SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 83
Baixar para ler offline
ENOI MIRANDA BARBOSA MENDES
MÚSICA CAIPIRA – ORIGENS E ATUALIDADE – A
REPRESENTAÇÃO DO HOMEM DO CAMPO NAS LETRAS
DAS CANÇÕES SERTANEJAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA
agosto de 2007
ENOI MIRANDA BARBOSA MENDES
MÚSICA CAIPIRA – ORIGENS E ATUALIDADE – A
REPRESENTAÇÃO DO HOMEM DO CAMPO NAS LETRAS
DAS CANÇÕES SERTANEJAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- -
graduação em Letras da Universidade Federal de São
João del-Rei, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da
Cultura
Linha de Pesquisa: Discurso e representação
Orientador: Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA
agosto de 2007
À Maria José de Miranda (NEM), sempre
presente, força, luz, apoio incondicional na minha
caminhada...
Às minhas filhas Enói Maria e Glória Maria,
impulso, objetivo, razão de ser de eu estar aqui...
À minha MUSA INSPIRADORA, que sempre me
enviou do ALTO, na hora certa, o alento e o suporte
indispensáveis.
AGRADECIMENTOS
A meus PAIS, pela luta e dedicação incansáveis em prol de minha formação pessoal
e acadêmica.
A meus IRMÃOS, Chico e João, pela compreensão, pelo apoio incondicional à
minha luta em busca de uma realização.
A meu irmão Jósimo, sempre presente, pela amizade constante que a mim dedicou
durante o tempo que pudemos viver juntos.
Ao DELAC – Departamento de Letras, Artes e Cultura da UFSJ, que soube
compreender a minha aspiração pelo Mestrado e me tornou possível a sua
realização.
Aos meus Colegas-Professores do Departamento, que me acompanharam de
perto nesta caminhada, pela atenção especial que me dispensaram.
Aos meus Amigos, que souberam compreender a minha ausência durante a
realização deste trabalho.
Às minhas Companheiras do dia-a-dia em minha casa, Rosa e Lúcia, pela
atenção, pelo carinho e pela disponibilidade que sempre me dedicaram.
Ao Alencar, pelo companheirismo, e às minhas filhas, por terem sabido
compreender a ausência materna durante esta trajetória com resignação e aceitação
tamanhas.
À UFSJ – Universidade Federal de São João del-Rei, pela oportunidade que por
ela me foi concedida de realizar o meu Mestrado, e aos meus alunos, que sempre
se fizeram presentes ao meu trabalho.
Ao povo das áreas rurais brasileiras e, por conseqüência, à minha família, que é
caipira, razão deste estudo.
Aos meus colegas do Mestrado, pela amizade e colaboração.
À ZEZÉ, fiel amiga-irmã e companheira de trabalho, pela carinhosa revisão deste
trabalho.
A todos os funcionários da UFSJ, em especial, à Lais e ao Anderson, pela
atenção e pronto atendimento a mim dispensados.
A DEUS, força suprema, por tudo.
RESUMO
Breve análise do gênero musical denominado sertanejo, de sua trajetória e dos
temas abordados em sua significação, não apenas para o homem do campo, mas também
enquanto fundador e mantenedor de uma identidade brasileira, considerando as
transformações ocorridas no país no curso de seu desenvolvimento durante o século XX,
que provocou, entre outras conseqüências, o deslocamento massivo da população
campesina para o universo urbano.
Reflexão sobre a idealização do sertanejo, a manutenção de sua identidade em
contraponto à ausência desta percebida no universo urbano. Tal reflexão é feita a partir da
análise dos significados inseridos nas canções e dos temas abordados, em suas possíveis
significações no imaginário nacional, que provoca a expansão do gênero.
Discussão a respeito das possibilidades de expressão e/ou representação do
homem do campo nas letras das canções sertanejas, entendidas como possibilidades de
(re)identificação deste homem com o universo rural do qual se distanciou a partir da
migração para as grandes cidades e como busca de integração do universo campesino ao
urbano.
Essas discussões e reflexões amparam-se, de um lado, no que se convencionou
chamar “Estudos culturais” e, por outro, nos conceitos de “desenraizamento”, tal como o
mesmo é apresentado por Néstor Garcia Canclini, e no de “processo comunicacional” –
conforme é apresentado por Stuart Hall – de modo a relacionar as formas de produção e
inserção desse gênero junto a seu público alvo.
Palavras-chave: Brasil – música – sertaneja – análise – Estudos Culturais
ABSTRACT
Brief analysis of the musical genre known as “sertanejo”, of its trajectory and
themes approached in its signification not only for country folks but also as a founding and
maintenance element for Brazilian identity, considering the transformations that occurred in
the country throughout its development in the 20th Century, which provoked, among other
consequences, massive migrations from the country to the urban space.
A reflection on the idealization of the “sertanejo” figure, the maintenance of his
identity as opposed to his absence in the urban universe. Such reflection is based on the
analysis of signfieds present in the songs and themes approached, and their possible
signification for the national imaginary, which provokes the expansion of the genre.
Discussion on the possibilities of expression and/or representation of country folks in
the lyrics of “sertaneja” songs, which are understood as possibilities of (re)identification of
such people with the rural universe left behind after migration to the large cities and as a
search for integration of the country universe within the urban space.
Discussion and analysis will rely, on the one hand, on what has conventionally been
called “Cultural Studies”, and, on the other hand, on the concepts of “uprootedness”, as
presented by Néstor Garcia Canclini, and “communicational process”, proposed by Stuart
Hall, so as to relate the forms of production and insertion of this genre into its target
audience.
Keywords: Brazil – sertaneja music – analysis – Cultural Studies
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................... 08
Capítulo 1
O “não-lugar” do homem do campo no meio urbano ..............17
Capítulo 2
A trajetória histórica da canção sertaneja ............................... 31
Capítulo 3
O público e o privado como produto de consumo .................. 40
Capítulo 4
“Tristezas do Jeca”: A dor da perda como grande tema do
cancioneiro sertanejo.................................................................. 52
Considerações finais .................................................................. 68
Referências bibliográficas ......................................................... 72
Anexos.......................................................................................... 74
8
INTRODUÇÃO
O trabalho ora apresentado pretende discutir alguns aspectos do
gênero musical denominado sertanejo (ou caipira)1
. A dissertação parte da
análise da trajetória desse gênero de música e dos temas abordados em sua
significação, não apenas para o homem do campo, mas também enquanto
elemento fundador e mantenedor de uma identidade brasileira. Essa questão é
particularmente relevante num país cujo desenvolvimento trouxe, em seu bojo,
entre outras conseqüências, o deslocamento massivo de sua população
campesina para o universo urbano.
A pesquisa tomou como ponto de partida as reflexões de Letícia
Vianna (2003) a respeito das identidades sociais encontradas na música
popular. A autora, embora reconheça o estatuto de mercadoria da música “de
massa”, aponta um continente de significados coletivamente atribuídos (p. 71)
a esse produto. Desse modo, o que se buscou foi trabalhar os significados
inseridos na representação do homem do campo através da canção sertaneja
em suas relações com o público para o qual ela é, atualmente, direcionada.
Embora a alteridade constituída entre o sertão, a roça e a cidade na
música e no imaginário geral das artes (VIANNA, 2003, p. 74) estabeleça-se
no país desde o século XIX, as reflexões aqui desenvolvidas têm, como ponto
de partida e de referência, as primeiras décadas do século passado. Foi
naquele momento que, no Brasil, a música se tornou um importante vetor de
afirmação, transformando-se em “um lugar privilegiado para a construção e
afirmação de identidades regionais e nacionais” (Idem).
A referência temporal dos anos 1920 explica-se pelo fato de ser o
período marcado pelas migrações dos “sertanejos”2
das regiões centro-sul do
1
A nomenclatura “música sertaneja”, passa a ser usada a partir dos anos 50, na busca de
afastamento do termo “caipira” para ampliação do mercado consumidor. Como, entretanto,
ambos os termos tinham, originalmente, a mesma significação, serão aqui, utilizados
indistintamente.
2
As denominações “caipira”, matuto, caboclo, ou “sertanejo”, são usadas para designação
geral do homem do campo, com pouquíssimas diferenças de significação. Entre a primeira
9
Brasil para as “cidades grandes”, que se industrializavam e “prometiam”, assim,
novas e maiores possibilidades de trabalho. Dessa forma, embora tratando do
universo rural, o movimento de consolidação de uma forma musical que será
chamada “caipira” ou “sertaneja” se dará, de fato, na “cidade”. Segundo autores
como Waldenir Caldas (1977) e Rosa Nepomuceno (1999), a caracterização
como um gênero urbano marcaria tão-somente as referências a matrizes de um
outro universo, já folclorizado, e que trazia, portanto, para a cidade, uma certa
nostalgia daquele cotidiano, de um mundo agropastoril distante do local de sua
produção.
Na reprodução urbana do universo agropastoril, observa-se que a
representação do sertanejo é bastante idealizada. Essa idealização parece, em
parte, fruto da decepção do homem do campo com a vida na cidade e, por
outro lado, devida a uma necessidade mais geral de busca de uma identidade
nacional. Conforme afirma Nelson Werneck Sodré, na impossibilidade de,
romanticamente, se eleger o índio como representante do que era nacional,
transfere-se ao sertanejo, ao homem do interior, o dom de exprimir o Brasil
(1976, p. 323), em contraponto a um “outro” Brasil que se formava e que,
aparentemente, perdia sua face.
O que se pretende discutir, portanto, é que, ao contrário da imagem do
“jeca”, do “caipira” incauto estabelecida ao longo do século XIX, a
representação do homem do campo nas canções sertanejas, que começam a
ser divulgadas nos anos 1920, vai tratar das especificidades do universo rural a
partir de um outro ângulo, o da idealização, o da manutenção de sua identidade
em contraponto com a ausência dessa percebida no universo urbano. Tal
discussão será proposta, como inicialmente mencionada, a partir da análise
dos significados ali inseridos e dos temas abordados, em suas possíveis
significações, considerando a eventual reavaliação funcional da categoria
‘sertão’ (VIANNA, 2003: 82) no imaginário nacional, que provoca a expansão
do gênero.
(caipira) e a última (sertanejo), a diferença estabelecida por Walter de Sousa, por exemplo, é
de que a primeira se refere ao rústico sedentário, mais ligado à agricultura e, a segunda, ao
homem ligado à pecuária e devido a essa atividade, mais nômade, sendo, entretanto, ambas
utilizadas para designar a figura fronteiriça do homem do campo, seja agricultor, seja ligado à
pecuária, migrado para o universo urbano.
10
Justificativa
A nossa identificação com esta manifestação da cultura popular, a
música caipira ou sertaneja, é uma questão de origem, de berço. Nascemos e
crescemos no meio rural, embalados pelo melodioso canto dos pássaros, em
contato direto com a natureza e desfrutando de tudo que ela podia nos
oferecer.
Esse contato, ou melhor, essa vivência com a terra criou em nós raízes
profundas e um forte envolvimento afetivo com as canções, ouvidas na época,
que retratavam a alma de um povo simples, da gente que trabalha na roça, no
cabo de uma enxada, de uma foice ou de um machado. Era essa a vida que
levávamos e, assim, fomos criados.
A afinidade intensa que temos com essas canções transcende razões
intelectuais/científicas. São razões afetivas mesmo, porque elas reproduzem o
nosso jeito, o nosso falar dos grotões, renegado durante um período e, depois,
valorizado por Cornélio Pires. Em nossas reuniões familiares, na cozinha, em
volta do fogão de lenha, ou no terreiro, sob a luz do luar, as canções eram
entoadas e nos transmitiam sentimentos, emoções, ternura, pureza. Elas
desencadeavam histórias e anedotas, que ouvíamos com gosto. Assim foi a
nossa infância: correndo pelos pequenos rios e córregos, subindo em árvores,
armando arapuca para pegar saracura, ouvindo "causos" até tarde da noite e
cantarolando as canções da época.
Um pouco depois, ao nos deslocarmos para o centro urbano em busca
de estudo e de uma profissão, pudemos, com certeza, chorar de saudades
daquela vida deixada para trás, tão singela e simples, mas carregada de
beleza, de naturalidade e de espontaneidade. No contato com os livros,
durante todos os anos de estudo na cidade (sem perder o contato com aquele
universo), tivemos o propósito de trabalhar com um tema que realmente se
identificasse conosco. Ao conhecer o livro de Antonio Candido, Os Parceiros do
Rio Bonito, não tivemos dúvida. Ali estava o que procurávamos: a história de
como vivem, trabalham, comem, rezam e se divertem os habitantes de uma
comunidade rural, no interior de São Paulo. Um grupo de autênticos caipiras,
11
como nós, com um tipo de vida muito parecido. Então, diante disso, ousamos
resgatar e resguardar esse tesouro constituído pelo repertório da música
caipira que nunca se apagou dentro de nós.
A relevância do presente trabalho ancora-se, também, na constatação
de quão parcos são os estudos a respeito das conseqüências culturais
decorridas das transformações do país ocorridas na década de 1920. Nesse
período, inicia-se um acelerado processo de industrialização que colocará em
campos opostos o Brasil agrário e o Brasil urbano. Verifica-se, nesse confronto,
um movimento de valorização do universo agrário em contraponto à
desintegração do tecido social provocada pela vida na “cidade grande”, que se
manifestou claramente na canção popular e, sobretudo, no caso em análise, na
música sertaneja.
Dessa forma, o trabalho aqui desenvolvido pretende discutir as
possibilidades de expressão e/ou representação do homem do campo nas
letras das canções sertanejas, considerando sua relevância para o
estabelecimento e/ou manutenção de uma identidade deste homem em sua
(in)adaptação ao universo urbano. Tal representação é entendida, por um lado,
como possibilidade de (re)identificação deste homem com o universo rural do
qual se distanciou a partir da migração para as grandes cidades e, por outro,
como busca de integração do universo campesino ao urbano.
Para efetuar, portanto, a breve análise de obras que aqui se apresenta,
julga-se ser importante considerar o contexto de sua criação, o público ao qual
elas se dirigem e o tipo de conteúdo abordado. Nesse sentido, a escolha das
canções aqui analisadas se deu em função não apenas dos temas abordados –
representativos de questões recorrentes na relação entre os personagens ali
retratados e seu universo – quanto da enorme aceitação dessas músicas pelo
público ao qual são dirigidas. Essa expressiva repercussão popular pode ser
confirmada pela inserção da música sertaneja ou caipira em rádios e
programas de televisão, assim como pelos expressivos números relativos à
venda de cds de seus intérpretes.
Por outro lado, este estudo considera, ainda, o histórico do movimento
de migração ocorrido no Brasil, que virá a provocar o surgimento do gênero
musical aqui analisado, em suas conseqüências sociais para ambos os
12
universos (urbano e rural). Esta abordagem se realiza sobretudo a partir das
reflexões propostas por Antonio Candido de Mello e Souza, em Os parceiros do
Rio Bonito (2003), e por Walter de Sousa, em Moda inviolada (2005).
Para além da forma como se enuncia o discurso3
nas canções
sertanejas e do histórico do movimento no Brasil, acreditou-se ser igualmente
importante apreciar os conteúdos abordados nas letras das canções, que
desvelam, em boa parte, o universo a ser analisado e o das representações
simbólicas disseminadas nas letras das canções.
Para essa análise, contemplamos o processo comunicacional no qual
se verificam os momentos de “produção, circulação, distribuição / consumo,
reprodução”, conforme é apresentado por Stuart Hall. Segundo este autor,
cada aspecto é articulado com o outro, mas mantém suas peculiaridades
(HALL, 2003, p. 387), e na qual se ressaltariam o viés econômico– relação
produção-distribuição-produção e a idéia de “produção” discursiva em que o
produto aparece em cada momento da articulação proposta anteriormente.
Consideramos, ainda, relevante, na análise aqui apresentada, a
questão do desenraizamento verificado no homem do campo que se projeta no
discurso da canção sertaneja. Como diria Néstor Garcia Canclini, passamos de
sociedades dispersas em milhares de comunidades rurais, com culturas
tradicionais, a uma trama majoritariamente urbana, que dispõe de uma oferta
simbólica heterogênea, renovada por uma constante interação com redes
nacionais e transnacionais de comunicação. Esse fenômeno explica o
sentimento de perda de identidade constante nas letras daquelas músicas,
auxiliando na reflexão a respeito das dificuldades desse homem
desterritorializado no universo urbano.
Nota-se, assim, que a situação de inadequação de que tratam as
canções deve-se, por certo, ao que Néstor Canclini chama de movimentos de
desterritorialização e reterritorialização. As mudanças operadas por esses
movimentos caracterizariam o deslocamento entre a modernidade e a pós-
3
O termo é aqui usado na acepção utilizada, por exemplo, por Luiz Carlos TRAVAGLIA, para
quem o discurso é “o resultado das condições de produção que englobam tudo o que envolve e
subjaz ao enunciado e com ele interage constituindo-o e sendo por ele constituído: falante,
ouvinte, suas naturezas, conhecimentos, pressupostos, imagens que fazem de si mesmo [sic],
do outro e daquilo de que falam, lugar, tempo, o assunto, inferências, objetivos, intenções, o
lugar social de que falam e ouvem etc.” (1987, p. 127)
13
-modernidade e teriam origem a partir da transnacionalização dos mercados
simbólicos e das migrações.
Para além desse sentimento de inadequação exposto nas letras das
canções, outros temas são discutidos. Nesse sentido, quanto ao estudo das
temáticas abordadas, há que se observar que vivemos o tempo do consumo. E
nesse tempo, ininterruptamente, consumimos os mais diferentes conteúdos
assimiláveis. Com relação aos produtos que são oferecidos, a busca de um
público variado requer uma variedade na informação para satisfazer todos os
interesses e gostos de modo a obter o máximo de consumo. Nesse processo,
estão disponíveis não apenas conteúdos considerados públicos, mas também
a vida privada é dada à degustação das platéias nas mais variadas formas de
comunicação.
Essa relação “oferta excessiva – consumo máximo” designa um dos
sinais da contemporaneidade, dado que, conforme diz Edgar Morin, a partir dos
anos 30, a comunicação de massa impõe seu caráter próprio, ao dirigir-se a
todos, abolindo barreiras de idade, sexo, classe social, identidade cultural. As
fronteiras culturais são eliminadas no mercado comum dos meios de
comunicação e, nesse sentido, a cultura industrial é o único grande terreno de
comunicação entre as classes sociais (1967, p.43).
Nessa indefinição de fronteiras, as manifestações culturais aproximam-
-se, inexoravelmente, tanto na forma de difusão quanto nos conteúdos
abordados. A indústria da cultura manifesta-se assim nos mais diferentes
meios: a literatura massifica-se e torna-se produto de mercado, o texto torna-se
imagem, e a música abre um leque cada vez mais amplo de alcance. Quanto
aos conteúdos, observa-se cada vez mais o entrelaçamento do público e do
privado nos temas abordados.
Dentre esses conteúdos – a se deter na análise da exposição de
situações que há pouco tempo seriam consideradas do domínio da privacidade,
ou da intimidade, e que se tornaram comuns, quais sejam (no caso do presente
projeto, as relações amorosas) – cabe lembrar que a música, hoje, não é
apenas ouvida nas rádios. Seus intérpretes se apresentam na TV para
divulgarem seu trabalho, e a TV, por sua vez, transforma essa apresentação
em um verdadeiro “show” ou “espetáculo”.
14
Conforme John B. Thompson, este tornar público o seu sentimento ou o
de outrem, expondo-o a uma visibilidade máxima, é outra das características
de nosso tempo e contribui para a construção da “imagem do artista”. Assim,
também esse aspecto é abordado no trabalho aqui apresentado.
Metodologia
A metodologia de trabalho utilizada constou de três etapas. Na
primeira, uma pesquisa bibliográfica propiciou a leitura de artigos e obras que
pudessem auxiliar a estabelecer um referencial teórico para a construção das
reflexões ora propostas, bem como aqueles relacionados diretamente à música
popular.
A segunda etapa do trabalho abrangeu uma pesquisa em fontes
secundárias, na qual se realizou o levantamento de publicações periódicas
(jornais, revistas) que contivessem comentários e/ou críticas sobre a música
sertaneja, com objetivo de buscar mais informações sobre este objeto de
análise.
Na terceira, o contato direto com fontes primárias se efetivou na
apreciação das letras das canções sertanejas integrantes do corpus
selecionado. Essa apreciação se deu mediante a análise, por comparação,
entre as reflexões teóricas apresentadas e a representação do homem
sertanejo nas obras estudadas.
O corpus a ser analisado foi selecionado a partir de uma classificação
temática e inclui as seguintes canções: Cabocla Tereza (João Pacífico e Raul
Torres), É disso que o velho gosta (Gildo Campos e Berenice Azambuja),
Cavalo enxuto (Moacyr e Lourival dos Santos), retratando as diferentes vozes
da tradição; No Rancho Fundo (Ary Barroso e Lamartine Babo), Saudade de
minha terra (Goia e Belmonte), Caboclo na cidade (Dino Franco e Nhô Chico),
retratando o não-lugar do homem do campo; Ligação urbana (Bruno &
Marrone), Deixa eu te amar (Edson e Flávio), Ainda ontem chorei de saudade
(Moacir Franco), retratando os ecos da canção sertaneja na atualidade e
15
Tristezas do Jeca (Angelino de Oliveira), uma "música emblema" da nostalgia
observada no homem do campo.
Estrutura
Para estabelecer o referencial teórico necessário, foram utilizadas
obras que convergiam para o ponto de vista desta análise, qual seja sua
análise contextual, do ponto de vista dos estudos culturais, além da análise de
seus temas e/ou conteúdos, realizada paralelamente ao estudo de cada
aspecto teórico.
Nesse sentido, inicia-se a dissertação resultante do trabalho
desenvolvido com uma reflexão teórica a respeito das representações
simbólicas disseminadas nas letras das canções, no processo de
(re)identificação do homem do campo desenraizado com o universo que o
cerca.
Na seqüência das reflexões sobre a inadequação do sertanejo no
universo urbano, é trabalhada a idealização de seu passado utópico, verificável
nas letras das canções e, com essas reflexões, encerram-se as discussões
teóricas sobre a situação do homem sertanejo e é iniciada a análise das letras
de algumas canções.
Antes de se passar à análise das letras propriamente ditas é, no
entanto, estabelecido um histórico do movimento de migração que as provoca,
em suas conseqüências sociais para ambos os universos. Outro aspecto
considerado relevante para as reflexões propostas é o estudo e análise das
temáticas abordadas, no sentido de buscar a compreensão de seu significado
para o público ao qual se dirigem as músicas em questão.
Com a busca de algumas conclusões pertinentes às reflexões
realizadas, encerra-se o trabalho ora apresentado.
Com o intuito de se atingir o objetivo geral, o desenvolvimento do
trabalho se dará a partir da subdivisão do mesmo em objetivos específicos,
sendo estes discutir a construção de uma identidade nacional a partir da
representação do universo agrário na canção sertaneja; refletir sobre os
16
significados subjacentes às letras das canções; estudar e descrever os temas
abordados nas canções analisadas a partir de sua exposição nas letras de
algumas dessas canções e descrever o processo de identificação social do
sertanejo em contraponto com a cultura e a sociedade urbanas, tomando como
base sua representação nas letras das músicas analisadas.
17
CAPÍTULO I – O “NÃO-LUGAR” DO HOMEM DO CAMPO NO
MEIO URBANO
(...) o horizonte do camponês deserdado de terra e
do cuidado dos animais foi ampliado. Acenaram-lhe
com a possibilidade da emigração fácil para os
grandes centros urbanos, tornados carentes de
mão de obra barata. Os pobres são anacrônicos de
outra forma, agora no contraste com o espetáculo
grandiloqüente do pós-moderno, que os convocou
nas suas terras para o trabalho (...). Esse novo
expediente do capital (...) ancora o camponês em
terras estrangeiras, onde seus dependentes pouco
a pouco perderão o peso e a força da tradição
original (SANTIAGO, 2004, p. 51).
No desenrolar da história da humanidade em geral, a familiaridade do
homem com a Natureza vai sendo atenuada, à medida que os recursos
técnicos se interpõem entre ambos, e que a subsistência não depende mais de
maneira exclusiva do meio circundante.
Como observa Antonio Candido (2003, p. 221), o meio artificial,
elaborado pela cultura, cumulativo por excelência, destrói as afinidades entre
homem e animal, entre homem e vegetal. Em compensação, dá lugar à
iniciativa criadora e a formas associativas mais ricas, abrindo caminho à
civilização. Assim, a situação presente se caracteriza pelo desligamento
relativo em face do meio natural imediato, da aceleração do ritmo de trabalho,
da maior dependência do campo em relação aos centros urbanos.
Tudo isso não poderia deixar de repercutir na esfera da cultura, em que
podemos notar uma reelaboração de técnicas, práticas e conceitos. Nesse
sentido, as novas necessidades têm grande importância na configuração da
mudança de cultura, pois esta se apresenta, sob certos aspectos, como
restrição, ampliação ou redefinição de necessidades.
18
O “caipira” e as transformações de seu modus vivendi no Brasil
Se considerarmos a posição e o papel dos indivíduos e as suas
relações uns com os outros, notaremos no caipira brasileiro atual sintomas de
acentuada mudança. Nas fases iniciais da sua formação como tipo humano,
havia relativa indiferenciação de papéis e, por conseguinte, limitação dos
critérios para definir posição social. A incorporação à economia capitalista
altera as posições na estrutura tradicional e possibilita a definição de outras,
fora dela.
Conforme Darcy Ribeiro, a rápida expansão das culturas de café no
sudeste brasileiro faz deslanchar um processo de reordenação social. Nessa
nova situação, primeiramente,
o capira é compelido a engajar-se no colonato, como assalariado
rural, ou refugiar-se na condição de parceiro, transferindo-se
para as áreas mais remotas ou para terras cujos proprietários
não têm recursos para explorar os novos cultivos (RIBEIRO,
1995: p. 384-385).
Gradativamente, a incorporação da economia capitalista impõe
circunstâncias ainda mais restritivas ao caipira, obrigando-o a optar pelo
engajamento como assalariado rural ou a procurar terras muito distantes e
atrasadas para manter uma precária autonomia como meeiro. No final do
século XIX, o problema se agrava com a chegada ao Brasil de milhares de
imigrantes europeus e japoneses para substituírem o negro no trabalho das
fazendas, em condições inaceitáveis para a altivez do caipira.
Darcy Ribeiro reporta-se à figura do Jeca Tatu, caricatura que Monteiro
Lobato constrói para descrever o caipira totalmente despreparado para
conquistar o título de propriedade de sua terra. Anos mais tarde, Lobato reviu
sua posição ao compreender que o caipira era sim uma vítima de um
“traumatismo cultural” (...) marginalizado pelo despojo de suas terras, resistente
ao engajamento no colonato e ao abandono compulsório de seu modo
tradicional de vida (RIBEIRO, 1995: p. 387).
19
O êxodo do campo para a cidade
Assim, a mobilidade de hoje conduz, muitas vezes, ao abandono
completo dos gêneros tradicionais de vida, quer levando o caipira ao trabalho
em zonas de agricultura moderna, onde se incorpora aos novos padrões, quer,
sobretudo, incorporando-o ao proletariado urbano. O pessoal das indústrias,
dos transportes rodoviários e ferroviários, da construção civil, das obras
públicas, é, em grande parte, recrutado no seu meio. Da mesma maneira, nele
se recrutam as empregadas domésticas e os empregados em toda sorte de
atividades, qualificadas ou não, requeridas pelos centros urbanos (CANDIDO,
2003, p. 234).
O que origina essa transformação são, na realidade, as dificuldades
que começam a ser enfrentadas na manutenção da vida campesina tal como
era até fins do século XIX. Essas dificuldades foram agravadas pela derrocada
da oligarquia rural, provocada pela decadência de muitas fazendas, sobretudo,
as de café.
Assim, contingentes passaram a migrar para os grandes centros, a
capital federal ou São Paulo, onde a industrialização acontecia mais
rapidamente. Isso reforça o quadro de diáspora do interior do país para os
centros urbanos. Os saídos da zona rural para “arriscar a sorte” acalentavam a
nostalgia da vida tranqüila na roça, longe dos “desaforos e da má educação” do
povo da cidade. Nesse sentido, como diria Walter de Sousa
esse apego ao “paraíso perdido”, um arquétipo universal tão
arraigado, tornava aquele estrato social, acostumado às
instâncias fronteiriças, um público fiel da música caipira, já
tornada popular pelos processos de adaptação à urbanidade e
aos meios técnicos de reprodução (2005, p. 114).
Nesse contexto, observa-se a existência de uma espécie de
saudosismo transfigurador – uma verdadeira utopia
retrospectiva, se coubesse a expressão contraditória. Ele se
manifesta, é claro, sobretudo nos mais velhos, que ainda
tiveram contato com a vida tradicional e podem compará-la
com o presente; mas ocorre também nos moços, em parte por
influência daqueles (CANDIDO, 2003, p. 244).
20
e consiste em comparar, a todo propósito, as atuais condições de vida com as
antigas; as modernas relações humanas com as do passado, o que acaba
tornando toda representação das antigas condições de vida “colorida” com as
tintas desta memória ancestral.
O não-lugar do sertanejo urbano
Para discutir a questão do desenraizamento verificado nesse homem
do campo que se projeta no discurso da canção sertaneja, tomaremos algumas
das reflexões expostas por Néstor Garcia Canclini. Canclini explica que a perda
da identidade do homem do campo se dá na passagem de sociedades
dispersas em milhares de pequenas comunidades rurais – com culturas locais
e homogêneas, e em algumas regiões com fortes raízes indígenas, com pouca
comunicação com o resto de cada nação – a uma trama majoritariamente
urbana.
A questão da substituição dos mass media pela realidade justifica-se,
segundo o mesmo Canclini, a partir dos processos descontínuos de
constituição da cultura urbana que requerem, também, observar os processos
(combinados) de descolecionamento e desterritorialização. Para esse autor, a
cultura pós-moderna deixa claro o desvanecimento das coleções e do
estabelecimento de classificações que distinguiam antes o culto do popular e
ambos do massivo. As culturas já não se agrupam em grupos fixos e estáveis
e, com isso, desaparece a possibilidade de se ser culto conhecendo o
repertório das “grandes obras”, ou de se ser popular porque se domina o
sentido dos objetos e mensagens produzidos por uma comunidade mais ou
menos fechada (uma etnia, um bairro, uma classe). As novas formas de
coleção reproduzem e permitem um repertório mesclando o culto e o popular, o
nacional e o local.
Para Canclini, há, além disso, uma proliferação dos dispositivos de
reprodução que não podemos definir como cultos ou populares. Neles se
perdem as coleções, desestruturam-se as imagens e os contextos, as
referências semânticas e históricas que amarravam os sentidos.
21
Segundo esse autor, a coexistência desses usos contraditórios revela
que as interações das novas tecnologias com a cultura anterior as torna parte
de um processo muito maior do que aquele que elas desencadearam ou
manejam. Uma dessas transformações é a reorganização dos vínculos entre
grupos e sistemas simbólicos : os descolecionamentos e as hibridações já não
permitem vincular rigidamente as classes sociais com os estratos culturais.
Com isso, não se quer dizer que essa circulação mais fluida e complexa tenha
dissolvido as diferenças entre as classes, ele apenas afirma que a
reorganização dos cenários culturais e os cruzamentos constantes das
identidades exigem investigar de outro modo as ordens que sistematizam as
relações materiais e simbólicas entre os grupos.
Nesse sentido, segundo Canclini, a descentralização das empresas, a
simultaneidade planetária da informação e a adequação de certos saberes e
imagens internacionais aos conhecimentos e hábitos de cada povo; a
disseminação dos produtos simbólicos pela eletrônica e pela telemática; o uso
de satélites e computadores (interação digital) favorecem os projetos de
reterritorialização e a dissolução de fronteiras. Dessa forma, os migrantes
assumem todas as identidades disponíveis, de modo a se agregar ao novo
universo. A esse processo de desterritorialização pode-se aplicar uma frase
que fica bem em um migrante tanto quanto num jovem roqueiro, a de que
nosso mais profundo sentimento de geração é o da perda que surge da partida
(Apud CANCLINI, 1997, p. 324).
Assim, os conceitos de descoleção e desterritorialização se relacionam
com reflexões utópicas e com práticas de artistas e intelectuais, o que faz com
que as práticas artísticas, agora, fujam de paradigmas consistentes. Dessa
forma, o pós-modernismo pode ser definido como uma co-presença tumultuada
de todos: o mercado dispersa e ressemantiza o valor da obra de arte e do
artesanato ao vender esses bens a consumidores heterogêneos.
Ainda segundo Canclini, uma visão mais ampla permite ver outras
transformações econômicas e políticas, apoiadas em transformações culturais
de longa duração, que dão uma estrutura diferente aos conflitos. Os
cruzamentos entre o culto e o popular tornam obsoleta a representação polar
entre ambas as modalidades de desenvolvimento simbólico e relativizam,
22
portanto, a oposição política entre hegemônicos e subalternos, concebida como
se se tratasse de conjuntos totalmente diferentes e sempre confrontados.
Nesse sentido, observa-se que as hibridações culturais e políticas
passam a se disseminar na esfera pública por meios massivos de comunicação
(os mass media) que proporcionam uma pseudoconvergência, da cultura e dos
grupos sociais, devido à eficácia simbólica de representação desses meios que
definem as relações entre o campo cultural e o político.
Dessa forma, a busca de mediações, de vias diagonais para gerir os
conflitos, dá às relações culturais um lugar proeminente no desenvolvimento
político. Assim, para Canclini, quando não conseguimos mudar o governante,
nós os satirizamos, nas danças do carnaval, no humor jornalístico, nos grafites.
Diante da impossibilidade de construir uma ordem diferente, erigimos nos
mitos, na literatura, nas histórias em quadrinhos e, em nosso caso específico,
nas canções, não apenas desafios mascarados, mas todo um passado.
Quando a volta ao passado trai a memória
O ferramental teórico para a reflexão a respeito da idealização daquele
universo nos é dado pelos estudos de Fredric Jameson, que afirma que a
produção estética do pós-modernismo está integrada à produção de
mercadorias, sendo uma de suas questões centrais a mercantilização e o
fetichismo das mercadorias (JAMESON, 1997, p. 29).
Ocorre que com o despontar do sujeito pós-moderno –
desaparecimento do sujeito individual – há um esmaecimento do afeto na
cultura pós-moderna, seguido da estranheza e da falta de expressão. Em uma
lógica esquizofrênica (que poderíamos entender como desconexão da cadeia
de significantes), a fascinação é um indispensável e eterno “presente” e os
sentimentos são substituídos por intensidades.
Nesse sentido, vende-se a imagem de um presente utópico em um
outro universo que não o urbano, através da fetichização da volta ao ponto de
origem como solução para os males pelos quais passa esse homem
desterritorializado.
23
Não necessariamente, entretanto, a efetiva volta ao lugar de origem se
revelará como a solução sonhada...
A personagem descrita em “No Rancho Fundo” (Ary Barroso e
Lamartine Babo), por exemplo, já passou pela experiência do regresso, o que
não lhe garantiu, todavia, a felicidade lembrada pelo narrador de “Caboclo na
Cidade”, ou almejada pelo de “Saudade de minha terra”. Ao contrário, para o
sertanejo que voltou ao lugar no qual nasceu, estavam reservadas “a dor e a
saudade”,
Porque o moreno
Vive louco de saudade
Só por causa do veneno
Das mulheres da cidade.
Observa-se, assim, que o processo de (des)identificação do sujeito
sertanejo se dá de forma completa: se, no universo urbano, ele sonha com o
campo ou mantém viva a memória desse campo ao qual não mais voltará ou
que certamente não é mais – mesmo quando esta volta é projetada – o
universo deixado para trás, no retorno ao local de partida, esse sujeito se
revela também contaminado pelo que deixou ou viveu na cidade.
Nesse sentido, retomamos o raciocínio desenvolvido por Jameson,
para o qual, no mundo pós-moderno, há uma mudança da patologia cultural,
em que a alienação e a ansiedade do sujeito são deslocadas pela própria
fragmentação e descentramento desse sujeito. Por essa razão, o presente é
abordado através da linguagem artística do simulacro, ou do pastiche do
passado estereotípico, o que empresta à realidade presente o encanto e a
distância de uma miragem reluzente.
Ocorre, entretanto, que essa mesma modalidade estética hipnótica
funciona como elaboração de um sintoma do esmaecimento de nossa
historicidade e/ou de nossa possibilidade de vivenciar e de experimentar a
história ativamente. Ou seja, é exatamente pela perda de identidade, pela
fragmentação, pela impossibilidade de alteração do cotidiano, pelo
desenraizamento do homem contemporâneo – sobretudo aquele que, saído do
universo agropastoril, se urbaniza – que se faz necessária a fetichização do
24
presente e a “venda” de um passado, ou de um “universo paralelo” utópico,
que passa a ser mecanismo de compensação, ou de mediação, para esta
situação de “entre-lugar” vivida pelo homem do campo em seu embate com o
mundo pós-moderno.
A “fala” sertaneja e seus significados
Assim, a reprodução do sertanejo e do universo agropastoril, tanto nas
letras das músicas caipiras quanto em outras formas, é bastante idealizada. E
se essa idealização é, de uma parte, efetivamente o fruto da decepção do
homem do campo com a vida na cidade, ela também se explica por uma
necessidade mais geral de busca de uma identidade nacional. São, então, as
possibilidades de mediação entre esse homem, que passa a ser um “ideal”
escolhido de brasilidade, e o universo urbano que o cerca, o assunto de que
trataremos aqui.
Para melhor compreender a absorção dos significados e mensagens,
disseminados nas letras das canções sertanejas, entretanto, é necessário
considerar a classificação do processo comunicacional no qual se verificam os
momentos de “produção, circulação, distribuição / consumo, reprodução”,
apresentada por Stuart Hall.
Para esse autor, o modelo “emissor / mensagem / receptor” do
processo comunicativo tem sido criticado pela sua linearidade. Por essa razão,
Hall apresenta a proposta de uma articulação mais complexa desses
momentos distintos, mas interligados, o que seria pensar o processo como uma
“complexa estrutura em dominância”, em que cada aspecto é articulado com o
outro, mas mantém suas peculiaridades (HALL, 2003, p. 387). Há que se
ressaltar, também, nesse sentido, a importância do aspecto econômico –
relação produção-distribuição-produção – do processo e a idéia de “produção”
discursiva em que o produto aparece em cada momento da articulação
proposta anteriormente.
Concretamente, o “objeto” dessas práticas é composto por significados
e mensagens sob a forma de signos-veículos que são, por exemplo, o jornal, a
revista, a TV, a mídia em geral. Assim, o processo de comunicação se
25
estabelece pelo lado da produção material (meios), mas é sob a forma
discursiva que a circulação do produto se realiza, daí a necessidade da
produção de sentidos, do entendimento por parte do público, para que o
consumo se realize. Dessa forma, devemos reconhecer que a forma discursiva
da mensagem tem uma posição privilegiada na troca comunicativa (em relação
à circulação) e que os momentos de “codificação” e “decodificação” são
momentos determinados.
Considerando, então, que, ainda segundo Hall, a “forma-mensagem” é
a necessária “forma de aparência” do evento na sua passagem da fonte para o
receptor, observamos que
a transposição para dentro e para fora da ‘forma-mensagem’
(ou o modo de troca simbólica) não é um ‘momento’ aleatório,
que nós podemos considerar ou ignorar conforme nossa
conveniência. A ‘forma-mensagem’ é um momento
determinado; embora, em outro nível, compreenda apenas os
movimentos superficiais do sistema de comunicações e
requeira, em um outro estágio, integração nas relações sociais
do processo de comunicação como um todo, do qual forma
apenas uma parte (HALL, 2003, p. 389).
Nesse sentido, a codificação deve passar pelas regras discursivas da
linguagem para que seu produto seja “concretizado”, o que inicia, segundo Hall,
um outro momento diferenciado, no qual as regras formais do discurso e
linguagem estão em dominância. Antes que essa mensagem possa ter um
“efeito”, satisfaça uma “necessidade” ou tenha um “uso”, deve primeiro ser
apropriada como um discurso significativo e ser significativamente
decodificada. É esse conjunto de significados decodificados que, “tem um
efeito”, influencia, entretém, instrui ou persuade, com conseqüências
perceptivas, cognitivas, ideológicas ou comportamentais complexas.
Isso ajuda a esclarecer a confusão na distinção entre “conotação”
(sentidos menos fixos, associativos) e “denotação” (sentido literal de um signo),
dado que, para Hall, essa distinção é somente analítica e não deve ser
confundida com as distinções do mundo real. Assim, poucas vezes, os signos
organizados em um discurso significarão somente seus sentidos “literais”, ou
terão um sentido quase universalmente consensual. Em um discurso de fato
emitido, a maioria dos signos combinará seus aspectos denotativos e
26
conotativos. É no nível conotativo do signo que as ideologias4
alteram e
transformam a significação, mas a presença da ideologia se faz sentir tanto no
nível conotativo quanto no denotativo.
Esses códigos são os meios pelos quais a ideologia é levada à sua
significação em discursos específicos. Os signos remetem aos “mapas de
sentido” e esses “mapas da realidade social”, além de distintos, contêm
significados sociais, práticas e usos, poderes e interesses específicos.
Tal polissemia não deve, entretanto, ser confundida com pluralismo,
uma vez que toda sociedade impõe suas classificações (uma ordem cultural
dominante) do mundo social, cultural e político, embora essa ordem cultural
dominante não seja nem unívoca nem incontestável. Nesse sentido, vale
mencionar ainda o conceito de “estrutura dos discursos em dominância”,
proposto por Stuart Hall, para quem as diferentes áreas da vida social parecem
ser dispostas dentro de domínios discursivos hierarquicamente organizados
através de sentidos dominantes ou preferenciais (HALL, 2003, p. 396).
Nesse sentido, para o autor,
A questão da “estrutura dos discursos em dominância” é um
ponto crucial. As diferentes áreas da vida social parecem ser
dispostas dentro de domínios discursivos hierarquicamente
organizados através de sentidos dominantes ou preferenciais.
Acontecimentos novos, polêmicos ou problemáticos que
rompem nossas expectativas ou vão contra os “construtos do
senso comum”, o conhecimento “dado como certo” das
estruturas sociais, devem ser atribuídos ou alocados aos seus
respectivos domínios discursivos, antes que “façam sentido”. A
maneira mais comum de “mapeá-los” é atribuir o novo a algum
domínio dos “mapas existentes da realidade social
problemática”. Dizemos dominante e não “determinado”,
porque é sempre possível ordenar, classificar, atribuir e
decodificar um acontecimento dentro de mais de um
“mapeamento”. Mas dizemos “dominante” porque, de fato,
existe um padrão de “leituras preferenciais”, e ambos –
dominante e determinado – têm uma ordem institucional /
política / ideológica impressa neles e ambos se
institucionalizaram. Os domínios dos “sentidos preferenciais”
têm, embutida, toda a ordem social enquanto conjunto de
significados, práticas e crenças: o conhecimento cotidiano das
estruturas sociais, do “modo como as coisas funcionam para
todos os propósitos práticos nesta cultura”; a ordem hierárquica
4
O termo é aqui utilizado em sua acepção dicionarizada de um conjunto articulado de idéias,
valores, opiniões e crenças, que expressam e reforçam as relações que conferem unidade a
determinado grupo social (HOLANDA, Aurélio Buarque, 1999, p. 1072).
27
do poder e dos interesses e a estrutura das legitimações,
restrições e sanções (HALL, 2003, pp. 396-397).
Ou seja, para que algo faça sentido, deve ser relacionado aos domínios
dos “mapas existentes da realidade social problemática” que conjugam os
“sentidos preferenciais” e que variam de acordo com aspectos culturais, sociais
e políticos.
A partir dessas considerações, observamos que, no universo aqui
analisado, a canção sertaneja “faz sentido” para suas platéias por estar
relacionada a determinados “mapas da realidade social”, entre os quais
identificamos, por exemplo, o grupo formado pelo homem do campo
desenraizado e buscando uma (re)identificação com o universo que o cerca.
A expressão da “deslocalização” nas letras das canções
É na esperança de ascensão econômica que o sertanejo abandona o
campo. A dura realidade do meio urbano, entretanto, para além da não-
-realização do “sonho”, possibilita para ele a idealização do universo deixado
para trás. O tema da nostalgia do passado, da perfeição da vida anterior, será,
assim, recorrente no discurso da canção sertaneja.
Nesse sentido, letras como “Caboclo na Cidade”, de Dino Franco e Nhô
Chico (interpretação de Chitãozinho e Xororó), ou “Saudade de minha terra”, de
Goia e Belmonte, gravada por Sérgio Reis, tratarão do tema da nostalgia do
campo. E, se cada uma fala da situação do homem do campo a partir de um
diferente ponto de vista, ambas trarão para o centro do discurso a
desterritorialização deste homem e sua inadequação ao universo do qual faz
parte. Passamos, então, a uma breve aplicação desse conceito nas letras
dessas canções.
A letra de “Caboclo na Cidade”, por exemplo, retrata a insatisfação do
sertanejo com sua mudança para o “grande centro” (“Como eu tô
arrependido”), sua “inadaptação” com o espaço e o povo da cidade
Aqui tudo é diferente
28
Não me dô com essa gente
Penso até que a cidade
Não é lugar de caboclo.
e sua constatação de que a vida na cidade não lhe trouxera nenhuma
realização:
Quando eu vendi o sítio
Pra vir morar na cidade
Seu moço, naquele dia
Eu vendi minha família
E a minha felicidade.
A mesma inadequação pode ser constatada em “Saudade de minha
terra”, que se inicia com o lamento do sertanejo em viver na cidade:
De que me adianta viver na cidade
Se a felicidade não me acompanhar
Adeus, paulistinha do meu coração
Lá pro meu sertão, eu quero voltar.
Não serão as mesmas, entretanto, as reações dos protagonistas ante
essa sensação de inadequação ao universo urbano. O primeiro – em ações
que comprovam a afirmação de Néstor Canclini de que os migrantes decidem
assumir todas as identidades disponíveis – indica as transformações ocorridas
em sua família na tentativa de adaptação ao mundo citadino, como podemos
comprovar nas estrofes seguintes,
Até mesmo a minha “véia”
Já tá mudando de idéia
Tem que ver como passeia
Vai tomar banho de praia
Tá usando minissaia
E arrancando a sobrancelha
Nem comigo se incomoda
Quer saber de andar na moda
Com as unhas todas vermelhas
Depois que ficou madura
Começou usar pintura
Credo em cruz, que coisa feia
ele, ao mesmo tempo, assume sua impossibilidade de retorno para o universo
original, como se observa a seguir:
29
Voltar pra Minas Gerais
Sei que agora não dá mais
Acabou o meu dinheiro.
O narrador de “Saudade de minha terra”, por sua vez, informa a seu
ouvinte que
Pra minha mãezinha já telegrafei
E já me cansei de tanto sofrer
Nesta madrugada estarei de partida
Pra terra querida que me viu nascer.
Essa terra é descrita pelo narrador como o lugar ideal onde, não
apenas, ele “Aos domingos ia passear de canoa / Nas lindas lagoas de águas
cristalinas”, como também ele ia a festanças “onde tinha dança e lindas
meninas” e sua memória, presente ao longo de toda a letra da canção, é o que
consola o sertanejo em seu “exílio” na “cidade grande”. Essa mesma memória
é o que o embala quando finalmente informa estar de partida para a terra que o
viu nascer:
Já ouço sonhando o galo cantando
O nhambu piando no escurecer
A lua prateada clareando a estrada
A relva molhada desde o anoitecer
Eu preciso ir pra ver tudo ali
Foi lá que nasci, lá quero morrer
Esse mundo idealizado, entretanto, não necessariamente será o que o
“caboclo” encontrará em seu regresso: vale ressaltar que, hoje, grande parte do
meio rural está conectada diretamente com as inovações modernas. Houve
uma mudança “quase” radical de pensamento e de gostos dos habitantes da
zona rural, através de interações comerciais com as cidades e através da
recepção da mídia eletrônica nas casas rurais. Efetivamente, na atualidade, há
poucas amostras dos caboclos “puros” e “genuínos” como os das letras das
canções.
Nesse sentido, voltando ao referencial teórico de que nos munimos
para essa reflexão, constatamos que a coexistência cultural de várias
identidades proporciona fragmentações cada vez mais difíceis de totalizar.
Assim, a sociabilidade e a interação dos diferentes modos de organização tanto
30
da esfera pública quanto da privada são proporcionadas pela mídia que simula
uma integração dos imaginários, tanto urbano quanto sertanejo, desagregados.
Ou seja, acompanhando o pensamento de Néstor Canclini, observa-se que, no
caso em questão – o da canção sertaneja – os mass media buscam substituir,
de forma espetacular, outros processos de unificação e criam a ilusão de que
grupos, antes reunidos em sindicatos, reuniões e assembléias, conforme suas
identidades, possam ser representados.
A situação de inadequação de que tratam as canções deve-se, por
certo, ao que Néstor Canclini chama de movimentos de
desterritorialização e reterritorialização, que caracterizariam o
deslocamento entre a modernidade e a pós-modernidade, e que teriam
origem a partir da transnacionalização dos mercados simbólicos e das
migrações.
Nesse sentido, também a partir dos estudos de Néstor Canclini,
podemos afirmar que o discurso explicitado nas letras das canções sertanejas
insere-se na busca de uma mediação ou, como quer aquele autor, de uma via
diagonal para gerir o conflito provocado pelo deslocamento do homem do
campo para a cidade. É por essa “via diagonal” que, diante da impossibilidade
de esse homem construir uma ordem diferente no novo ambiente, ou mesmo
de se adaptar ao novo universo, erige-se o mito tanto do sertanejo quanto de
seu mundo original, através da construção de uma identidade utópica para ele
e de um passado ideal vivido num universo também utópico.
31
CAPÍTULO II – A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA CANÇÃO
SERTANEJA
(...) a música caipira é um fato de nossa vida, um
valor cultural inegável, chegando a ser vista “como
legítima representante da faixa culta na canção
brasileira”. (...) a música caipira, sobretudo a viola
caipira, vive agora uma espécie de renascimento,
de revalorização e de mudança (RIBEIRO, 2006,
pp. 24-25).
Embora tenhamos aqui ininterruptamente utilizado o termo “caipira”, na
realidade, não se sabe ao certo sequer a origem dessa palavra. Amadeu
Amaral, no seu estudo sobre o dialeto caipira, “traduz” o vocábulo como
“habitante da roça, rústico” (Apud SOUSA, 2005, p. 21), mas a primeira
pesquisa apurada sobre o universo “caipira” vem de Cornélio Pires, o primeiro
estudioso a levar a cultura caipira ao centro urbano. Segundo Walter de Sousa,
em Musa caipira (1912), aquele autor busca, inclusive, as raízes do termo e
vai encontrar o sinônimo em tupi-guarani para “aldeão”, que é capiâguara. A
raiz dessa palavra, caí, significa o gesto do macaco escondendo o rosto. Ela
aparece também em capipiara, “o que é do mato”, e em capiã, “dentro do
mato”. Enfim, aparece em caapi, “trabalhar na terra” e em caapiára, “lavrador”.
donde, enfim, redundaria em “caipira” (Idem, ibidem), nomenclatura dada, de
modo geral, ao universo aqui analisado.
O êxodo rural
Se o não-lugar do homem contemporâneo pode ser observado em
todos os estratos socioculturais, o desenraizamento do homem do campo em
nosso país tem um momento de início claro. Está demarcado pelo começo do
32
processo de industrialização que atrairá imensos grupos do interior para os
grandes centros urbanos.
Esse processo, iniciado nos anos 1920, se estenderá pelos anos
subseqüentes e terá seu auge nos anos 1950. Nesse período, adota-se um
modelo desenvolvimentista externo que propiciará ao país a instalação de
novas formas comunicacionais e de novas relações entre os centros urbanos e
agrícolas.
Dessa forma, o que se observa é que o desenvolvimento do
capitalismo no Brasil, acompanhado pela industrialização e pela urbanização,
especialmente ao longo do século XX, provocou o rompimento do “equilíbrio
ecológico e social” do homem do campo, resultando na desintegração de sua
cultura, embora se perceba que inúmeros aspectos dessa cultura ainda
sobrevivem na memória de boa parcela da população brasileira (ZAN, 2007,
p.2).
O “caipira” como veículo de formação de uma identidade nacional
Antes de Cornélio Pires publicar a Musa Caipira, ou da polêmica do
Jeca Tatu (1918) e de O Dialeto Caipira de Amadeu Amaral (1920), a figura
caricatural do caboclo – ou sertanejo, como era chamado no sentido genérico
de matuto – já servia, entretanto, de matéria-prima à literatura do século XIX
(SOUSA, 2005, p. 63). Aparentemente, o primeiro autor brasileiro a transformá-
-lo em personagem foi o autor teatral Martins Pena (1815 –1848), cujas
comédias O Juiz de Paz da Roça (escrita em 1833), A família e a festa na roça
(18...), Um sertanejo na Corte (entre 1833 e 1837) e O Diletante (de 1844),
tinham todas temática rural.
Nesse mesmo sentido, também no teatro, a partir de 1914, as revistas
começaram um movimento cultural de defesa dos valores nacionais, iniciando
uma grande safra de peças com temática caipira. Nas trilhas das peças de
Martins Pena, autores iniciantes passaram a utilizar o caipira como
personagem em suas peças. Assim, por volta de 1914, houve um grande
despontar de autores nacionais e, em 1920, por exemplo, a Companhia Arruda
33
levava a São Paulo autênticas duplas caipiras à maneira de Cornélio Pires,
uma década antes.
Mazzaropi – O Jeca imagético
Da mesma forma que no teatro, também no cinema, o caipira será
representado através, sobretudo, do personagem do Jeca criado por Amácio
Amadeu Mazzaropi. Herdeiro direto da figura do pícaro, característica da
literatura espanhola, também o Jeca criado por Mazzaropi ver-se-á confrontado
com situações-problema das quais se livra por meio de artimanhas.
Por outro lado, esse popular personagem das telas brasileiras confirma
a imagem de desenraizamento apresentada pelas letras das canções de
temática caipira. As situações-problema que tem de resolver, de modo geral,
tratam do confronto entre a “modernidade” (ou uma pseudo-modernidade)
urbana e o modo de vida e valores do campo.
Nesse sentido, para Jesana Pereira,
o Jeca-Mazzaropi é uma síntese audiovisual das formas de
representação do caipira, desde a iconografia de almanaques
de farmácia à tradição teatral e circense: indolente, simples e
conformado, mas também astuto, manhoso e valente quando
necessário, além de honesto, sempre. Mas, nos seus dramas,
seu ‘Jeca’ é uma contraposição, sob alguns aspectos, daquelas
formas de representação. Ele vive no liame do contraste entre
o mundo moderno-urbano e conservador-rural (2003, p. 104).
Assim, da mesma forma que se observa nas canções, também nos
filmes de Mazzaropi, o contraste entre os mundos “moderno-urbano e
conservador-rural” se dará em forma de dura crítica ao primeiro, e se fará
através da exaltaçao do homem do campo, tanto de sua engenhosidade quanto
de seus valores morais.
Personagem de grande sucesso durante décadas, o Jeca de
Mazzaropi, vem, assim, juntar-se e confirmar o modelo do caipira já expresso,
desde os anos 1910, nas canções sertanejas.
34
Ações e transformações do gênero musical sertanejo
Os esforços de Cornélio Pires lhe valem um espaço marcante na
década de 20. Tanto assim que esse pioneiro, ao participar das comemorações
do centenário da Independência, introduziu a cultura caipira no processo de
formação de uma identidade cultural brasileira – o movimento político de 1922
desembocou na revolução de 1930 (SOUSA, 2005, p. 92).
Desde o movimento de 1930 até 1956, o país, envolto em revoluções,
guerra, autoritarismo, ainda não havia testemunhado um mandato completo de
um presidente civil. Mesmo Vargas, que dotou o país de uma boa infra-
-estrutura, propiciando um desenvolvimento baseado na produção siderúrgica
(CSN) e a criação da Petrobrás, acaba suicidando-se antes do final do
mandato, em 1954.
Assim, a revolução rompe a tensa malha urdida pelas práticas políticas
oligárquicas que dava suporte à República Velha. O movimento se converte,
historicamente, num marco político e socioeconômico, pois a partir do momento
em que a elite rural brasileira perde sua hegemonia, inicia-se a ascensão dos
movimentos de urbanização e industrialização do país. Isso, embora a força de
trabalho dessa elite cafeeira permanecesse indiferente aos acontecimentos.
É, todavia, a partir desse marco que começa a surgir um nacionalismo
populista que, em se tratando de formalização de uma cultura urbana, busca
legitimidade na essência das culturas populares. Acontece, então, a
consolidação no país da tecnologia de reprodução cultural em que o rádio e a
indústria fonográfica se incluem (Idem, p. 93).
Devido à presença das tropas revolucionárias nas ruas do Rio de
Janeiro, entretanto, os espaços musicais se tornaram raros, as gravadoras
diminuem, em muito, as suas atividades e as rádios passam a se ocupar mais
com os acontecimentos da época. Dessa forma, o movimento musical
transfere-se para São Paulo, onde as gravadoras e as rádios mantiveram suas
atividades, mesmo em meio às adversidades políticas.
35
O impulso através do rádio
Por volta de 1924, surge, em São Paulo, a SQ-B1, Rádio Cruzeiro do
Sul. Pouco depois desaparece para ressurgir em 1927, com novo prefixo, SQ-
BA. Houve novo fracasso. Somente em 1929, através do grupo Byington
(Columbia), sob a direção de Wallace Downey, a Cruzeiro do Sul se firma,
alicerçada em esquema inédito até então: o patrocínio da Atlantic Motor Oil,
que custeou as curtas demonstrações do período de experiência da emissora.
Ainda em 1929, ela passa a ser PR-AO e, logo depois, PR-B6. Com
sua homônima do Rio de Janeiro, é criada a primeira rede radiofônica do Brasil:
a rede Verde-Amarela. Em sua inauguração, além de diversos espetáculos,
entre eles apresentações humorísticas com personagens caipiras, foi
interpretada a música "Coração", de Marcelo Tupinambá, com letra de
Ariovaldo Pires.
Nessa época, São Paulo contava com três emissoras de rádio: a
Cruzeiro do Sul, a Record e a Educadora (mais tarde, Gazeta). Elas,
juntamente com os teatros e circos, transformariam centenas de intérpretes
musicais, que se apresentavam em bares, em artistas do microfone. Assim, na
esteira dessa tendência, seguiram os compositores, músicos e instrumentistas,
que através desse tipo de divulgação, associado à evolução das gravações em
disco, se tornariam populares: nasciam os ídolos!
O importante é que com o disco e o rádio se descortinou um infinito
leque de oportunidades para a divulgação da música rural5
que, graças à
perseverança de alguns "heróis", pôde ganhar espaço dentro das várias
manifestações culturais que compõem a variedade cultural brasileira.
(http://www.sertanejo.com/hradio.html)6
.
Assim, na década de 30, o rádio se expande e se consolida como
veículo hegemônico de comunicação, especialmente após ter se tornado
comercial. Com a inauguração, em São Paulo, da rádio Tupi, base dos Diários
5
Uma outra denominação da música sertaneja.
6
Acessado em 07/04/2005.
36
Associados de Assis Chateaubriand, aconteceu o principal impulso do rádio,
que culminou com a inauguração, em 1934, da Rádio Nacional.
Na seqüência do sucesso alcançado pelas emissões radiofônicas é
lançado na rádio Difusora, em São Paulo, um dos mais populares programas
de rádio do período, o Arraial da Curva Torta que, dirigido por Ariovaldo Pires,
acabará lançando, em 1943, uma das também mais populares duplas de
música caipira de todos os tempos, Tonico e Tinoco. Assim batizada pelo
próprio diretor do programa, a dupla só se desfaria em 1998, com a morte de
um de seus integrantes.
Tonico e Tinoco trabalharam com Palmeirinha e Piraci, contratados do
programa. Depois, trabalharam na Rádio Nacional e junto a outras duplas –
como Mariano e Caçula, a primeira a fazer sucesso no disco e no rádio – que
preenchiam o cenário musical caipira da época. Tonico e Tinoco contribuiram
substantivamente para a institucionalização do formato da dupla caipira, com
duas violas e, às vezes, um violão.
Essa dupla caipira foi a primeira a cantar na TV, primeira a gravar LP,
primeira a apresentar-se no Teatro Municipal de São Paulo e no
Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Ou seja, Tonico e Tinoco foram pioneiros
em quase tudo (RIBEIRO, 2006, p. 52). O tom do canto em dupla, diferenciado
em terças – enquanto uma voz canta em dó, a outra, canta em mi – o que o
torna mais fácil e harmônico, era o mesmo usado nas manifestações
interioranas, o que mantinha a identidade original do gênero.
Em todo o caso, é esse formato (mesmo que alterado ou adulterado)
que será eleito ao longo dos últimos sessenta anos, tanto pelas mídias como
pela própria classe média, como aquele que mais se adequaria a traduzir a
identidade através da qual se reconhecem as gentes de nosso país.
A música sertaneja na indústria cultural
Em 1955, Juscelino Kubitschek vence as eleições para a presidência.
Seu projeto, em termos culturais, foi eficiente. O modelo econômico e de
desenvolvimento passou a ser o de fora, especialmente, o hegemônico, dos
37
Estados Unidos. Em termos de cultura de massa, o país já estava vivendo a
era da televisão, meio de comunicação que, com o passar dos anos, superou o
rádio (SOUSA, 2005, pp. 153 – 154).
Segundo Walter de Sousa (idem, pp 154-155), a televisão instaura de
vez o processo de produção industrial da comunicação, que passa a ser
definitivamente de massa. O consumidor desse tipo de programação era a
emergente classe média, que se encantava com o estilo de vida dos países
estrangeiros e tornava a televisão a melhor janela para vislumbrar seus sonhos
de consumo.
É durante esse período de implantação da indústria cultural no Brasil
que se estabelece, em 1964, a ditadura militar, que cerceará direitos e imporá
severa censura às manifestações culturais. O tempo de dureza política para a
música brasileira em geral transformou-se num profundo golpe que restringiu a
efervescência fonográfica.
Na época, a válvula de escape para a música popular foram os
Festivais de MPB. Para a música caipira, a saída era o rádio, meio essencial
dos artistas caipiras e “sertanejos”, que alcançava o interior, onde estava seu
público remanescente. Nos centros urbanos e mesmo nas periferias das
grandes cidades, havia consumidores das velhas modas-de-viola e dos
pagodes animados por Tião Carreiro (Idem, p. 156).
Ainda segundo Walter de Sousa, a música caipira continuou sendo,
entretanto, a música das classes menos favorecidas. Tinha como
consumidores, de um lado, o público desvinculado da produção social, que
vivia nas portas dos circos e das rádios na esperança de encontrar seus ídolos
(a minoria), e de outro, o cidadão recém-chegado à metrópole, fosse do interior
do Estado de São Paulo, fosse de outros estados.
Nesse mesmo período, estoura – oriundo das hostes da “jovem
guarda” – o cantor Sérgio Reis no universo caipira. Sua entrada triunfal marca
transformações no modo de cantar (uma vez que, em lugar de participar de
uma dupla, ele cantava só) e gravar do gênero – com a adoção de
instrumentos eletrônicos para as gravações.
Ainda na mesma década, em 1970, uma dupla de garotos de Astorga,
no Paraná, por intermédio do apresentador Geraldo Meireles, foi apresentada
ao grande público. José e Durval, Chitãozinho e Xororó, interpretavam o
38
clássico de Serrinha e Athos Campos. O sucesso obtido com a interpretação
fez com que a dupla adotasse o título da toada como seu próprio nome.
A partir de então, o gênero híbrido ali gerado se estabelece
definitivamente. Nesse sentido, uma pesquisa feita pela TV Tupi, em 1976,
revelou que a chamada “música sertaneja” representava 22% do mercado
fonográfico (cf RIBEIRO, 2006). Algumas gravadoras, assim, criaram
departamentos específicos para os artistas “sertanejos”. Isso revela a
acomodação do gênero caipira (ou “sertanejo”) ao chamado star system –
sistema de “fabricação” de estrelas que encantam as platéias – das
gravadoras, enquadrando-o nas regras da indústria cultural, 40 anos depois
das primeiras gravações de Cornélio Pires, do qual falaremos mais
detalhadamente, adiante.
O final da década de 1970 marca também o fim do ciclo ditatorial militar
iniciado 21 anos antes (cf SOUSA, p. 177). O primeiro presidente civil,
Tancredo Neves7
, encontra o país afogado em dívidas, interna e externa e sob
o domínio da inflação, o que de certa forma ofusca a reconquista da
democracia. É nesse panorama, entretanto, que a indústria cultural massiva vai
se encontrar com a música “sertaneja”.
Assim, no início da década de 80, há uma certa euforia em torno da
música “sertaneja”, embora a música caipira ainda pegasse nela uma certa
carona (cf nota à p. 09). O maior exemplo que temos é Sérgio Reis, cantando
velhas modas e cururus com arranjos de guitarras, chapéu de cowboy e ar de
cantor country, inaugurando uma nova apresentação visual do artista
“sertanejo”.
A ascensão da música “sertaneja”, segundo Walter de Sousa, é
impulsionada pelas rancheiras de Milionário e José Rico e do Trio Parada Dura.
Para a solidificação desse gênero musical, foi decisiva a sua ligação a um novo
contingente da classe média, que, com seu grande desejo por discursos
simbólicos que a aproximassem do universo das classes dominantes, foi se
interessando pela temática romântica das novas duplas “sertanejas”.
7
Este presidente, embora eleito com maioria esmagadora de votos pelo colégio eleitoral
instaurado em 1984, não tomou posse devido a seu falecimento, tendo sido substituído na
presidência por José Sarney.
39
As letras das novas canções “sertanejas”, de um romantismo
exacerbado, sem vergonha de se expor, eram o caminho certo para conquistar
uma fatia do mercado apta a consumir o tal “sertanejo romântico” que
começava a ser esboçado. Enfim, a música “sertaneja” estava quase
conquistando o gosto da classe média, o que ampliaria definitivamente o
público consumidor daquele tipo de música (SOUSA, 2005, p. 182).
Observa-se, nesse sentido, que a grande maioria da classe média alta,
ligada ao campo, se beneficiou dos avanços tecnológicos da agricultura
nacional. Dessa forma, o “sertanejo romântico” se consolida como referência
musical dessa classe ascendente, com uma estética importada, baseada no
pastiche da cultura hegemônica norte-americana. Como no panorama da
globalização, os elementos da cultura são apropriados pela classe de
excluídos, que vêem neles uma possibilidade de socialização, os da música
“sertaneja” são prontamente absorvidos. Assim, o final do século XX foi
marcado pela explosão inventiva nos campos da gravação e reprodução de
sons e imagens, culminando com o advento do CD, fazendo com que a música
se tornasse um dos mais importantes campos de atuação da indústria cultural
(Idem, p. 188).
Toda a evolução tecnológica e mercadológica da época evidencia o
nível de avanço da indústria cultural e sua atuação num mercado de cultura de
massa. Os mecanismos de massificação foram eficientes no desenvolvimento
de produtos agradáveis a uma massa cada vez mais homogênea de
consumidores. Concomitantemente, esses consumidores precisavam
reconhecer nesses produtos algum traço que remetesse à sua identidade
cultural, referenciada, na maior parte das vezes, por seus antepassados. Dessa
forma, por mais que se afastasse de sua fonte de identidade – no caso da
música “sertaneja romântica”, a música caipira – o produto estilizado guardaria
sempre elementos de identificação com o consumidor. Devido a isso, o formato
de interpretação do “sertanejo romântico” permaneceu sendo o da dupla,
configuração original empregada pela música caipira (Idem, p. 188). Nesse
sentido, segundo José Roberto Zan, embora o canto em duas vozes, em
intervalo de terça, característico das duplas caipiras, possa ser reconhecido
como herança européia, é provável que as vozes agudas dos cantores, seu
outro traço característico, tenham raízes ameríndias (2007, p. 3).
40
CAPÍTULO III - O PÚBLICO E O PRIVADO COMO PRODUTO DE
CONSUMO
Todo sistema industrial tende ao crescimento, e
toda produção de massa destinada ao consumo
tem a sua própria lógica, que é a de máximo
consumo (MORIN, 1967, p.37).
Uma das características fundamentais do pós-modernismo é o
apagamento da fronteira entre a alta cultura e a cultura de massa. São também
marcas de nosso tempo o fascínio pela paisagem degradada do brega e do
kitsch e a proeminência publicitária sobre a literatura que vê implicações
desses traços incorporados à sua substância. Nesse sentido, tomaremos como
respaldo as reflexões de Fredric Jameson, para quem, entretanto,
essa ruptura não deve ser tomada como uma questão
puramente cultural: de fato, as teorias do pós-modernismo –
quer sejam celebratórias, quer se apresentem na linguagem da
repulsa moral ou da denúncia – têm uma grande semelhança
com todas aquelas generalizações sociológicas mais
ambiciosas que, mais ou menos na mesma época, nos trazem
as novidades a respeito da chegada e inauguração de um tipo
de sociedade totalmente novo, cujo nome mais famoso é
‘sociedade pós-industrial” (Daniel Bell), mas que também é
conhecida como sociedade de consumo, sociedade das
mídias, sociedade da informação, sociedade eletrônica ou
high-tech e similares “ (JAMESON, 1997, p. 28 –29).
Assim, podemos considerar que o produto final obtido pela assimilação,
tanto do passado caipira, quanto do pastiche da cultura hegemônica para a
qual o país se voltava naquele momento, pode não significar uma rendição,
mas uma adaptação dos costumes a serem preservados ante aqueles que
demonstravam a efetiva “inauguração de um tipo de sociedade totalmente
novo”. E é nesse sentido que a exposição de situações que há relativamente
pouco tempo seriam consideradas do domínio da privacidade, ou da
intimidade, passam a se tornar comuns enquanto conteúdos de produtos da
indústria cultural.
41
Além da exposição dessa intimidade nas canções, a apresentação na
“telinha” da TV extrapola das obras dos compositores ou intérpretes para
vasculhar suas vidas com o fim exclusivo de atrair, cada vez mais, o maior
número de consumidores possível. Nesse movimento, exploram, de forma
acintosa, a junção vida pública – vida privada desses artistas, de modo a
estabelecer relações entre o que foi criado e as emoções reais do(s)
criador(es), violando, assim, a sua privacidade. Esse tornar público o seu
sentimento ou o de outrem, expondo-o a uma visibilidade máxima – afinal, uma
boa imagem é um produto facilmente vendável (fácil de ser consumido) – faz
com que a música seja de grande interesse de nosso mundo midiático.
A superexposição do artista e de suas músicas não apenas torna
pública a sua imagem, como também cria uma familiaridade (intimidade) muito
grande com o público. Quando o recebemos em nossa casa, através da tela da
TV, sentimos este artista como se fosse uma pessoa bem próxima de nós,
participando de nossa própria vida íntima, o que ratifica a afirmação de
Thompson de que hoje, estamos acostumados a pensar que os indivíduos que
aparecem em nossos televisores pertencem a um mundo público aberto para
todos (1998, p. 109).
Cabe observar que consideraremos aqui a distinção estabelecida por
esse autor entre público e privado. Para Thompson,
(...) “público” significa “aberto” ou “acessível ao público”.
Público é o que é visível ou observável, o que é realizado na
frente de espectadores, o que está aberto para que todos ou
muitos vejam ou ouçam. Privado é, ao contrário, o que se
esconde da vista dos outros, o que é dito ou feito em
privacidade ou segredo, ou entre um círculo restrito de
pessoas. Nesse sentido, a dicotomia tem a ver com publicidade
versus privacidade, com abertura versus segredo, com
visibilidade versus invisibilidade (p. 112).
Nesse sentido, o que caracterizará nosso tempo é justamente o
apagamento da fronteira anterior entre o que se passa “entre um círculo restrito
de pessoas” e o que é “realizado na frente de espectadores”. Inúmeras ações e
emoções antes consideradas do domínio estrito do “privado” passam a ser
discutidas, expostas, publicadas, instaurando aquilo que chamaria Richard
42
Sennett (1988) de “tirania da intimidade” nos assuntos comuns da sociedade
atual.
As formas de atração
Assim, o que se analisará no presente capítulo é a interpenetração
público-privado no mundo contemporâneo, a partir da forma de “apelação”
junto ao público, dada pelas características das funções da linguagem, tal
como utilizadas pelos compositores. Essa “apelação” é exemplificada através
de três letras de músicas, que expõem cada uma um sentimento pessoal
(privado) expresso pelo compositor, tornado público, aberto, visível, e
buscando uma identificação com o universo íntimo vivido cotidianamente pelos
ouvintes.
O assunto base das letras de música em estudo é o amor, exposto
entretanto a partir de diferentes pontos de vista. Mas se as três letras
selecionadas falam, ainda que de maneira diferenciada, de amor, sua
abordagem do tema, entretanto, não será a mesma, já que em cada uma delas
observa-se a utilização de uma função da linguagem específica (de acordo com
a classificação das funções da linguagem de Roman Jakobson). A função
fática, que tem como tarefa a explicitação do contato comunicativo mesmo
(Ligação urbana); a função expressiva (emotiva), que é centrada no destinador
(Ainda ontem chorei de saudade) e a função conativa (apelativa), centrada no
destinatário, cujo objeto é a interpelação e o objetivo é convencer (Deixa eu te
amar).
Cabe lembrar, nesse contexto, que outros teóricos aplicaram a
classificação proposta por Jakobson, ampliando suas discussões. Segundo
Jesús Gonzáles Requena, as constantes interpelações do enunciador ao
enunciatário reatualizam o vínculo comunicativo e, portanto, a função fática é
que o evidencia. Para esse autor, portanto, a função fática constitui uma
característica relevante de todo dispositivo espetacular e de todo jogo de
sedução (1995, p. 86).
43
Essas interpelações do enunciador ao enunciatário marcam o jogo de
sedução presente nas letras das canções, que se torna mais evidente ainda
quando os intérpretes se apresentam ao vivo, como, por exemplo, na
televisão, em programas de auditório.
Nessa forma de exposição ainda mais explícita, cabe mencionar que o
mesmo Requena afirma que, no discurso televisivo, há um forte predomínio
das funções expressiva, conativa e fática, além de uma função referencial
muito diversificada quanto ao gênero e produtora, globalmente, de um discurso
sistemático sobre o mundo.
Para esse autor, isso permite estabelecer uma conclusão sobre a
macroestrutura semântica do discurso televisivo: a produção, como efeito de
sentido global, consiste na oferta ao destinatário potencial de um vínculo
comunicativo constante com um enunciador que pretende atuar como mediador
permanente entre o enunciatário e o mundo (cf REQUENA, 1995, p. 86-87).
Observa-se, assim, que o que realmente envolve, no discurso
televisivo, é o predomínio das funções expressiva, conativa e fática, que
transformam esse discurso numa verdadeira fonte espetacular de atrações
para o telespectador. O que poderia, por exemplo, ser uma simples
apresentação de cantores, transforma-se em um verdadeiro espetáculo, com o
envolvimento total do auditório, do apresentador e do telespectador, tudo em
nome da espetacularização.
Essa espetacularização é bastante explorada na atual forma de
divulgação da música sertaneja, dita romântica, que “rasgará”, para seu
público, sob luzes e cores, suas dores de amor.
O cotidiano do ouvinte nas letras das canções
Entre as características dos meios de comunicação de massa, uma das
mais marcantes é a busca de proximidade entre o universo descrito, “vivido”
nos textos, programas, novelas ou canções e o universo do espectador /
ouvinte. As mesmas angústias, as mesmas dificuldades, os mesmos problemas
44
vividos pelo receptor na vida real são expressos pelos compositores, autores,
intérpretes, de modo a aprofundar os vínculos do meio com seu receptor.
Em Ligação Urbana – atualíssima “música sertaneja”, na qual a função
de linguagem utilizada é a fática – o discurso que tece o enunciado é o da
manutenção do contato do narrador com a pessoa amada, a qual pode ser
percebida através da preocupação exposta na fala do narrador, e sua
cotidianeidade se estabelece na medida em que o narrador diz que está
ligando de um “orelhão”.
Outra característica do tempo real expressa no texto da canção é a
pressa com que todos nós vivenciamos até mesmo nossas experiências
amorosas: nesta letra, o autor (compositor) se constitui num narrador
preocupado com a exigüidade do tempo, para externar todo o desejo de
encontrar sua amada.
Alô amor, tô te ligando de um orelhão
Tá um barulho, uma confusão
Mas eu preciso tanto te falar
Depois das seis, tô te esperando no mesmo lugar
Pois estou louco pra te encontrar
Pra outra noite de aventura
Para exprimir seu sentimento, seu amor, ele se expõe (no sentido
literal) de maneira aberta e pública (em um “orelhão”), dizendo-se apaixonado e
se rendendo ao amor da amada. Reafirma a sua preocupação com a pressa
(com o tempo), porque “tem mais gente pra ligar” e, ainda, reafirma sua
urgência em encontrá-la.
Fui eu que fiz amor por brincadeira
E acabei me apaixonando
Meu amor eu me rendo a você
Pois estou te amando
Você deixou em mim uma saudade
Com seu jeito de fazer paixão
Você fez maravilhas, loucuras
No meu coração
Um beijo pra você
Não posso demorar
Tô numa ligação urbana
Tem mais gente pra ligar
45
Um beijo pra você
Não posso demorar
Tô numa ligação urbana
Vem correndo me encontrar
Podemos perceber pela letra da canção (composta por Jaílton Vieira e
interpretada por Bruno e Marrone) a instantaneidade, a rapidez com que ele
declara o seu amor. Para ele, o tempo urge, ele tem pressa, afinal, está
fazendo uma ligação urbana, em um telefone público se expondo não apenas
para a sua amada, mas também para todos os que aguardam para falar. E
mais, esse ritmo alucinante se estende também ao desejo de encontrá-la para
uma eventual concretização desse amor, que lhe tira a razão (eu tô louco pra te
amar) e lhe dá uma visível sensação de urgência (vem correndo me encontrar).
O ritmo alucinante que a letra dessa canção retrata traduz de maneira
exata o mesmo ritmo que compõe a linguagem midiática ou televisiva,
conforme é observada por Ciro Marcondes Filho:
A linguagem de televisão é marcada por uma pulsação, um
ritmo acelerado que se reconhece em todos os tipos de
emissão. (...) A televisão é um meio de comunicação que tem
pressa. Tem pressa porque o componente mais importante em
toda a sua estrutura de produção é o tempo. Ele é o eixo de
todo o sistema televisivo. Ele tem a ver tanto com o custo
publicitário do segundo de emissão como com a necessidade
de fixação do receptor. (...) eu também tenho que ter em cada
segundo de televisão um produto fascinante, de forma que o
telespectador não salte para outro canal e inicie seu circuito a
partir do telecomando (1993, pp. 23-24).
A letra revela, portanto, essa mesma pulsação, o mesmo ritmo
acelerado de que fala Marcondes Filho, para quem
velocidade, pulsação, seqüenciamento nervoso da produção
em busca de um contínuo impacto visual são as marcas da
televisão na atualidade. As imagens têm que ser muito rápidas,
atraentes, conter uma grande quantidade de informações e
apelos ao inconsciente, de tal forma que este fascínio
prolongue-se e produza-se durante um tempo contínuo (Idem,
p. 24).
46
O produto cultural como estratégia de convencimento
Em Deixa eu te amar – na qual a função de linguagem utilizada é a
conativa – o narrador se dirige diretamente ao destinatário, que é a pessoa a
quem ele ama, interpelando-a, questionando-a sobre sua vida, querendo
interpretar o seu olhar, conhecer o seu medo, implorando para que ela lhe diga.
Por que você me olha assim?
Qual o seu medo?
Alguém já te fez sofrer?
Qual o seu medo?
Diz pra mim
Ele continua utilizando o recurso da interpelação com o objetivo de
convencê-la a desabafar com ele.
Se por amor já veio a sofrer
E agora tem medo
De amar e se envolver
Qual o seu medo?
Diz pra mim
Como não obtém resposta a suas perguntas, ele se mostra amigo,
oferece seu consolo e sua confiança.
Sei que palavras não vão adiantar
Se o coração não quer acreditar
Confie em mim, não vai se arrepender
O que eu mais quero
É não te ver sofrer
E, por fim, ele oferece a ela o seu (dele) amor, mostra-se seu
companheiro na dor, e grande conhecedor dessa causa, convida-a a se dar
uma chance, e implora-lhe que o deixe amá-la.
Amor sincero tenho dentro de mim
47
Pra te dar, é só você querer e arriscar
Pois não é ilusão
Nem tampouco atração
È mais forte do que pode pensar
Não sabe o quanto
Já sofri por amor
Conheço bem essa dor
Que destrói e causa insegurança demais
Pra você superar
Tem que uma chance se dar
E não ter medo de se apaixonar
Deixa eu te amar
Na letra dessa canção (interpretada por Edson e Hudson e composta
por Edson/Flávio) temos a predominância da função apelativa da linguagem,
cujo objeto é a interpelação. O receptor é posto em destaque, ou seja, a
linguagem se organiza no sentido de convencer o receptor, através do
emprego de verbos no modo imperativo (diz, confie, tem, deixa) como acontece
nos textos (falados ou escritos) de publicidade e propaganda. Aqui, o objetivo
do narrador é convencer a pessoa a quem ele ama, mas por quem não é
correspondido, a deixá-lo amá-la. Daí a importância da persuasão para atingir a
meta, o alvo (o coração da pessoa amada).
E essa busca da persuasão, do convencimento, é uma das marcas da
linguagem dos meios de comunicação de massa. Também, por exemplo, na
linguagem televisiva, como nessa música, somos bombardeados o tempo todo
com interpelações que buscam nos convencer, cada vez mais, a consumirmos
este ou aquele produto, a assistirmos a este ou àquele programa, a usarmos
esta ou aquela roupa etc. Somos diretamente influenciados pela mídia e
transformados assim em consumidores.
O que se observa é que todo o tempo somos alvejados com uma
tentativa de convencimento para aderirmos a esta ou àquela idéia, a este ou
àquele produto. Nesse sentido, é como se estivéssemos a todo momento
assistindo a comerciais, sobre os quais Requena diz que o ‘spot’ publicitário
(...) é introduzido insistentemente no contexto comunicativo de uma incessante
interpelação ‘cara a cara’. E acrescenta:
48
No âmbito dos programas informativos, o contexto espetacular
tende a se superpor de uma maneira cada vez mais
sistemática e intensificada: – tendência a ‘personalizar’ os
programas informativos; (...) – presença na imagem do
informador (...);– discurso informativo caracterizado pelo
predomínio das funções conativa e fática; – tendência das
reportagens a conceder maior protagonismo ao ato informativo
(a aventura do repórter na conquista da informação) (...);–
tendência à manipulação da imagem... (1995, pp. 93-94 –
tradução nossa).
Ou seja, da mesma forma que a publicidade invade a nossa casa, a
nossa vida, incitando-nos a ouvir (consumir) mais e mais, a agir da mesma
forma, também o que se não se propõe a ser um “spot” acaba demonstrando
ser um “veículo de publicidade” da conquista ao ser amado, por exemplo, como
bem retrata a letra da canção ora em pauta.
Nesse mesmo sentido, Requena diz, ainda, que
O predomínio da função fática e do contexto espetacular, no
marco de uma emissão ininterrupta e incessante, conduz, pois,
necessariamente, a uma progressiva auto-referencialidade: o
discurso televisivo dominante, erigido no universo auto-
-suficiente, tende, necessariamente, a não falar de outra coisa
que de si mesmo. (...) As horas de máxima audiência televisiva
são ocupadas por segmentos, cada vez mais com maior
duração, que têm por único objetivo anunciar os programas
que serão oferecidos ao longo da semana. (...) O tempo
potencialmente mais intenso da emissão televisiva – aquele em
que a comunicação poderia ser mais eficaz quantitativa e
qualitativamente – não se oferece informação alguma sobre o
mundo, somente sobre a própria televisão constituída no
referente-espetacular-absoluto” (idem, pp. 96-97 – tradução
nossa).
A partir das colocações desse estudioso a respeito do universo
televisivo, poderíamos inferir muitas conclusões a propósito do conteúdo da
letra da canção mencionada como exemplo. Também na letra de Deixa eu te
amar, o compositor é auto-referente, anuncia o que ele tem para oferecer à
pessoa amada e o que pode fazer para conquistar o amor dela, funcionando de
fato como um “anúncio de si mesmo” e das possibilidades de seu amor.
49
Entre tapas e beijos, a dor de amor em exposição
Além da interpelação e da manutenção do canal de comunicação,
observa-se, ainda, na construção de letras das canções, a expressão de
sentimentos íntimos, também esses em aproximação a sensações conhecidas
do espectador/ouvinte.
Em Ainda ontem chorei de saudade – na qual a função de linguagem
utilizada é a emotiva – é a expressão da rejeição o que o autor descreve. Aqui,
o narrador se dirige diretamente ao destinatário, objeto de seu amor, dizendo a
ela que o que ela lhe pede, por carta, é, em parte, impossível de ser atendido.
Você me pede na carta
Que eu desapareça
Que eu nunca mais te procure
Pra sempre te esqueça
Posso fazer sua vontade
Atender seu pedido
Mas esquecer é bobagem
É tempo perdido
O emissor demonstra à sua amada que ele pode fazer a sua vontade
de não mais procurá-la, ou atender ao seu pedido de que ele desapareça, mas
que esquecê-la é, para ele, impossível.
É interessante observar em que nível se dá a exposição a que ele
submete seus próprios sentimentos e os de sua amada. Ele recebe uma
“carta”, algo pessoal (privado), e a torna pública em forma de uma resposta-
-desabafo. A mensagem está centrada na expressão dos seus sentimentos
mais dolorosos, o que se observa quando este emissor diz:
Ainda ontem chorei de saudade
Relendo a carta, sentindo o perfume
Mas que fazer com essa dor que me invade
Mato esse amor ou me mata o ciúme
Ele continua o seu desabafo, mostrando o dilema em que vive entre
AMAR X ODIAR a mulher que o abandona. Como não encontra saída, é no
50
plano dos sonhos (exclusivos dele) que encontra uma válvula de escape e
através deles se realiza, ou melhor, concretiza seu amor.
O dia inteiro te odeio, te busco, te caço
Mas em meu sonho de noite, eu te beijo e te abraço
Porque os sonhos são meus, ninguém rouba e nem tira
Melhor sonhar na verdade
Que amar na mentira
Na letra dessa canção (composta por Moacir Franco, interpretada por
João Mineiro e Marciano), temos a predominância da função emotiva
(expressiva) da linguagem. O emissor é posto em destaque, tratando-se, então,
de um texto pessoal, subjetivo, com o predomínio de pronomes e verbos em
primeira pessoa (eu, me, posso, chorei, odeio, busco ...).
A forma de exposição extrapola o que seria recomendável como
público há cerca de, por exemplo, cinqüenta anos, quando certas emoções, ou,
sobretudo, o abandono, não seriam tornados matéria de produtos culturais.
Nesse sentido, Maria Rita Kehl diz:
(...) Durante pelo menos dois séculos, o bom gosto burguês
nos ensinou que algumas coisas não se dizem, não se
mostram e não se fazem em público. Essas mesmas coisas,
até então reservadas ao espaço da privacidade, hoje ocupam o
centro da cena televisiva (2004, p. 141).
Em Ainda ontem chorei de saudade, podemos constatar a observação
de Maria Rita Kehl. O que seria reservado ao espaço da privacidade (uma
carta) é exposto em forma de música, divulgado em todos os meios de
comunicação. E o que seria, também, íntimo, só dele (do emissor), os seus
sentimentos, o seu amor pela amada, o seu abandono, o seu desabafo, é
divulgado da mesma forma, através da canção, nos meios de comunicação,
tornando-se público.
O narrador dessa canção, assim como aquele que, do telefone público,
proclama seu amor e seu desejo, e o que interpela, através da letra de Deixa
eu te amar, alguém que não lhe quer a ofertar-lhe e aceitar seu amor, são
exemplos claros da forma com a qual se lida com as emoções mais íntimas nos
dias atuais, numa relação inteiramente promíscua entre o que deveria ser
privado e o que é, diuturnamente, tornado público.
51
A exposição de si para atração do outro
O mundo moderno é, como se sabe, o mundo da “tirania da
intimidade”. Somos obrigados a conviver com conversas completamente
pessoais entabuladas em telefones celulares, nas quais participamos, sem o
querer, de problemas os mais íntimos. Somos invadidos ininterruptamente pela
linguagem interpelativa da publicidade. Somos intoxicados pela
espetacularidade de nossa sociedade que colocou na exposição pessoal seus
mais altos interesses. Parece-nos atualmente uma necessidade inerente da
maioria dos seres humanos, o serem vistos. A imagem é tudo para a grande
maioria. Sobre isso, Maria Rita Kehl descreve
(...) A certeza subjetiva que nos garante, muito precocemente,
que “eu sou”, não provém da nossa capacidade de pensar,
mas da nossa identificação a uma imagem. A imagem corporal.
Antes de saber que pensa, o filhote de homem já “sabe” que
existe, a partir do olhar que o outro dirige à sua imagem. (...) O
que garante o ser, para um sujeito, é sua visibilidade – para
outro sujeito (p. 148).
Em síntese, num mundo que se fez espetáculo, imagem a ser exposta,
o conceito de privado perdeu-se numa “publicização” de sentimentos e
emoções que, na realidade, banaliza e consome as sensações mais íntimas
que o ser humano possui, no intuito único de atrair para si a atenção do outro.
Nesse sentido, a “atualização” da música caipira para o “sertanejo romântico”,
que expõe em fortes tintas a saudade, as dores e amores do “peão”, insere-a
nas estratégias de espetacularização do mundo pós-moderno.
52
CAPÍTULO IV – “TRISTEZAS DO JECA”: A DOR DA PERDA
COMO GRANDE TEMA DO CANCIONEIRO SERTANEJO
Assim, mundo caipira e mundo da cidade
apareciam como lugares simbólicos, demarcados,
que não eram exatamente correlatos a espaços
geográficos. O sentimento e visão de mundo caipira
não se perdem quando, na cidade, o imigrante
canta o desejo de retorno e o arrependimento de ter
migrado (VIANNA, 2003, p. 84).
Se a exposição das emoções mais íntimas, característica da
contemporaneidade, é um dos temas recorrentes da canção sertaneja, também
o embate entre o homem do campo e o mundo urbanizado – que passa a ser
sua referência – aparece como temática que não se traduzirá, apenas, através
da declaração formal das diferenças encontradas entre o universo deixado para
trás e aquele para o qual se transferiu. Nesse sentido, de diferentes formas e
situada no próprio universo campesino, a “tradição” sertaneja será reafirmada,
ou mesmo confrontada com as alterações trazidas pelo “progresso” material,
com evidente vantagem para a primeira.
Essa reafirmação poderia se explicar pelo que Antonio Candido
chamaria de fatores de persistência, ou permanência, que são aqueles que
contribuem para a continuidade dos modos tradicionais de vida. Nesse sentido,
observa-se, ainda de acordo com esse mesmo autor, que todas as vezes que
os indivíduos e os grupos se encontram em presença de novos valores,
propostos ao seu comportamento, a passagem de um tipo de cultura a outro
depende, em grande parte, para seu êxito, do ritmo com que se dá a
incorporação dos traços. Sob esse ponto de vista, a acomodação do caipira
aos padrões urbanos se dará conforme ele possa ou não encontrar condições
satisfatórias de substituição dos seus próprios (cf CANDIDO, 2003, p. 253).
Por outro lado, mesmo nos indivíduos que migram e buscam assimilar
esses novos padrões no intuito de adaptar-se às novas práticas impostas pela
vida na urbes, observa-se que há uma constante revalorização do passado. A
53
cada conversa sobre as dificuldades presentes, surge uma referência a ele, ora
discreta e fugidia, ora tornando-se tema de exposição (idem, p. 245).
Observada sob outro ponto de vista, essa nostalgia do “antes”, ou do
campo de modo geral, acompanha a construção da ideologia de ingenuidade
que se “cola” à figura do “personagem” um tanto mítico que é o caipira, tão
afastada da realidade da cidade que se torna capaz de realçar-lhe os aspectos
mais deploráveis. Ou seja, como diria José de Souza Martins,
A elaboração ideológica da figura do caipira incorpora a
aparência da sua realidade, e não a sua transparência,
constituída desde o século XVIII por força dos dinamismos da
economia colonial que o excluíram da condição de mão-de-
-obra fundamental. Na sua realidade ele aparece como
excluído e estranho. Ideologicamente, a sua condição de
‘estranho’ é elaborada e ele acaba se constituindo na única
figura ‘desvinculada’ que pode observar criticamente a
sociedade mais ampla (1975, p. 133).
Pensando-se, então, nessa imagem que se constrói de um caipira e de
um mundo campesino ideal, podemos concordar com esse mesmo autor, que
afirma que não é o “verdadeiro” caipira quem compõe e canta. Cada
compositor e cantor procura adequar-se à imagem do caipira, como se fosse
um caipira nato, emprestando-lhe emoções e sensações a princípio ligadas ao
campo, razão pela qual essa idealização será feita a partir de diversos e
variados pontos de vista.
Assim, se aceitamos a imagem do “caipira” enquanto personagem
construído que, de sua posição ideal, configura o crítico ideal de uma
modalidade de consciência dominante (MARTINS, 1975, p. 134),
transformando o que poderia ser apenas mudança em processos de
decadência, compreendemos a utilização desse personagem e de seu mundo
como elementos mantenedores de uma forma de vida também idealizada. Esse
personagem visivelmente se perde nos caminhos da globalização que leva ao
campo boa parte dos atributos da vida moderna. Observa-se, portanto, uma
postura de valorização de hábitos e/ou costumes sertanejos através das letras
das canções que se poderiam chamar de tradicionalismo ou, no mínimo, de
reafirmação da tradição, que se traduzem em diferentes formas.
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)
Camargo emerson zíngaro -  música caipira (origens e atualidade)

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

PADEIRINHO DA MANGUEIRA: A ESTÉTICA DA LINGUAGEM DO MORRO
PADEIRINHO DA MANGUEIRA: A ESTÉTICA DA LINGUAGEM DO MORROPADEIRINHO DA MANGUEIRA: A ESTÉTICA DA LINGUAGEM DO MORRO
PADEIRINHO DA MANGUEIRA: A ESTÉTICA DA LINGUAGEM DO MORROalfeuRIO
 
Temáticas de Cesário verde
Temáticas de Cesário verdeTemáticas de Cesário verde
Temáticas de Cesário verdeMariaVerde1995
 
A afro brasilidade na musica contemporânea.
A afro brasilidade na musica contemporânea.A afro brasilidade na musica contemporânea.
A afro brasilidade na musica contemporânea.Júlio César Anjos
 
Interlocuções entre kafka e o dadaísmo
Interlocuções entre kafka e o dadaísmoInterlocuções entre kafka e o dadaísmo
Interlocuções entre kafka e o dadaísmopibiduergsmontenegro
 
Mitos Rio Grande do Sul
Mitos Rio Grande do Sul Mitos Rio Grande do Sul
Mitos Rio Grande do Sul Bibiana F
 
Artigo sobre revistas paranaenses
Artigo sobre revistas paranaensesArtigo sobre revistas paranaenses
Artigo sobre revistas paranaensesnincia
 
Caracteristicas de Cesário Verde
Caracteristicas de Cesário VerdeCaracteristicas de Cesário Verde
Caracteristicas de Cesário VerdeMariaVerde1995
 
Vida e obra de cesário verde
Vida e obra de cesário verdeVida e obra de cesário verde
Vida e obra de cesário verdeMariaVerde1995
 
Terceira geração modernista
Terceira geração modernista Terceira geração modernista
Terceira geração modernista Claudio Soares
 
Pra cá de Teerã - Questões de Subjetividade no Ciclo Autoral de Marjane Satrapi
Pra cá de Teerã - Questões de Subjetividade no Ciclo Autoral de Marjane SatrapiPra cá de Teerã - Questões de Subjetividade no Ciclo Autoral de Marjane Satrapi
Pra cá de Teerã - Questões de Subjetividade no Ciclo Autoral de Marjane SatrapiMarcel Ayres
 
Semana de Letras 2008 - Letras e Telas de Angola
Semana de Letras 2008 - Letras e Telas de AngolaSemana de Letras 2008 - Letras e Telas de Angola
Semana de Letras 2008 - Letras e Telas de AngolaRicardo Riso
 
Modernismo.
Modernismo.Modernismo.
Modernismo.Bruna
 

Mais procurados (20)

PADEIRINHO DA MANGUEIRA: A ESTÉTICA DA LINGUAGEM DO MORRO
PADEIRINHO DA MANGUEIRA: A ESTÉTICA DA LINGUAGEM DO MORROPADEIRINHO DA MANGUEIRA: A ESTÉTICA DA LINGUAGEM DO MORRO
PADEIRINHO DA MANGUEIRA: A ESTÉTICA DA LINGUAGEM DO MORRO
 
M O D E R N I S M
M O D E R N I S MM O D E R N I S M
M O D E R N I S M
 
Temáticas de Cesário verde
Temáticas de Cesário verdeTemáticas de Cesário verde
Temáticas de Cesário verde
 
A afro brasilidade na musica contemporânea.
A afro brasilidade na musica contemporânea.A afro brasilidade na musica contemporânea.
A afro brasilidade na musica contemporânea.
 
Modernismo
ModernismoModernismo
Modernismo
 
Interlocuções entre kafka e o dadaísmo
Interlocuções entre kafka e o dadaísmoInterlocuções entre kafka e o dadaísmo
Interlocuções entre kafka e o dadaísmo
 
Mitos Rio Grande do Sul
Mitos Rio Grande do Sul Mitos Rio Grande do Sul
Mitos Rio Grande do Sul
 
Artigo sobre revistas paranaenses
Artigo sobre revistas paranaensesArtigo sobre revistas paranaenses
Artigo sobre revistas paranaenses
 
Caracteristicas de Cesário Verde
Caracteristicas de Cesário VerdeCaracteristicas de Cesário Verde
Caracteristicas de Cesário Verde
 
Noções básicas de literatura e música
Noções básicas de literatura e músicaNoções básicas de literatura e música
Noções básicas de literatura e música
 
Historia Movimento Lascivinista
Historia Movimento LascivinistaHistoria Movimento Lascivinista
Historia Movimento Lascivinista
 
Gaucho Ao Tradicionalista
Gaucho Ao TradicionalistaGaucho Ao Tradicionalista
Gaucho Ao Tradicionalista
 
Vida e obra de cesário verde
Vida e obra de cesário verdeVida e obra de cesário verde
Vida e obra de cesário verde
 
Revisoes sobre-cesario-verde
Revisoes sobre-cesario-verdeRevisoes sobre-cesario-verde
Revisoes sobre-cesario-verde
 
Terceira geração modernista
Terceira geração modernista Terceira geração modernista
Terceira geração modernista
 
Pra cá de Teerã - Questões de Subjetividade no Ciclo Autoral de Marjane Satrapi
Pra cá de Teerã - Questões de Subjetividade no Ciclo Autoral de Marjane SatrapiPra cá de Teerã - Questões de Subjetividade no Ciclo Autoral de Marjane Satrapi
Pra cá de Teerã - Questões de Subjetividade no Ciclo Autoral de Marjane Satrapi
 
Semana de Letras 2008 - Letras e Telas de Angola
Semana de Letras 2008 - Letras e Telas de AngolaSemana de Letras 2008 - Letras e Telas de Angola
Semana de Letras 2008 - Letras e Telas de Angola
 
Modernismo.
Modernismo.Modernismo.
Modernismo.
 
Modernismo 3
Modernismo 3Modernismo 3
Modernismo 3
 
Eliana zaroni
Eliana zaroniEliana zaroni
Eliana zaroni
 

Destaque

Destaque (8)

Playbook for winning in Indian Apponomy
Playbook for winning in Indian Apponomy Playbook for winning in Indian Apponomy
Playbook for winning in Indian Apponomy
 
DevOps with Cloud services
DevOps with Cloud servicesDevOps with Cloud services
DevOps with Cloud services
 
Early Childhood Cognitive Final Draft
Early Childhood Cognitive Final DraftEarly Childhood Cognitive Final Draft
Early Childhood Cognitive Final Draft
 
Camargo emerson zíngaro - cifras de músicas sertanejas
Camargo emerson zíngaro -  cifras de músicas sertanejasCamargo emerson zíngaro -  cifras de músicas sertanejas
Camargo emerson zíngaro - cifras de músicas sertanejas
 
World
WorldWorld
World
 
Los videojuegos
Los videojuegosLos videojuegos
Los videojuegos
 
Tugas Besar PTI
Tugas Besar PTITugas Besar PTI
Tugas Besar PTI
 
Abhishek Resume QA
Abhishek Resume QAAbhishek Resume QA
Abhishek Resume QA
 

Semelhante a Camargo emerson zíngaro - música caipira (origens e atualidade)

Literatura Popular Regional - Alessandra Favero
Literatura Popular Regional  - Alessandra FaveroLiteratura Popular Regional  - Alessandra Favero
Literatura Popular Regional - Alessandra FaveroLisvaldo Azevedo
 
A presença africana na amazonia
A presença africana na amazoniaA presença africana na amazonia
A presença africana na amazoniaNanci Luana Souza
 
Moitará e oigalê o jogo das identidades populares brasileiras e a commedia ...
Moitará e oigalê   o jogo das identidades populares brasileiras e a commedia ...Moitará e oigalê   o jogo das identidades populares brasileiras e a commedia ...
Moitará e oigalê o jogo das identidades populares brasileiras e a commedia ...Taís Ferreira
 
A Realidade Cantada: a canção enquanto complemento interdiscursivo para liter...
A Realidade Cantada: a canção enquanto complemento interdiscursivo para liter...A Realidade Cantada: a canção enquanto complemento interdiscursivo para liter...
A Realidade Cantada: a canção enquanto complemento interdiscursivo para liter...REVISTANJINGAESEPE
 
Pronto de leandro gomes de barros a rodolfo coelho
Pronto de leandro gomes de barros a rodolfo coelhoPronto de leandro gomes de barros a rodolfo coelho
Pronto de leandro gomes de barros a rodolfo coelhoatodeler
 
Alfabetização musical e paulo freire
Alfabetização musical e paulo freireAlfabetização musical e paulo freire
Alfabetização musical e paulo freiremetodotedem
 
Cordel: Uma proposta para o ensino de História
Cordel: Uma proposta para o ensino de HistóriaCordel: Uma proposta para o ensino de História
Cordel: Uma proposta para o ensino de HistóriaEmerson Mathias
 
Polyana de oliveira_faria
Polyana de oliveira_fariaPolyana de oliveira_faria
Polyana de oliveira_fariaCláudia Sá
 
LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdf
LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdfLETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdf
LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdfKarlianaArruda1
 
GALLO,PM(2010)-Caxixi
GALLO,PM(2010)-CaxixiGALLO,PM(2010)-Caxixi
GALLO,PM(2010)-CaxixiVictor Eloy
 
Linguagens 1ª SÉRIE - 3º BIMESTRE Professor.pdf
Linguagens 1ª SÉRIE -  3º BIMESTRE Professor.pdfLinguagens 1ª SÉRIE -  3º BIMESTRE Professor.pdf
Linguagens 1ª SÉRIE - 3º BIMESTRE Professor.pdfGernciadeProduodeMat
 
Linguagens 1ª SÉRIE - 3º BIMESTRE Professor.pdf
Linguagens 1ª SÉRIE -  3º BIMESTRE Professor.pdfLinguagens 1ª SÉRIE -  3º BIMESTRE Professor.pdf
Linguagens 1ª SÉRIE - 3º BIMESTRE Professor.pdfGernciadeProduodeMat
 
Movimento armorial x_tropicalismo_dilema
Movimento armorial x_tropicalismo_dilemaMovimento armorial x_tropicalismo_dilema
Movimento armorial x_tropicalismo_dilemamarciasmendonca
 

Semelhante a Camargo emerson zíngaro - música caipira (origens e atualidade) (20)

Literatura Popular Regional - Alessandra Favero
Literatura Popular Regional  - Alessandra FaveroLiteratura Popular Regional  - Alessandra Favero
Literatura Popular Regional - Alessandra Favero
 
Camargo emerson zíngaro - tradição e assimilação na música sertaneja
Camargo emerson zíngaro  - tradição e assimilação na música sertanejaCamargo emerson zíngaro  - tradição e assimilação na música sertaneja
Camargo emerson zíngaro - tradição e assimilação na música sertaneja
 
A presença africana na amazonia
A presença africana na amazoniaA presença africana na amazonia
A presença africana na amazonia
 
Oliveira danniel madson_vieira_i
Oliveira danniel madson_vieira_iOliveira danniel madson_vieira_i
Oliveira danniel madson_vieira_i
 
Tccpavulagemfinal
TccpavulagemfinalTccpavulagemfinal
Tccpavulagemfinal
 
Camargo emerson zíngaro-música sertaneja de raiz
Camargo emerson zíngaro-música sertaneja de raizCamargo emerson zíngaro-música sertaneja de raiz
Camargo emerson zíngaro-música sertaneja de raiz
 
Moitará e oigalê o jogo das identidades populares brasileiras e a commedia ...
Moitará e oigalê   o jogo das identidades populares brasileiras e a commedia ...Moitará e oigalê   o jogo das identidades populares brasileiras e a commedia ...
Moitará e oigalê o jogo das identidades populares brasileiras e a commedia ...
 
Camargo Emerson Zingaro: O Sertanejo no Brasil
Camargo Emerson Zingaro: O Sertanejo no BrasilCamargo Emerson Zingaro: O Sertanejo no Brasil
Camargo Emerson Zingaro: O Sertanejo no Brasil
 
A Realidade Cantada: a canção enquanto complemento interdiscursivo para liter...
A Realidade Cantada: a canção enquanto complemento interdiscursivo para liter...A Realidade Cantada: a canção enquanto complemento interdiscursivo para liter...
A Realidade Cantada: a canção enquanto complemento interdiscursivo para liter...
 
Pronto de leandro gomes de barros a rodolfo coelho
Pronto de leandro gomes de barros a rodolfo coelhoPronto de leandro gomes de barros a rodolfo coelho
Pronto de leandro gomes de barros a rodolfo coelho
 
Alfabetização musical e paulo freire
Alfabetização musical e paulo freireAlfabetização musical e paulo freire
Alfabetização musical e paulo freire
 
Cordel: Uma proposta para o ensino de História
Cordel: Uma proposta para o ensino de HistóriaCordel: Uma proposta para o ensino de História
Cordel: Uma proposta para o ensino de História
 
Polyana de oliveira_faria
Polyana de oliveira_fariaPolyana de oliveira_faria
Polyana de oliveira_faria
 
LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdf
LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdfLETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdf
LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdf
 
GALLO,PM(2010)-Caxixi
GALLO,PM(2010)-CaxixiGALLO,PM(2010)-Caxixi
GALLO,PM(2010)-Caxixi
 
Linguagens 1ª SÉRIE - 3º BIMESTRE Professor.pdf
Linguagens 1ª SÉRIE -  3º BIMESTRE Professor.pdfLinguagens 1ª SÉRIE -  3º BIMESTRE Professor.pdf
Linguagens 1ª SÉRIE - 3º BIMESTRE Professor.pdf
 
Linguagens 1ª SÉRIE - 3º BIMESTRE Professor.pdf
Linguagens 1ª SÉRIE -  3º BIMESTRE Professor.pdfLinguagens 1ª SÉRIE -  3º BIMESTRE Professor.pdf
Linguagens 1ª SÉRIE - 3º BIMESTRE Professor.pdf
 
Movimento armorial x_tropicalismo_dilema
Movimento armorial x_tropicalismo_dilemaMovimento armorial x_tropicalismo_dilema
Movimento armorial x_tropicalismo_dilema
 
Indio nat
Indio natIndio nat
Indio nat
 
a congada
a congadaa congada
a congada
 

Mais de https://camargoemersonzingaro.wordpress.com

Mais de https://camargoemersonzingaro.wordpress.com (12)

Yasmin Santos - Saudade Nível Hard (Letra)
Yasmin Santos - Saudade Nível Hard (Letra)Yasmin Santos - Saudade Nível Hard (Letra)
Yasmin Santos - Saudade Nível Hard (Letra)
 
Henrique e Juliano - Vai que bebereis
Henrique e Juliano - Vai que bebereisHenrique e Juliano - Vai que bebereis
Henrique e Juliano - Vai que bebereis
 
Bruno e Marrone - Beijo de Varanda
Bruno e Marrone - Beijo de VarandaBruno e Marrone - Beijo de Varanda
Bruno e Marrone - Beijo de Varanda
 
Camargo Emerson Zíngaro: Enzo Rabelo - Meio Caminho Andado
Camargo Emerson Zíngaro: Enzo Rabelo - Meio Caminho AndadoCamargo Emerson Zíngaro: Enzo Rabelo - Meio Caminho Andado
Camargo Emerson Zíngaro: Enzo Rabelo - Meio Caminho Andado
 
Camargo Emerson Zingaro: A história do Sertanejo
Camargo Emerson Zingaro: A história do SertanejoCamargo Emerson Zingaro: A história do Sertanejo
Camargo Emerson Zingaro: A história do Sertanejo
 
Camargo emerson zíngaro - conheça a história da era dos festivais
Camargo emerson zíngaro - conheça a história da era dos festivais Camargo emerson zíngaro - conheça a história da era dos festivais
Camargo emerson zíngaro - conheça a história da era dos festivais
 
Camargo emerson zíngaro - livro sertanejo não aprendi dizer adeus - Leonardo
Camargo emerson zíngaro -  livro sertanejo não aprendi dizer adeus - LeonardoCamargo emerson zíngaro -  livro sertanejo não aprendi dizer adeus - Leonardo
Camargo emerson zíngaro - livro sertanejo não aprendi dizer adeus - Leonardo
 
Camargo emerson zíngaro - música sertaneja e indústria cultural
Camargo emerson zíngaro  - música sertaneja e indústria culturalCamargo emerson zíngaro  - música sertaneja e indústria cultural
Camargo emerson zíngaro - música sertaneja e indústria cultural
 
Camargo emerson zíngaro - revendo a música sertaneja
Camargo emerson zíngaro -  revendo a música sertanejaCamargo emerson zíngaro -  revendo a música sertaneja
Camargo emerson zíngaro - revendo a música sertaneja
 
Camargo emerson zíngaro - música sertaneja e globa ll-zação
Camargo emerson zíngaro  - música sertaneja e globa ll-zaçãoCamargo emerson zíngaro  - música sertaneja e globa ll-zação
Camargo emerson zíngaro - música sertaneja e globa ll-zação
 
Camargo emerson zíngaro - jovem música sertaneja
Camargo emerson zíngaro -  jovem música sertanejaCamargo emerson zíngaro -  jovem música sertaneja
Camargo emerson zíngaro - jovem música sertaneja
 
Camargo emerson zíngaro - aprenda a tocar músicas sertanejas no violão
Camargo emerson zíngaro  - aprenda a tocar músicas sertanejas no violãoCamargo emerson zíngaro  - aprenda a tocar músicas sertanejas no violão
Camargo emerson zíngaro - aprenda a tocar músicas sertanejas no violão
 

Camargo emerson zíngaro - música caipira (origens e atualidade)

  • 1. ENOI MIRANDA BARBOSA MENDES MÚSICA CAIPIRA – ORIGENS E ATUALIDADE – A REPRESENTAÇÃO DO HOMEM DO CAMPO NAS LETRAS DAS CANÇÕES SERTANEJAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA agosto de 2007
  • 2. ENOI MIRANDA BARBOSA MENDES MÚSICA CAIPIRA – ORIGENS E ATUALIDADE – A REPRESENTAÇÃO DO HOMEM DO CAMPO NAS LETRAS DAS CANÇÕES SERTANEJAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós- - graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Discurso e representação Orientador: Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA agosto de 2007
  • 3. À Maria José de Miranda (NEM), sempre presente, força, luz, apoio incondicional na minha caminhada... Às minhas filhas Enói Maria e Glória Maria, impulso, objetivo, razão de ser de eu estar aqui... À minha MUSA INSPIRADORA, que sempre me enviou do ALTO, na hora certa, o alento e o suporte indispensáveis.
  • 4. AGRADECIMENTOS A meus PAIS, pela luta e dedicação incansáveis em prol de minha formação pessoal e acadêmica. A meus IRMÃOS, Chico e João, pela compreensão, pelo apoio incondicional à minha luta em busca de uma realização. A meu irmão Jósimo, sempre presente, pela amizade constante que a mim dedicou durante o tempo que pudemos viver juntos. Ao DELAC – Departamento de Letras, Artes e Cultura da UFSJ, que soube compreender a minha aspiração pelo Mestrado e me tornou possível a sua realização. Aos meus Colegas-Professores do Departamento, que me acompanharam de perto nesta caminhada, pela atenção especial que me dispensaram. Aos meus Amigos, que souberam compreender a minha ausência durante a realização deste trabalho. Às minhas Companheiras do dia-a-dia em minha casa, Rosa e Lúcia, pela atenção, pelo carinho e pela disponibilidade que sempre me dedicaram. Ao Alencar, pelo companheirismo, e às minhas filhas, por terem sabido compreender a ausência materna durante esta trajetória com resignação e aceitação tamanhas. À UFSJ – Universidade Federal de São João del-Rei, pela oportunidade que por ela me foi concedida de realizar o meu Mestrado, e aos meus alunos, que sempre se fizeram presentes ao meu trabalho. Ao povo das áreas rurais brasileiras e, por conseqüência, à minha família, que é caipira, razão deste estudo. Aos meus colegas do Mestrado, pela amizade e colaboração. À ZEZÉ, fiel amiga-irmã e companheira de trabalho, pela carinhosa revisão deste trabalho. A todos os funcionários da UFSJ, em especial, à Lais e ao Anderson, pela atenção e pronto atendimento a mim dispensados. A DEUS, força suprema, por tudo.
  • 5. RESUMO Breve análise do gênero musical denominado sertanejo, de sua trajetória e dos temas abordados em sua significação, não apenas para o homem do campo, mas também enquanto fundador e mantenedor de uma identidade brasileira, considerando as transformações ocorridas no país no curso de seu desenvolvimento durante o século XX, que provocou, entre outras conseqüências, o deslocamento massivo da população campesina para o universo urbano. Reflexão sobre a idealização do sertanejo, a manutenção de sua identidade em contraponto à ausência desta percebida no universo urbano. Tal reflexão é feita a partir da análise dos significados inseridos nas canções e dos temas abordados, em suas possíveis significações no imaginário nacional, que provoca a expansão do gênero. Discussão a respeito das possibilidades de expressão e/ou representação do homem do campo nas letras das canções sertanejas, entendidas como possibilidades de (re)identificação deste homem com o universo rural do qual se distanciou a partir da migração para as grandes cidades e como busca de integração do universo campesino ao urbano. Essas discussões e reflexões amparam-se, de um lado, no que se convencionou chamar “Estudos culturais” e, por outro, nos conceitos de “desenraizamento”, tal como o mesmo é apresentado por Néstor Garcia Canclini, e no de “processo comunicacional” – conforme é apresentado por Stuart Hall – de modo a relacionar as formas de produção e inserção desse gênero junto a seu público alvo. Palavras-chave: Brasil – música – sertaneja – análise – Estudos Culturais ABSTRACT Brief analysis of the musical genre known as “sertanejo”, of its trajectory and themes approached in its signification not only for country folks but also as a founding and maintenance element for Brazilian identity, considering the transformations that occurred in the country throughout its development in the 20th Century, which provoked, among other consequences, massive migrations from the country to the urban space. A reflection on the idealization of the “sertanejo” figure, the maintenance of his identity as opposed to his absence in the urban universe. Such reflection is based on the analysis of signfieds present in the songs and themes approached, and their possible signification for the national imaginary, which provokes the expansion of the genre. Discussion on the possibilities of expression and/or representation of country folks in the lyrics of “sertaneja” songs, which are understood as possibilities of (re)identification of such people with the rural universe left behind after migration to the large cities and as a search for integration of the country universe within the urban space. Discussion and analysis will rely, on the one hand, on what has conventionally been called “Cultural Studies”, and, on the other hand, on the concepts of “uprootedness”, as presented by Néstor Garcia Canclini, and “communicational process”, proposed by Stuart Hall, so as to relate the forms of production and insertion of this genre into its target audience. Keywords: Brazil – sertaneja music – analysis – Cultural Studies
  • 6. SUMÁRIO Introdução .................................................................................... 08 Capítulo 1 O “não-lugar” do homem do campo no meio urbano ..............17 Capítulo 2 A trajetória histórica da canção sertaneja ............................... 31 Capítulo 3 O público e o privado como produto de consumo .................. 40 Capítulo 4 “Tristezas do Jeca”: A dor da perda como grande tema do cancioneiro sertanejo.................................................................. 52 Considerações finais .................................................................. 68 Referências bibliográficas ......................................................... 72 Anexos.......................................................................................... 74
  • 7.
  • 8. 8 INTRODUÇÃO O trabalho ora apresentado pretende discutir alguns aspectos do gênero musical denominado sertanejo (ou caipira)1 . A dissertação parte da análise da trajetória desse gênero de música e dos temas abordados em sua significação, não apenas para o homem do campo, mas também enquanto elemento fundador e mantenedor de uma identidade brasileira. Essa questão é particularmente relevante num país cujo desenvolvimento trouxe, em seu bojo, entre outras conseqüências, o deslocamento massivo de sua população campesina para o universo urbano. A pesquisa tomou como ponto de partida as reflexões de Letícia Vianna (2003) a respeito das identidades sociais encontradas na música popular. A autora, embora reconheça o estatuto de mercadoria da música “de massa”, aponta um continente de significados coletivamente atribuídos (p. 71) a esse produto. Desse modo, o que se buscou foi trabalhar os significados inseridos na representação do homem do campo através da canção sertaneja em suas relações com o público para o qual ela é, atualmente, direcionada. Embora a alteridade constituída entre o sertão, a roça e a cidade na música e no imaginário geral das artes (VIANNA, 2003, p. 74) estabeleça-se no país desde o século XIX, as reflexões aqui desenvolvidas têm, como ponto de partida e de referência, as primeiras décadas do século passado. Foi naquele momento que, no Brasil, a música se tornou um importante vetor de afirmação, transformando-se em “um lugar privilegiado para a construção e afirmação de identidades regionais e nacionais” (Idem). A referência temporal dos anos 1920 explica-se pelo fato de ser o período marcado pelas migrações dos “sertanejos”2 das regiões centro-sul do 1 A nomenclatura “música sertaneja”, passa a ser usada a partir dos anos 50, na busca de afastamento do termo “caipira” para ampliação do mercado consumidor. Como, entretanto, ambos os termos tinham, originalmente, a mesma significação, serão aqui, utilizados indistintamente. 2 As denominações “caipira”, matuto, caboclo, ou “sertanejo”, são usadas para designação geral do homem do campo, com pouquíssimas diferenças de significação. Entre a primeira
  • 9. 9 Brasil para as “cidades grandes”, que se industrializavam e “prometiam”, assim, novas e maiores possibilidades de trabalho. Dessa forma, embora tratando do universo rural, o movimento de consolidação de uma forma musical que será chamada “caipira” ou “sertaneja” se dará, de fato, na “cidade”. Segundo autores como Waldenir Caldas (1977) e Rosa Nepomuceno (1999), a caracterização como um gênero urbano marcaria tão-somente as referências a matrizes de um outro universo, já folclorizado, e que trazia, portanto, para a cidade, uma certa nostalgia daquele cotidiano, de um mundo agropastoril distante do local de sua produção. Na reprodução urbana do universo agropastoril, observa-se que a representação do sertanejo é bastante idealizada. Essa idealização parece, em parte, fruto da decepção do homem do campo com a vida na cidade e, por outro lado, devida a uma necessidade mais geral de busca de uma identidade nacional. Conforme afirma Nelson Werneck Sodré, na impossibilidade de, romanticamente, se eleger o índio como representante do que era nacional, transfere-se ao sertanejo, ao homem do interior, o dom de exprimir o Brasil (1976, p. 323), em contraponto a um “outro” Brasil que se formava e que, aparentemente, perdia sua face. O que se pretende discutir, portanto, é que, ao contrário da imagem do “jeca”, do “caipira” incauto estabelecida ao longo do século XIX, a representação do homem do campo nas canções sertanejas, que começam a ser divulgadas nos anos 1920, vai tratar das especificidades do universo rural a partir de um outro ângulo, o da idealização, o da manutenção de sua identidade em contraponto com a ausência dessa percebida no universo urbano. Tal discussão será proposta, como inicialmente mencionada, a partir da análise dos significados ali inseridos e dos temas abordados, em suas possíveis significações, considerando a eventual reavaliação funcional da categoria ‘sertão’ (VIANNA, 2003: 82) no imaginário nacional, que provoca a expansão do gênero. (caipira) e a última (sertanejo), a diferença estabelecida por Walter de Sousa, por exemplo, é de que a primeira se refere ao rústico sedentário, mais ligado à agricultura e, a segunda, ao homem ligado à pecuária e devido a essa atividade, mais nômade, sendo, entretanto, ambas utilizadas para designar a figura fronteiriça do homem do campo, seja agricultor, seja ligado à pecuária, migrado para o universo urbano.
  • 10. 10 Justificativa A nossa identificação com esta manifestação da cultura popular, a música caipira ou sertaneja, é uma questão de origem, de berço. Nascemos e crescemos no meio rural, embalados pelo melodioso canto dos pássaros, em contato direto com a natureza e desfrutando de tudo que ela podia nos oferecer. Esse contato, ou melhor, essa vivência com a terra criou em nós raízes profundas e um forte envolvimento afetivo com as canções, ouvidas na época, que retratavam a alma de um povo simples, da gente que trabalha na roça, no cabo de uma enxada, de uma foice ou de um machado. Era essa a vida que levávamos e, assim, fomos criados. A afinidade intensa que temos com essas canções transcende razões intelectuais/científicas. São razões afetivas mesmo, porque elas reproduzem o nosso jeito, o nosso falar dos grotões, renegado durante um período e, depois, valorizado por Cornélio Pires. Em nossas reuniões familiares, na cozinha, em volta do fogão de lenha, ou no terreiro, sob a luz do luar, as canções eram entoadas e nos transmitiam sentimentos, emoções, ternura, pureza. Elas desencadeavam histórias e anedotas, que ouvíamos com gosto. Assim foi a nossa infância: correndo pelos pequenos rios e córregos, subindo em árvores, armando arapuca para pegar saracura, ouvindo "causos" até tarde da noite e cantarolando as canções da época. Um pouco depois, ao nos deslocarmos para o centro urbano em busca de estudo e de uma profissão, pudemos, com certeza, chorar de saudades daquela vida deixada para trás, tão singela e simples, mas carregada de beleza, de naturalidade e de espontaneidade. No contato com os livros, durante todos os anos de estudo na cidade (sem perder o contato com aquele universo), tivemos o propósito de trabalhar com um tema que realmente se identificasse conosco. Ao conhecer o livro de Antonio Candido, Os Parceiros do Rio Bonito, não tivemos dúvida. Ali estava o que procurávamos: a história de como vivem, trabalham, comem, rezam e se divertem os habitantes de uma comunidade rural, no interior de São Paulo. Um grupo de autênticos caipiras,
  • 11. 11 como nós, com um tipo de vida muito parecido. Então, diante disso, ousamos resgatar e resguardar esse tesouro constituído pelo repertório da música caipira que nunca se apagou dentro de nós. A relevância do presente trabalho ancora-se, também, na constatação de quão parcos são os estudos a respeito das conseqüências culturais decorridas das transformações do país ocorridas na década de 1920. Nesse período, inicia-se um acelerado processo de industrialização que colocará em campos opostos o Brasil agrário e o Brasil urbano. Verifica-se, nesse confronto, um movimento de valorização do universo agrário em contraponto à desintegração do tecido social provocada pela vida na “cidade grande”, que se manifestou claramente na canção popular e, sobretudo, no caso em análise, na música sertaneja. Dessa forma, o trabalho aqui desenvolvido pretende discutir as possibilidades de expressão e/ou representação do homem do campo nas letras das canções sertanejas, considerando sua relevância para o estabelecimento e/ou manutenção de uma identidade deste homem em sua (in)adaptação ao universo urbano. Tal representação é entendida, por um lado, como possibilidade de (re)identificação deste homem com o universo rural do qual se distanciou a partir da migração para as grandes cidades e, por outro, como busca de integração do universo campesino ao urbano. Para efetuar, portanto, a breve análise de obras que aqui se apresenta, julga-se ser importante considerar o contexto de sua criação, o público ao qual elas se dirigem e o tipo de conteúdo abordado. Nesse sentido, a escolha das canções aqui analisadas se deu em função não apenas dos temas abordados – representativos de questões recorrentes na relação entre os personagens ali retratados e seu universo – quanto da enorme aceitação dessas músicas pelo público ao qual são dirigidas. Essa expressiva repercussão popular pode ser confirmada pela inserção da música sertaneja ou caipira em rádios e programas de televisão, assim como pelos expressivos números relativos à venda de cds de seus intérpretes. Por outro lado, este estudo considera, ainda, o histórico do movimento de migração ocorrido no Brasil, que virá a provocar o surgimento do gênero musical aqui analisado, em suas conseqüências sociais para ambos os
  • 12. 12 universos (urbano e rural). Esta abordagem se realiza sobretudo a partir das reflexões propostas por Antonio Candido de Mello e Souza, em Os parceiros do Rio Bonito (2003), e por Walter de Sousa, em Moda inviolada (2005). Para além da forma como se enuncia o discurso3 nas canções sertanejas e do histórico do movimento no Brasil, acreditou-se ser igualmente importante apreciar os conteúdos abordados nas letras das canções, que desvelam, em boa parte, o universo a ser analisado e o das representações simbólicas disseminadas nas letras das canções. Para essa análise, contemplamos o processo comunicacional no qual se verificam os momentos de “produção, circulação, distribuição / consumo, reprodução”, conforme é apresentado por Stuart Hall. Segundo este autor, cada aspecto é articulado com o outro, mas mantém suas peculiaridades (HALL, 2003, p. 387), e na qual se ressaltariam o viés econômico– relação produção-distribuição-produção e a idéia de “produção” discursiva em que o produto aparece em cada momento da articulação proposta anteriormente. Consideramos, ainda, relevante, na análise aqui apresentada, a questão do desenraizamento verificado no homem do campo que se projeta no discurso da canção sertaneja. Como diria Néstor Garcia Canclini, passamos de sociedades dispersas em milhares de comunidades rurais, com culturas tradicionais, a uma trama majoritariamente urbana, que dispõe de uma oferta simbólica heterogênea, renovada por uma constante interação com redes nacionais e transnacionais de comunicação. Esse fenômeno explica o sentimento de perda de identidade constante nas letras daquelas músicas, auxiliando na reflexão a respeito das dificuldades desse homem desterritorializado no universo urbano. Nota-se, assim, que a situação de inadequação de que tratam as canções deve-se, por certo, ao que Néstor Canclini chama de movimentos de desterritorialização e reterritorialização. As mudanças operadas por esses movimentos caracterizariam o deslocamento entre a modernidade e a pós- 3 O termo é aqui usado na acepção utilizada, por exemplo, por Luiz Carlos TRAVAGLIA, para quem o discurso é “o resultado das condições de produção que englobam tudo o que envolve e subjaz ao enunciado e com ele interage constituindo-o e sendo por ele constituído: falante, ouvinte, suas naturezas, conhecimentos, pressupostos, imagens que fazem de si mesmo [sic], do outro e daquilo de que falam, lugar, tempo, o assunto, inferências, objetivos, intenções, o lugar social de que falam e ouvem etc.” (1987, p. 127)
  • 13. 13 -modernidade e teriam origem a partir da transnacionalização dos mercados simbólicos e das migrações. Para além desse sentimento de inadequação exposto nas letras das canções, outros temas são discutidos. Nesse sentido, quanto ao estudo das temáticas abordadas, há que se observar que vivemos o tempo do consumo. E nesse tempo, ininterruptamente, consumimos os mais diferentes conteúdos assimiláveis. Com relação aos produtos que são oferecidos, a busca de um público variado requer uma variedade na informação para satisfazer todos os interesses e gostos de modo a obter o máximo de consumo. Nesse processo, estão disponíveis não apenas conteúdos considerados públicos, mas também a vida privada é dada à degustação das platéias nas mais variadas formas de comunicação. Essa relação “oferta excessiva – consumo máximo” designa um dos sinais da contemporaneidade, dado que, conforme diz Edgar Morin, a partir dos anos 30, a comunicação de massa impõe seu caráter próprio, ao dirigir-se a todos, abolindo barreiras de idade, sexo, classe social, identidade cultural. As fronteiras culturais são eliminadas no mercado comum dos meios de comunicação e, nesse sentido, a cultura industrial é o único grande terreno de comunicação entre as classes sociais (1967, p.43). Nessa indefinição de fronteiras, as manifestações culturais aproximam- -se, inexoravelmente, tanto na forma de difusão quanto nos conteúdos abordados. A indústria da cultura manifesta-se assim nos mais diferentes meios: a literatura massifica-se e torna-se produto de mercado, o texto torna-se imagem, e a música abre um leque cada vez mais amplo de alcance. Quanto aos conteúdos, observa-se cada vez mais o entrelaçamento do público e do privado nos temas abordados. Dentre esses conteúdos – a se deter na análise da exposição de situações que há pouco tempo seriam consideradas do domínio da privacidade, ou da intimidade, e que se tornaram comuns, quais sejam (no caso do presente projeto, as relações amorosas) – cabe lembrar que a música, hoje, não é apenas ouvida nas rádios. Seus intérpretes se apresentam na TV para divulgarem seu trabalho, e a TV, por sua vez, transforma essa apresentação em um verdadeiro “show” ou “espetáculo”.
  • 14. 14 Conforme John B. Thompson, este tornar público o seu sentimento ou o de outrem, expondo-o a uma visibilidade máxima, é outra das características de nosso tempo e contribui para a construção da “imagem do artista”. Assim, também esse aspecto é abordado no trabalho aqui apresentado. Metodologia A metodologia de trabalho utilizada constou de três etapas. Na primeira, uma pesquisa bibliográfica propiciou a leitura de artigos e obras que pudessem auxiliar a estabelecer um referencial teórico para a construção das reflexões ora propostas, bem como aqueles relacionados diretamente à música popular. A segunda etapa do trabalho abrangeu uma pesquisa em fontes secundárias, na qual se realizou o levantamento de publicações periódicas (jornais, revistas) que contivessem comentários e/ou críticas sobre a música sertaneja, com objetivo de buscar mais informações sobre este objeto de análise. Na terceira, o contato direto com fontes primárias se efetivou na apreciação das letras das canções sertanejas integrantes do corpus selecionado. Essa apreciação se deu mediante a análise, por comparação, entre as reflexões teóricas apresentadas e a representação do homem sertanejo nas obras estudadas. O corpus a ser analisado foi selecionado a partir de uma classificação temática e inclui as seguintes canções: Cabocla Tereza (João Pacífico e Raul Torres), É disso que o velho gosta (Gildo Campos e Berenice Azambuja), Cavalo enxuto (Moacyr e Lourival dos Santos), retratando as diferentes vozes da tradição; No Rancho Fundo (Ary Barroso e Lamartine Babo), Saudade de minha terra (Goia e Belmonte), Caboclo na cidade (Dino Franco e Nhô Chico), retratando o não-lugar do homem do campo; Ligação urbana (Bruno & Marrone), Deixa eu te amar (Edson e Flávio), Ainda ontem chorei de saudade (Moacir Franco), retratando os ecos da canção sertaneja na atualidade e
  • 15. 15 Tristezas do Jeca (Angelino de Oliveira), uma "música emblema" da nostalgia observada no homem do campo. Estrutura Para estabelecer o referencial teórico necessário, foram utilizadas obras que convergiam para o ponto de vista desta análise, qual seja sua análise contextual, do ponto de vista dos estudos culturais, além da análise de seus temas e/ou conteúdos, realizada paralelamente ao estudo de cada aspecto teórico. Nesse sentido, inicia-se a dissertação resultante do trabalho desenvolvido com uma reflexão teórica a respeito das representações simbólicas disseminadas nas letras das canções, no processo de (re)identificação do homem do campo desenraizado com o universo que o cerca. Na seqüência das reflexões sobre a inadequação do sertanejo no universo urbano, é trabalhada a idealização de seu passado utópico, verificável nas letras das canções e, com essas reflexões, encerram-se as discussões teóricas sobre a situação do homem sertanejo e é iniciada a análise das letras de algumas canções. Antes de se passar à análise das letras propriamente ditas é, no entanto, estabelecido um histórico do movimento de migração que as provoca, em suas conseqüências sociais para ambos os universos. Outro aspecto considerado relevante para as reflexões propostas é o estudo e análise das temáticas abordadas, no sentido de buscar a compreensão de seu significado para o público ao qual se dirigem as músicas em questão. Com a busca de algumas conclusões pertinentes às reflexões realizadas, encerra-se o trabalho ora apresentado. Com o intuito de se atingir o objetivo geral, o desenvolvimento do trabalho se dará a partir da subdivisão do mesmo em objetivos específicos, sendo estes discutir a construção de uma identidade nacional a partir da representação do universo agrário na canção sertaneja; refletir sobre os
  • 16. 16 significados subjacentes às letras das canções; estudar e descrever os temas abordados nas canções analisadas a partir de sua exposição nas letras de algumas dessas canções e descrever o processo de identificação social do sertanejo em contraponto com a cultura e a sociedade urbanas, tomando como base sua representação nas letras das músicas analisadas.
  • 17. 17 CAPÍTULO I – O “NÃO-LUGAR” DO HOMEM DO CAMPO NO MEIO URBANO (...) o horizonte do camponês deserdado de terra e do cuidado dos animais foi ampliado. Acenaram-lhe com a possibilidade da emigração fácil para os grandes centros urbanos, tornados carentes de mão de obra barata. Os pobres são anacrônicos de outra forma, agora no contraste com o espetáculo grandiloqüente do pós-moderno, que os convocou nas suas terras para o trabalho (...). Esse novo expediente do capital (...) ancora o camponês em terras estrangeiras, onde seus dependentes pouco a pouco perderão o peso e a força da tradição original (SANTIAGO, 2004, p. 51). No desenrolar da história da humanidade em geral, a familiaridade do homem com a Natureza vai sendo atenuada, à medida que os recursos técnicos se interpõem entre ambos, e que a subsistência não depende mais de maneira exclusiva do meio circundante. Como observa Antonio Candido (2003, p. 221), o meio artificial, elaborado pela cultura, cumulativo por excelência, destrói as afinidades entre homem e animal, entre homem e vegetal. Em compensação, dá lugar à iniciativa criadora e a formas associativas mais ricas, abrindo caminho à civilização. Assim, a situação presente se caracteriza pelo desligamento relativo em face do meio natural imediato, da aceleração do ritmo de trabalho, da maior dependência do campo em relação aos centros urbanos. Tudo isso não poderia deixar de repercutir na esfera da cultura, em que podemos notar uma reelaboração de técnicas, práticas e conceitos. Nesse sentido, as novas necessidades têm grande importância na configuração da mudança de cultura, pois esta se apresenta, sob certos aspectos, como restrição, ampliação ou redefinição de necessidades.
  • 18. 18 O “caipira” e as transformações de seu modus vivendi no Brasil Se considerarmos a posição e o papel dos indivíduos e as suas relações uns com os outros, notaremos no caipira brasileiro atual sintomas de acentuada mudança. Nas fases iniciais da sua formação como tipo humano, havia relativa indiferenciação de papéis e, por conseguinte, limitação dos critérios para definir posição social. A incorporação à economia capitalista altera as posições na estrutura tradicional e possibilita a definição de outras, fora dela. Conforme Darcy Ribeiro, a rápida expansão das culturas de café no sudeste brasileiro faz deslanchar um processo de reordenação social. Nessa nova situação, primeiramente, o capira é compelido a engajar-se no colonato, como assalariado rural, ou refugiar-se na condição de parceiro, transferindo-se para as áreas mais remotas ou para terras cujos proprietários não têm recursos para explorar os novos cultivos (RIBEIRO, 1995: p. 384-385). Gradativamente, a incorporação da economia capitalista impõe circunstâncias ainda mais restritivas ao caipira, obrigando-o a optar pelo engajamento como assalariado rural ou a procurar terras muito distantes e atrasadas para manter uma precária autonomia como meeiro. No final do século XIX, o problema se agrava com a chegada ao Brasil de milhares de imigrantes europeus e japoneses para substituírem o negro no trabalho das fazendas, em condições inaceitáveis para a altivez do caipira. Darcy Ribeiro reporta-se à figura do Jeca Tatu, caricatura que Monteiro Lobato constrói para descrever o caipira totalmente despreparado para conquistar o título de propriedade de sua terra. Anos mais tarde, Lobato reviu sua posição ao compreender que o caipira era sim uma vítima de um “traumatismo cultural” (...) marginalizado pelo despojo de suas terras, resistente ao engajamento no colonato e ao abandono compulsório de seu modo tradicional de vida (RIBEIRO, 1995: p. 387).
  • 19. 19 O êxodo do campo para a cidade Assim, a mobilidade de hoje conduz, muitas vezes, ao abandono completo dos gêneros tradicionais de vida, quer levando o caipira ao trabalho em zonas de agricultura moderna, onde se incorpora aos novos padrões, quer, sobretudo, incorporando-o ao proletariado urbano. O pessoal das indústrias, dos transportes rodoviários e ferroviários, da construção civil, das obras públicas, é, em grande parte, recrutado no seu meio. Da mesma maneira, nele se recrutam as empregadas domésticas e os empregados em toda sorte de atividades, qualificadas ou não, requeridas pelos centros urbanos (CANDIDO, 2003, p. 234). O que origina essa transformação são, na realidade, as dificuldades que começam a ser enfrentadas na manutenção da vida campesina tal como era até fins do século XIX. Essas dificuldades foram agravadas pela derrocada da oligarquia rural, provocada pela decadência de muitas fazendas, sobretudo, as de café. Assim, contingentes passaram a migrar para os grandes centros, a capital federal ou São Paulo, onde a industrialização acontecia mais rapidamente. Isso reforça o quadro de diáspora do interior do país para os centros urbanos. Os saídos da zona rural para “arriscar a sorte” acalentavam a nostalgia da vida tranqüila na roça, longe dos “desaforos e da má educação” do povo da cidade. Nesse sentido, como diria Walter de Sousa esse apego ao “paraíso perdido”, um arquétipo universal tão arraigado, tornava aquele estrato social, acostumado às instâncias fronteiriças, um público fiel da música caipira, já tornada popular pelos processos de adaptação à urbanidade e aos meios técnicos de reprodução (2005, p. 114). Nesse contexto, observa-se a existência de uma espécie de saudosismo transfigurador – uma verdadeira utopia retrospectiva, se coubesse a expressão contraditória. Ele se manifesta, é claro, sobretudo nos mais velhos, que ainda tiveram contato com a vida tradicional e podem compará-la com o presente; mas ocorre também nos moços, em parte por influência daqueles (CANDIDO, 2003, p. 244).
  • 20. 20 e consiste em comparar, a todo propósito, as atuais condições de vida com as antigas; as modernas relações humanas com as do passado, o que acaba tornando toda representação das antigas condições de vida “colorida” com as tintas desta memória ancestral. O não-lugar do sertanejo urbano Para discutir a questão do desenraizamento verificado nesse homem do campo que se projeta no discurso da canção sertaneja, tomaremos algumas das reflexões expostas por Néstor Garcia Canclini. Canclini explica que a perda da identidade do homem do campo se dá na passagem de sociedades dispersas em milhares de pequenas comunidades rurais – com culturas locais e homogêneas, e em algumas regiões com fortes raízes indígenas, com pouca comunicação com o resto de cada nação – a uma trama majoritariamente urbana. A questão da substituição dos mass media pela realidade justifica-se, segundo o mesmo Canclini, a partir dos processos descontínuos de constituição da cultura urbana que requerem, também, observar os processos (combinados) de descolecionamento e desterritorialização. Para esse autor, a cultura pós-moderna deixa claro o desvanecimento das coleções e do estabelecimento de classificações que distinguiam antes o culto do popular e ambos do massivo. As culturas já não se agrupam em grupos fixos e estáveis e, com isso, desaparece a possibilidade de se ser culto conhecendo o repertório das “grandes obras”, ou de se ser popular porque se domina o sentido dos objetos e mensagens produzidos por uma comunidade mais ou menos fechada (uma etnia, um bairro, uma classe). As novas formas de coleção reproduzem e permitem um repertório mesclando o culto e o popular, o nacional e o local. Para Canclini, há, além disso, uma proliferação dos dispositivos de reprodução que não podemos definir como cultos ou populares. Neles se perdem as coleções, desestruturam-se as imagens e os contextos, as referências semânticas e históricas que amarravam os sentidos.
  • 21. 21 Segundo esse autor, a coexistência desses usos contraditórios revela que as interações das novas tecnologias com a cultura anterior as torna parte de um processo muito maior do que aquele que elas desencadearam ou manejam. Uma dessas transformações é a reorganização dos vínculos entre grupos e sistemas simbólicos : os descolecionamentos e as hibridações já não permitem vincular rigidamente as classes sociais com os estratos culturais. Com isso, não se quer dizer que essa circulação mais fluida e complexa tenha dissolvido as diferenças entre as classes, ele apenas afirma que a reorganização dos cenários culturais e os cruzamentos constantes das identidades exigem investigar de outro modo as ordens que sistematizam as relações materiais e simbólicas entre os grupos. Nesse sentido, segundo Canclini, a descentralização das empresas, a simultaneidade planetária da informação e a adequação de certos saberes e imagens internacionais aos conhecimentos e hábitos de cada povo; a disseminação dos produtos simbólicos pela eletrônica e pela telemática; o uso de satélites e computadores (interação digital) favorecem os projetos de reterritorialização e a dissolução de fronteiras. Dessa forma, os migrantes assumem todas as identidades disponíveis, de modo a se agregar ao novo universo. A esse processo de desterritorialização pode-se aplicar uma frase que fica bem em um migrante tanto quanto num jovem roqueiro, a de que nosso mais profundo sentimento de geração é o da perda que surge da partida (Apud CANCLINI, 1997, p. 324). Assim, os conceitos de descoleção e desterritorialização se relacionam com reflexões utópicas e com práticas de artistas e intelectuais, o que faz com que as práticas artísticas, agora, fujam de paradigmas consistentes. Dessa forma, o pós-modernismo pode ser definido como uma co-presença tumultuada de todos: o mercado dispersa e ressemantiza o valor da obra de arte e do artesanato ao vender esses bens a consumidores heterogêneos. Ainda segundo Canclini, uma visão mais ampla permite ver outras transformações econômicas e políticas, apoiadas em transformações culturais de longa duração, que dão uma estrutura diferente aos conflitos. Os cruzamentos entre o culto e o popular tornam obsoleta a representação polar entre ambas as modalidades de desenvolvimento simbólico e relativizam,
  • 22. 22 portanto, a oposição política entre hegemônicos e subalternos, concebida como se se tratasse de conjuntos totalmente diferentes e sempre confrontados. Nesse sentido, observa-se que as hibridações culturais e políticas passam a se disseminar na esfera pública por meios massivos de comunicação (os mass media) que proporcionam uma pseudoconvergência, da cultura e dos grupos sociais, devido à eficácia simbólica de representação desses meios que definem as relações entre o campo cultural e o político. Dessa forma, a busca de mediações, de vias diagonais para gerir os conflitos, dá às relações culturais um lugar proeminente no desenvolvimento político. Assim, para Canclini, quando não conseguimos mudar o governante, nós os satirizamos, nas danças do carnaval, no humor jornalístico, nos grafites. Diante da impossibilidade de construir uma ordem diferente, erigimos nos mitos, na literatura, nas histórias em quadrinhos e, em nosso caso específico, nas canções, não apenas desafios mascarados, mas todo um passado. Quando a volta ao passado trai a memória O ferramental teórico para a reflexão a respeito da idealização daquele universo nos é dado pelos estudos de Fredric Jameson, que afirma que a produção estética do pós-modernismo está integrada à produção de mercadorias, sendo uma de suas questões centrais a mercantilização e o fetichismo das mercadorias (JAMESON, 1997, p. 29). Ocorre que com o despontar do sujeito pós-moderno – desaparecimento do sujeito individual – há um esmaecimento do afeto na cultura pós-moderna, seguido da estranheza e da falta de expressão. Em uma lógica esquizofrênica (que poderíamos entender como desconexão da cadeia de significantes), a fascinação é um indispensável e eterno “presente” e os sentimentos são substituídos por intensidades. Nesse sentido, vende-se a imagem de um presente utópico em um outro universo que não o urbano, através da fetichização da volta ao ponto de origem como solução para os males pelos quais passa esse homem desterritorializado.
  • 23. 23 Não necessariamente, entretanto, a efetiva volta ao lugar de origem se revelará como a solução sonhada... A personagem descrita em “No Rancho Fundo” (Ary Barroso e Lamartine Babo), por exemplo, já passou pela experiência do regresso, o que não lhe garantiu, todavia, a felicidade lembrada pelo narrador de “Caboclo na Cidade”, ou almejada pelo de “Saudade de minha terra”. Ao contrário, para o sertanejo que voltou ao lugar no qual nasceu, estavam reservadas “a dor e a saudade”, Porque o moreno Vive louco de saudade Só por causa do veneno Das mulheres da cidade. Observa-se, assim, que o processo de (des)identificação do sujeito sertanejo se dá de forma completa: se, no universo urbano, ele sonha com o campo ou mantém viva a memória desse campo ao qual não mais voltará ou que certamente não é mais – mesmo quando esta volta é projetada – o universo deixado para trás, no retorno ao local de partida, esse sujeito se revela também contaminado pelo que deixou ou viveu na cidade. Nesse sentido, retomamos o raciocínio desenvolvido por Jameson, para o qual, no mundo pós-moderno, há uma mudança da patologia cultural, em que a alienação e a ansiedade do sujeito são deslocadas pela própria fragmentação e descentramento desse sujeito. Por essa razão, o presente é abordado através da linguagem artística do simulacro, ou do pastiche do passado estereotípico, o que empresta à realidade presente o encanto e a distância de uma miragem reluzente. Ocorre, entretanto, que essa mesma modalidade estética hipnótica funciona como elaboração de um sintoma do esmaecimento de nossa historicidade e/ou de nossa possibilidade de vivenciar e de experimentar a história ativamente. Ou seja, é exatamente pela perda de identidade, pela fragmentação, pela impossibilidade de alteração do cotidiano, pelo desenraizamento do homem contemporâneo – sobretudo aquele que, saído do universo agropastoril, se urbaniza – que se faz necessária a fetichização do
  • 24. 24 presente e a “venda” de um passado, ou de um “universo paralelo” utópico, que passa a ser mecanismo de compensação, ou de mediação, para esta situação de “entre-lugar” vivida pelo homem do campo em seu embate com o mundo pós-moderno. A “fala” sertaneja e seus significados Assim, a reprodução do sertanejo e do universo agropastoril, tanto nas letras das músicas caipiras quanto em outras formas, é bastante idealizada. E se essa idealização é, de uma parte, efetivamente o fruto da decepção do homem do campo com a vida na cidade, ela também se explica por uma necessidade mais geral de busca de uma identidade nacional. São, então, as possibilidades de mediação entre esse homem, que passa a ser um “ideal” escolhido de brasilidade, e o universo urbano que o cerca, o assunto de que trataremos aqui. Para melhor compreender a absorção dos significados e mensagens, disseminados nas letras das canções sertanejas, entretanto, é necessário considerar a classificação do processo comunicacional no qual se verificam os momentos de “produção, circulação, distribuição / consumo, reprodução”, apresentada por Stuart Hall. Para esse autor, o modelo “emissor / mensagem / receptor” do processo comunicativo tem sido criticado pela sua linearidade. Por essa razão, Hall apresenta a proposta de uma articulação mais complexa desses momentos distintos, mas interligados, o que seria pensar o processo como uma “complexa estrutura em dominância”, em que cada aspecto é articulado com o outro, mas mantém suas peculiaridades (HALL, 2003, p. 387). Há que se ressaltar, também, nesse sentido, a importância do aspecto econômico – relação produção-distribuição-produção – do processo e a idéia de “produção” discursiva em que o produto aparece em cada momento da articulação proposta anteriormente. Concretamente, o “objeto” dessas práticas é composto por significados e mensagens sob a forma de signos-veículos que são, por exemplo, o jornal, a revista, a TV, a mídia em geral. Assim, o processo de comunicação se
  • 25. 25 estabelece pelo lado da produção material (meios), mas é sob a forma discursiva que a circulação do produto se realiza, daí a necessidade da produção de sentidos, do entendimento por parte do público, para que o consumo se realize. Dessa forma, devemos reconhecer que a forma discursiva da mensagem tem uma posição privilegiada na troca comunicativa (em relação à circulação) e que os momentos de “codificação” e “decodificação” são momentos determinados. Considerando, então, que, ainda segundo Hall, a “forma-mensagem” é a necessária “forma de aparência” do evento na sua passagem da fonte para o receptor, observamos que a transposição para dentro e para fora da ‘forma-mensagem’ (ou o modo de troca simbólica) não é um ‘momento’ aleatório, que nós podemos considerar ou ignorar conforme nossa conveniência. A ‘forma-mensagem’ é um momento determinado; embora, em outro nível, compreenda apenas os movimentos superficiais do sistema de comunicações e requeira, em um outro estágio, integração nas relações sociais do processo de comunicação como um todo, do qual forma apenas uma parte (HALL, 2003, p. 389). Nesse sentido, a codificação deve passar pelas regras discursivas da linguagem para que seu produto seja “concretizado”, o que inicia, segundo Hall, um outro momento diferenciado, no qual as regras formais do discurso e linguagem estão em dominância. Antes que essa mensagem possa ter um “efeito”, satisfaça uma “necessidade” ou tenha um “uso”, deve primeiro ser apropriada como um discurso significativo e ser significativamente decodificada. É esse conjunto de significados decodificados que, “tem um efeito”, influencia, entretém, instrui ou persuade, com conseqüências perceptivas, cognitivas, ideológicas ou comportamentais complexas. Isso ajuda a esclarecer a confusão na distinção entre “conotação” (sentidos menos fixos, associativos) e “denotação” (sentido literal de um signo), dado que, para Hall, essa distinção é somente analítica e não deve ser confundida com as distinções do mundo real. Assim, poucas vezes, os signos organizados em um discurso significarão somente seus sentidos “literais”, ou terão um sentido quase universalmente consensual. Em um discurso de fato emitido, a maioria dos signos combinará seus aspectos denotativos e
  • 26. 26 conotativos. É no nível conotativo do signo que as ideologias4 alteram e transformam a significação, mas a presença da ideologia se faz sentir tanto no nível conotativo quanto no denotativo. Esses códigos são os meios pelos quais a ideologia é levada à sua significação em discursos específicos. Os signos remetem aos “mapas de sentido” e esses “mapas da realidade social”, além de distintos, contêm significados sociais, práticas e usos, poderes e interesses específicos. Tal polissemia não deve, entretanto, ser confundida com pluralismo, uma vez que toda sociedade impõe suas classificações (uma ordem cultural dominante) do mundo social, cultural e político, embora essa ordem cultural dominante não seja nem unívoca nem incontestável. Nesse sentido, vale mencionar ainda o conceito de “estrutura dos discursos em dominância”, proposto por Stuart Hall, para quem as diferentes áreas da vida social parecem ser dispostas dentro de domínios discursivos hierarquicamente organizados através de sentidos dominantes ou preferenciais (HALL, 2003, p. 396). Nesse sentido, para o autor, A questão da “estrutura dos discursos em dominância” é um ponto crucial. As diferentes áreas da vida social parecem ser dispostas dentro de domínios discursivos hierarquicamente organizados através de sentidos dominantes ou preferenciais. Acontecimentos novos, polêmicos ou problemáticos que rompem nossas expectativas ou vão contra os “construtos do senso comum”, o conhecimento “dado como certo” das estruturas sociais, devem ser atribuídos ou alocados aos seus respectivos domínios discursivos, antes que “façam sentido”. A maneira mais comum de “mapeá-los” é atribuir o novo a algum domínio dos “mapas existentes da realidade social problemática”. Dizemos dominante e não “determinado”, porque é sempre possível ordenar, classificar, atribuir e decodificar um acontecimento dentro de mais de um “mapeamento”. Mas dizemos “dominante” porque, de fato, existe um padrão de “leituras preferenciais”, e ambos – dominante e determinado – têm uma ordem institucional / política / ideológica impressa neles e ambos se institucionalizaram. Os domínios dos “sentidos preferenciais” têm, embutida, toda a ordem social enquanto conjunto de significados, práticas e crenças: o conhecimento cotidiano das estruturas sociais, do “modo como as coisas funcionam para todos os propósitos práticos nesta cultura”; a ordem hierárquica 4 O termo é aqui utilizado em sua acepção dicionarizada de um conjunto articulado de idéias, valores, opiniões e crenças, que expressam e reforçam as relações que conferem unidade a determinado grupo social (HOLANDA, Aurélio Buarque, 1999, p. 1072).
  • 27. 27 do poder e dos interesses e a estrutura das legitimações, restrições e sanções (HALL, 2003, pp. 396-397). Ou seja, para que algo faça sentido, deve ser relacionado aos domínios dos “mapas existentes da realidade social problemática” que conjugam os “sentidos preferenciais” e que variam de acordo com aspectos culturais, sociais e políticos. A partir dessas considerações, observamos que, no universo aqui analisado, a canção sertaneja “faz sentido” para suas platéias por estar relacionada a determinados “mapas da realidade social”, entre os quais identificamos, por exemplo, o grupo formado pelo homem do campo desenraizado e buscando uma (re)identificação com o universo que o cerca. A expressão da “deslocalização” nas letras das canções É na esperança de ascensão econômica que o sertanejo abandona o campo. A dura realidade do meio urbano, entretanto, para além da não- -realização do “sonho”, possibilita para ele a idealização do universo deixado para trás. O tema da nostalgia do passado, da perfeição da vida anterior, será, assim, recorrente no discurso da canção sertaneja. Nesse sentido, letras como “Caboclo na Cidade”, de Dino Franco e Nhô Chico (interpretação de Chitãozinho e Xororó), ou “Saudade de minha terra”, de Goia e Belmonte, gravada por Sérgio Reis, tratarão do tema da nostalgia do campo. E, se cada uma fala da situação do homem do campo a partir de um diferente ponto de vista, ambas trarão para o centro do discurso a desterritorialização deste homem e sua inadequação ao universo do qual faz parte. Passamos, então, a uma breve aplicação desse conceito nas letras dessas canções. A letra de “Caboclo na Cidade”, por exemplo, retrata a insatisfação do sertanejo com sua mudança para o “grande centro” (“Como eu tô arrependido”), sua “inadaptação” com o espaço e o povo da cidade Aqui tudo é diferente
  • 28. 28 Não me dô com essa gente Penso até que a cidade Não é lugar de caboclo. e sua constatação de que a vida na cidade não lhe trouxera nenhuma realização: Quando eu vendi o sítio Pra vir morar na cidade Seu moço, naquele dia Eu vendi minha família E a minha felicidade. A mesma inadequação pode ser constatada em “Saudade de minha terra”, que se inicia com o lamento do sertanejo em viver na cidade: De que me adianta viver na cidade Se a felicidade não me acompanhar Adeus, paulistinha do meu coração Lá pro meu sertão, eu quero voltar. Não serão as mesmas, entretanto, as reações dos protagonistas ante essa sensação de inadequação ao universo urbano. O primeiro – em ações que comprovam a afirmação de Néstor Canclini de que os migrantes decidem assumir todas as identidades disponíveis – indica as transformações ocorridas em sua família na tentativa de adaptação ao mundo citadino, como podemos comprovar nas estrofes seguintes, Até mesmo a minha “véia” Já tá mudando de idéia Tem que ver como passeia Vai tomar banho de praia Tá usando minissaia E arrancando a sobrancelha Nem comigo se incomoda Quer saber de andar na moda Com as unhas todas vermelhas Depois que ficou madura Começou usar pintura Credo em cruz, que coisa feia ele, ao mesmo tempo, assume sua impossibilidade de retorno para o universo original, como se observa a seguir:
  • 29. 29 Voltar pra Minas Gerais Sei que agora não dá mais Acabou o meu dinheiro. O narrador de “Saudade de minha terra”, por sua vez, informa a seu ouvinte que Pra minha mãezinha já telegrafei E já me cansei de tanto sofrer Nesta madrugada estarei de partida Pra terra querida que me viu nascer. Essa terra é descrita pelo narrador como o lugar ideal onde, não apenas, ele “Aos domingos ia passear de canoa / Nas lindas lagoas de águas cristalinas”, como também ele ia a festanças “onde tinha dança e lindas meninas” e sua memória, presente ao longo de toda a letra da canção, é o que consola o sertanejo em seu “exílio” na “cidade grande”. Essa mesma memória é o que o embala quando finalmente informa estar de partida para a terra que o viu nascer: Já ouço sonhando o galo cantando O nhambu piando no escurecer A lua prateada clareando a estrada A relva molhada desde o anoitecer Eu preciso ir pra ver tudo ali Foi lá que nasci, lá quero morrer Esse mundo idealizado, entretanto, não necessariamente será o que o “caboclo” encontrará em seu regresso: vale ressaltar que, hoje, grande parte do meio rural está conectada diretamente com as inovações modernas. Houve uma mudança “quase” radical de pensamento e de gostos dos habitantes da zona rural, através de interações comerciais com as cidades e através da recepção da mídia eletrônica nas casas rurais. Efetivamente, na atualidade, há poucas amostras dos caboclos “puros” e “genuínos” como os das letras das canções. Nesse sentido, voltando ao referencial teórico de que nos munimos para essa reflexão, constatamos que a coexistência cultural de várias identidades proporciona fragmentações cada vez mais difíceis de totalizar. Assim, a sociabilidade e a interação dos diferentes modos de organização tanto
  • 30. 30 da esfera pública quanto da privada são proporcionadas pela mídia que simula uma integração dos imaginários, tanto urbano quanto sertanejo, desagregados. Ou seja, acompanhando o pensamento de Néstor Canclini, observa-se que, no caso em questão – o da canção sertaneja – os mass media buscam substituir, de forma espetacular, outros processos de unificação e criam a ilusão de que grupos, antes reunidos em sindicatos, reuniões e assembléias, conforme suas identidades, possam ser representados. A situação de inadequação de que tratam as canções deve-se, por certo, ao que Néstor Canclini chama de movimentos de desterritorialização e reterritorialização, que caracterizariam o deslocamento entre a modernidade e a pós-modernidade, e que teriam origem a partir da transnacionalização dos mercados simbólicos e das migrações. Nesse sentido, também a partir dos estudos de Néstor Canclini, podemos afirmar que o discurso explicitado nas letras das canções sertanejas insere-se na busca de uma mediação ou, como quer aquele autor, de uma via diagonal para gerir o conflito provocado pelo deslocamento do homem do campo para a cidade. É por essa “via diagonal” que, diante da impossibilidade de esse homem construir uma ordem diferente no novo ambiente, ou mesmo de se adaptar ao novo universo, erige-se o mito tanto do sertanejo quanto de seu mundo original, através da construção de uma identidade utópica para ele e de um passado ideal vivido num universo também utópico.
  • 31. 31 CAPÍTULO II – A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA CANÇÃO SERTANEJA (...) a música caipira é um fato de nossa vida, um valor cultural inegável, chegando a ser vista “como legítima representante da faixa culta na canção brasileira”. (...) a música caipira, sobretudo a viola caipira, vive agora uma espécie de renascimento, de revalorização e de mudança (RIBEIRO, 2006, pp. 24-25). Embora tenhamos aqui ininterruptamente utilizado o termo “caipira”, na realidade, não se sabe ao certo sequer a origem dessa palavra. Amadeu Amaral, no seu estudo sobre o dialeto caipira, “traduz” o vocábulo como “habitante da roça, rústico” (Apud SOUSA, 2005, p. 21), mas a primeira pesquisa apurada sobre o universo “caipira” vem de Cornélio Pires, o primeiro estudioso a levar a cultura caipira ao centro urbano. Segundo Walter de Sousa, em Musa caipira (1912), aquele autor busca, inclusive, as raízes do termo e vai encontrar o sinônimo em tupi-guarani para “aldeão”, que é capiâguara. A raiz dessa palavra, caí, significa o gesto do macaco escondendo o rosto. Ela aparece também em capipiara, “o que é do mato”, e em capiã, “dentro do mato”. Enfim, aparece em caapi, “trabalhar na terra” e em caapiára, “lavrador”. donde, enfim, redundaria em “caipira” (Idem, ibidem), nomenclatura dada, de modo geral, ao universo aqui analisado. O êxodo rural Se o não-lugar do homem contemporâneo pode ser observado em todos os estratos socioculturais, o desenraizamento do homem do campo em nosso país tem um momento de início claro. Está demarcado pelo começo do
  • 32. 32 processo de industrialização que atrairá imensos grupos do interior para os grandes centros urbanos. Esse processo, iniciado nos anos 1920, se estenderá pelos anos subseqüentes e terá seu auge nos anos 1950. Nesse período, adota-se um modelo desenvolvimentista externo que propiciará ao país a instalação de novas formas comunicacionais e de novas relações entre os centros urbanos e agrícolas. Dessa forma, o que se observa é que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, acompanhado pela industrialização e pela urbanização, especialmente ao longo do século XX, provocou o rompimento do “equilíbrio ecológico e social” do homem do campo, resultando na desintegração de sua cultura, embora se perceba que inúmeros aspectos dessa cultura ainda sobrevivem na memória de boa parcela da população brasileira (ZAN, 2007, p.2). O “caipira” como veículo de formação de uma identidade nacional Antes de Cornélio Pires publicar a Musa Caipira, ou da polêmica do Jeca Tatu (1918) e de O Dialeto Caipira de Amadeu Amaral (1920), a figura caricatural do caboclo – ou sertanejo, como era chamado no sentido genérico de matuto – já servia, entretanto, de matéria-prima à literatura do século XIX (SOUSA, 2005, p. 63). Aparentemente, o primeiro autor brasileiro a transformá- -lo em personagem foi o autor teatral Martins Pena (1815 –1848), cujas comédias O Juiz de Paz da Roça (escrita em 1833), A família e a festa na roça (18...), Um sertanejo na Corte (entre 1833 e 1837) e O Diletante (de 1844), tinham todas temática rural. Nesse mesmo sentido, também no teatro, a partir de 1914, as revistas começaram um movimento cultural de defesa dos valores nacionais, iniciando uma grande safra de peças com temática caipira. Nas trilhas das peças de Martins Pena, autores iniciantes passaram a utilizar o caipira como personagem em suas peças. Assim, por volta de 1914, houve um grande despontar de autores nacionais e, em 1920, por exemplo, a Companhia Arruda
  • 33. 33 levava a São Paulo autênticas duplas caipiras à maneira de Cornélio Pires, uma década antes. Mazzaropi – O Jeca imagético Da mesma forma que no teatro, também no cinema, o caipira será representado através, sobretudo, do personagem do Jeca criado por Amácio Amadeu Mazzaropi. Herdeiro direto da figura do pícaro, característica da literatura espanhola, também o Jeca criado por Mazzaropi ver-se-á confrontado com situações-problema das quais se livra por meio de artimanhas. Por outro lado, esse popular personagem das telas brasileiras confirma a imagem de desenraizamento apresentada pelas letras das canções de temática caipira. As situações-problema que tem de resolver, de modo geral, tratam do confronto entre a “modernidade” (ou uma pseudo-modernidade) urbana e o modo de vida e valores do campo. Nesse sentido, para Jesana Pereira, o Jeca-Mazzaropi é uma síntese audiovisual das formas de representação do caipira, desde a iconografia de almanaques de farmácia à tradição teatral e circense: indolente, simples e conformado, mas também astuto, manhoso e valente quando necessário, além de honesto, sempre. Mas, nos seus dramas, seu ‘Jeca’ é uma contraposição, sob alguns aspectos, daquelas formas de representação. Ele vive no liame do contraste entre o mundo moderno-urbano e conservador-rural (2003, p. 104). Assim, da mesma forma que se observa nas canções, também nos filmes de Mazzaropi, o contraste entre os mundos “moderno-urbano e conservador-rural” se dará em forma de dura crítica ao primeiro, e se fará através da exaltaçao do homem do campo, tanto de sua engenhosidade quanto de seus valores morais. Personagem de grande sucesso durante décadas, o Jeca de Mazzaropi, vem, assim, juntar-se e confirmar o modelo do caipira já expresso, desde os anos 1910, nas canções sertanejas.
  • 34. 34 Ações e transformações do gênero musical sertanejo Os esforços de Cornélio Pires lhe valem um espaço marcante na década de 20. Tanto assim que esse pioneiro, ao participar das comemorações do centenário da Independência, introduziu a cultura caipira no processo de formação de uma identidade cultural brasileira – o movimento político de 1922 desembocou na revolução de 1930 (SOUSA, 2005, p. 92). Desde o movimento de 1930 até 1956, o país, envolto em revoluções, guerra, autoritarismo, ainda não havia testemunhado um mandato completo de um presidente civil. Mesmo Vargas, que dotou o país de uma boa infra- -estrutura, propiciando um desenvolvimento baseado na produção siderúrgica (CSN) e a criação da Petrobrás, acaba suicidando-se antes do final do mandato, em 1954. Assim, a revolução rompe a tensa malha urdida pelas práticas políticas oligárquicas que dava suporte à República Velha. O movimento se converte, historicamente, num marco político e socioeconômico, pois a partir do momento em que a elite rural brasileira perde sua hegemonia, inicia-se a ascensão dos movimentos de urbanização e industrialização do país. Isso, embora a força de trabalho dessa elite cafeeira permanecesse indiferente aos acontecimentos. É, todavia, a partir desse marco que começa a surgir um nacionalismo populista que, em se tratando de formalização de uma cultura urbana, busca legitimidade na essência das culturas populares. Acontece, então, a consolidação no país da tecnologia de reprodução cultural em que o rádio e a indústria fonográfica se incluem (Idem, p. 93). Devido à presença das tropas revolucionárias nas ruas do Rio de Janeiro, entretanto, os espaços musicais se tornaram raros, as gravadoras diminuem, em muito, as suas atividades e as rádios passam a se ocupar mais com os acontecimentos da época. Dessa forma, o movimento musical transfere-se para São Paulo, onde as gravadoras e as rádios mantiveram suas atividades, mesmo em meio às adversidades políticas.
  • 35. 35 O impulso através do rádio Por volta de 1924, surge, em São Paulo, a SQ-B1, Rádio Cruzeiro do Sul. Pouco depois desaparece para ressurgir em 1927, com novo prefixo, SQ- BA. Houve novo fracasso. Somente em 1929, através do grupo Byington (Columbia), sob a direção de Wallace Downey, a Cruzeiro do Sul se firma, alicerçada em esquema inédito até então: o patrocínio da Atlantic Motor Oil, que custeou as curtas demonstrações do período de experiência da emissora. Ainda em 1929, ela passa a ser PR-AO e, logo depois, PR-B6. Com sua homônima do Rio de Janeiro, é criada a primeira rede radiofônica do Brasil: a rede Verde-Amarela. Em sua inauguração, além de diversos espetáculos, entre eles apresentações humorísticas com personagens caipiras, foi interpretada a música "Coração", de Marcelo Tupinambá, com letra de Ariovaldo Pires. Nessa época, São Paulo contava com três emissoras de rádio: a Cruzeiro do Sul, a Record e a Educadora (mais tarde, Gazeta). Elas, juntamente com os teatros e circos, transformariam centenas de intérpretes musicais, que se apresentavam em bares, em artistas do microfone. Assim, na esteira dessa tendência, seguiram os compositores, músicos e instrumentistas, que através desse tipo de divulgação, associado à evolução das gravações em disco, se tornariam populares: nasciam os ídolos! O importante é que com o disco e o rádio se descortinou um infinito leque de oportunidades para a divulgação da música rural5 que, graças à perseverança de alguns "heróis", pôde ganhar espaço dentro das várias manifestações culturais que compõem a variedade cultural brasileira. (http://www.sertanejo.com/hradio.html)6 . Assim, na década de 30, o rádio se expande e se consolida como veículo hegemônico de comunicação, especialmente após ter se tornado comercial. Com a inauguração, em São Paulo, da rádio Tupi, base dos Diários 5 Uma outra denominação da música sertaneja. 6 Acessado em 07/04/2005.
  • 36. 36 Associados de Assis Chateaubriand, aconteceu o principal impulso do rádio, que culminou com a inauguração, em 1934, da Rádio Nacional. Na seqüência do sucesso alcançado pelas emissões radiofônicas é lançado na rádio Difusora, em São Paulo, um dos mais populares programas de rádio do período, o Arraial da Curva Torta que, dirigido por Ariovaldo Pires, acabará lançando, em 1943, uma das também mais populares duplas de música caipira de todos os tempos, Tonico e Tinoco. Assim batizada pelo próprio diretor do programa, a dupla só se desfaria em 1998, com a morte de um de seus integrantes. Tonico e Tinoco trabalharam com Palmeirinha e Piraci, contratados do programa. Depois, trabalharam na Rádio Nacional e junto a outras duplas – como Mariano e Caçula, a primeira a fazer sucesso no disco e no rádio – que preenchiam o cenário musical caipira da época. Tonico e Tinoco contribuiram substantivamente para a institucionalização do formato da dupla caipira, com duas violas e, às vezes, um violão. Essa dupla caipira foi a primeira a cantar na TV, primeira a gravar LP, primeira a apresentar-se no Teatro Municipal de São Paulo e no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Ou seja, Tonico e Tinoco foram pioneiros em quase tudo (RIBEIRO, 2006, p. 52). O tom do canto em dupla, diferenciado em terças – enquanto uma voz canta em dó, a outra, canta em mi – o que o torna mais fácil e harmônico, era o mesmo usado nas manifestações interioranas, o que mantinha a identidade original do gênero. Em todo o caso, é esse formato (mesmo que alterado ou adulterado) que será eleito ao longo dos últimos sessenta anos, tanto pelas mídias como pela própria classe média, como aquele que mais se adequaria a traduzir a identidade através da qual se reconhecem as gentes de nosso país. A música sertaneja na indústria cultural Em 1955, Juscelino Kubitschek vence as eleições para a presidência. Seu projeto, em termos culturais, foi eficiente. O modelo econômico e de desenvolvimento passou a ser o de fora, especialmente, o hegemônico, dos
  • 37. 37 Estados Unidos. Em termos de cultura de massa, o país já estava vivendo a era da televisão, meio de comunicação que, com o passar dos anos, superou o rádio (SOUSA, 2005, pp. 153 – 154). Segundo Walter de Sousa (idem, pp 154-155), a televisão instaura de vez o processo de produção industrial da comunicação, que passa a ser definitivamente de massa. O consumidor desse tipo de programação era a emergente classe média, que se encantava com o estilo de vida dos países estrangeiros e tornava a televisão a melhor janela para vislumbrar seus sonhos de consumo. É durante esse período de implantação da indústria cultural no Brasil que se estabelece, em 1964, a ditadura militar, que cerceará direitos e imporá severa censura às manifestações culturais. O tempo de dureza política para a música brasileira em geral transformou-se num profundo golpe que restringiu a efervescência fonográfica. Na época, a válvula de escape para a música popular foram os Festivais de MPB. Para a música caipira, a saída era o rádio, meio essencial dos artistas caipiras e “sertanejos”, que alcançava o interior, onde estava seu público remanescente. Nos centros urbanos e mesmo nas periferias das grandes cidades, havia consumidores das velhas modas-de-viola e dos pagodes animados por Tião Carreiro (Idem, p. 156). Ainda segundo Walter de Sousa, a música caipira continuou sendo, entretanto, a música das classes menos favorecidas. Tinha como consumidores, de um lado, o público desvinculado da produção social, que vivia nas portas dos circos e das rádios na esperança de encontrar seus ídolos (a minoria), e de outro, o cidadão recém-chegado à metrópole, fosse do interior do Estado de São Paulo, fosse de outros estados. Nesse mesmo período, estoura – oriundo das hostes da “jovem guarda” – o cantor Sérgio Reis no universo caipira. Sua entrada triunfal marca transformações no modo de cantar (uma vez que, em lugar de participar de uma dupla, ele cantava só) e gravar do gênero – com a adoção de instrumentos eletrônicos para as gravações. Ainda na mesma década, em 1970, uma dupla de garotos de Astorga, no Paraná, por intermédio do apresentador Geraldo Meireles, foi apresentada ao grande público. José e Durval, Chitãozinho e Xororó, interpretavam o
  • 38. 38 clássico de Serrinha e Athos Campos. O sucesso obtido com a interpretação fez com que a dupla adotasse o título da toada como seu próprio nome. A partir de então, o gênero híbrido ali gerado se estabelece definitivamente. Nesse sentido, uma pesquisa feita pela TV Tupi, em 1976, revelou que a chamada “música sertaneja” representava 22% do mercado fonográfico (cf RIBEIRO, 2006). Algumas gravadoras, assim, criaram departamentos específicos para os artistas “sertanejos”. Isso revela a acomodação do gênero caipira (ou “sertanejo”) ao chamado star system – sistema de “fabricação” de estrelas que encantam as platéias – das gravadoras, enquadrando-o nas regras da indústria cultural, 40 anos depois das primeiras gravações de Cornélio Pires, do qual falaremos mais detalhadamente, adiante. O final da década de 1970 marca também o fim do ciclo ditatorial militar iniciado 21 anos antes (cf SOUSA, p. 177). O primeiro presidente civil, Tancredo Neves7 , encontra o país afogado em dívidas, interna e externa e sob o domínio da inflação, o que de certa forma ofusca a reconquista da democracia. É nesse panorama, entretanto, que a indústria cultural massiva vai se encontrar com a música “sertaneja”. Assim, no início da década de 80, há uma certa euforia em torno da música “sertaneja”, embora a música caipira ainda pegasse nela uma certa carona (cf nota à p. 09). O maior exemplo que temos é Sérgio Reis, cantando velhas modas e cururus com arranjos de guitarras, chapéu de cowboy e ar de cantor country, inaugurando uma nova apresentação visual do artista “sertanejo”. A ascensão da música “sertaneja”, segundo Walter de Sousa, é impulsionada pelas rancheiras de Milionário e José Rico e do Trio Parada Dura. Para a solidificação desse gênero musical, foi decisiva a sua ligação a um novo contingente da classe média, que, com seu grande desejo por discursos simbólicos que a aproximassem do universo das classes dominantes, foi se interessando pela temática romântica das novas duplas “sertanejas”. 7 Este presidente, embora eleito com maioria esmagadora de votos pelo colégio eleitoral instaurado em 1984, não tomou posse devido a seu falecimento, tendo sido substituído na presidência por José Sarney.
  • 39. 39 As letras das novas canções “sertanejas”, de um romantismo exacerbado, sem vergonha de se expor, eram o caminho certo para conquistar uma fatia do mercado apta a consumir o tal “sertanejo romântico” que começava a ser esboçado. Enfim, a música “sertaneja” estava quase conquistando o gosto da classe média, o que ampliaria definitivamente o público consumidor daquele tipo de música (SOUSA, 2005, p. 182). Observa-se, nesse sentido, que a grande maioria da classe média alta, ligada ao campo, se beneficiou dos avanços tecnológicos da agricultura nacional. Dessa forma, o “sertanejo romântico” se consolida como referência musical dessa classe ascendente, com uma estética importada, baseada no pastiche da cultura hegemônica norte-americana. Como no panorama da globalização, os elementos da cultura são apropriados pela classe de excluídos, que vêem neles uma possibilidade de socialização, os da música “sertaneja” são prontamente absorvidos. Assim, o final do século XX foi marcado pela explosão inventiva nos campos da gravação e reprodução de sons e imagens, culminando com o advento do CD, fazendo com que a música se tornasse um dos mais importantes campos de atuação da indústria cultural (Idem, p. 188). Toda a evolução tecnológica e mercadológica da época evidencia o nível de avanço da indústria cultural e sua atuação num mercado de cultura de massa. Os mecanismos de massificação foram eficientes no desenvolvimento de produtos agradáveis a uma massa cada vez mais homogênea de consumidores. Concomitantemente, esses consumidores precisavam reconhecer nesses produtos algum traço que remetesse à sua identidade cultural, referenciada, na maior parte das vezes, por seus antepassados. Dessa forma, por mais que se afastasse de sua fonte de identidade – no caso da música “sertaneja romântica”, a música caipira – o produto estilizado guardaria sempre elementos de identificação com o consumidor. Devido a isso, o formato de interpretação do “sertanejo romântico” permaneceu sendo o da dupla, configuração original empregada pela música caipira (Idem, p. 188). Nesse sentido, segundo José Roberto Zan, embora o canto em duas vozes, em intervalo de terça, característico das duplas caipiras, possa ser reconhecido como herança européia, é provável que as vozes agudas dos cantores, seu outro traço característico, tenham raízes ameríndias (2007, p. 3).
  • 40. 40 CAPÍTULO III - O PÚBLICO E O PRIVADO COMO PRODUTO DE CONSUMO Todo sistema industrial tende ao crescimento, e toda produção de massa destinada ao consumo tem a sua própria lógica, que é a de máximo consumo (MORIN, 1967, p.37). Uma das características fundamentais do pós-modernismo é o apagamento da fronteira entre a alta cultura e a cultura de massa. São também marcas de nosso tempo o fascínio pela paisagem degradada do brega e do kitsch e a proeminência publicitária sobre a literatura que vê implicações desses traços incorporados à sua substância. Nesse sentido, tomaremos como respaldo as reflexões de Fredric Jameson, para quem, entretanto, essa ruptura não deve ser tomada como uma questão puramente cultural: de fato, as teorias do pós-modernismo – quer sejam celebratórias, quer se apresentem na linguagem da repulsa moral ou da denúncia – têm uma grande semelhança com todas aquelas generalizações sociológicas mais ambiciosas que, mais ou menos na mesma época, nos trazem as novidades a respeito da chegada e inauguração de um tipo de sociedade totalmente novo, cujo nome mais famoso é ‘sociedade pós-industrial” (Daniel Bell), mas que também é conhecida como sociedade de consumo, sociedade das mídias, sociedade da informação, sociedade eletrônica ou high-tech e similares “ (JAMESON, 1997, p. 28 –29). Assim, podemos considerar que o produto final obtido pela assimilação, tanto do passado caipira, quanto do pastiche da cultura hegemônica para a qual o país se voltava naquele momento, pode não significar uma rendição, mas uma adaptação dos costumes a serem preservados ante aqueles que demonstravam a efetiva “inauguração de um tipo de sociedade totalmente novo”. E é nesse sentido que a exposição de situações que há relativamente pouco tempo seriam consideradas do domínio da privacidade, ou da intimidade, passam a se tornar comuns enquanto conteúdos de produtos da indústria cultural.
  • 41. 41 Além da exposição dessa intimidade nas canções, a apresentação na “telinha” da TV extrapola das obras dos compositores ou intérpretes para vasculhar suas vidas com o fim exclusivo de atrair, cada vez mais, o maior número de consumidores possível. Nesse movimento, exploram, de forma acintosa, a junção vida pública – vida privada desses artistas, de modo a estabelecer relações entre o que foi criado e as emoções reais do(s) criador(es), violando, assim, a sua privacidade. Esse tornar público o seu sentimento ou o de outrem, expondo-o a uma visibilidade máxima – afinal, uma boa imagem é um produto facilmente vendável (fácil de ser consumido) – faz com que a música seja de grande interesse de nosso mundo midiático. A superexposição do artista e de suas músicas não apenas torna pública a sua imagem, como também cria uma familiaridade (intimidade) muito grande com o público. Quando o recebemos em nossa casa, através da tela da TV, sentimos este artista como se fosse uma pessoa bem próxima de nós, participando de nossa própria vida íntima, o que ratifica a afirmação de Thompson de que hoje, estamos acostumados a pensar que os indivíduos que aparecem em nossos televisores pertencem a um mundo público aberto para todos (1998, p. 109). Cabe observar que consideraremos aqui a distinção estabelecida por esse autor entre público e privado. Para Thompson, (...) “público” significa “aberto” ou “acessível ao público”. Público é o que é visível ou observável, o que é realizado na frente de espectadores, o que está aberto para que todos ou muitos vejam ou ouçam. Privado é, ao contrário, o que se esconde da vista dos outros, o que é dito ou feito em privacidade ou segredo, ou entre um círculo restrito de pessoas. Nesse sentido, a dicotomia tem a ver com publicidade versus privacidade, com abertura versus segredo, com visibilidade versus invisibilidade (p. 112). Nesse sentido, o que caracterizará nosso tempo é justamente o apagamento da fronteira anterior entre o que se passa “entre um círculo restrito de pessoas” e o que é “realizado na frente de espectadores”. Inúmeras ações e emoções antes consideradas do domínio estrito do “privado” passam a ser discutidas, expostas, publicadas, instaurando aquilo que chamaria Richard
  • 42. 42 Sennett (1988) de “tirania da intimidade” nos assuntos comuns da sociedade atual. As formas de atração Assim, o que se analisará no presente capítulo é a interpenetração público-privado no mundo contemporâneo, a partir da forma de “apelação” junto ao público, dada pelas características das funções da linguagem, tal como utilizadas pelos compositores. Essa “apelação” é exemplificada através de três letras de músicas, que expõem cada uma um sentimento pessoal (privado) expresso pelo compositor, tornado público, aberto, visível, e buscando uma identificação com o universo íntimo vivido cotidianamente pelos ouvintes. O assunto base das letras de música em estudo é o amor, exposto entretanto a partir de diferentes pontos de vista. Mas se as três letras selecionadas falam, ainda que de maneira diferenciada, de amor, sua abordagem do tema, entretanto, não será a mesma, já que em cada uma delas observa-se a utilização de uma função da linguagem específica (de acordo com a classificação das funções da linguagem de Roman Jakobson). A função fática, que tem como tarefa a explicitação do contato comunicativo mesmo (Ligação urbana); a função expressiva (emotiva), que é centrada no destinador (Ainda ontem chorei de saudade) e a função conativa (apelativa), centrada no destinatário, cujo objeto é a interpelação e o objetivo é convencer (Deixa eu te amar). Cabe lembrar, nesse contexto, que outros teóricos aplicaram a classificação proposta por Jakobson, ampliando suas discussões. Segundo Jesús Gonzáles Requena, as constantes interpelações do enunciador ao enunciatário reatualizam o vínculo comunicativo e, portanto, a função fática é que o evidencia. Para esse autor, portanto, a função fática constitui uma característica relevante de todo dispositivo espetacular e de todo jogo de sedução (1995, p. 86).
  • 43. 43 Essas interpelações do enunciador ao enunciatário marcam o jogo de sedução presente nas letras das canções, que se torna mais evidente ainda quando os intérpretes se apresentam ao vivo, como, por exemplo, na televisão, em programas de auditório. Nessa forma de exposição ainda mais explícita, cabe mencionar que o mesmo Requena afirma que, no discurso televisivo, há um forte predomínio das funções expressiva, conativa e fática, além de uma função referencial muito diversificada quanto ao gênero e produtora, globalmente, de um discurso sistemático sobre o mundo. Para esse autor, isso permite estabelecer uma conclusão sobre a macroestrutura semântica do discurso televisivo: a produção, como efeito de sentido global, consiste na oferta ao destinatário potencial de um vínculo comunicativo constante com um enunciador que pretende atuar como mediador permanente entre o enunciatário e o mundo (cf REQUENA, 1995, p. 86-87). Observa-se, assim, que o que realmente envolve, no discurso televisivo, é o predomínio das funções expressiva, conativa e fática, que transformam esse discurso numa verdadeira fonte espetacular de atrações para o telespectador. O que poderia, por exemplo, ser uma simples apresentação de cantores, transforma-se em um verdadeiro espetáculo, com o envolvimento total do auditório, do apresentador e do telespectador, tudo em nome da espetacularização. Essa espetacularização é bastante explorada na atual forma de divulgação da música sertaneja, dita romântica, que “rasgará”, para seu público, sob luzes e cores, suas dores de amor. O cotidiano do ouvinte nas letras das canções Entre as características dos meios de comunicação de massa, uma das mais marcantes é a busca de proximidade entre o universo descrito, “vivido” nos textos, programas, novelas ou canções e o universo do espectador / ouvinte. As mesmas angústias, as mesmas dificuldades, os mesmos problemas
  • 44. 44 vividos pelo receptor na vida real são expressos pelos compositores, autores, intérpretes, de modo a aprofundar os vínculos do meio com seu receptor. Em Ligação Urbana – atualíssima “música sertaneja”, na qual a função de linguagem utilizada é a fática – o discurso que tece o enunciado é o da manutenção do contato do narrador com a pessoa amada, a qual pode ser percebida através da preocupação exposta na fala do narrador, e sua cotidianeidade se estabelece na medida em que o narrador diz que está ligando de um “orelhão”. Outra característica do tempo real expressa no texto da canção é a pressa com que todos nós vivenciamos até mesmo nossas experiências amorosas: nesta letra, o autor (compositor) se constitui num narrador preocupado com a exigüidade do tempo, para externar todo o desejo de encontrar sua amada. Alô amor, tô te ligando de um orelhão Tá um barulho, uma confusão Mas eu preciso tanto te falar Depois das seis, tô te esperando no mesmo lugar Pois estou louco pra te encontrar Pra outra noite de aventura Para exprimir seu sentimento, seu amor, ele se expõe (no sentido literal) de maneira aberta e pública (em um “orelhão”), dizendo-se apaixonado e se rendendo ao amor da amada. Reafirma a sua preocupação com a pressa (com o tempo), porque “tem mais gente pra ligar” e, ainda, reafirma sua urgência em encontrá-la. Fui eu que fiz amor por brincadeira E acabei me apaixonando Meu amor eu me rendo a você Pois estou te amando Você deixou em mim uma saudade Com seu jeito de fazer paixão Você fez maravilhas, loucuras No meu coração Um beijo pra você Não posso demorar Tô numa ligação urbana Tem mais gente pra ligar
  • 45. 45 Um beijo pra você Não posso demorar Tô numa ligação urbana Vem correndo me encontrar Podemos perceber pela letra da canção (composta por Jaílton Vieira e interpretada por Bruno e Marrone) a instantaneidade, a rapidez com que ele declara o seu amor. Para ele, o tempo urge, ele tem pressa, afinal, está fazendo uma ligação urbana, em um telefone público se expondo não apenas para a sua amada, mas também para todos os que aguardam para falar. E mais, esse ritmo alucinante se estende também ao desejo de encontrá-la para uma eventual concretização desse amor, que lhe tira a razão (eu tô louco pra te amar) e lhe dá uma visível sensação de urgência (vem correndo me encontrar). O ritmo alucinante que a letra dessa canção retrata traduz de maneira exata o mesmo ritmo que compõe a linguagem midiática ou televisiva, conforme é observada por Ciro Marcondes Filho: A linguagem de televisão é marcada por uma pulsação, um ritmo acelerado que se reconhece em todos os tipos de emissão. (...) A televisão é um meio de comunicação que tem pressa. Tem pressa porque o componente mais importante em toda a sua estrutura de produção é o tempo. Ele é o eixo de todo o sistema televisivo. Ele tem a ver tanto com o custo publicitário do segundo de emissão como com a necessidade de fixação do receptor. (...) eu também tenho que ter em cada segundo de televisão um produto fascinante, de forma que o telespectador não salte para outro canal e inicie seu circuito a partir do telecomando (1993, pp. 23-24). A letra revela, portanto, essa mesma pulsação, o mesmo ritmo acelerado de que fala Marcondes Filho, para quem velocidade, pulsação, seqüenciamento nervoso da produção em busca de um contínuo impacto visual são as marcas da televisão na atualidade. As imagens têm que ser muito rápidas, atraentes, conter uma grande quantidade de informações e apelos ao inconsciente, de tal forma que este fascínio prolongue-se e produza-se durante um tempo contínuo (Idem, p. 24).
  • 46. 46 O produto cultural como estratégia de convencimento Em Deixa eu te amar – na qual a função de linguagem utilizada é a conativa – o narrador se dirige diretamente ao destinatário, que é a pessoa a quem ele ama, interpelando-a, questionando-a sobre sua vida, querendo interpretar o seu olhar, conhecer o seu medo, implorando para que ela lhe diga. Por que você me olha assim? Qual o seu medo? Alguém já te fez sofrer? Qual o seu medo? Diz pra mim Ele continua utilizando o recurso da interpelação com o objetivo de convencê-la a desabafar com ele. Se por amor já veio a sofrer E agora tem medo De amar e se envolver Qual o seu medo? Diz pra mim Como não obtém resposta a suas perguntas, ele se mostra amigo, oferece seu consolo e sua confiança. Sei que palavras não vão adiantar Se o coração não quer acreditar Confie em mim, não vai se arrepender O que eu mais quero É não te ver sofrer E, por fim, ele oferece a ela o seu (dele) amor, mostra-se seu companheiro na dor, e grande conhecedor dessa causa, convida-a a se dar uma chance, e implora-lhe que o deixe amá-la. Amor sincero tenho dentro de mim
  • 47. 47 Pra te dar, é só você querer e arriscar Pois não é ilusão Nem tampouco atração È mais forte do que pode pensar Não sabe o quanto Já sofri por amor Conheço bem essa dor Que destrói e causa insegurança demais Pra você superar Tem que uma chance se dar E não ter medo de se apaixonar Deixa eu te amar Na letra dessa canção (interpretada por Edson e Hudson e composta por Edson/Flávio) temos a predominância da função apelativa da linguagem, cujo objeto é a interpelação. O receptor é posto em destaque, ou seja, a linguagem se organiza no sentido de convencer o receptor, através do emprego de verbos no modo imperativo (diz, confie, tem, deixa) como acontece nos textos (falados ou escritos) de publicidade e propaganda. Aqui, o objetivo do narrador é convencer a pessoa a quem ele ama, mas por quem não é correspondido, a deixá-lo amá-la. Daí a importância da persuasão para atingir a meta, o alvo (o coração da pessoa amada). E essa busca da persuasão, do convencimento, é uma das marcas da linguagem dos meios de comunicação de massa. Também, por exemplo, na linguagem televisiva, como nessa música, somos bombardeados o tempo todo com interpelações que buscam nos convencer, cada vez mais, a consumirmos este ou aquele produto, a assistirmos a este ou àquele programa, a usarmos esta ou aquela roupa etc. Somos diretamente influenciados pela mídia e transformados assim em consumidores. O que se observa é que todo o tempo somos alvejados com uma tentativa de convencimento para aderirmos a esta ou àquela idéia, a este ou àquele produto. Nesse sentido, é como se estivéssemos a todo momento assistindo a comerciais, sobre os quais Requena diz que o ‘spot’ publicitário (...) é introduzido insistentemente no contexto comunicativo de uma incessante interpelação ‘cara a cara’. E acrescenta:
  • 48. 48 No âmbito dos programas informativos, o contexto espetacular tende a se superpor de uma maneira cada vez mais sistemática e intensificada: – tendência a ‘personalizar’ os programas informativos; (...) – presença na imagem do informador (...);– discurso informativo caracterizado pelo predomínio das funções conativa e fática; – tendência das reportagens a conceder maior protagonismo ao ato informativo (a aventura do repórter na conquista da informação) (...);– tendência à manipulação da imagem... (1995, pp. 93-94 – tradução nossa). Ou seja, da mesma forma que a publicidade invade a nossa casa, a nossa vida, incitando-nos a ouvir (consumir) mais e mais, a agir da mesma forma, também o que se não se propõe a ser um “spot” acaba demonstrando ser um “veículo de publicidade” da conquista ao ser amado, por exemplo, como bem retrata a letra da canção ora em pauta. Nesse mesmo sentido, Requena diz, ainda, que O predomínio da função fática e do contexto espetacular, no marco de uma emissão ininterrupta e incessante, conduz, pois, necessariamente, a uma progressiva auto-referencialidade: o discurso televisivo dominante, erigido no universo auto- -suficiente, tende, necessariamente, a não falar de outra coisa que de si mesmo. (...) As horas de máxima audiência televisiva são ocupadas por segmentos, cada vez mais com maior duração, que têm por único objetivo anunciar os programas que serão oferecidos ao longo da semana. (...) O tempo potencialmente mais intenso da emissão televisiva – aquele em que a comunicação poderia ser mais eficaz quantitativa e qualitativamente – não se oferece informação alguma sobre o mundo, somente sobre a própria televisão constituída no referente-espetacular-absoluto” (idem, pp. 96-97 – tradução nossa). A partir das colocações desse estudioso a respeito do universo televisivo, poderíamos inferir muitas conclusões a propósito do conteúdo da letra da canção mencionada como exemplo. Também na letra de Deixa eu te amar, o compositor é auto-referente, anuncia o que ele tem para oferecer à pessoa amada e o que pode fazer para conquistar o amor dela, funcionando de fato como um “anúncio de si mesmo” e das possibilidades de seu amor.
  • 49. 49 Entre tapas e beijos, a dor de amor em exposição Além da interpelação e da manutenção do canal de comunicação, observa-se, ainda, na construção de letras das canções, a expressão de sentimentos íntimos, também esses em aproximação a sensações conhecidas do espectador/ouvinte. Em Ainda ontem chorei de saudade – na qual a função de linguagem utilizada é a emotiva – é a expressão da rejeição o que o autor descreve. Aqui, o narrador se dirige diretamente ao destinatário, objeto de seu amor, dizendo a ela que o que ela lhe pede, por carta, é, em parte, impossível de ser atendido. Você me pede na carta Que eu desapareça Que eu nunca mais te procure Pra sempre te esqueça Posso fazer sua vontade Atender seu pedido Mas esquecer é bobagem É tempo perdido O emissor demonstra à sua amada que ele pode fazer a sua vontade de não mais procurá-la, ou atender ao seu pedido de que ele desapareça, mas que esquecê-la é, para ele, impossível. É interessante observar em que nível se dá a exposição a que ele submete seus próprios sentimentos e os de sua amada. Ele recebe uma “carta”, algo pessoal (privado), e a torna pública em forma de uma resposta- -desabafo. A mensagem está centrada na expressão dos seus sentimentos mais dolorosos, o que se observa quando este emissor diz: Ainda ontem chorei de saudade Relendo a carta, sentindo o perfume Mas que fazer com essa dor que me invade Mato esse amor ou me mata o ciúme Ele continua o seu desabafo, mostrando o dilema em que vive entre AMAR X ODIAR a mulher que o abandona. Como não encontra saída, é no
  • 50. 50 plano dos sonhos (exclusivos dele) que encontra uma válvula de escape e através deles se realiza, ou melhor, concretiza seu amor. O dia inteiro te odeio, te busco, te caço Mas em meu sonho de noite, eu te beijo e te abraço Porque os sonhos são meus, ninguém rouba e nem tira Melhor sonhar na verdade Que amar na mentira Na letra dessa canção (composta por Moacir Franco, interpretada por João Mineiro e Marciano), temos a predominância da função emotiva (expressiva) da linguagem. O emissor é posto em destaque, tratando-se, então, de um texto pessoal, subjetivo, com o predomínio de pronomes e verbos em primeira pessoa (eu, me, posso, chorei, odeio, busco ...). A forma de exposição extrapola o que seria recomendável como público há cerca de, por exemplo, cinqüenta anos, quando certas emoções, ou, sobretudo, o abandono, não seriam tornados matéria de produtos culturais. Nesse sentido, Maria Rita Kehl diz: (...) Durante pelo menos dois séculos, o bom gosto burguês nos ensinou que algumas coisas não se dizem, não se mostram e não se fazem em público. Essas mesmas coisas, até então reservadas ao espaço da privacidade, hoje ocupam o centro da cena televisiva (2004, p. 141). Em Ainda ontem chorei de saudade, podemos constatar a observação de Maria Rita Kehl. O que seria reservado ao espaço da privacidade (uma carta) é exposto em forma de música, divulgado em todos os meios de comunicação. E o que seria, também, íntimo, só dele (do emissor), os seus sentimentos, o seu amor pela amada, o seu abandono, o seu desabafo, é divulgado da mesma forma, através da canção, nos meios de comunicação, tornando-se público. O narrador dessa canção, assim como aquele que, do telefone público, proclama seu amor e seu desejo, e o que interpela, através da letra de Deixa eu te amar, alguém que não lhe quer a ofertar-lhe e aceitar seu amor, são exemplos claros da forma com a qual se lida com as emoções mais íntimas nos dias atuais, numa relação inteiramente promíscua entre o que deveria ser privado e o que é, diuturnamente, tornado público.
  • 51. 51 A exposição de si para atração do outro O mundo moderno é, como se sabe, o mundo da “tirania da intimidade”. Somos obrigados a conviver com conversas completamente pessoais entabuladas em telefones celulares, nas quais participamos, sem o querer, de problemas os mais íntimos. Somos invadidos ininterruptamente pela linguagem interpelativa da publicidade. Somos intoxicados pela espetacularidade de nossa sociedade que colocou na exposição pessoal seus mais altos interesses. Parece-nos atualmente uma necessidade inerente da maioria dos seres humanos, o serem vistos. A imagem é tudo para a grande maioria. Sobre isso, Maria Rita Kehl descreve (...) A certeza subjetiva que nos garante, muito precocemente, que “eu sou”, não provém da nossa capacidade de pensar, mas da nossa identificação a uma imagem. A imagem corporal. Antes de saber que pensa, o filhote de homem já “sabe” que existe, a partir do olhar que o outro dirige à sua imagem. (...) O que garante o ser, para um sujeito, é sua visibilidade – para outro sujeito (p. 148). Em síntese, num mundo que se fez espetáculo, imagem a ser exposta, o conceito de privado perdeu-se numa “publicização” de sentimentos e emoções que, na realidade, banaliza e consome as sensações mais íntimas que o ser humano possui, no intuito único de atrair para si a atenção do outro. Nesse sentido, a “atualização” da música caipira para o “sertanejo romântico”, que expõe em fortes tintas a saudade, as dores e amores do “peão”, insere-a nas estratégias de espetacularização do mundo pós-moderno.
  • 52. 52 CAPÍTULO IV – “TRISTEZAS DO JECA”: A DOR DA PERDA COMO GRANDE TEMA DO CANCIONEIRO SERTANEJO Assim, mundo caipira e mundo da cidade apareciam como lugares simbólicos, demarcados, que não eram exatamente correlatos a espaços geográficos. O sentimento e visão de mundo caipira não se perdem quando, na cidade, o imigrante canta o desejo de retorno e o arrependimento de ter migrado (VIANNA, 2003, p. 84). Se a exposição das emoções mais íntimas, característica da contemporaneidade, é um dos temas recorrentes da canção sertaneja, também o embate entre o homem do campo e o mundo urbanizado – que passa a ser sua referência – aparece como temática que não se traduzirá, apenas, através da declaração formal das diferenças encontradas entre o universo deixado para trás e aquele para o qual se transferiu. Nesse sentido, de diferentes formas e situada no próprio universo campesino, a “tradição” sertaneja será reafirmada, ou mesmo confrontada com as alterações trazidas pelo “progresso” material, com evidente vantagem para a primeira. Essa reafirmação poderia se explicar pelo que Antonio Candido chamaria de fatores de persistência, ou permanência, que são aqueles que contribuem para a continuidade dos modos tradicionais de vida. Nesse sentido, observa-se, ainda de acordo com esse mesmo autor, que todas as vezes que os indivíduos e os grupos se encontram em presença de novos valores, propostos ao seu comportamento, a passagem de um tipo de cultura a outro depende, em grande parte, para seu êxito, do ritmo com que se dá a incorporação dos traços. Sob esse ponto de vista, a acomodação do caipira aos padrões urbanos se dará conforme ele possa ou não encontrar condições satisfatórias de substituição dos seus próprios (cf CANDIDO, 2003, p. 253). Por outro lado, mesmo nos indivíduos que migram e buscam assimilar esses novos padrões no intuito de adaptar-se às novas práticas impostas pela vida na urbes, observa-se que há uma constante revalorização do passado. A
  • 53. 53 cada conversa sobre as dificuldades presentes, surge uma referência a ele, ora discreta e fugidia, ora tornando-se tema de exposição (idem, p. 245). Observada sob outro ponto de vista, essa nostalgia do “antes”, ou do campo de modo geral, acompanha a construção da ideologia de ingenuidade que se “cola” à figura do “personagem” um tanto mítico que é o caipira, tão afastada da realidade da cidade que se torna capaz de realçar-lhe os aspectos mais deploráveis. Ou seja, como diria José de Souza Martins, A elaboração ideológica da figura do caipira incorpora a aparência da sua realidade, e não a sua transparência, constituída desde o século XVIII por força dos dinamismos da economia colonial que o excluíram da condição de mão-de- -obra fundamental. Na sua realidade ele aparece como excluído e estranho. Ideologicamente, a sua condição de ‘estranho’ é elaborada e ele acaba se constituindo na única figura ‘desvinculada’ que pode observar criticamente a sociedade mais ampla (1975, p. 133). Pensando-se, então, nessa imagem que se constrói de um caipira e de um mundo campesino ideal, podemos concordar com esse mesmo autor, que afirma que não é o “verdadeiro” caipira quem compõe e canta. Cada compositor e cantor procura adequar-se à imagem do caipira, como se fosse um caipira nato, emprestando-lhe emoções e sensações a princípio ligadas ao campo, razão pela qual essa idealização será feita a partir de diversos e variados pontos de vista. Assim, se aceitamos a imagem do “caipira” enquanto personagem construído que, de sua posição ideal, configura o crítico ideal de uma modalidade de consciência dominante (MARTINS, 1975, p. 134), transformando o que poderia ser apenas mudança em processos de decadência, compreendemos a utilização desse personagem e de seu mundo como elementos mantenedores de uma forma de vida também idealizada. Esse personagem visivelmente se perde nos caminhos da globalização que leva ao campo boa parte dos atributos da vida moderna. Observa-se, portanto, uma postura de valorização de hábitos e/ou costumes sertanejos através das letras das canções que se poderiam chamar de tradicionalismo ou, no mínimo, de reafirmação da tradição, que se traduzem em diferentes formas.