamente, – geralmente ligados a uma bateria de automóvel – e compostos por granadas de mão, cuja fragmentação seria reforçada com materiais “fora de prazo”, tais como granadas de avião, de artilharia e de morteiro que por qualquer razão não haviam explodido quando utilizadas e que rebentariam “por simpatia” se conectadas a outra subtileza explosiva). Com os reordenamentos, dizem os responsáveis, impedem-se fugas e contactos com o exterior, “protege-se” a população e faz-se dela um escudo, pois se o IN bombardear o quartel, poderá é estar a matar os seus próprios familiares. <br />A construção de reordenamentos do território (aldeias estratégicas) não é de agora. Foi o general Arnaldo Schultz (governador da Guiné antes de Spínola, tido como um duro do regime e nomeado directamente por Salazar) que iniciou a política dos aldeamentos estratégicos, com grande propaganda, como se isso fosse uma maravilha para as populações guineenses. Pretendia suster o avanço da guerrilha e controlar os movimentos das populações rurais. Segundo Cabral, os reordenamentos “não têm dado os resultados positivos esperados pelos portugueses, por serem criados sobretudo nas zonas sujeitas à influência dos chefes tradicionais” (de súbito, forte aposta das autoridades coloniais), “especialmente na região de savanas do centro, maioritariamente fulas”. “Mais realista que esses chefes, o Povo foge quando pode e prefere o refúgio das agruras da guerra nos países vizinhos”. A agravante foi o impor determinadas chefias ao povo, que não as respeitava, ou por pertencerem eventualmente a etnias rivais, ou por estarem em desuso, ou por serem inclusivamente contra-natura. Por exemplo, a etnia balanta (a mais numerosa, que representa 30% da população, seguida, por esta ordem, pelos fulas, manjacos e mandingas) dispensava bem ter chefes a mandar, estava habituada desde sempre a resolver os seus problemas e a decidir em comunidade, exercendo um tipo de democracia com que a “civilização ocidental” tinha, e tem, muito a aprender! Além disso, a colagem dos chefes tribais nomeados pela governação da “província” contribuiu ainda mais para aumentar a desconfiança popular. Esse servilismo nota-se aos mais diversos níveis. A política incrementada já por Spínola, que incide na acção psicológica da “Guiné de Hoje, Guiné Melhor”, organizou os chamados Congressos do Povo em que, para representar esse mesmo Povo, são convocados essencialmente esses chefes tribais, – régulos, sipaios, etc.. Tipificando o comportamento desses dignos representantes, lembro uma cena passada em Bafatá, num desses congressos. Usa da palavra o Al Hagi Zacarias Baú, chefe religioso que viveu sete anos em Meca (Al Hagi, também Alaio, significa O Peregrino, e todos os fiéis que fazem a peregrinação a Meca passam a usar essa designação colada ao nome). A dado passo, – qual Dr. Luís Filipe Menezes a bramar contra os sulistas num congresso do PPD/PSD, – foge-lhe “a boca para a verdade” e exclama: “a guerra só acabará quando os brancos forem para casa”! Os cerca de dois mil delegados convidados a participar neste IV Congresso tossem, ficam estupefactos, geram burburinho. O régulo de Ganadu (a regedoria a que Zacarias Jau pertence) exige que o homem lhe seja entregue, pois “sabe muito bem o que lhe há-de fazer”. Passado algum tempo, já em Bissau, o régulo de Badora, Mamadú Bonco Sanhá (condecorado com a Cruz de Guerra de 1ª classe), disse: “Nós costumamos pescar à gamboa. Às vezes, o peixe pescado à gamboa apodrece e temos que o deitar fora. Al Hagi Zacarias Jau é o peixe podre. É bom que nos desembaracemos dele!”<br />Às 6 horas, a coluna passa pelo Quartel-General, aí incorporando as viaturas que transportam o tal material de construção civil. Em progressão lenta, a longuíssima coluna/auto pára dez minutos em Mansoa quando são oito horas, passa por Mansabá quando faltam vinte minutos para as nove e chega a Farim (à margem esquerda do Cacheu) às nove e meia.<br />Tudo decorre dentro da normalidade quando, à chegada, “por decisão superior”, os alferes Igreja e Cruz são informados que, desta vez, também os Unimog e Berliet devem atravessar o rio, a bordo da jangada. Regressarão a Bissau as viaturas Daimler, de cavalaria, em protecção de alguns camiões civis, mal estes descarreguem as mercadorias. Os Marados de Gadamael recebem a notícia de que tão depressa não voltam a Bissau e que nessa noite pernoitarão em Farim e ficarão em reforço ao BCaç 4512/72 (“Firmes, Constantes”). Os homens são apanhados desprevenidos: não tinham levado, sequer, as rações de combate que lhes haviam distribuído, já que esperavam voltar ao COMBIS ainda a tempo de almoçar de faca e garfo. Mas essa dificuldade é superada quando os informam que podem almoçar e jantar na cantina e nas messes de Farim. Quanto a despesas (bebidas, mancarra, tabaco) podem efectuá-las por “requisição” (vales), que as contas irão parar à respectiva companhia, com quem as acertarão mais tarde (e assim viria a suceder, dois meses depois, até ao último centavo!). <br />Entretanto, tomamos conhecimento de que no dia seguinte participaremos em nova coluna, tendo por missão transportar até Guidaje parte do sibe que trouxemos de Bissau. E vamos ouvindo extraordinários relatos da situação operacional naquelas paragens e nos últimos dias: sabemos dos muitos mortos em ciladas recentes e das muitas horas debaixo de fogo que uma companhia teve de aguentar no acesso à aldeia de Guidaje, já sitiada! Nestas histórias, é sabido, quem as relata em geral nem foi participante activo e fala só do que ouviu falar, costumando cometer excessos e exagerar na dramatização dos acontecimentos. Todavia, nos dias que correm, e nos casos em apreço, nem têm necessidade de o fazer, tamanhos são os temores e a carnificina. <br />Importa aqui referir que em mais de um ano de estada em Gadamael a companhia contou com múltiplos ataques de artilharia, sofreu 4 mortes e alguns feridos, quer devido a flagelações quer por causa do accionamento de minas, sobretudo na picada para Guileje. Em Bissau, por múltiplas razões, a actividade operacional passou a ser diferente, e muitos dos homens que dantes não saíam “ao mato” passaram a alinhar por escala nos diferentes serviços e colunas. Isto para referir que entre os efectivos que se preparam para amanhã levar a “lenha” ao destino e ter muito prováveis contactos com o IN (asseguram-nos que uma emboscada num local chamado Cufeu será inevitável), há quem nunca tenha, tão-pouco, feito uma patrulha ou saído da porta de armas.<br />Também por isso, custa a passar esta noite de insónias. Embora reforçados com alguns fuzileiros de Ganturé, soldados africanos e um grupo de milícias – e enquadrados por um capitão do batalhão local, que conhece a zona, – como será possível que dois pelotões possam chegar a bom porto (Guidaje) se, à excepção da coluna de 12 de Maio, outras tropas, até especiais e muito mais bem equipadas, não conseguiram fazê-lo? <br />Os Dias da Batalha<br />(Antecedentes à nossa chegada)<br />Realmente, o cenário não é dado a optimismos. Sabemos que a 8 de Maio o PAICG começou o cerco. Logo nesse dia Guidaje esteve cinco vezes debaixo de fogo (num total de duas horas de fogacho). Uma coluna escoltada por dois pelotões do exército (um grupo de combate da 1ª CCaç do BCaç 4512, de Nema, e outro da CCaç 14, de Farim) e por fuzileiros da DFE-7, que também partira de Farim, viu uma das suas Berliet accionar uma mina anticarro. Seguiu-se uma emboscada que os encurralou e obrigou a recuar, acabando por terem de pernoitar no mato. A emboscada causou alguns ferimentos e, pelo menos um “fuzo” que estava a socorrer um camarada, viria a perder uma perna. Contam-nos em Farim que o PAIGC dispõe de um forte e bem treinado efectivo a muito poucos quilómetros dali, dentro de Senegal, estimado em seis a sete centenas de guerrilheiros com grande formação e treino militares. Conhecendo a estratégia do IN para isolar/envolver a região, o tenente-coronel António Valadares Correia de Campos, transfere-se neste dia, conjuntamente com o comando do COP3, de Bigene para Guidaje.<br />Os mesmos homens voltaram no dia seguinte (9 de Maio) a ser sobressaltados com nova emboscada, ainda de maior envergadura! Os camaradas milicianos que em Farim me alojaram no seu quarto (e, creio, que também aos furriéis Machado e Ângelo Silva), contaram durante a noite que o pessoal só tinha aguentado as quatro a cinco horas que esteve debaixo de fogo por ser portador de um abastecimento extraordinário de granadas para morteiretes. Assim, enquanto os pequenos prato-base não se enterraram no solo e os canos dos morteiros não se derreteram nem lhes derreteram as mãos, conseguiram aguentar-se e responder ao fogo. Entretanto, tinham sido reforçados com pessoal a 1ª CCaç do BCaç 4512, de Binta, e mais duas esquadras do DFE-4, vindas de Ganturé. Mas todos estes efectivos não conseguiram evitar pesadas baixas, entre as quais, quatro mortes, cujos corpos haviam de ficar tombados no caminho, uma vintena de feridos, oito deles com gravidade, deixando também na picada quatro viaturas destruídas e não conseguindo, mais uma vez, chegar ao destino. De notar que, no mesmo dia e quase em simultâneo, Guidaje “lerpou” mais quatro vezes, o que demonstra a grande concentração de guerrilheiros que o IN tem na região… <br />Mais três flagelações se abateram sobre o casario de Guidaje a 10 de Maio. No mesmo dia tenta-se romper o cerco. Uma avultada força, dirigida pelo tenente-coronel António Vaz Antunes (comandante do batalhão de Farim/4512) inicia nova operação que envolve distintas unidades: dois grupos de combate da CCaç 14, de Farim, dois grupos de combate da 38ª de Comandos, uma secção do pelotão de Morteiros 4247, um grupo da Companhia Africana Eventual, de Cuntima, três grupos do BCaç 4512, sendo dois deles de Nema (1ª CCaç) e o terceiro de Jumbembém (2ª CCaç). Mas a coluna também consente um morto (o soldado Manuel Geraldes, precisamente de Jumbembém, cujo corpo foi dilacerado por efeito do rebentamento da mina em que caiu), e dois feridos, que seguiam atrás dele. Logrando ultrapassar todos os impedimentos, nomeadamente as dezenas de abatises, (árvores de grande porte serradas, os troncos tombados atravessando a picada, escassos quilómetros depois de Binta), a coluna consegue chegar ao objectivo, atingindo Guidaje. <br />(Muitos anos depois, em conversa com o primeiro-cabo guineense Fati, atirador do lança-granadas foguete Instalaza de 8,9 cm, (mais conhecido por bazuca), e que ficou ferido neste combate, tive a oportunidade de aquilatar o volume do fogo inimigo e a incapacidade de reacção ofensiva do pessoal da sua unidade para sair por cima neste combate). <br />Ao mesmo tempo, e depois do tiroteio trocado por dois pelotões da CCaç 3, que de véspera patrulhava a região de Samoge, vindos no sentido inverso com a intenção de proteger o itinerário a norte, um efectivo da CCaç19 saiu de Guidaje e a curta distância do mesmo local experimentou cinco contactos com o IN, de que resultaram mais oito (cinco ? Post 5310) mortos e nove feridos para as NT. A situação aqui não foi menos grave porque, rareando as munições para ripostar ao fogo, tiveram de bater em retirada e deixar no mato os corpos de três mortos, não os conseguindo recuperar. <br />No relatório desta acção, o seu comandante descreve assim a violência do contacto de fogo: quot; ...em relação às NT, o IN estava de frente, dos dois lados da picada, e foi impossível fazer uma reacção conveniente pelo fogo. A primeira sessão pelo fogo causou-nos imediatamente três mortos ( ... ) o IN voltou à carga com maior ímpeto, mas as NT já estavam preparadas para o receber e aqui teve as primeiras baixas. Estando um cabo gravemente ferido com um estilhaço no pescoço, o soldado auxiliar de enfermeiro correu para junto dele a fim de o socorrer. Estando ajoelhado a seu lado foi atingido por uma rajada que lhe provocou a morte. Começavam a escassear as munições e foi dada ordem para fazer fogo de precisão, tanto quanto possível. Quando o fogo parou por escassos segundos um dos furriéis tentou chegar junto dos mortos para recuperar os corpos. Quando se levantava para realizar esta acção, pela terceira vez o IN atacou as nossas posições. Notando a impossibilidade de recuperar os corpos dos mortos e porque a falta de munições era quase total, o comandante viu-se coagido a ordenar a retirada... quot; (in sítio do BCaç 4512).<br />A 11 de Maio, os 2º e 4º grupos da 38ª Companhia de Comandos, que no dia 9 se tinha deslocado de Mansoa para Farim integrando uma coluna de abastecimento, avança com a mesma coluna e um pelotão da guarnição de Binta em direcção a Guidaje, levando na frente sapadores que vão analisar as crateras abertas pelas minas rebentadas anteriormente e orientar a picagem a efectuar durante o percurso. A marcha é, por isso, extremamente lenta (cada dois quilómetros demoram cerca de uma hora a percorrer), esperando-se que as minas que vão sendo detectadas na frente da coluna sejam feitas explodir. Deparam-se com um grupo de viaturas desventradas e há também diversos cadáveres pelo chão, muitos já “bicados” por djugudés (abutres, também “jagudis”). Há novas abatises espalhadas a dificultar a progressão. A CCaç 19 sai de Guidaje e vem ao encontro destes homens, mas ao passar por uma ponte é atacada. Não tem grandes condições de reagir e pede apoio aéreo. Passados quarenta minutos chegam dois Fiat G-91 que, no entanto, e apesar dos apelos constantes via rádio, se recusam a abrir fogo porque as forças em presença estarão demasiado próximas. Contam-se muitas baixas neste confronto. Também entre os comandos as coisas não correm bem: ao ouvirem os rebentamentos e o tiroteio da emboscada os homens saltam das viaturas. Um deles, – o primeiro-cabo Filipe, – acciona uma mina A/P e perde um pé. Mais adiante apanham do chão o cadáver dum soldado que também caíra numa mina e ficou irreconhecível, embrulham-no num poncho e levam-no sobre o estrado de um Unimog. No local da emboscada da CCaç 19 o cenário é dantesco, com inúmeros cadáveres espalhados pela picada fora e nas imediações. Ao cabo de mais de 10 horas de marcha, esgotados, atingem Guidaje já no lusco-fusco, refugiam-se nas valas, agachados, e pouco depois o quartel é flagelado, o que aconteceu mais algumas vezes durante essa noite. Já nos primeiros raios solares de 12 de Maio, durante uma flagelação de foguetes 122 e morteiros 82, o soldado comando José Luís Inácio Raimundo é atingido nas valas e morre nesse instante. Finalmente, a coluna de reabastecimento constituída pelos Destacamentos de Fuzileiros Especiais nº (1?) 3 e nº 4 e um grupo de combate da CCaç 3, de Bigene, chega a Guidaje, aonde permanecerá vários dias. <br />Efectivos que chegaram na coluna do dia 10, regressaram a Farim a 13? No dia 13, comandados pelo capitão Alves Jesus, os fuzileiros do DFE-4 tentam caminhar para Farim, e daí regressar a Ganturé. Levam consigo viaturas carregadas de populares. Morre o soldado condutor Ludgero Rodrigues da Silva, da CCS do BCaç 4512. Sofrem uma emboscada, permanecem uma hora debaixo de fogo e são obrigados a regressar. No sentido contrário também uma coluna de reabastecimento tinha saído de Farim, mas não logrou avançar além do Cufeu. Passa mais uma noite e, a 14 de Maio, um forte rebentamento atinge com um estilhaço fatal um grumete do DFE-7. Esta manhã poisa no canto mais recuado da parada um “héli”. Transporta um caixão para levar o corpo do infeliz fuzileiro. <br />Estiveram na Guiné, nos anos da guerra, vinte e seis destacamentos de fuzileiros especiais (dois dos quais, africanos) e onze companhias de fuzileiros navais. No total, estas unidades sofreram oitenta e seis mortos, cinquenta e cinco deles, em combate.<br />A alvorada seguinte, de terça-feira, começa a clarear. Em abono da verdade, neste tempo, pouco ou nada nos importa saber em que dia da semana estamos! Para quê, se os dias correm todos enjoativa e implacavelmente iguais?<br />Talvez só os domingos de futebol se safassem, caso pudéssemos ouvir os relatos que a Emissora Oficial da Guiné transmitia em directo: “atenção amigo ouvinte, constituição da equipa do Benfica: José Henrique; Artur, Humberto, Messias e Adolfo; Jaime Graça e Toni; e na linha avançada temos Nené, Jordão, Eusébio e Simões”. E quando o locutor se esganiçava e gritava «golo!» as casernas também explodiam, mas de alegria! De certa vez o escritor António Lobo Antunes (autor que começou a sua carreira literária publicando grandes livros sobre a guerra colonial) contou mais ou menos isto: um golo do Benfica fazia parar a guerra, interrompia os combates, pois de um lado e de outro das trincheiras, à mesma hora, estava toda a gente a vibrar. Com efeito, muitas pessoas que admirávamos eram oposicionistas do regime e mesmo, encapotada ou clandestinamente, simpatizantes e militantes dos movimentos de libertação nacional. Já se falava de Hilário, um dos melhores defesas de sempre do futebol do Sporting como provável simpatizante da FRELIMO, e, como ele, os benfiquistas Coluna, e até de Eusébio, (figura, no entanto, cujo prestígio foi aproveitado pela propaganda do salazarismo e do marcelismo) e havia outros, por exemplo, no atletismo do SLB, como Barceló de Carvalho (que é o cantor angolano Bonga) velocista e recordista nacional durante vários anos, ou o também recordista nacional e cantor angolano Rui Mingas, cujas cantigas (dois LP’s e vários “singles” gravados desde 1969) não enganavam ninguém nem escondiam a óbvia simpatia pelo MPLA e pelas suas causas. Antes da incorporação no serviço militar obrigatório assisti, com o meu amigo de infância Cipriano Simões, ao lançamento de um dos seus discos, no estúdio da Rádio Renascença, em directo. Suponho que era o “long-play” que incluía o extraordinário tema Monangamba, da autoria do poeta e intelectual António Jacinto, um branco angolano que não regateava as origens do musseque luandense, e que por se meter em “aventuras” apanhou muito mais do que uma dúzia de anos de Tarrafal. Nessa noite (programa “Tempo ZIP”?) eu estava muito longe de imaginar que um par de anos mais tarde teria o privilégio de contar com o António Jacinto como um grande amigo e cuja morte viria a deixar-me profundamente triste e a empobrecer as literaturas de expressão portuguesa. Quanto a Mingas, é nos anos 60/70 uma espécie de cantor oficial da Casa de Estudantes do Império, – ao Arco Cego, em Lisboa, – conhecido “coio” de africanos do chamado reviralho, pejado de amigos dos “terroristas”, mas onde, malgrado a contínua perseguição da PIDE, se divulgam e publicam peças literárias do melhor que existe em língua portuguesa, sobretudo na poesia. O desporto e a cultura criam laços que unem muitos combatentes de ambos os lados da guerra. O comandante N’Dalu (António dos Santos França, que já como ministro e Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Populares de Angola vim também a conhecer pessoalmente), estudou em Coimbra e, antes de fugir do país para ir ter formação militar, suponho que na Argélia e mais tarde em países do leste europeu), granjeou amigos e adeptos a jogar na Académica, onde era conhecido por “França”. Alguém pensou que viria a tornar-se um elemento determinante, mesmo decisivo para a independência de Angola, por comandar e vencer a célebre batalha de Kinfangondo, contra o exército zairense de Mobutu Sese Seko que acompanhava a FNLA e um batalhão de mercenários, quarenta quilómetros a norte de Luanda, nas vésperas do 11 de Novembro de 1975? Por estas e por outras Amílcar Cabral, que considerava ser a luta armada também um acto de cultura, não se cansava de afirmar que a luta de libertação do povo da Guiné e Cabo Verde (e dos povos das outras colónias) não era uma luta contra o povo português, mas contra o regime que oprimia ambos os povos (referindo-se ao fascismo em Lisboa e ao colonialismo em África). E, também por estas e por outras, ao vermos amigos em barricadas opostas, muitos de nós começamos em plena campanha a meditar por que raio andaremos aqui aos tiros uns aos outros?<br />Os Dias de Guidaje<br />15 de Maio<br />Terça? Quarta? Digamos, tão-só, que estava a romper o dia 15. Já tínhamos mastigado um pedaço de casqueiro besuntado com manteiga, bebido um copo de leite tornado em tons de creme com o café-chicória do costume e perfilámo-nos junto às viaturas, aguardando as ordens do capitão, em Farim. Os nossos dois pelotões, um grupo de combate da Companhia Africana Eventual de Cuntima e o GEMIL (Grupo Especial de Milícias) 322, de Jumbembém, seguem motorizados até Binta, que efectivamente não dista muito da vila. Como se circula em razoável piso, o andamento é rápido. Apeamo-nos à chegada, metemos bala na câmara e, sob o comando do capitão Pereira da Silva, da 2ª CCaç do BCaç 4512, de Jumbembém, começamos prudentemente a caminhada que, avisa-me um camarada que conhece o trajecto, não será pêra doce, deveremos dar corda aos sapatos e caminhar entre dezassete a dezoito quilómetros. Organizamos então duas filas em que os homens, mantendo distâncias generosas dos camaradas da frente, se põem em andamento, tão devagar quanto o dita o rigor da picagem, pois é garantida a existência de minas ao longo do percurso. Entre os talvez quarenta metros que separam as duas filas humanas seguem as viaturas, à boleia das quais apenas se vislumbram os condutores, rodeados de sacos de areia, para melhor protecção dos corpos e para fazer peso e evitar que a viatura seja projectada, caso um pneu aziago accione o engenho mais inopinado. Na frente, a rebenta-minas, uma Berliet já amachucada, leva tanto saco sobre as rodas e na carlinga que o condutor se vê em palpos de aranha para espreitar a trajectória a seguir, parece guiar de pé. Não leva mais viaturas no encalço, a que se segue vem lá muito para trás, a não menos de duzentos metros.<br />Ouvimos, bem de longe, dois rebentamentos e depois uma série de rajadas. Parámos. Cada pelotão leva um rádio AVP-1 e somos informados que uma força vinda de Guidaje ao fazer rebentar minas fora emboscada logo em seguida. Soubemos mais tarde tratar-se dos fuzileiros especiais que chegaram a Guidaje no dia 12 (DFO-3 e DFO-4) e que tentavam cruzar-se connosco e regressar a Farim. A única coisa que conseguiram foi o revés de mais sete feridos, cinco na emboscada e dois (graves), cada qual accionando a sua mina.<br />As minas são cada vez mais as armas que mais baixas provocam nesta guerra e as que maiores temores causam dum lado e doutro das barricadas. Usadas isoladamente ou no despoletar de emboscadas, estima-se que mais de metade das baixas das forças armadas foram ocasionadas devido a minas e armadilhas, e isto nos três teatros de guerra. E muitas dessas minas foram detectadas em devido tempo, poderão ter posto os nervos em franja aos sapadores e aos camaradas que, como eu, foram “formados” em Tancos, na Escola Prática de Engenharia, mas nada mais do que isso. Só no ano transacto (1972) o PAIGC teria à volta de quinhentas minas e armadilhas implantadas no terreno (perto de quatrocentas antipessoal e de cem anticarro, das quais foram neutralizadas cerca de trezentas e setenta. E nem todas as armadilhas são montadas com engenhos sofisticados: uma simples granada de mão presa a uma estaca ou num tronco de árvore, com um fio-de-tropeçar atado à cavilha de segurança e esticado a partir do outro lado dum trilho, pode ser armadilha eficiente e, logo, fatal!<br />Damos com as viaturas desventradas pelas minas e por combates recentes. Há peças espalhadas ao longo de centenas de metros, pedaços de bancos, jantes, faróis, chaparia amarrotada como folhas de papel. Mas nem tudo foi destroçado pelo IN. No dia 9 a força aérea avistou sobre as viaturas abandonadas guerrilheiros a descarregar o material, e não era pouco, (recorde-se que pertenciam a colunas de reabastecimento e em geral levavam armas e munições, em especial Morteiros 81 e respectivas granadas). O capitão José Manuel Pinto Ferreira (hoje tenente-coronel piloto-aviador, já reformado) recebeu instruções para bombardear as viaturas por forma a tudo destruir, e assim fez! O bombardeamento foi tão intenso que o ferro-velho se alastrou por alguns quilómetros. Mas veio-se a apurar que as bombas já foram algo tardias, pois muitos morteiros e munições já haviam sido apanhados pelo PAIGC, provavelmente durante a noite.<br />Tentamos contornar os campos de minas, rasgando uma nova passagem, paralela à existente. A planura e o facto da vegetação não ser muito densa facilitam o trabalho. Enquanto na frente as milícias picam o terreno nos desvios que o capitão pretende efectuar, calhou-me ficar instalado cerca de um quarto de hora a metro e meio de um cadáver. Com tanta mosca a levantar voo do meio das larvas e da carne putrefacta e a cirandar sobre a minha cabeça, eu não ter vomitado os fígados já foi acto de grande heroicidade! O estado em que se encontra não permite apurar se é branco ou preto nem que tipo de farda será o que resta da sua. Embora eu não os veja do local onde estou, oiço dizer que também há (ou houve) corpos de guerrilheiros abandonados por ali. O sangue seco tingiu completamente da mesma cor o camuflado, tornando muito difícil a destrinça. Os corpos expostos ao sol e ao calor estão já em decomposição, o cheiro e o aspecto são asquerosos… <br />Os sete ou oito quilómetros que se seguem demoram três horas a transpor. Depois disso, a marcha é mais célere e, por fim, respiramos de alívio e avistamos a aldeia, um punhado de moranças, um grosso embondeiro, palmeiras espaçadas, um pequeno grupo de soldados africanos na recepção a dar-nos indicações, já as sabíamos mais ou menos, caminhar sempre pertinho das valas e procurar abrigos. Aos soldados é indicada a caserna (penso que um antigo armazém) onde devem instalar-se, podendo levantar colchões e mantas logo ali ao lado. <br />Para nos ter deixado chegar ao destino, o PAIGC ou nos preparava um grande castigo ou nem teria sequer desconfiado que alguém nos tinha deitado ao caminho e só por isso corremos o percurso de Binta à fronteira sem uma beliscadura física (mentais permaneceram umas quantas, vida fora).<br />A crise militar já estava de tal modo instalada que, já neste dia 15 de Maio, se efectua uma alta reunião de comandos em Bissau para debater a situação. Spínola convocou os comandantes dos três ramos das forças armadas, – exército, força aérea e marinha, – o comandante adjunto operacional, o chefe do estado-maior do comandante-chefe e os chefes das repartições de operações especiais. Na reunião, o brigadeiro Leitão Marques alerta que o PAIGC “está a preparar as necessárias condições para a conquista e destruição de guarnições menos apoiadas por dificuldade de acesso (Guidaje, Buruntuma, Guileje, Gadamael, etc.), a fim de obter os êxitos indispensáveis à sua propaganda internacional e manobra psicológica, – e isto está já ao alcance das suas possibilidades militares”. <br />O momento não dá para satisfazer grandes curiosidades, mas sempre percebemos que a linha de fronteira com o Senegal fica mesmo em frente, à perpendicular dos nossos olhos. A extrema da pista de aviação já é estrangeiro e numa boa parte do arame farpado bem poderíamos instalar a alfândega! Sobre as árvores que avistamos a cerca de duas centenas de metros garantem-nos que há “turras” a vigiar-nos e a atacar-nos quando querem. Certamente que já deram pela nossa chegada, contemos então que não demorem a dar-nos as boas-vindas com o fogo de artifício de canhões sem recuo, morteiros e foguetes (passariam, no entanto, as primeiras horas sem se confirmar o esperado ataque).<br />Por toda a parte existem valas, algumas de escavação recente. Circundam todo o quartel e ligam todos os edifícios, um por um, independentemente da dimensão. O furriel Machado, que é de Valpaços, vem com o contacto (leia-se cunha) de um furriel também transmontano, de Vimioso, que ali se encontra, e de um primeiro-cabo do pelotão de artilharia, para cujo abrigo nos dirigimos eu, o próprio Machado e o Ângelo Silva. O abrigo do Obus 10,5 ao fundo, é subterrâneo e a dois passos da fronteira. Em redor do Obus há uma circunferência desenhada por bidões atulhados de terra e bem encostados uns aos outros. No sítio onde faltam dois bidões é a entrada, que dá directamente acesso às valas e à portinhola do quarto (abrigo subterrâneo). <br />O “dono” do quarto é um furriel pertencente ao Pelotão de Artilharia nº 24, que está ausente, de férias na metrópole. Deixara naquele buraco meia dúzia de coisas, entre as quais a cama, um baú e um gravador de bobinas vertical Akay, (que virão a desfazer-se…) O quarto é acanhado. Da porta descaem cinco degraus irregulares, altos e toscos, e do lado esquerdo, encostadas cada qual à sua parede, estão duas camas, – a dele e a ocupada pelo nosso cabo artilheiro que o ficou a substituir naquele posto. Não cabe mais nada, o “corredor” entre as camas quase nem permite que duas pessoas se cruzem. Cá em cima, à superfície, o tecto do abrigo lembra um enorme quisto. Presumo a existência de uma placa de cimento, que não é visível por ter em cima duas fiadas de troncos de madeira bem unidos e cobertos de uma camada redonda de terra, como as que cobrem muitos fornos de aldeia. Aparentemente, é o local mais seguro pois não se imagina que uma granada qualquer consiga destruir um tecto daqueles. <br />16 de Maio<br />Para aqui estamos, os 200 que já cá “moravam” (essencialmente a companhia africana nº 19 e o pelotão de artilharia de 10,5 mm), mais os acabados de chegar. Se o IN nos poupou às boas-vindas, o certo é que não foi preciso esperarmos vinte e quatro horas para levarmos com a primeira chuva de granadas. Regista-se um morto, – o soldado Martinho Cá, apontador de metralhadora da CCaç 3. Também um dos nossos homens (CCaç 3518) é ferido ligeiramente com o ricochete de um estilhaço, mas nada de grave.<br />Se no sul nos diziam que quem comandava directamente os guerrilheiros era o temível Nino Vieira, aqui também não fazem a coisa por menos: os renhidos combates que se estão a travar em redor de Guidaje mobilizam largas centenas de homens do PAIGC, que cada vez mais nos apertam o cerco, comandados pelos já conhecidos (de nome, pelo menos) Francisco Mendes e Manuel dos Santos.<br />Francisco Mendes (também Chico Mendes, ou Chico Té) esteve com Amílcar Cabral e outros dirigentes históricos nos primeiros cursos de formação, em Praga (antiga Checoslováquia). Foi assassinado em 7 de Julho de 1988, após uma independência pela qual lutou a vida inteira. Mas diz a sabedoria popular, em crioulo, que “dinti mora ku lingu, ma i ta daju i murdil” (os dentes moram com a língua, mas às vezes mordem-na – provérbio guineense)! Chegaria a primeiro-ministro da Guiné-Bissau. Quanto a Manuel dos Santos (Manecas), que além de dirigir guerrilheiros é um dos comissários políticos que coordena quem vive nas “áreas libertadas” e, nesta altura, comanda a Frente Norte, é responsável pelas operações dos mísseis terra/ar em todo o território. Estivera na União Soviética a receber formação específica para operar e ensinar a manejar os Strela. Será ministro da informação logo no primeiro governo da Guiné-Bissau, após a retirada das autoridades portuguesas. Nasceu em Santo Antão, Cabo Verde, em 1943 e será dos raros dirigentes cabo-verdianos do PAIGC que permanecem nos governos de Bissau depois do “14 de Novembro” (golpe de estado de Nino Vieira). Logicamente que na investida contra Guidaje estiveram envolvidos mais quadros do PAIGC, entre eles, Manuel saturnino da Costa, que chegaria a ser secretário-geral do partido e primeiro-ministro da Guiné-Bissau independente, e alguns intermédios, como Lúcio Soares, Joaquim Biagué e Bobo Queita.<br />Logo a seguir ao primeiro ataque, o furriel Bernardo Monteiro e os alferes Igreja e Cruz foram não sei onde desencantar mais duas camas e colchões, trouxeram-nas para o abrigo e, sobrepondo-as às existentes, montaram-nas em camarata. O quarto do furriel artilheiro ausente, onde há duas ou três semanas só ele residia, transformou-se num dormitório apertado, onde passamos a pernoitar sete almas. Virá também a juntar-se ao grupo o furriel Fernandes, da CCaç 19 (o tal outro transmontano que alguém de Farim indicou ao Machado).<br />17 de Maio<br />Acordo estremunhado sob o efeito de novos ataques de artilharia, com granadas a cair bem no interior do quartel. Os Obus 10,5 reagem prontamente sob as ordens do comandante (tenente-coronel Correia de Campos) e fazem um longo batimento de zona, conseguindo calar os disparos inimigos. Os canos são também apontados para o interior senegalês, dizem-me que visam certamente atingir a base de Koumbamory. São disparados mais de 40 tiros de Obus. O nosso cabo artilheiro que coabita o quarto subterrâneo que “ocupámos” confidenciou-me que em todo o quartel restam unicamente 39 granadas de calibre 10,5 e que as deve poupar para qualquer eventualidade futura. O certo é que nos dias seguintes a artilharia deixará mesmo de reagir aos repetidos ataques inimigos, essa tarefa ficará a cargo dos Morteiros 81, talvez somente para marcar presença, para demonstrar que estamos vivos!<br />Entretanto, está em andamento a grande operação Ametista Real. Com efeito, prepara-se uma acção de gigantescas proporções para o envolvimento da principal base inimiga. O Objectivo é aniquilar ou reduzir a capacidade bélica de um IN que contará com cerca de 650 efectivos concentrados ali à volta, uma acção que ponha fim ao actual isolamento da guarnição de Guidaje, que nos permita evacuar os feridos e tratar do reabastecimento de géneros, de medicamentos, até mesmo de urnas!... <br />18 de Maio<br />No cerne da operação, que será comandada pelo major João de Almeida Bruno (antigo comandante do Centro de Operações Especiais) e pelos capitães António Ramos (agrupamento Romeu, do tenente Quiseco), Matos Gomes (agrupamento Bombox, do tenente Zacarias Saiegh) e Raul Folques (agrupamento Centauro, do tenente Jamanca), está o Batalhão de Comandos Africanos. A par do agrupamento Romeu desloca-se o Grupo Especial (do Centro de Operações Especiais), hábil em demolições, comandado pelo alferes Marcelino da Mata.<br />O capitão António Ramos já faleceu; os capitães Raul Folques e Matos Gomes são hoje coronéis. Este último tem sido porventura o militar mais empenhado em estudar e contar a História das guerras coloniais (nas três frentes – Guiné, Angola e Moçambique); e também tem obra relevante publicada no domínio da ficção/literatura de guerra, sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz (destaco Nó Cego, obra inspirada na operação Nó Górdio, em Moçambique ordenada pelo general Kaúlza de Arriaga e condenada por toda a comunidade internacional), entre os seus romances de ficção ASP – De Passo Trocado, Soldado, Os Lobos Não Usam Coleira, este adaptado ao cinema por António Pedro de Vasconcelos com o título”Os Imortais”, O Livro das Maravilhas e Flamingos Dourados).<br />Os cerca de 450 homens envolvidos na Operação Ametista Real saem este sábado de Bissau e chegam a Ganturé, transportados a bordo de uma LDG (lancha de desembarque grande) e duas LFG (lanchas de fiscalização grandes). <br />A base fluvial de Ganturé, a 5 quilómetros de Bigene e na margem do Cacheu, quase não tinha estruturas. Contou-nos um marinheiro, de rosto bem queimado pelo abrasador sol africano e que chefiava uma esquadra, que foi o Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4 que recebeu a incumbência de as (re)construir, desde o mês passado. Assim, receberam em Abril, por via fluvial, uma montanha de bidões de combustível vazios, a que haviam que cortar as tampas e encher de terra, com o que montaram a estrutura lateral do “quartel”, colocando por cima as chapas de zinco, como era de uso na engenharia tradicional dos tempos de guerra. Em simultâneo, cavaram abrigos subterrâneos e as imprescindíveis valas, não esquecendo o insubstituível bar para as horas de ócio…<br />Diz-se que o batalhão de comandos africanos é especializado em acções fora do território, talhado para intervir nos países vizinhos. Daí os comandos vestirem muitas vezes fardas turras e usarem, também com frequência, o mesmo armamento (à medida que se vão capturando as Kalashnikov, os lança-granadas foguete RPG-2 e RPG-7, as espingardas automáticas Simonov, as metralhadoras ligeiras Degtyarev e pesada Goryounov, utilizadas pelo PAIGC)… <br />As Kalashnikov usam balas de calibre idêntico (7,62 mm) às das G3 que nós utilizamos. Manejam-se, contudo, com muito mais facilidade: desde logo, por serem mais leves (menos 225 gramas) e quinze centímetros mais curtas; e porque os seus carregadores comportam trinta cartuchos, mais dez que os vinte da nossa G3. Ora, salvo em situações/operações excepcionais, cada soldado das NT leva para o mato um carregador na arma (permite-lhe dar vinte tiros) e quatro cartucheiras no cinturão (cada uma com um carregador de vinte, o que permite dar oitenta tiros, – cem no total); enquanto que um guerrilheiro do PAIGC, com menos peso e melhor operacionalidade, pode disparar por cento e cinquenta vezes…<br />19 de Maio <br />De madrugada, depois de breve paragem em Bigene, de onde saíram por volta da meia-noite, os comandos africanos alcançam os caminhos de Koumbamory e aguardam pelo ataque aéreo e em força dos Fiat G-91, cujo bombardeamento à base, por volta das oito horas e vinte minutos, consegue destruir paióis do PAIGC. A operação nem começa mal, pois sabe-se que a base IN se situa algures naquela região, mas a sua o localização exacta é desconhecida. Nós, na aldeia de Guidaje, os que conhecemos mal os azimutes do terreno, ouvimos rebentamentos sobre rebentamentos e de início pensámos ser Bigene a “embrulhar”. A antiga sede do COP3 fica longe, a dezanove quilómetros e na margem do Cacheu, e as bernardas que ali rebentam só se ouvem muito longinquamente desde que o vento sopre de feição. Afinal, quem desta vez “embrulha” mesmo são as forças IN! <br />Tropas portuguesas a entrar em território estrangeiro não estaria muito de acordo com as normas do Direito Internacional, nem mesmo invocando o muito controverso “direito de perseguição”. Militarmente, se os acessos a Guidaje estavam vedados por todos os lados menos pela linha de fronteira (norte), tinha toda a lógica esta incursão à retaguarda do IN. Dir-se-á que também o PAIGC tinha as bases do outro lado, mas aos olhos do Mundo (entenda-se, das Nações Unidas) trata-se de um movimento de guerrilha e não de um Estado soberano (pelo menos até 24 de Setembro de 1973, em que a proclamação de independência em Madina do Boé viria a ser reconhecida internacionalmente, de imediato, por 86 países, não apenas os aliados mais tradicionais do PAIGC, como os países socialistas, africanos, a China e até europeus, – casos da Suécia e da vizinha Noruega, cujo governo aprovou um subsídio solidário à guerrilha em 27 de Março de 1973, – mas em especial os países “não alinhados”. E ter bases em território estrangeiro, não é a mesma coisa do que desferir ataques a partir das mesmas, embora por vezes déssemos conta disso mesmo. O isolamento de Portugal era tão grande no Mundo que os líderes da guerrilha na Guiné, Angola e Moçambique haviam sido recebidos no Vaticano, em Junho de 1970, pelo Papa Paulo VI, o mesmo que três anos antes viera a Fátima e se recusara a aterrar em Lisboa para não participar em cerimónias oficiais ao lado de governantes da ditadura, preferindo aterrar em Monte Real. Em Roma, realizava-se nesses dias (27 a 29 de Junho) a Conferência Internacional de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas. A delegação que Paulo VI recebeu era composta pelo angolano Agostinho Neto, o moçambicano Marcelino dos Santos e o guineense/cabo-verdiano Amílcar Cabral. Este foi o porta-voz que, entre outras coisas, disse: “pedimos a Sua Santidade que interceda junto do Governo de Portugal para que respeite as leis internacionais e a posição da Igreja definida na Encíclica ‘Populorum Progressio’ para que os colonialistas portugueses, que se afirmam católicos, cessem os massacres das nossas populações, principalmente dos velhos, mulheres e crianças”. O Papa respondeu, “estamos do lado daqueles que sofrem”, “somos pela Paz, a liberdade e a independência de todos os povos, em especial, dos africanos”. Tudo isto à revelia da hierarquia da igreja católica portuguesa, que muito maioritariamente (não foi só o cardeal Cerejeira, longe disso), sempre se evidenciou servil ao poder, raras vezes se demarcou da ideologia e das atrocidades da ditadura, quer em Portugal quer nas colónias. Talvez seja essa a principal razão porque muitos da minha geração saíram agnósticos, – termo adocicado para não dizer ateu… E pensarmos, muitos de nós, que o “argumento” da defesa do colonialismo é o de espalhar a fé e a “civilização cristã”!? Para o ilustrar, recordemos um excerto de uma mensagem do Presidente da República, general Óscar Carmona, no V Centenário do Descobrimento da Guiné: “quinhentos anos de presença nessa região representam uma sobre-humana soma de esforços despendidos, primeiro, no reconhecimento da costa, depois na penetração no Continente, no comércio e na evangelização; por fim, na ocupação e pacificação, abrindo ao trânsito seguro de todos os homens os caminhos do mato e levando à população indígena as luzes da cultura europeia e cristã” (sublinhados meus). Palavras para quê!?<br />Numa curta flagelação morre num abrigo subterrâneo, vítima de granada perfurante, um soldado da CCaç 19 que ali tinha sido posto já muito desalentado, crivado com estilhaços de uma morteirada que o atingiu dias antes, quando ia a atravessar a parada.<br />Passa das nove quando os comandos (o agrupamento Bombox na frente) efectuam o assalto, – como se fosse um golpe-de-mão, – provocando o primeiro contacto com o PAIGC, logrando destruir grande quantidade de material e provocar baixas importantes. Os combates duram a manhã inteira, numa verdadeira batalha com explosões incessantes de granadas-de-mão, tiros e rajadas de todo o calibre. A certa altura têm de se retirar, também em consequência da reacção do IN que, de surpresa, investe com blindados que nem disparos de bazuca conseguem destruir. A retirada é penosa, têm de transportar dez corpos de camaradas abatidos e progredir no terreno com mais de uma vintena de feridos graves. Perdem três camaradas pelo caminho. No termo do dia o batalhão de comandos chega ordenadamente a território português e recolhe-se em Guidaje, tal como estava programado.<br />As baixas causadas ao IN foram em número bem superior, estimando-se em 67 mortos (entre os quais se contariam uma médica e um cirurgião cubanos e quatro mauritanos), e um incontável número de feridos. Quanto ao material destruído: vinte e dois depósitos de material de guerra, duas metralhadoras anti-aéreas, cinquenta mil munições de armas ligeiras, cento e doze costureirinhas (pistolas PPSH), quinhentas e sessenta granadas-de-mão, quatrocentas minas antipessoal, trezentas espingardas Kalashnikov, vinte e uma rampas de Foguetes 122, onze Morteiros 82 e mil e cem granadas para os mesmos, cem Morteiros 60, cento e trinta e oito RPG-7 e quatrocentos e cinquenta RPG-2.<br />A base de Koumbamory ainda recentemente recebera seis dezenas de combatentes recém-formados na Argélia e em Cuba e era confirmadamente o ponto principal de abastecimento aonde os guerrilheiros se iam municiar. Veremos, doravante, até que ponto este rombo causado pela investida dos comandos fará diminuir a sua importância.<br />O PAIGC possui outras bases de reabastecimento no país do paladino da teoria da negritude Léopold Senghor (em parceria com o também poeta martiniquense Aimé Césaire), como a localizada em Zinguinchor, a dez quilómetros da fronteira, mas mais para o litoral, e onde ainda se fala fundamentalmente o crioulo “português” e são frequentes apelidos como Barbosa, Silva, Fonseca… A cidade é a capital de Casamance, território que outrora foi pertença da Guiné Portuguesa e que se estende até ao mar e a todo o comprido da língua da Gâmbia. Na sequência da Conferência de Berlim, em que as potências coloniais ditaram entre si a partilha de África, – com as sangrentas consequências que não se sabe se encontrarão solução nem ao longo do século XXI, – essa região guineense foi trocada com a França por uma parcela do sul (zona de Cacine), a 13 de Maio de 1886. Casamance, graças às margens do rio com o mesmo nome, produz grandes quantidades de arroz, e não só, sendo considerada o celeiro do Senegal, zona agrícola e de potencial turístico, cujo território para norte se vai tornando cada vez mais árido devido à progressão do deserto do Sahel. Graças à troca, a França reconheceria a Portugal o “direito” de exercer a sua influência nos territórios do chamado Mapa Cor-de-Rosa, (a ambição dos colonialistas portugueses de então, de unir Angola a Moçambique, de costa a costa do continente negro; Capelo e Ivens fizeram a viagem entre Luanda e Tete cerca de dois anos antes, mas tal sonho seria desfeito pelo Ultimato de tubarões mais poderosos: os ingleses, que com tal mapa veriam contrariado o plano de domínio britânico “do Cabo ao Cairo”). Bastou aos dois estados uma simples reunião a nível de embaixadores para efectuar o negócio! Falar português à volta de Zinguinchor é um acto de resistência. Ainda hoje, à beira de trinta e sete anos sobre a proclamação da independência da Guiné-Bissau, o povo de Casamanse (“Casa di Mansa”, em crioulo), étnica, social e culturalmente mais próxima de guineenses do que de senegaleses, luta pela autonomia, havendo também quem sustente a ideia da reintegração no território da Guiné-Bissau; e ainda hoje a Guiné-Bissau e o Senegal se dirimem em fóruns e tribunais internacionais pela posse do território, se bem que por razões bem mais interesseiras: veio a descobrir-se no respectivo solo a existência de bauxites e de outras riquezas capazes de reduzir a pobreza e a falta de recursos de ambos os países, e até nas águas territoriais, – que se alteraram em resultado da troca, mas cuja delimitação as antigas potências nunca chegaram a definir com clareza, – há “garantias” da existência de reservas de petróleo. E é aí que entram em jogo interesses como os dos franceses, que no Senegal se opõem ao direito do povo de Casamanse à autodeterminação e à independência, mas que fazem precisamente o oposto em Angola, através de “lobbies”, manobras e financiamentos, – atribuídos, nomeadamente, à ELF Aquitaine, – no que concerne ao incentivo aos separatistas no enclave de Cabinda (aonde, por mera coincidência, há petróleo a jorros)… Ora, esta “consanguinidade” entre as populações do norte da Guiné e do sul do Senegal cimenta laços fortes e mesmo familiares entre povos de idênticas etnias, hábitos e costumes (balantas, mancanhas, felupes (diolas), manjacos e mesmo fulas e mandingas). Nestes anos de guerra imensos refugiados instalaram-se em Casamanse com o apoio dos residentes locais. Ao contrário, o presidente Senghor, teme o que possa acontecer, pois falhado o projecto “Senegâmbia” (anexação da Gâmbia pelo Senegal) quer manter o país com as fronteiras actuais. Com efeito, Casamanse nunca foi integrada legalmente e nem desde a independência senegalesa em 1960 reconhece a soberania de Dakar. Estamos em 1973 e neste momento vigora um acordo de coabitação por um período de 20 anos, só que em conflito permanente. Não espanta que o PAIGC se movimente tão bem na região… Porém, nem sempre foi assim. A linha política de Senghor simboliza uma aposta de alguma social-democracia europeia para África (da própria “Internacional Socialista”, já que o seu modelo é único no continente, permite eleições periódicas, embora a democracia seja limitada, pois partidos que cheirem a marxismo são excluídos de nelas participar, como o PAI do actual presidente Abdulai Wade)! A grande questão é que ao longo dos anos o Senegal nunca evoluiu nem resolveu melhor os problemas da fome e do subdesenvolvimento do que qualquer outro regime em África que não estivesse em guerra interna ou externamente. Ora, além de Zinguinhor o PAIGC tem as bases de Yeran e Kolda que, por via rodoviária, rapidamente dão apoio às forças que no terreno fazem a vida negra a Bigene e Guidaje, pelo menos... Mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo os apoios de Senghor ao PAIGC foram tímidos. Outrora, o presidente do Senegal via com mais simpatia a chamada FLING, movimento impulsionado por ele próprio com o beneplácito do sistema colonial português, cuja fundação visou dividir os “independentistas”, aproveitando ter à frente um par de ambiciosos intelectuais que se manifestavam claramente contra Amílcar Cabral. Senghor temia que um novo país liderado por Cabral se aliasse militarmente ao de Sekou Touré (Conakry) e juntos consumassem uma ideia antiga do lado francófono, de criar uma grande Guiné, potência regional. Mas o correr do tempo desmentiu tal propósito. Também lhe fazia confusão a diversidade de apoios que o PAIGC tinha no Globo inteiro, da China aos países socialistas e africanos, passando por muitas forças progressistas europeias e sul-americanas. Apesar de tudo há muito que o PAIGC tinha sede em Dakar (Rue Félix Faure) e neste período havia adquirido novos edifícios no centro da cidade para ampliar a sua representação. As mais recentes tentativas de diálogo entre Senghor e Spínola, para eventualmente patrocinarem uma solução política do tipo neo-colonial, fracassaram devido à liminar recusa de Marcelo Caetano, que preferia uma derrota militar a um entendimento com os “terroristas”. O radicalismo do ditador contribui para que Senghor abra, noutros moldes, as portas à actividade dos guerrilheiros no território senegalês. As pressões internacionais (ONU, OUA, Organização dos Países Não-Alinhados, etc.), e também a clarificação das dúvidas que Senghor tinha em relação à sua política futura quanto a uma eventual tentativa de anexação de Casamance, ou um entendimento sobre esta matéria, o terão feito mudar de ideias. Foi elaborado um protocolo de acordo quanto ao estacionamento e transporte de armamentos no território. No entanto, o que está demonstrado é que houve quase sempre colaboração entre militares do Senegal e a tropa portuguesa. Alguns exemplos: o comandante do destacamento do exército senegalês em Nianao contribuía para a normalidade da situação militar em Pirada; o comandante de Setikénie jurava a pés juntos que pelo seu território os guerrilheiros nunca passariam para atacar a Guiné (Cambaju); e o comandante da CCaç 4147 (Sare Bacar) escrevia à PIDE a enaltecer o papel do agente Raul Alfredo Silva “nas relações estabelecidas com as autoridades do Senegal” (bla bla bla).<br />Nesse mesmo dia os dois pelotões da CCaç 3518, mais os militares que connosco chegaram no dia 15 (o grupo de combate da Companhia Africana Eventual de Cuntima e o Grupo Especial de Milícias 322, de Jumbembém), organizamos uma tentativa de regresso “a casa”. Na frente, na cola dos picadores, segue também pessoal dos DFE-3 e DFE-4. À partida, a escolha da data não poderia ser melhor, julgamos que as forças da guerrilha estão prioritariamente envolvidas na defesa de Koumbamory. Puro engano: arcámos com uma emboscada violentíssima ao alcançarmos a fatídica casa amarela no Cufeu, onde diversos combates se tinham travado desde a primeira semana do mês. O campo de minas alargou-se e diversas foram accionadas, até por membros da população que, querendo fugir ao inferno que se vivia também na tabanca de Guidaje, se tinham agarrado às viaturas, forçando a boleia, para irem procurar refúgio em Binta, Farim, ou o mais longe possível. <br />Quando a emboscada rebentou, uma “roquetada” lateral cortou ramos da árvore sob a qual me abrigava e que me caíram nos ombros. Assustei-me, olhei para o lado de onde veio o disparo e precipitei-me a disparar às cegas, desperdiçando mais de meio carregador de munições. Outras ogivas de lança-granadas foguete RPG vieram da frente da coluna, gemidos sibilantes que pareciam passar à tangente das nossas cabeças e troar pela estrada fora, não dava para ver aonde. A essas não podia responder, sob pena de pôr em risco o físico de outros camaradas, na linha de fogo. De súbito, dou com uma jovem mulher a saltar da MG estacionada à força trinta metros à minha frente, desatar a correr e pisar de seguida uma mina, dando um pinote tremendo e vindo estatelar-se não muito afastada do local onde me encontro. Ali ficou, imóvel, olhos em pânico, mas sem visíveis ferimentos além do sangramento do pé e alguns rasgões no pano-de-saia. Já não me lembro quem foi o soldado que com a faca de mato lhe rasgou um pedaço desse pano e lhe atou o pé a ver se o sangue estancava, enquanto outro gritava pelo enfermeiro, que já andava a acudir noutras paragens. As balas inimigas não param de silvar sobre nós e cada qual rastejou e abrigou-se o melhor que pôde, buscando com a mira da G3 um alvo que mexesse no horizonte próximo, mas daquele local não havia inimigos à vista. Um pedaço de capim que pareceu mexer-se logo foi imobilizado por uma M-62 (granada ofensiva) que um dos nossos soldados arremessou com notáveis impulso de braço e pontaria. Mas não se confirmou que tivesse causado ferimentos a quem quer que fosse.<br />O sopro da mina pareceu-me de “efeito dirigido”, ou seja, amputou-lhe metade dum pé e deixou um corte tão perfeito como se desferido por uma catana afiada (um “terçado”, na Guiné). Apesar da minha especialidade ser “minas e armadilhas”, não pude certificar-me pessoalmente se o modelo dos novos engenhos utilizados pelo PAIGC na região era o que se dizia: minas anti-picagem, – quer as antipessoal quer as anticarro. Teriam uma pequena bateria, ou pilha, no interior, e a detonação era provocada por duas folhas de estanho paralelas, uma usada como pólo positivo e outra negativo, disfarçavam-nas com uma finíssima camada de terra por cima e a mais leve pressão da “pica” provocaria o rebentamento imediato. À testa da coluna, um picador, curvado para a frente no desempenho da sua tarefa, accionara instantes antes uma “coisa” idêntica e o “corte” que ficou no corpo apresentou-se nos mesmos moldes. Só que, – isso sim, fui confirmar quando terminou a troca de fogachal, – o suposto efeito de sopro fez-lhe desaparecer o queixo e o rosto; o que restou da cabeça ficou espantosamente guilhotinado, na vertical. Tal como na “badjuda” nenhum outro ferimento se via no corpo, nem uma beliscadura, já que a mina provocou um cilindro vertical de deslocação de ar, mas não produziu estilhaços… Ainda assim, o soldado Vieira saltou para cima da MG onde sabia estar um Morteiro M2 60 mm e caixas de granadas, acartou o que pôde para a berma da picada (regos abertos pelos rodados das viaturas), afastou-se da ramaria das árvores e lançou uma série de projécteis na direcção de onde lhe parecia que o ataque tinha mais força. <br />Quando a situação parecia mais calma, – pois já não sentíamos tiros na nossa direcção, – através do rádio-banana que o nosso cabo das transmissões lhe cedeu, o alferes Igreja recebeu ordens para que os dois pelotões d’Os Marados de Gadamael mudassem de posição, formando um “L” em relação à posição da coluna, isto para evitar tentativas de envolvimento por parte do IN. Quem mostrou má cara por ter que se erguer e arrastar para outro lado foi o alferes Cruz. Estava branco (provavelmente tão branco como eu estaria, mas faltou-me ali o espelho para comparar), enjoado com o cheiro intenso dos explosivos. Tinha chegado recentemente à companhia, vindo da metrópole em rendição do Dino Álvaro Mendes Duarte, também alferes miliciano “Marado” mas, quem sabe se em boa ou má hora?, transferido para a companhia africana sediada em Bedanda (CCaç 6), – onde também passou as “passas do Algarve”, o mesmo sucedendo ao furriel miliciano Manuel Fernando Urbano Neves e, mais tarde, ao furriel Manuel Baptista Fidalgo, – pelo que, na sua condição de, relativamente, periquito (o Cruz chegou a Os Marados a 12 de Outubro de 1972 e no início de 1973 foi temporariamente deslocado para Bambadinca como instrutor do 1º turno de milícias), estava a “tirar os três” no mato, e logo daquela maneira… <br />Na frente da coluna, o combate foi violento, o ataque frontal em linha do PAIGC causou muitos danos logo de início, ferindo alguns camaradas. Não foi fácil ao pessoal recompor-se e reagrupar-se. Passados vinte e tantos minutos, deixámos de ouvir o matraquear das Costureirinhas e das G3, pois assomam-se dois Fiat que cortam o ar em voo rasante sobre as árvores, bombardeiam duas vezes, – e de que maneira!, – a cento e cinquenta metros de nós, ou talvez um pouco mais. Depois passam novamente em sentido contrário e o chão volta a estremecer por duas vezes, a cada embate das “ameixas” que deviam ser das de 200 quilos! Logo a seguir, – a dois, três quilómetros? – ouvem-se disparos secos e estranhos assobios. No céu, os mísseis Strela (Flecha, em russo) perseguem os aviões e deixam um estreito rasto de fumo branco a marcar o itinerário. Para se defenderem, os Fiat sobem a pique, o mais rápida e verticalmente que podem, até que os mísseis perseguidores rebentam lá nas alturas. É certo que acima dos dez mil pés deixam de correr perigo, mas a verdade é que, a essa altitude, também deixam de o causar ao IN, pois a tamanha distância dificilmente têm êxito a escolher um alvo e a bombardeá-lo... Os aviões desta vez não são atingidos, mas escusado será dizer que o nosso apoio aéreo termina neste momento. E respondendo ao ímpeto inicial da emboscada e à tentativa de envolvimento que efectivamente se seguiu, muitos de nós ficamos sem munições de G3. Também o pessoal das metralhadoras e de armas pesadas precisava de se reabastecer com granadas. Embora sem se temer nova investida do IN, pelo menos de imediato (as bojardas da aviação provocaram estragos em quem nos atacou) o pronto retorno a Guidaje foi inevitável.<br />Houve o registo do morto (picador) e de sete feridos, mas suponho que sem contar com os elementos da população, principalmente a jovem guineense que perdeu o pé. Entre Os Marados de Gadamael nenhuma baixa há a lamentar. Mas todo o pessoal envolvido na coluna, que tinha por objectivo atingir Farim e zarpar dali para fora, mas que agora é obrigado a recuar, fica ainda mais desmoralizado por não conseguir abandonar a tormentosa guarnição de Guidaje e por não ter perspectivas de como e quando conseguirá romper o cerco movido pelo PAIGC. Com o apoio limitado da aviação e com os acessos cortados, os feridos sem evacuação possível e corpos a agonizar, a situação é já de algum desespero. Psicologicamente abatidos, com munições a escassear, começamos a temer um ataque ao arame.<br />20 de Maio <br />As flagelações sucedem-se dia após dia e praticamente todos os edifícios já sofreram danos. O nosso abrigo, qual cabeça de cogumelo pousada no chão, e muito poucos outros telhados são o que resta de construções por esburacar. Sem conseguir dormir, fumo mais um Português Suave e caminho ao longo das valas repletas de homens deitados no fundo. O dia rompe, preguiçoso. Avisto Marcelino da Mata, palma da mão direita para cima, quatro dedos a dobrarem-se e esticarem-se com intermitência, “toca a levantar”, assim acorda os homens que pernoitaram na mesma vala ziguezagueante que nós, só que lá no extremo oposto.<br />Ele e este seu grupo já tinham estado connosco em Gadamael, (na altura, um grupo reduzido de dezasseis ou dezoito elementos), de lá saíram para uma operação de que não tivemos informações. Só sei que lhes abri as armadilhas à saída da pista de aviação e, mais adiante, em Viana, para poderem passar. Seguiram acompanhados do guia Queba Mané, (que regressou sozinho quarenta minutos depois) em direcção a Gadamael Fronteira (daí em diante era chão da Guiné-Conacry). Não os vi carregados de mochilas e mantas, nem de bornais e rações de combate, acartavam apenas dois cantis de água cada um e cinturões pejados de armamento. Só voltaram à base passados três dias, onde um batelão os aguardava para os transportar, julgo que para Cacine. Era um grupo mítico de que se contavam estórias, inclusive as mais idiotas e macabras, tais como a de coleccionarem orelhas de inimigos abatidos ou apanhados, serem antropófagos, levarem apitos e desatarem a correr atrás do IN disparando e apitando ao mesmo tempo, etc.. Mas estas estórias (verdadeiras ou não, tão condenáveis como os actos, porém, que ficaram na História!) apenas se contavam para ilustrar a destreza destes homens, alguns deles evidenciando bastante juventude ainda, durante as operações mais secretas e bicudas para onde eram mandados.<br />Ouviram-se rebentamentos breves vindos de leste, alvitram-se bombas lançadas pela aviação nos arredores de Fajonquito. Quanto a nós, a partir de hoje veremos que consequências teve a operação levada a cabo pelos comandos africanos e a destruição da base de Koumbamory, fosse ela total ou parcial. Será que vão reduzir-se os ataques?<br />Antes da investida dos comandos e do bombardeamento da força aérea, o PAIGC dispunha no local das seguintes unidades: corpo de exército 199/B/70, com quatro bigrupos de infantaria e uma bateria de artilharia; corpo de exército 199/C/70, com cinco bigrupos de infantaria e uma bateria de artilharia; grupo de foguetes da frente norte, com quatro rampas; três bigrupos de infantaria, um grupo de reconhecimento e uma bateria de artilharia do CE/A/70, deslocadas de Sare Lali (zona leste); e um pelotão de morteiros de 120 milímetros.<br />O pessoal do batalhão de comandos arranca em direcção ao sul. Desloca-se a pé (em bicha de pirilau e sem viaturas), não podendo assim transportar nem os dez mortos resultantes dos confrontos de Koumbamory nem os vinte e dois feridos graves resultantes da operação Ametista Real. Há outros homens que, com mazelas e ferimentos mais ligeiros não estão em condições de aguentar a marcha, ou de a consumar com segurança e ficam também em Guidaje.<br />Os dez corpos, cuja identificação mencionarei mais adiante, virão mais tarde a ser aqui sepultados. Não há notícia dos três desaparecidos em combate, cujos corpos ficaram tombados em território senegalês. Em toda a acção, os comandos africanos dispararam 26.700 munições de G3 e 4.600 de Kalashnikov (todas de 7,62mm), 292 granadas de lança-granadas foguete (6 e 8,9 cm), 71 granadas de RPG-2 e RPG-7, 195 munições de morteiro e 268 granadas de mão (ofensivas e defensivas). <br />Num terreno descampado do lado de lá da fronteira, três crianças de varapaus controlam de longe a numerosa manada que levam a pastar, o que há muito tempo não é habitual ver-se por ali, até porque existem áreas com mais e melhor verdura para o efeito. <br />Alguém sugeriu mais tarde que o PAIGC desconfiara que o exército português havia minado aquele corredor fronteiriço, para vedar a passagem. Dificilmente as NT conseguiriam colocar minas nesse terreno sem despertar a atenção dos vigias, que controlariam permanentemente os nossos movimentos. Na impossibilidade de enviar picadores para se certificar (ficariam ao alcance das nossas armas ligeiras), as vacas a calcorrear o terreno seriam a forma de o testar. Porém, nenhum animal foi pelos ares…<br />Não consigo recordar-me de quantas vezes terei ido à messe sentar-me e comer uma refeição. Primeiro, porque as horas do tacho são trocadas constantemente e tenho pouca sorte na escolha dos momentos de investida; segundo, porque enquanto duram alguns restos de rações de combate que o pessoal “anfitrião” sacou do armazém, aproveito-me da sua generosidade; terceiro, porque já começo a enjoar-me das salsichas de lata, só o cheiro me dá náuseas. Neste dia começa a faltar o pão, parece que já estão a racionar a farinha, vem uma pequena fatia na borda do prato de cada um e é o que há! E uma bernarda certeira no cocuruto do depósito de géneros arrasou as já de si insignificantes esperanças de um dia nos brindarem com rancho melhorado… <br />Bem, mas de sentir fome lembro-me perfeitamente (ou talvez não seja fome e apenas pensar que devo mastigar alguma coisa), e dirijo-me à messe, que desta vez está a servir refeições e cheia que nem um ovo. Olho para o fundo e calculo que deve ser naquele balcão que nos devemos servir, tipo self-service, do tal esparguete salsicheiro, prato do dia, não ao almoço e ao jantar, mas à hora de abertura que parece tirada às sortes. <br />É sabido que os graduados não usam divisas nem galões nos ombros quando partem em operação, em virtude da ideia de que o inimigo pretende sempre aniquilar quem comanda, em primeiro lugar. Portanto, todos nós, quando saímos do COMBIS de manhãzinha deixámos nos cacifos essas identificações hierárquicas. Entro na messe e oiço um berro estridente, vindo de uma das mesas. Pelos cabelos brancos só pode ser de pessoal do quadro. Deduzo tratar-se do comandante, e é de facto o tenente-coronel Correia de Campos que vejo apontar na minha direcção, de indicador em riste:<br />– “Adonde” é que você pensa que vai? Ponha-se lá fora imediatamente! Apresente-se primeiro e peça autorização para entrar! <br />Por decoro, não vou agora descrever o que balbuciei na altura, enquanto rangia os dentes, nem o que me apeteceu e estive mesmo para fazer… Recuei até à entrada da messe, ou refeitório, ou espelunca o lá o que era aquilo. Como não trazia quico não podia fazer continência, pus-me em sentido:<br />– Apresenta-se o furriel miliciano nº 197.116/71, Daniel Rosa de Matos. V. Exa, meu comandante, dá-me licença que entre?<br />– Entre! – respondeu sem me olhar, a boca cheia a mastigar o esparguete.<br />De pronto, virei as costas e saí. Confesso que o que queria mesmo era arremessar-lhe qualquer coisa às ventas, não sei bem o quê, o que apanhasse à mão de semear para lhe dar o troco do enxovalho. Só não o fiz porque alguém me puxou pelo braço e me disse “tem juízo pá, caga mas é no gajo, que é um xico de merda, e vem comer” e acabei por atacar mas foi a dose reduzida de salsicha, apesar do fastio. Sentei-me numa mesa corrida, – não muito distante da do tenente-coronel, – onde já estavam de prato vazio milicianos de outras unidades. O que me sussurrou os insultos ao comandante e me arrastou para ir buscar o prato ao balcão, contou então certas histórias de atitudes que o homem teria tomado em Pirada, – e que não têm cabimento aqui, – e garantiu-me que se não havia whisky na messe era porque ele tinha açambarcado para o seu quarto as cerca de quarenta garrafas que há poucos dias constavam no inventário do depósito de géneros. É claro, os outros camaradas que estavam à mesa confirmaram tudo, puseram até os adjectivos no superlativo, mas nunca me convenci que não fosse mais um daqueles boatos que circulam sem se saber como nasceram