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Murillo Costa - Livro Os Renegados
Enquanto envernizo uma de nossas peças, meu pai separa uma ca-
deira e um banquinho para entregar aos últimos clientes de hoje. O
céu ainda está claro, com a coloração rósea da tardinha; hoje esta-
mos encerrando o expediente mais cedo, assim como todos em nos-
so país, devido ser essa a noite da Graduação.
Poucos minutos depois de eu terminar a cadeira que estava refor-
mando, os últimos clientes chegam: o senhor Bernardes e seu filho,
Rubens, meu amigo desde a infância. Enquanto nossos pais conver-
sam e acertam o preço, mostro a ele a cadeira que acabei de refazer.
– É, parece que você está pegando o jeito.
– Quando você voltar já estarei profissional!
– Se você não ficar profissional em dois anos, pode escolher
outro ramo pra trabalhar.
– Seu eu pudesse...
Seus dedos deslisam pela madeira, levemente trêmulos. Olho em
seus olhos, que estão avermelhados – choro ou noites sem dormir,
talvez os dois. Não posso evitar perguntar:
– Acha que está preparado?
Rubens respira fundo.
– Desde que me lembro, estou esperando esse dia, mas estar
1
Murillo Costa - Livro Os Renegados
preparado para ele... não sei, eu nem vi o tempo passar. Pare-
ce que hoje mesmo estávamos brincando no rio. Vamos es-
perar para ver o que acontece na Graduação, quem sabe as
coisas não mudam para nós, não é?
– É o que todo mundo espera.
O pai Rubens se encaminha para a saída da oficina.
– Vai acordar cedo amanhã? – pergunto a Rubens.
– Com certeza.
– Nos vemos amanhã, então?
– Sim, os militares não vão acordar cedo para me levarem.
– Passo na sua casa.
O pai de Rubens o chama. Ao saírem, meu pai balança a cabeça para
Rubens em sinal de consternação, como também um desejo de boa
sorte.
São seis da tarde – a partir de agora todo o país entra em recesso.
Fechamos a oficina de carpintaria, mas não saímos antes de passar-
mos o braço em uma pequena máquina grudada à parede, que faz a
leitura de um microchip fixado abaixo de nossa pele – em todos nós,
assim que nascemos, é implantado um, contendo nossos nomes, nú-
meros de registros, idade e o que mais for necessário, como o núme-
ro de horas trabalhadas por semana. Tranco o último cadeado e
atravessamos a rua em direção à nossa casa, do outro lado, bem em
frente. O sol ainda não se foi por completo, mas as ruas já estão va-
zias, e deve ser assim em todo o país.
Antes mesmo de abrirmos a porta já sentimos o cheiro do jantar. A
comida dessa noite é de ótima qualidade. Carne bovina assada, arroz
de primeira, legumes frescos, feijão inteiro – e não os grãos quebra-
2
Murillo Costa - Livro Os Renegados
dos que costumamos ter nas dosadas rações semanais.
Em dias normais não temos uma refeição assim, mas graças à Gra-
duação, cada família de Atlântida teve o direito de ir até a adminis-
tração de sua cidade para receber uma cesta para essa noite. Afinal,
por essa ser uma ocasião solene para o governo, ele presenteia o
povo com uma noite de barriga cheia.
Sentamos nas cadeiras e nos recostamos à mesa. Minha mãe serve o
jantar em suas melhores porcelanas. Apesar da comida quente e sa-
borosa, nosso ambiente é frio e silencioso, apenas quebrado pelas
perguntas de minhas mãe sobre o dia e também sobre os Bernardes.
Quando o relógio da cozinha marca oito da noite, vamos para a sala.
Às oito e cinco, a televisão se liga, sozinha – como ela também foi
nos dada pelo governo, ele a controla para que não percamos seus
momentos de glorificação. Uma imagem semelhante a um docu-
mento aparece na tela, com o escrito: “Quinquagésima Graduação
dos Legítimos de Atlântida” e “Programação obrigatória” logo abai-
xo em letras menores; ao fundo aparece a bandeira de nosso país –
quatro estrelas envolvidas por dois arcos, cada estrela representa
uma casa e os arcos simbolizam a doutrina por trás de nossa união, a
Convergência, o nosso maior bem. Desde o primeiro ano em nossas
escolas, somos ensinado a pensar no todo e não no indivíduo.
A noite da Graduação acontece uma vez a cada dois anos, no mês de
janeiro. É nela que sabemos qual das quatro casas patriarcais em que
nosso país é dividido governará nossa nação. Atualmente, somos re-
gidos pelos Venites, que já estão no poder há muitas Graduações.
Cinco minutos depois – um tempinho extra para os que ainda não
se sentaram o fazerem – as câmeras nos mostram o Edifício Oval,
3
Murillo Costa - Livro Os Renegados
uma construção monumental, feita para esse e outros eventos ofi-
ciais. Ele é formado por arquibancadas que lhe dão o formato oval.
Em uma de suas extremidades há um palco de mármore e na outra
há um portão pesado de ferro maciço. Entre o portão e o palco, há
um jardim suspenso, com fontes de água e partes que se elevam até a
beirada das primeiras arquibancadas.
Num instante, as luzes do palco se intensificam, iluminando suas
colunas de mármore e interior com detalhes revestidos em ouro. A
multidão nas arquibancadas grita e balança suas bandeiras ao ver o
Corpo de Legítimos entrar no palco – esse é o conselho que nos go-
verna. Ao todo, o Corpo de Legítimos atual tem dez membros.
Eles se sentam em cadeiras douradas colocadas em um local elevado
no palco, enquanto um outro Legítimo vai para a tribuna presidir a
cerimônia – esse já é conhecido por sempre presidir as noites de
Graduação: Alfredo Serato. Ele estende os braços num movimento
que acalma a plateia agitada e em seguida agradece a presença de to-
dos, inclusive dos que estão vendo pela televisão.
Alfredo diz que os Legítimos do atual conselho consideraram uma
honra governarem Atlântida. Em seguida, convida ao palco dois re-
presentantes de cada casa patriarcal: dois para a casa dos Venites,
dois para a casa dos Serpas, dois para a casa de Villon – a descen-
dência à qual pertenço – e por último, dois para a casa de Rossini, a
menor das quatro. Os oito representantes se sentam ao lado esquer-
do dos Legítimos governantes.
Alfredo dá início ao discurso de abertura, falando da capacidade de
sobrevivência que existe em nossa nação. Mesmo depois do que cha-
mamos de Última Guerra, que aconteceu há quase dois séculos atrás,
4
Murillo Costa - Livro Os Renegados
conseguimos resistir enquanto várias outras nações eram queimadas
e extintas. Carregamos as consequências e o orgulho de ser a última
parte da civilização humana. O entusiasmo com que ele diz isso faz a
multidão vibrar.
Para nós não é possível falar de sobrevivência sem mencionar o que
se tornou uma base fundamental da nossa nação: a Arena dos Rene-
gados. Continuando seu discurso, Alfredo diz que a Arena é o triun-
fo genial de Atlântida – isso é muito fácil e o obvio que um membro
da casa dos Venites pode dizer, especialmente um que já passou por
ela e saiu vivo. Para nós, das outras casas, a Arena é o fim da vida,
mesmo antes dela ter começado.
Existem três regras para o recrutamento como Renegado, a primei-
ra delas – a mais importante, e portanto fundamento do sistema –
diz que a cada quatro gerações, primogênitos provenientes de um
sistema de rodízio, a partir dos dezesseis anos, devem ser tirados de
suas famílias e enviados para a Arena, onde aprenderão a ser úteis
para Atlântida. Obrigatoriamente e sem eximições, eles se tornam os
Renegados, aqueles que devem provar que tanto eles quanto suas fu-
turas gerações merecem viver em Atlântida, que tem valor para nos-
sa sociedade e farão de tudo para ela continuar. Esse valor só será
provado se vencerem a Arena, caso contrário, morrerão nela mesma.
Meu avô foi um Legítimo, por isso estou a salvo na segunda geração
após ele. Minha família só cairá no rodízio novamente quando meus
bisnetos nascerem.
A segunda regra, secundária, reflete a totalidade moral que deve
existir entre o povo. Vivemos em tempos de reconstrução, onde a
instituição familiar deve ser edificada com êxito. Quando uma mu-
5
Murillo Costa - Livro Os Renegados
lher engravida sem estar legalmente casada, seu filho, independente
do rodízio, se tornará um Renegado quando alcançar a idade certa.
Como complemento, obrigatoriamente os pais deverão se casar e se
o filho morrer na Arena, eles deverão ter um segundo para assumir a
primogenitura, e este, se cair no rodízio, também será um Renegado.
A terceira regra reflete a lealdade que todo cidadão deve ao gover-
no. Se algum de nós possuir pendências políticas, como dívidas ou
processos, poderá oferecer seu primogênito como Renegado para
obter concessões especiais. Nunca fiquei sabendo de alguém que fez
uso dessa artimanha.
Quatrocentos Renegados por Arena. Quatrocentos escolhidos para
fortalecer a Convergência com suas próprias vidas. Eu sempre esti-
mei a Convergência como nosso guia principal e acredito que se sa-
crificar por ela é um dos atos mais nobres, mas um sacrifício deixa
de ter esse nome quando é feito por intimação – nesse exato mo-
mento é que percebemos a mão dos Venites corrompendo princí-
pios fundamentais.
Rubens, meu amigo, se tornará um Renegado amanhã. Ele sempre
soube que seu futuro seria esse, foi uma das primeiras informações
gravadas em seu microchip. Quando ele completou dezesseis anos,
em vez de receber uma designação de trabalho, ele recebeu uma car-
ta de recrutamento constando a data em que ele iria para a Arena.
Finalmente o discurso acaba, mas a noite ainda continua. Alfredo
chama nossa atenção para os dois grandes telões do Edifício Oval –
um acima do palco e outro acima do portão. Eles começam a mos-
trar cenas rápidas do último período letivo da Arena: o tradicional
estiamento da bandeira da Arena marcando o início do período, as
6
Murillo Costa - Livro Os Renegados
filas de Renegados entrando em suas dependências. Logo mais, ve-
mos os Renegados em seus treinamentos e atividades, seus corpos
magros, alguns destruídos por doenças e ferimentos, mutilados,
mortos.
Ao canto na tela há um contador numérico e à medida que os vídeos
vão passando, o número vai caindo. De quatrocentos no estiamento
da bandeira para sete no final da última prova, ao término dos dois
anos.
Sete.
Esse é o número dos Renegados que venceram neste período. Entre
esses estão os que formarão o novo Corpo de Legítimos, a casa que
tiver o maior número deles formará o novo governo.
Mais cedo, quando falei com Rubens sobre mudanças acontecerem,
tinha em mente a casa dos Venites saindo do poder. Isso é o que a
grande maioria de nós espera, mas esse número de sobreviventes
não nos dá muita esperança.
Meus pais estão fixos na TV, inexpressivos.
Assim que os vídeos acabam, Alfredo indica um lugar no meio de
quatro fontes de água, no jardim próximo ao palco. Há um buraco
perfeitamente retangular. Canhões de luz miram no lugar, revelando
uma plataforma de mármore que está emergindo do poço escuro,
trazendo à tona os sete vencedores, os sete novos Legítimos de
Atlântida. O público os aplaude em meio a gritos e confetes.
Ao saírem da plataforma, os sete formam uma fila e sobem ao palco
por uma escada revestida de ouro e coberta por um tapete vermelho
com bordas amarelas. Ao acenarem, as câmeras nos mostram as pal-
mas de suas mãos, onde está tatuada a marca dos Legítimos – uma
7
Murillo Costa - Livro Os Renegados
letra “L” fina com arcos finos envolvendo-a na dobra de mais ou
menos quarenta e cinco graus da letra.
De pé em cima do palco, Alfredo os percorre, pegando na mão de
cada um e congratulando-os com uma medalha de ouro, às quais
fixa em seus ombros – nas medalhas está gravado o símbolo da Are-
na, o perfil de um leão.
Oficial e definitivamente, os sete são Legítimos. Acabam de assegu-
rar a existência de mais quatro gerações de suas famílias.
– Atlântida, esses são os seus novos Legítimos, provados pelo
fogo e moldados como ferro forte!
Os brados e aplausos frenéticos das multidões fazem as caixas de
som da nossa TV produzirem ruído.
– A Arena foi mesmo incrível, não acham? Os Renegados en-
frentaram muitos desafios e conseguiram muitas superações.
Estaremos em boas mãos nos próximos dois anos. Vamos
agora pedir para os Legítimos que farão parte do novo Cor-
po tomarem seus lugares.
Ao som da Saudação, uma música instrumental criada especialmen-
te para esse momento, os Legítimos integrantes do, a partir de agora,
findado Corpo se levantam ficando de pé ao lado das cadeiras e en-
tão os novos Legítimos se movimentam. Todos os sete se sentam.
– Atlântida, veja isso! Ineditamente, todos os sobreviventes fa-
rão parte do novo Corpo de Legítimos! Isso quer dizer então
que somente uma casa conseguiu vencer a Quinquagésima
Arena dos Renegados!
Uma só casa. Somente os mais fortes sobrevivem. E todos nós sabe-
mos quem são os mais fortes.
8
Murillo Costa - Livro Os Renegados
Alfredo prossegue:
– Vamos responder o que todos vocês querem saber! Qual é
essa única casa que sobreviveu? Olhem para o telão!
Todos os olhos e câmeras miram os telões e por um breve momento
tudo se silencia. Inclino-me sobre os joelhos, apoiando os cotovelos
neles. Minha mãe segura firme a mão do meu pai. A imagem toma
conta dos telões: a bandeira da casa vencedora aparece, como se es-
tivesse sendo abanada pelo vento. Fecho os olhos ao ver, porque
mais uma vez os Venites venceram a Arena; por mais dois anos eles
estarão no poder.
Se somente esses sete Venites sobreviveram, o que será das outras
casas na próxima Arena? Imagino os olhos sem esperança de Rubens
assistindo a isso. Nas Graduações anteriores havia mais vencedores,
talvez cinco ou seis das demais casas e uns dez a doze dos Venites.
Esses, em menos quantidade, assumem cargos públicos como encar-
regados de administrações de cidades, departamentos ou ajudam sua
casa de qualquer outra forma.
Alfredo chama o novo corpo de Legítimos para a próxima parte da
cerimônia, o Juramento – essa é a deixa para os antigos Legítimos
saíram do palco. Alfredo, de frente para os sete, tem em suas mãos o
livro original em que foram escritas as leis do nosso país. Quando
ele abre o livro, os Legítimos levantam suas mãos direitas e dizem
em uníssono: “Eu prometo reger Atlântida, executar suas leis, man-
ter sua tradição e garantir sua sobrevivência. A Convergência nos
arrebata à salvação, a dissensão nos rebaixa à morte. Todas as casas
como uma só mente, um só corpo.”
Tradicionalmente não há aplausos no Juramento porque são consi-
9
Murillo Costa - Livro Os Renegados
derados desrespeitosos diante da solenidade da ocasião.
A cerimônia chega à sua parte final, o último suspiro da Arena: mais
uma vez nossa atenção é chamada para o meio do jardim, onde um
segundo poço é iluminado pelos holofotes. De dentro dele, emerge
uma pesada plataforma de ferro. Meu estômago gela quando se tor-
na possível ver os indivíduos trazidos por ela. Esses são os declara-
dos Incapazes. Doze nesta noite. São Renegados sobreviventes da
última prova da Arena, mas que não tiveram um bom desempenho
durante todo o período para somar os pontos necessários para se
tornarem Legítimos e continuarem vivos.
Seus punhos estão acorrentados à plataforma. Os olhos estão ven-
dados com tiras de tecido preto, suas roupas são brancas e folgadas,
com listras cinzas, seus pés estão descalços. As áreas escuras que
contornam o palco parecem tomar forma quando um grupo de doze
atiradores da elite do exército, conhecidos como Executores, saem
de lá e posicionam-se na frente da plataforma – um soldado para
cada Incapaz. Como primeiro ato que os definem como verdadeiros
Venites, o novo Corpo de Legítimos sinaliza para que os militares
primam os gatilhos, executando os Incapazes quase que simultanea-
mente. O público demonstra sua total frieza erguendo e agitando
suas bandeiras para o ato. Isso poe fim ao show da noite.
Olho para meu pai, seu rosto apreensivo. Quando eu estava no ter-
ceiro ano da escola, lembro que pulei demonstrando alegria quando
os Incapazes daquela Graduação foram executados. Ele me advertiu
imediatamente, dizendo que aquele ato – ao contrário do que me
ensinavam na escola – era repulsivo. Desde então observo as atitu-
des do meu pai, admirando algumas virtudes, mas com medo de que
10
Murillo Costa - Livro Os Renegados
algum dia as palavras que ele diz em cochichos enquanto trabalha-
mos no barulho da carpintaria acabe lhe dando problemas. O pior
delito que alguém pode cometer é a dissidência, encarado como cri-
me contra a Convergência, com a mínima punição de execução.
Alfredo encerra a cerimônia. Agora os novos governantes e os in-
fluentes de Atlântida terão um jantar de comemoração. Alfredo con-
vida a todos para o jantar, o que graças às cestas dadas pelo governo,
cada família pode simbolicamente participar. Meu pai, em mais um
de seus protestos pessoais, sempre pede que minha mãe apronte
nossa refeição para antes da Graduação. Isso me faz lembrar que os
Venites não são invulneráveis e que a Convergência é algo muito
maior que eles.
A transmissão se encerra e depois de uma breve estática a TV se
desliga. Meu pai olha para mim, esboçando um sorriso atencioso.
“Agora você já é maior de idade, sabe o que vai ter de fazer”, diz ele.
Completei dezesseis anos no final do ano passado, em novembro,
dando ao governo a autoridade de exigir de mim lealdade. Ouvimos
um caminhão parando em nossa rua; em pouco tempo os soldados
da Visão da Convergência – a polícia do nosso país – começam a
percorrer as casas. De repente, três batidas em nossa porta.
– À Convergência! Família Sólon? – pergunta o soldado quan-
do meu pai atende. – Pacto de Lealdade.
“À Convergência!”, meu pai o cumprimenta, convidando-o entrar.
O homem alto e robusto fica de pé, no meio da sala, conferindo al-
guns papeis; por fim, levanta os olhos e diz:
– O Pacto de Lealdade afirma vossas decisões de permanecer
como parte de Atlântida, cidadão livre, em pleno gozo dos
11
Murillo Costa - Livro Os Renegados
seus direitos. Caso se recusem a assinar, nenhuma pena será
imposta, mas se tornarão marginais, sobrevivendo por conta
e descartados pelo resto de Atlântida; perderão todos os di-
reitos de um cidadão comum. Podemos começar com o se-
nhor – diz ele ao meu pai. – Estende o braço.
O soldado mira a outra extremidade de sua caneta sobre a pele do
braço do meu pai, fazendo com que o objeto emita uma luz verme-
lha, conferindo a identidade do meu pai através da leitura do micro-
chip. Por fim o soldado entrega uma das folhas amarelas e pergunta
se ele irá assinar. Meu pai não responde, apenas assina, declarando
total lealdade ao novo Corpo de Legítimos. O mesmo procedimento
é feito com minha mãe, que também não hesita em assinar.
Por fim o soldado olha para mim. “Garoto, estende o braço.” Faço o
que ele indica e logo depois ele me entrega o documento. Olho para
meu pai e assino a declaração. Entrego a folha e o soldado vai embo-
ra, nos desejando um bom jantar. Meu pai força um sorriso para nós
e sai da sala – ele sempre fica incomodado quando assina o Pacto de
Lealdade.
Antes que o sol na manhã seguinte apareça, já estou de pé, vestido
com uma das grossas calças jeans e camisa de manga longa que eu e
meu pai usamos para trabalhar. Como um pedaço de pão acompa-
nhado de chá, que minha mãe fez a partir de ervas que ela planta no
fundo do quintal. Com a luz tênue do sol nascente, já estou descen-
do a rua de asfalto remendado em direção à casa de Rubens, que
mora cinco ruas abaixo – minha casa fica há poucos metros do fim
da cidade, onde sua divisão com a floresta se torna quase indistin-
guível.
12
Murillo Costa - Livro Os Renegados
Bato na porta e o pai dele me atende – entre as pernas dele, vejo o
irmão pequeno de Rubens. O senhor Bernardes me convida pra en-
trar, mas logo Rubens aparece.
– Oi, acordou cedo mesmo – diz ele ao me atender na porta.
– Eu disse que seria cedo. E também depois da noite de ontem,
queria que o dia de hoje chegasse logo – mordo os lábios
percebendo que essas não eram as melhores palavras que
podiam ser ditas para alguém que vai se tornar um Renega-
do HOJE. – Quer dizer...
– Tudo bem, a noite foi ruim mesmo.
Seus olhos estão ainda mais vermelhos e uma bolsa azulada se for-
mou debaixo deles.
– E aí? Quer dar uma volta? – pergunto.
– Por que não? Uma última olhada na cidade não será ruim.
Em pouco tempo de caminhada, chegamos na pequena praça próxi-
ma à rua de comércios; nos sentamos em um dos bancos de madeira,
ao lado de arbustos. À nossa frente está a estação de transmissão,
composta por uma alta antena vermelha e, cercando-a em um qua-
drado, há uma parede onde são fixadas grandes telas de plasma, uma
em cada lado, para transmissões públicas. Nesse momento está sen-
do exibido o primeiro telejornal do dia, com reprises da Graduação
e cenas do jantar com os novos Legítimos.
Sempre um desses telões é reservado à exibição das metas de traba-
lho, que são os números de produção, arrecadação e distribuição de
recursos. Quando esses números são alcançados, temos redução de
impostos, preços mais baixos ou horas de trabalho reduzidas, mas
quando ficam abaixo do esperado, o inverso acontece. Um espaço
13
Murillo Costa - Livro Os Renegados
dessa tela é sempre reservada ao catálogo de criminosos procurados.
O rosto mais frequente é o de Belsazar, dissidente responsável por
vários atentados violentos contra a nação, condenado por crime
contra a Convergência. O Corpo de Legítimos oferece uma alta re-
compensa por ele, vivo ou morto. Os ataques não são comuns, mas
acontecem vez por outra – um incêndio numa lavoura, alguma
bomba explodindo numa rua movimentada de alguma cidade gran-
de.
– A que horas você vai?
– Tenho que estar no Centro Militar às nove, nosso voo sairá
às dez.
A conversa para, não sei o que dizer.
– A melhor parte é que só eles conseguiram ontem. Sós os Ve-
nites saíram vivos – diz Rubens.
– Isso não significa nada. A Arena não é previsível, não dá para
dizer quem vai ficar vivo e quem não vai. Meu avô foi um
Renegado e conseguiu se tornar um Legítimo, se não fosse
isso, eu não estaria aqui.
– O último Legítimo em minha família foi um tio distante,
nem sei bem. Mas é pela Convergência... o todo é mais im-
portante que o indivíduo – ele cita uma frase fielmente ensi-
nada nas escolas.
– É uma honra que não deixa de dar medo. Ainda não entendo
porque a Convergência precisa desse tipo de sacrifício –
digo quase num sussurro.
– Já tentamos responder essas questões antes e não chegamos
em lugar nenhum. É melhor parar por aqui, nós já podemos
14
Murillo Costa - Livro Os Renegados
ser presos.
– Quem sabe não te levam para a cadeia em vez da Arena?
Ele sorri, descrente.
– Eu tenho de ir, preciso arrumar umas coisas ainda.
– Certo. Eu vou ter de esperar os mercados abrirem. Precisa-
mos de lixas novas para a carpintaria.
Nos levantamos e nos direcionamos para nossos destinos.
– Rubens, não esqueça de escrever – um nó se forma em mi-
nha garganta.
– Não esqueço! – responde ele, de cabeça baixa e me abraçan-
do.
– Te espero daqui há dois anos – bato com a palma da minha
mão em suas costas.
– Vou fazer de tudo pra sair de lá! Acredito que colaboro mais
com a Convergência se ficar vivo – seus olhos estão verme-
lhos e os meus também se esquentam.
Seguimos, sem olhar para trás.
Quando chego na rua dos comércios, encontro as lojas e armazéns
abrindo suas portas. Sempre compramos cedo para pegar as coisas
ainda frescas, já que o que é vendido aqui, em maioria, são as sobras
do que é enviado para as cidades ricas, tanto de nossa casa patriarcal,
como das outras.
Me deparo com preços altos, o que é normal depois da Graduação,
quando os comerciantes tentam resgatar o prejuízo que tiveram ao
ceder parte de seus produtos para as cestas. Isso tudo não passa de
uma estratégia do governo: dar em abundância para uma noite e de-
pois pegar tudo de volta por meio dos impostos aplicados a cada
15
Murillo Costa - Livro Os Renegados
compra realizada no dia seguinte.
Nessas ocasiões é que vigora uma boa técnica para os pobres: a pe-
chincha. Vou até o armazém de um velho gordo e meio careca cha-
mado Braz, meu conhecido de negócios.
– À Convergência, Braz! O que tem barato hoje?
– Barato? Você quer me quebrar?
– Ah, podemos negociar, não podemos?
– Claro, me diz o quanto tem e eu te digo o que pode levar.
Apesar de parecer intimidador, ele é o mercador mais maleável que
temos em nossa cidade. Consigo comprar duas pencas de banana
pelo preço de uma, mas consigo poucos descontos nas outras coisas.
Quando passo o cartão de crédito do meu pai, o sistema acusa que já
atingimos o limite semanal que cada família tem direito, a partir daí
a mercadoria tem um imposto mais alto, o que me obriga a voltar
para casa com sacolas magras. Ainda bem que sobrou algo da cesta.
Por último, entro na única loja de ferramentas da nossa cidade e
compro uma caixa de lixas, usando o crédito do meu próprio cartão.
O cartão de crédito é o único meio que temos para pagar por qual-
quer compra de produtos ou serviços. O crédito é conseguido tanto
pelo nosso serviço quanto pelas nossas horas trabalhadas. Como eu
e meu pai trabalhamos em uma atividade autônoma, recebemos os
créditos dos pagamentos de nossos clientes e um pequeno acréscimo
segundo um cálculo percentual das horas trabalhadas.
Recebi meu cartão no fim do ano passado junto com uma designa-
ção de serviço na carpintaria. Acredito que acharam melhor me
manter trabalhando com meu pai, já que meu desempenho escolar
não me permitiu cursar alguma das conceituadas escolas técnicas
16
Murillo Costa - Livro Os Renegados
das Primeiras Cidades, as capitais. Talvez algum dia me mudem de
ramo, quando eu constituir família e precisar de mais crédito. Isso
me faz lembrar que agora que cheguei aos dezesseis anos, o cartão
debitador da minha mãe será reativado e ela será designada a algum
serviço.
Já deve passar das oito quando chego na minha rua. Ao me aproxi-
mar da minha casa, vejo dois soldados, não os vigilantes da Visão da
Convergência, mas militares, na porta. Eles me cumprimentam e eu
entro em casa já notando o clima pesado. Na cozinha, vejo meu pai
sentado à mesa com um oficial militar; os olhos desesperados de mi-
nha mãe só não chamam mais atenção do que os olhos fixos do meu
pai em mim. Eles tentam sorrir para mim, como se estivessem feli-
zes, o que só aumenta minha ansiedade. Em cima da mesa repousa
um papel, julgo ser um documento.
– Então você está aí! – diz o militar – À Convergência!
Coloco as sacolas em cima da mesa e respondo:
– À Convergência. Estão atrás de mim?
– Nesta manhã você recebeu uma grande honra e vim até aqui
trazê-la.
– Espero que seja uma boa notícia, então – digo num meio
sorriso forçado.
– Ah, sim! É sua chance de mostrar seu valor para nosso povo.
Mostrar meu valor? Isso não é conversa que me agrade bem na épo-
ca em que uma nova Arena está iniciando. Ele me aponta o docu-
mento em cima da mesa e eu o pego. Dou dois passos até encontrar
a parede para escorar. Só o leio de alto a baixo para ter certeza do
que está escrito logo no seu topo.
17
Murillo Costa - Livro Os Renegados
“Ordem de Convocação” é o título. “Selecionado para o Quinquagé-
simo Primeiro Período Letivo da Arena dos Renegados: Pedro Só-
lon”.
18
Capítulo 1 - Os Renegados - Murillo Costa

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Capítulo 1 - Os Renegados - Murillo Costa

  • 1. Murillo Costa - Livro Os Renegados Enquanto envernizo uma de nossas peças, meu pai separa uma ca- deira e um banquinho para entregar aos últimos clientes de hoje. O céu ainda está claro, com a coloração rósea da tardinha; hoje esta- mos encerrando o expediente mais cedo, assim como todos em nos- so país, devido ser essa a noite da Graduação. Poucos minutos depois de eu terminar a cadeira que estava refor- mando, os últimos clientes chegam: o senhor Bernardes e seu filho, Rubens, meu amigo desde a infância. Enquanto nossos pais conver- sam e acertam o preço, mostro a ele a cadeira que acabei de refazer. – É, parece que você está pegando o jeito. – Quando você voltar já estarei profissional! – Se você não ficar profissional em dois anos, pode escolher outro ramo pra trabalhar. – Seu eu pudesse... Seus dedos deslisam pela madeira, levemente trêmulos. Olho em seus olhos, que estão avermelhados – choro ou noites sem dormir, talvez os dois. Não posso evitar perguntar: – Acha que está preparado? Rubens respira fundo. – Desde que me lembro, estou esperando esse dia, mas estar 1
  • 2. Murillo Costa - Livro Os Renegados preparado para ele... não sei, eu nem vi o tempo passar. Pare- ce que hoje mesmo estávamos brincando no rio. Vamos es- perar para ver o que acontece na Graduação, quem sabe as coisas não mudam para nós, não é? – É o que todo mundo espera. O pai Rubens se encaminha para a saída da oficina. – Vai acordar cedo amanhã? – pergunto a Rubens. – Com certeza. – Nos vemos amanhã, então? – Sim, os militares não vão acordar cedo para me levarem. – Passo na sua casa. O pai de Rubens o chama. Ao saírem, meu pai balança a cabeça para Rubens em sinal de consternação, como também um desejo de boa sorte. São seis da tarde – a partir de agora todo o país entra em recesso. Fechamos a oficina de carpintaria, mas não saímos antes de passar- mos o braço em uma pequena máquina grudada à parede, que faz a leitura de um microchip fixado abaixo de nossa pele – em todos nós, assim que nascemos, é implantado um, contendo nossos nomes, nú- meros de registros, idade e o que mais for necessário, como o núme- ro de horas trabalhadas por semana. Tranco o último cadeado e atravessamos a rua em direção à nossa casa, do outro lado, bem em frente. O sol ainda não se foi por completo, mas as ruas já estão va- zias, e deve ser assim em todo o país. Antes mesmo de abrirmos a porta já sentimos o cheiro do jantar. A comida dessa noite é de ótima qualidade. Carne bovina assada, arroz de primeira, legumes frescos, feijão inteiro – e não os grãos quebra- 2
  • 3. Murillo Costa - Livro Os Renegados dos que costumamos ter nas dosadas rações semanais. Em dias normais não temos uma refeição assim, mas graças à Gra- duação, cada família de Atlântida teve o direito de ir até a adminis- tração de sua cidade para receber uma cesta para essa noite. Afinal, por essa ser uma ocasião solene para o governo, ele presenteia o povo com uma noite de barriga cheia. Sentamos nas cadeiras e nos recostamos à mesa. Minha mãe serve o jantar em suas melhores porcelanas. Apesar da comida quente e sa- borosa, nosso ambiente é frio e silencioso, apenas quebrado pelas perguntas de minhas mãe sobre o dia e também sobre os Bernardes. Quando o relógio da cozinha marca oito da noite, vamos para a sala. Às oito e cinco, a televisão se liga, sozinha – como ela também foi nos dada pelo governo, ele a controla para que não percamos seus momentos de glorificação. Uma imagem semelhante a um docu- mento aparece na tela, com o escrito: “Quinquagésima Graduação dos Legítimos de Atlântida” e “Programação obrigatória” logo abai- xo em letras menores; ao fundo aparece a bandeira de nosso país – quatro estrelas envolvidas por dois arcos, cada estrela representa uma casa e os arcos simbolizam a doutrina por trás de nossa união, a Convergência, o nosso maior bem. Desde o primeiro ano em nossas escolas, somos ensinado a pensar no todo e não no indivíduo. A noite da Graduação acontece uma vez a cada dois anos, no mês de janeiro. É nela que sabemos qual das quatro casas patriarcais em que nosso país é dividido governará nossa nação. Atualmente, somos re- gidos pelos Venites, que já estão no poder há muitas Graduações. Cinco minutos depois – um tempinho extra para os que ainda não se sentaram o fazerem – as câmeras nos mostram o Edifício Oval, 3
  • 4. Murillo Costa - Livro Os Renegados uma construção monumental, feita para esse e outros eventos ofi- ciais. Ele é formado por arquibancadas que lhe dão o formato oval. Em uma de suas extremidades há um palco de mármore e na outra há um portão pesado de ferro maciço. Entre o portão e o palco, há um jardim suspenso, com fontes de água e partes que se elevam até a beirada das primeiras arquibancadas. Num instante, as luzes do palco se intensificam, iluminando suas colunas de mármore e interior com detalhes revestidos em ouro. A multidão nas arquibancadas grita e balança suas bandeiras ao ver o Corpo de Legítimos entrar no palco – esse é o conselho que nos go- verna. Ao todo, o Corpo de Legítimos atual tem dez membros. Eles se sentam em cadeiras douradas colocadas em um local elevado no palco, enquanto um outro Legítimo vai para a tribuna presidir a cerimônia – esse já é conhecido por sempre presidir as noites de Graduação: Alfredo Serato. Ele estende os braços num movimento que acalma a plateia agitada e em seguida agradece a presença de to- dos, inclusive dos que estão vendo pela televisão. Alfredo diz que os Legítimos do atual conselho consideraram uma honra governarem Atlântida. Em seguida, convida ao palco dois re- presentantes de cada casa patriarcal: dois para a casa dos Venites, dois para a casa dos Serpas, dois para a casa de Villon – a descen- dência à qual pertenço – e por último, dois para a casa de Rossini, a menor das quatro. Os oito representantes se sentam ao lado esquer- do dos Legítimos governantes. Alfredo dá início ao discurso de abertura, falando da capacidade de sobrevivência que existe em nossa nação. Mesmo depois do que cha- mamos de Última Guerra, que aconteceu há quase dois séculos atrás, 4
  • 5. Murillo Costa - Livro Os Renegados conseguimos resistir enquanto várias outras nações eram queimadas e extintas. Carregamos as consequências e o orgulho de ser a última parte da civilização humana. O entusiasmo com que ele diz isso faz a multidão vibrar. Para nós não é possível falar de sobrevivência sem mencionar o que se tornou uma base fundamental da nossa nação: a Arena dos Rene- gados. Continuando seu discurso, Alfredo diz que a Arena é o triun- fo genial de Atlântida – isso é muito fácil e o obvio que um membro da casa dos Venites pode dizer, especialmente um que já passou por ela e saiu vivo. Para nós, das outras casas, a Arena é o fim da vida, mesmo antes dela ter começado. Existem três regras para o recrutamento como Renegado, a primei- ra delas – a mais importante, e portanto fundamento do sistema – diz que a cada quatro gerações, primogênitos provenientes de um sistema de rodízio, a partir dos dezesseis anos, devem ser tirados de suas famílias e enviados para a Arena, onde aprenderão a ser úteis para Atlântida. Obrigatoriamente e sem eximições, eles se tornam os Renegados, aqueles que devem provar que tanto eles quanto suas fu- turas gerações merecem viver em Atlântida, que tem valor para nos- sa sociedade e farão de tudo para ela continuar. Esse valor só será provado se vencerem a Arena, caso contrário, morrerão nela mesma. Meu avô foi um Legítimo, por isso estou a salvo na segunda geração após ele. Minha família só cairá no rodízio novamente quando meus bisnetos nascerem. A segunda regra, secundária, reflete a totalidade moral que deve existir entre o povo. Vivemos em tempos de reconstrução, onde a instituição familiar deve ser edificada com êxito. Quando uma mu- 5
  • 6. Murillo Costa - Livro Os Renegados lher engravida sem estar legalmente casada, seu filho, independente do rodízio, se tornará um Renegado quando alcançar a idade certa. Como complemento, obrigatoriamente os pais deverão se casar e se o filho morrer na Arena, eles deverão ter um segundo para assumir a primogenitura, e este, se cair no rodízio, também será um Renegado. A terceira regra reflete a lealdade que todo cidadão deve ao gover- no. Se algum de nós possuir pendências políticas, como dívidas ou processos, poderá oferecer seu primogênito como Renegado para obter concessões especiais. Nunca fiquei sabendo de alguém que fez uso dessa artimanha. Quatrocentos Renegados por Arena. Quatrocentos escolhidos para fortalecer a Convergência com suas próprias vidas. Eu sempre esti- mei a Convergência como nosso guia principal e acredito que se sa- crificar por ela é um dos atos mais nobres, mas um sacrifício deixa de ter esse nome quando é feito por intimação – nesse exato mo- mento é que percebemos a mão dos Venites corrompendo princí- pios fundamentais. Rubens, meu amigo, se tornará um Renegado amanhã. Ele sempre soube que seu futuro seria esse, foi uma das primeiras informações gravadas em seu microchip. Quando ele completou dezesseis anos, em vez de receber uma designação de trabalho, ele recebeu uma car- ta de recrutamento constando a data em que ele iria para a Arena. Finalmente o discurso acaba, mas a noite ainda continua. Alfredo chama nossa atenção para os dois grandes telões do Edifício Oval – um acima do palco e outro acima do portão. Eles começam a mos- trar cenas rápidas do último período letivo da Arena: o tradicional estiamento da bandeira da Arena marcando o início do período, as 6
  • 7. Murillo Costa - Livro Os Renegados filas de Renegados entrando em suas dependências. Logo mais, ve- mos os Renegados em seus treinamentos e atividades, seus corpos magros, alguns destruídos por doenças e ferimentos, mutilados, mortos. Ao canto na tela há um contador numérico e à medida que os vídeos vão passando, o número vai caindo. De quatrocentos no estiamento da bandeira para sete no final da última prova, ao término dos dois anos. Sete. Esse é o número dos Renegados que venceram neste período. Entre esses estão os que formarão o novo Corpo de Legítimos, a casa que tiver o maior número deles formará o novo governo. Mais cedo, quando falei com Rubens sobre mudanças acontecerem, tinha em mente a casa dos Venites saindo do poder. Isso é o que a grande maioria de nós espera, mas esse número de sobreviventes não nos dá muita esperança. Meus pais estão fixos na TV, inexpressivos. Assim que os vídeos acabam, Alfredo indica um lugar no meio de quatro fontes de água, no jardim próximo ao palco. Há um buraco perfeitamente retangular. Canhões de luz miram no lugar, revelando uma plataforma de mármore que está emergindo do poço escuro, trazendo à tona os sete vencedores, os sete novos Legítimos de Atlântida. O público os aplaude em meio a gritos e confetes. Ao saírem da plataforma, os sete formam uma fila e sobem ao palco por uma escada revestida de ouro e coberta por um tapete vermelho com bordas amarelas. Ao acenarem, as câmeras nos mostram as pal- mas de suas mãos, onde está tatuada a marca dos Legítimos – uma 7
  • 8. Murillo Costa - Livro Os Renegados letra “L” fina com arcos finos envolvendo-a na dobra de mais ou menos quarenta e cinco graus da letra. De pé em cima do palco, Alfredo os percorre, pegando na mão de cada um e congratulando-os com uma medalha de ouro, às quais fixa em seus ombros – nas medalhas está gravado o símbolo da Are- na, o perfil de um leão. Oficial e definitivamente, os sete são Legítimos. Acabam de assegu- rar a existência de mais quatro gerações de suas famílias. – Atlântida, esses são os seus novos Legítimos, provados pelo fogo e moldados como ferro forte! Os brados e aplausos frenéticos das multidões fazem as caixas de som da nossa TV produzirem ruído. – A Arena foi mesmo incrível, não acham? Os Renegados en- frentaram muitos desafios e conseguiram muitas superações. Estaremos em boas mãos nos próximos dois anos. Vamos agora pedir para os Legítimos que farão parte do novo Cor- po tomarem seus lugares. Ao som da Saudação, uma música instrumental criada especialmen- te para esse momento, os Legítimos integrantes do, a partir de agora, findado Corpo se levantam ficando de pé ao lado das cadeiras e en- tão os novos Legítimos se movimentam. Todos os sete se sentam. – Atlântida, veja isso! Ineditamente, todos os sobreviventes fa- rão parte do novo Corpo de Legítimos! Isso quer dizer então que somente uma casa conseguiu vencer a Quinquagésima Arena dos Renegados! Uma só casa. Somente os mais fortes sobrevivem. E todos nós sabe- mos quem são os mais fortes. 8
  • 9. Murillo Costa - Livro Os Renegados Alfredo prossegue: – Vamos responder o que todos vocês querem saber! Qual é essa única casa que sobreviveu? Olhem para o telão! Todos os olhos e câmeras miram os telões e por um breve momento tudo se silencia. Inclino-me sobre os joelhos, apoiando os cotovelos neles. Minha mãe segura firme a mão do meu pai. A imagem toma conta dos telões: a bandeira da casa vencedora aparece, como se es- tivesse sendo abanada pelo vento. Fecho os olhos ao ver, porque mais uma vez os Venites venceram a Arena; por mais dois anos eles estarão no poder. Se somente esses sete Venites sobreviveram, o que será das outras casas na próxima Arena? Imagino os olhos sem esperança de Rubens assistindo a isso. Nas Graduações anteriores havia mais vencedores, talvez cinco ou seis das demais casas e uns dez a doze dos Venites. Esses, em menos quantidade, assumem cargos públicos como encar- regados de administrações de cidades, departamentos ou ajudam sua casa de qualquer outra forma. Alfredo chama o novo corpo de Legítimos para a próxima parte da cerimônia, o Juramento – essa é a deixa para os antigos Legítimos saíram do palco. Alfredo, de frente para os sete, tem em suas mãos o livro original em que foram escritas as leis do nosso país. Quando ele abre o livro, os Legítimos levantam suas mãos direitas e dizem em uníssono: “Eu prometo reger Atlântida, executar suas leis, man- ter sua tradição e garantir sua sobrevivência. A Convergência nos arrebata à salvação, a dissensão nos rebaixa à morte. Todas as casas como uma só mente, um só corpo.” Tradicionalmente não há aplausos no Juramento porque são consi- 9
  • 10. Murillo Costa - Livro Os Renegados derados desrespeitosos diante da solenidade da ocasião. A cerimônia chega à sua parte final, o último suspiro da Arena: mais uma vez nossa atenção é chamada para o meio do jardim, onde um segundo poço é iluminado pelos holofotes. De dentro dele, emerge uma pesada plataforma de ferro. Meu estômago gela quando se tor- na possível ver os indivíduos trazidos por ela. Esses são os declara- dos Incapazes. Doze nesta noite. São Renegados sobreviventes da última prova da Arena, mas que não tiveram um bom desempenho durante todo o período para somar os pontos necessários para se tornarem Legítimos e continuarem vivos. Seus punhos estão acorrentados à plataforma. Os olhos estão ven- dados com tiras de tecido preto, suas roupas são brancas e folgadas, com listras cinzas, seus pés estão descalços. As áreas escuras que contornam o palco parecem tomar forma quando um grupo de doze atiradores da elite do exército, conhecidos como Executores, saem de lá e posicionam-se na frente da plataforma – um soldado para cada Incapaz. Como primeiro ato que os definem como verdadeiros Venites, o novo Corpo de Legítimos sinaliza para que os militares primam os gatilhos, executando os Incapazes quase que simultanea- mente. O público demonstra sua total frieza erguendo e agitando suas bandeiras para o ato. Isso poe fim ao show da noite. Olho para meu pai, seu rosto apreensivo. Quando eu estava no ter- ceiro ano da escola, lembro que pulei demonstrando alegria quando os Incapazes daquela Graduação foram executados. Ele me advertiu imediatamente, dizendo que aquele ato – ao contrário do que me ensinavam na escola – era repulsivo. Desde então observo as atitu- des do meu pai, admirando algumas virtudes, mas com medo de que 10
  • 11. Murillo Costa - Livro Os Renegados algum dia as palavras que ele diz em cochichos enquanto trabalha- mos no barulho da carpintaria acabe lhe dando problemas. O pior delito que alguém pode cometer é a dissidência, encarado como cri- me contra a Convergência, com a mínima punição de execução. Alfredo encerra a cerimônia. Agora os novos governantes e os in- fluentes de Atlântida terão um jantar de comemoração. Alfredo con- vida a todos para o jantar, o que graças às cestas dadas pelo governo, cada família pode simbolicamente participar. Meu pai, em mais um de seus protestos pessoais, sempre pede que minha mãe apronte nossa refeição para antes da Graduação. Isso me faz lembrar que os Venites não são invulneráveis e que a Convergência é algo muito maior que eles. A transmissão se encerra e depois de uma breve estática a TV se desliga. Meu pai olha para mim, esboçando um sorriso atencioso. “Agora você já é maior de idade, sabe o que vai ter de fazer”, diz ele. Completei dezesseis anos no final do ano passado, em novembro, dando ao governo a autoridade de exigir de mim lealdade. Ouvimos um caminhão parando em nossa rua; em pouco tempo os soldados da Visão da Convergência – a polícia do nosso país – começam a percorrer as casas. De repente, três batidas em nossa porta. – À Convergência! Família Sólon? – pergunta o soldado quan- do meu pai atende. – Pacto de Lealdade. “À Convergência!”, meu pai o cumprimenta, convidando-o entrar. O homem alto e robusto fica de pé, no meio da sala, conferindo al- guns papeis; por fim, levanta os olhos e diz: – O Pacto de Lealdade afirma vossas decisões de permanecer como parte de Atlântida, cidadão livre, em pleno gozo dos 11
  • 12. Murillo Costa - Livro Os Renegados seus direitos. Caso se recusem a assinar, nenhuma pena será imposta, mas se tornarão marginais, sobrevivendo por conta e descartados pelo resto de Atlântida; perderão todos os di- reitos de um cidadão comum. Podemos começar com o se- nhor – diz ele ao meu pai. – Estende o braço. O soldado mira a outra extremidade de sua caneta sobre a pele do braço do meu pai, fazendo com que o objeto emita uma luz verme- lha, conferindo a identidade do meu pai através da leitura do micro- chip. Por fim o soldado entrega uma das folhas amarelas e pergunta se ele irá assinar. Meu pai não responde, apenas assina, declarando total lealdade ao novo Corpo de Legítimos. O mesmo procedimento é feito com minha mãe, que também não hesita em assinar. Por fim o soldado olha para mim. “Garoto, estende o braço.” Faço o que ele indica e logo depois ele me entrega o documento. Olho para meu pai e assino a declaração. Entrego a folha e o soldado vai embo- ra, nos desejando um bom jantar. Meu pai força um sorriso para nós e sai da sala – ele sempre fica incomodado quando assina o Pacto de Lealdade. Antes que o sol na manhã seguinte apareça, já estou de pé, vestido com uma das grossas calças jeans e camisa de manga longa que eu e meu pai usamos para trabalhar. Como um pedaço de pão acompa- nhado de chá, que minha mãe fez a partir de ervas que ela planta no fundo do quintal. Com a luz tênue do sol nascente, já estou descen- do a rua de asfalto remendado em direção à casa de Rubens, que mora cinco ruas abaixo – minha casa fica há poucos metros do fim da cidade, onde sua divisão com a floresta se torna quase indistin- guível. 12
  • 13. Murillo Costa - Livro Os Renegados Bato na porta e o pai dele me atende – entre as pernas dele, vejo o irmão pequeno de Rubens. O senhor Bernardes me convida pra en- trar, mas logo Rubens aparece. – Oi, acordou cedo mesmo – diz ele ao me atender na porta. – Eu disse que seria cedo. E também depois da noite de ontem, queria que o dia de hoje chegasse logo – mordo os lábios percebendo que essas não eram as melhores palavras que podiam ser ditas para alguém que vai se tornar um Renega- do HOJE. – Quer dizer... – Tudo bem, a noite foi ruim mesmo. Seus olhos estão ainda mais vermelhos e uma bolsa azulada se for- mou debaixo deles. – E aí? Quer dar uma volta? – pergunto. – Por que não? Uma última olhada na cidade não será ruim. Em pouco tempo de caminhada, chegamos na pequena praça próxi- ma à rua de comércios; nos sentamos em um dos bancos de madeira, ao lado de arbustos. À nossa frente está a estação de transmissão, composta por uma alta antena vermelha e, cercando-a em um qua- drado, há uma parede onde são fixadas grandes telas de plasma, uma em cada lado, para transmissões públicas. Nesse momento está sen- do exibido o primeiro telejornal do dia, com reprises da Graduação e cenas do jantar com os novos Legítimos. Sempre um desses telões é reservado à exibição das metas de traba- lho, que são os números de produção, arrecadação e distribuição de recursos. Quando esses números são alcançados, temos redução de impostos, preços mais baixos ou horas de trabalho reduzidas, mas quando ficam abaixo do esperado, o inverso acontece. Um espaço 13
  • 14. Murillo Costa - Livro Os Renegados dessa tela é sempre reservada ao catálogo de criminosos procurados. O rosto mais frequente é o de Belsazar, dissidente responsável por vários atentados violentos contra a nação, condenado por crime contra a Convergência. O Corpo de Legítimos oferece uma alta re- compensa por ele, vivo ou morto. Os ataques não são comuns, mas acontecem vez por outra – um incêndio numa lavoura, alguma bomba explodindo numa rua movimentada de alguma cidade gran- de. – A que horas você vai? – Tenho que estar no Centro Militar às nove, nosso voo sairá às dez. A conversa para, não sei o que dizer. – A melhor parte é que só eles conseguiram ontem. Sós os Ve- nites saíram vivos – diz Rubens. – Isso não significa nada. A Arena não é previsível, não dá para dizer quem vai ficar vivo e quem não vai. Meu avô foi um Renegado e conseguiu se tornar um Legítimo, se não fosse isso, eu não estaria aqui. – O último Legítimo em minha família foi um tio distante, nem sei bem. Mas é pela Convergência... o todo é mais im- portante que o indivíduo – ele cita uma frase fielmente ensi- nada nas escolas. – É uma honra que não deixa de dar medo. Ainda não entendo porque a Convergência precisa desse tipo de sacrifício – digo quase num sussurro. – Já tentamos responder essas questões antes e não chegamos em lugar nenhum. É melhor parar por aqui, nós já podemos 14
  • 15. Murillo Costa - Livro Os Renegados ser presos. – Quem sabe não te levam para a cadeia em vez da Arena? Ele sorri, descrente. – Eu tenho de ir, preciso arrumar umas coisas ainda. – Certo. Eu vou ter de esperar os mercados abrirem. Precisa- mos de lixas novas para a carpintaria. Nos levantamos e nos direcionamos para nossos destinos. – Rubens, não esqueça de escrever – um nó se forma em mi- nha garganta. – Não esqueço! – responde ele, de cabeça baixa e me abraçan- do. – Te espero daqui há dois anos – bato com a palma da minha mão em suas costas. – Vou fazer de tudo pra sair de lá! Acredito que colaboro mais com a Convergência se ficar vivo – seus olhos estão verme- lhos e os meus também se esquentam. Seguimos, sem olhar para trás. Quando chego na rua dos comércios, encontro as lojas e armazéns abrindo suas portas. Sempre compramos cedo para pegar as coisas ainda frescas, já que o que é vendido aqui, em maioria, são as sobras do que é enviado para as cidades ricas, tanto de nossa casa patriarcal, como das outras. Me deparo com preços altos, o que é normal depois da Graduação, quando os comerciantes tentam resgatar o prejuízo que tiveram ao ceder parte de seus produtos para as cestas. Isso tudo não passa de uma estratégia do governo: dar em abundância para uma noite e de- pois pegar tudo de volta por meio dos impostos aplicados a cada 15
  • 16. Murillo Costa - Livro Os Renegados compra realizada no dia seguinte. Nessas ocasiões é que vigora uma boa técnica para os pobres: a pe- chincha. Vou até o armazém de um velho gordo e meio careca cha- mado Braz, meu conhecido de negócios. – À Convergência, Braz! O que tem barato hoje? – Barato? Você quer me quebrar? – Ah, podemos negociar, não podemos? – Claro, me diz o quanto tem e eu te digo o que pode levar. Apesar de parecer intimidador, ele é o mercador mais maleável que temos em nossa cidade. Consigo comprar duas pencas de banana pelo preço de uma, mas consigo poucos descontos nas outras coisas. Quando passo o cartão de crédito do meu pai, o sistema acusa que já atingimos o limite semanal que cada família tem direito, a partir daí a mercadoria tem um imposto mais alto, o que me obriga a voltar para casa com sacolas magras. Ainda bem que sobrou algo da cesta. Por último, entro na única loja de ferramentas da nossa cidade e compro uma caixa de lixas, usando o crédito do meu próprio cartão. O cartão de crédito é o único meio que temos para pagar por qual- quer compra de produtos ou serviços. O crédito é conseguido tanto pelo nosso serviço quanto pelas nossas horas trabalhadas. Como eu e meu pai trabalhamos em uma atividade autônoma, recebemos os créditos dos pagamentos de nossos clientes e um pequeno acréscimo segundo um cálculo percentual das horas trabalhadas. Recebi meu cartão no fim do ano passado junto com uma designa- ção de serviço na carpintaria. Acredito que acharam melhor me manter trabalhando com meu pai, já que meu desempenho escolar não me permitiu cursar alguma das conceituadas escolas técnicas 16
  • 17. Murillo Costa - Livro Os Renegados das Primeiras Cidades, as capitais. Talvez algum dia me mudem de ramo, quando eu constituir família e precisar de mais crédito. Isso me faz lembrar que agora que cheguei aos dezesseis anos, o cartão debitador da minha mãe será reativado e ela será designada a algum serviço. Já deve passar das oito quando chego na minha rua. Ao me aproxi- mar da minha casa, vejo dois soldados, não os vigilantes da Visão da Convergência, mas militares, na porta. Eles me cumprimentam e eu entro em casa já notando o clima pesado. Na cozinha, vejo meu pai sentado à mesa com um oficial militar; os olhos desesperados de mi- nha mãe só não chamam mais atenção do que os olhos fixos do meu pai em mim. Eles tentam sorrir para mim, como se estivessem feli- zes, o que só aumenta minha ansiedade. Em cima da mesa repousa um papel, julgo ser um documento. – Então você está aí! – diz o militar – À Convergência! Coloco as sacolas em cima da mesa e respondo: – À Convergência. Estão atrás de mim? – Nesta manhã você recebeu uma grande honra e vim até aqui trazê-la. – Espero que seja uma boa notícia, então – digo num meio sorriso forçado. – Ah, sim! É sua chance de mostrar seu valor para nosso povo. Mostrar meu valor? Isso não é conversa que me agrade bem na épo- ca em que uma nova Arena está iniciando. Ele me aponta o docu- mento em cima da mesa e eu o pego. Dou dois passos até encontrar a parede para escorar. Só o leio de alto a baixo para ter certeza do que está escrito logo no seu topo. 17
  • 18. Murillo Costa - Livro Os Renegados “Ordem de Convocação” é o título. “Selecionado para o Quinquagé- simo Primeiro Período Letivo da Arena dos Renegados: Pedro Só- lon”. 18