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E-book digitalizado por: Marcos J. Prado
Revisão de: Levita Digital
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E-books Evangélicos
A Mensagem de
RUTE
David Atkinson
ABU EDITORA
LIVROS PARA GENTE QUE PENSA
AMENSAGEM DE RUTE
Traduzido do original em inglês THE WINGS OF REFUGE
Inter-Varsity Press, Leicester, Inglaterra ©David Atkinson, 1983
Direitos reservados pela ABU Editora S/C
Caixa Postal 7750 01064- São Paulo –SP
Tradução de Yolanda Mirdsa Krievin
Revisão de estilo de Silêda Silva Steuernagel
1a Edição -1991
Um típico rolo hebraico dos cinco livros de Moisés, chamados de Lei (Tora). Este
exemplar, com cabos modernos, esteve em uso numa sinagoga em Jerusalém durante um
período de 200 anos ou mais até ser aposentado em 1924 devido ao desgaste e
desbotamento da tinta. (Foto gentilmente cedida por D. J. Wiseman.)
O texto bíblico utilizado neste livro é o da Edição Revista e Atualizada no Brasil, da
Sociedade Bíblica do Brasil, exceto quando outra versão é indicada. Comentários do
autor quanto às diferentes versões inglesas foram, sempre que possível, adaptados às
principais versões da Bíblia em português.
Fala Hoje constitui uma série de exposições, tanto do Antigo como do Novo
Testamento, que se caracterizam por um triplo objetivo: expor acuradamente o texto
bíblico, relacioná-lo com a vida contemporânea e proporcionar uma leitura agradável.
Esses livros não são, pois, "comentários", já que um comentário busca mais
elucidar o texto do que aplicá-lo, e tende a ser urna obra mais de referência do que
literária. Por outro lado, esta série também não apresenta aquele tipo de "sermões" que,
pretendendo ser contemporâneos e de leitura acessível, deixam de abordar a Escritura
com suficiente seriedade.
As pessoas que contribuíram nesta série unem-se na convicção de que Deus ainda
fala através do que já falou, e que nada é mais necessário para a vida, o crescimento e a
saúde das igrejas ou dos cristãos do que ouvir e atentar ao que o Espírito lhes diz através
da sua Palavra tão antiga e mesmo assim sempre atual.
J. A. Motyer
J. R. W. Stott
EditoresdaSérie
ÍNDICE
I - As Lágrimas
1. Partindo (1:1-7)
2. Voltando para casa (1:8-22)
II - Asas de Refúgio
3. G raça e Gratidão(2:1-13)
4. Um lugar na família (2:14-23)
III - O Parente-Remidor
5. O levir e ogod
6. Fé em ação no amor (3:1-18)
IV - A Redenção e a Alegria
7. Amor acima da lei (4:1-12)
8. Temos uma história (4:13-22)
Senhor seja contigo
Prefácio do Autor
Já se passaram alguns anos desde que eu tentei, pela primeira vez, apresentar
alguns sermões sobre o livro de Rute para uma congregação onde tive o privilégio de
servir como pastor. Num período de sofrimento pessoal em minha própria vida e na vida
de nossa família, de repente eu me vi pregando sobre Noemi e sobre como Deus ficou ao
lado dela. Descobri que o Deus de Noemi também estava ao nosso lado e que, mais do que
nunca, eu estava aprendendo a dar um significado muito mais rico a palavras tais como
"providência" e "graça".
Mais tarde, em um outro pastorado, alguns amigos também me incentivaram a
apresentar parte do livro de Rute em uma reunião semanal da igreja. Naquela ocasião,
a bondade demonstrada para conosco reforçou a minha convicção de que o cuidado de
Deus por nós é percebido e recebido, na maioria das vezes, através do cuidado que os
outros nos demonstram. Boaz é um bom exemplo de como o padrão do fiel amor de Deus
para com o seu povo deve ser o padrão do nosso relacionamento uns com os outros. Nós,
que vivemos deste lado da encarnação, do Calvário e da sepultura vazia, conseguimos
entender o significado da graça redentora e do amor fiel com muito mais riqueza de
detalhes do que o autor do livro de Rute jamais foi capaz de compreender.
Ao trabalhar, mais recentemente, sobre esse livro, o que mais tem me impressionado
é a profunda fé do autor e a maneira com que ele (ou ela) cria firmemente que todas as
coisas se encaixam dentro dos cuidados providenciais de um Deus cheio de graça. Foi esta
convicção que eu tive o privilégio de fortalecer um pouco mais em tempos de dificuldade:
que, em Cristo, Deus nos dá aquilo que precisamos para enfrentar as incertezas. Isso, creio
eu, faz parte do significado da fé.
Que Deus use esta exposição para ajudar outros a descobrir algo mais
doseucuidadoedasua graça, para que se sintam mais à vontade sob o "refúgio de suas
asas".
Principais Abreviaturas
David Atkinson
Introdução
Providência?
"É noite, está escuro e eu estou com medo." Assim diz o juiz ao padre no filme de
Bergman, "O Ritual", gritando para o desconhecido todo O medo, o silêncio e a solidão de
grande parte do nosso mundo desmoronado do século vinte. Em "O Sétimo Selo", outro
de seus filmes, um dos personagens, buscando, talvez, uma indicação para o lignificado de
algumas das questões e incertezas da vida e da morte, diz: "Transformamos em ídolo o
nosso medo e o chamamos de Deus".
A voz de Bergman, vinda da incerteza e do medo da vida vivida apenas dentro da
perspectiva desta ordem natural, ou, quando muito, de uma perspectiva dentro da qual a
questão "Onde estás, ó Deus?" parece nunca obter uma resposta, fala em nome de muitos
outros nos quais uma viva fé em Deus e na sua graciosa intervenção com este mundo já se
extinguiu. Seus olhos parecem perceber apenas o fluxo e o refluxo dos acontecimentos e
das experiências; suas mentes não conseguem discernir qualquer padrão ou significado;
eles perderam o contato (se é que chegaram a captá-lo algum dia) da mão do Deus
invisível que tudo governa, que tudo planeja e cujos propósitos dão significado à história,
tanto a nível mundial como individual.
Ao contrário dos personagens de Bergman, a fé na providência de Deus (nome
generalizado que os cristãos deram à atual atividade de Deus no mundo) está muito viva
nos personagens principais e no autor desconhecido do pequeno livro de Rute. A
história acontece "nos dias em que julgavam os juizes", dias em que, como veremos, a fé em
Deus estava ameaçada por muita coisa "sombria" e "temível". Mas, mesmo num contexto
em que a fé era desafiada, o autor insiste conosco, os seus leitores, para que tenhamos
certeza da alegria na garantia da providência de Deus.
Antes de examinar os detalhes do livro de Rute, vamos rever o que nós, os cristãos,
costumamos entender pelo termo "providência", e destacar algumas das dificuldades que
se opõem à fé nos dias de hoje. Retrocederemos, então, a um mundo totalmente diferente
do nosso, à Palestina do século XI ou XII a. C., "nos dias em que julgavam os juizes", e
descobriremos que, de certa forma, os desafios à fé na providência de Deus naquela
época não eram tão diferentes dos desafios de hoje.
O significado de "providência" é bem expresso pêlos cristãos de um período
anterior ao nosso:
Deus, o grande Criador de todas as coisas, realmente sustenta, dirige, predispõe e
governa todas as criaturas, ações e coisas, desde a maior até a menor, através de sua
sapientíssima e santíssima providência, de acordo com a sua previsão infalível e com o
livre e imutável conselho de sua própria vontade, para o louvor e a glória de sua sabedoria,
seu poder, sua justiça, sua bondade e sua misericórdia.1
Ou, atualizando um pouco a linguagem, os cristãos acreditavam que Deus não
apenas criou o mundo, de modo que nós, como criaturas suas, dependemos dele para a nossa
existência, mas também sustenta e governa o seu mundo, de forma que dependemos
constantemente dele para recebermos "vida, respiração e tudo o mais".2
Neste ponto talvez convenha estabelecer uma diferença entre a atividade criadora e
sustentadora de Deus, por um lado, e, por outro, a sua providência geral e especial (com as
quais lidaremos de forma especial no livro de Rute). Alguns autores usam a palavra
"providência" como sinónimo da atividade de Deus ao orientar e governar a ordem das
coisas que criou.3 Neste sentido, como observa Michael Langford, a providência já é parte
integrante da ideia cristã da criação. "Dentro da própria noção do universo criado já
temos a ideia de uma ordem que tem suas próprias leis, sua própria causalidade e sua
própria independência relativa."4 Semelhantemente, os cristãos falam da atividade
sustentadora de Deus como sendo a mantenedora dessa espécie de ordem, dentro da qual
acontecem as mudanças e o progresso na criação. Assim, num sentido mais amplo,
"providência" inclui também a atividade mantenedora de Deus. Contudo, é geralmente
num sentido pouco mais restrito que se usa o termo "providência", ou seja, para descrever
"o governo ou a direção da natureza, do homem e da história".5 É neste sentido que
usaremos o termo quando estivermos tratando do livro de Rute.
Muitos autores cristãos aconselham estabelecer uma diferença entre providência
geral e providência especial. A primeira "refere-se ao governo do universo através de leis
universais que controlam ou influenciam o mundo sem a necessidade de atos específicos
ou ad hoc da vontade divina".6 A providência especial, por sua vez, trata de
acontecimentos específicos que são entendidos pelo homem de fé como evidências
particulares da atividade de Deus. "Providência", assim, indica um modo especial de
interpretar os acontecimentos e a natureza, o homem e a história. A bem da clareza,
convém distinguirmos entre "providência" e "milagre", que se refere especificamente a
uma exceção irrepetível de uma lei da natureza que, em circunstâncias normais, seria
demonstrável. "Providência", pelo contrário, é "o governo ou a direção da natureza, do
homem e da história; não é a manipulação destas ordens com a introdução de fatores
causais que levariam à mistificação dos cientistas".7
A fé na providência reconhece a dependência criada do mundo e também a sua
eventualidade, isto é, Deus poderia ter criado o mundo de maneira diferente. A "providência"
reconhece tanto a soberania de Deus no mundo quanto a liberdade do homem de viver de
maneira responsável dentro dos limites estabelecidos por Deus. "Para os cristãos, o mundo
e a história não são essencialmente significativos por si mesmos, mas têm a ver com Deus e
os seus propósitos".8 Toda interação de Deus com o seu mundo (seja escolhendo Abraão
para ser o pai de uma nação ou estabelecendo sua aliança no Sinai; sejam os
acontecimentos do nascimento, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo ou o
estabelecimento da igreja cristã e o derramamento do Espírito Santo, ou seja a
experiência contemporânea dos cristãos), tanto a nível global como pessoal, está alinhada
com o seu propósito geral para a criação, "de compartilhar sua vida, amor e glória com
uma outra realidade sobre a qual ele seria o Senhor".9 Esse Deus, assim crêem os
cristãos, revelado em Cristo e comprovado nas Escrituras, existe; ele se importa, ele
governa, ele provê.
Em tal visão de Deus há extremos que devem ser evitados. O deísmo, por exemplo,
separa Deus totalmente do seu mundo: ele o criou, afirma, e agora o mundo tem que
seguir o seu próprio curso. O panteísmo confunde Deus com tudo o que ele criou. A fé
cristã, contrastando com estes dois extremos, entende que Deus é um ser isolado e
maior que a sua criação, mas está intimamente envolvido com ela em cada
acontecimento. De igual forma, ao contrário da noção epicurista de que o mundo não
passa de um acidente do acaso (um ponto de vista ainda largamente defendido),10 e
também da filosofia estóica de que nos encontramos nas mãos de um destino cego, os
cristãos crêem que o Deus Criador, vivo, pessoal, racional, santo e amoroso, sustenta e
governa o seu mundo.
Tal fé na providência de Deus provê um firme ponto de apoio a partir do qual
podemos procurar entender o mundo. Para nós, as glórias e as tragédias dos
acontecimentos nacionais e globais ou as alegrias e sofrimentos da vida familiar quotidiana
não têm significado apenas dentro da história humana ou da biografia pessoal. Seu
verdadeiro significado faz parte do propósito de um Deus que se revelou como amor e
santidade, como pessoal e infinito, como Criador e Redentor, como sustentador e
governador.
Desta forma as alegrias humanas são enriquecidas, e as incertezas da vida são
colocadas no contexto de uma fé com a qual se pode enfrentá-las. A "providência" diz
que Deus está conosco, que Deus nos ama, que Deus governa e que Deus provê. É a fé
nesse Deus que orienta cada capítulo do livro de Rute.
Desafios à fé
Uma fé como a que descrevemos sofre a ameaça de muitas pressões que isolam,
confundem e dão medo, na vida deste nosso século. Ou, quem sabe, deveríamos dizer que
a doutrina da providência tem sido negligenciada. Comparemos nossas atuais atitudes
com o que J. H. Newman disse há cem anos atrás: "O que as Escrituras exemplificam acima
de tudo, desde a primeira até a última página, é a providência de Deus, e esta é quase a
única doutrina sustentada de comum acordo pela maioria" das pessoas religiosas.11
O nosso século, além de ter passado por guerras mundiais de imensa destruição e
de experimentar crescentes pressões para que aguarde e se prepare para mais uma,
também tem sido angustiado por enormes questões apocalípticas que ameaçam alterar
toda a noção do que significa ser humano. O sacrifício de crianças entre os cananitas
parece nada em comparação com a matança, em escala sem precedentes, de crianças que
nem chegam a nascer, nos dias de hoje. Além disso, embora se reconheçam as inúmeras
pressões sociais que há por trás dos muitos pedidos de interrupção de gravidez, o aborto
geralmente é discutido apenas em termos de "direitos" e "benefícios" dos que já nasceram.
Isto tem desencadeado um profundo efeito em nossa consciência social com referência ao
que tradicionalmente se tem ensinado como "santidade" da vida. Muitos argumentos a
favor do aborto levam logicamente à justificação do infanticídio. Cresce cada vez mais a
pressão para que se aplique aos idosos a chamada "morte com dignidade" e para que se
negue a vida a algumas crianças que nascem com defeitos. Centenas de milhares de pessoas
do nosso mundo morrem de fome devido à negligência da conhecida fartura do
Ocidente, e porque os chamados "poderes" preferem usar os menos privilegiados como
joguetes políticos em vez de se disporem a resolver os problemas através de uma justa
distribuição da rica fartura da terra de Deus.
Tudo isto e muito mais traz à tona a questão que os cristãos costumam proclamar:
que cada pessoa é preciosa porque foi criada "à imagem de Deus". A disponibilidade da
tecnologia para o controle da natalidade (que, como qualquer outro benefício é passível de
abusos), aliada aos meios de comunicação e outras pressões que apoiam a chamada
"permissividade", contribui de maneira crescente para uma total separação entre os
aspectos unitivos e procriativos da relação sexual, e entre a relação sexual e o casamento
heterosexual, desafiando assim o pensamento tradicional cristão quanto ao significado da
masculinidade e da feminilidade.12 A crescente promessa do que podemos fazer na pesquisa
científica e biomédica, sem a ideia correspondente do que temos o direito de fazer;13 o poder de
que dispõem os monopólios multinacionais para tragar os interesses e os direitos dos
indivíduos; tudo isto, a seu próprio modo, apresenta a questão: "O que é o ser humano?" E
o flagelo do racismo ameaça com violência e guerra em muitos lugares.
G. C. Berkouwer escreveu:
O século vinte, emboraproduzindo muita coisa boa, não permanecerá para sempre como o
século dos campos de concentração e dos pogroms, da guerra e do ódio, do ataque contra a
dignidade da própria humanidade? E não devemos suspender a respiração diante doque está por
vir?14
E, então, ele pergunta, com razão:
Será que o evangelho tem algum significado e valor para a nossa época? Será que a igreja
tem a coragem e o direito de pregar o Deus vivo no meio deste mundo sem sentido?15
Para muitos o ateísmo parece ser a única conclusão lógica e per-missível diante da
evidência de nosso tempo.
Concluindo esta discussão, podemos isolar três fatores específicos que têm
desafiado a fé na providência de Deus: outros deuses, uma cultura dividida e o problema
do mal.
Outros deuses
Não se trata apenas de que "o homem moderno não crê na realidade de Deus", mas,
expondo de maneira mais positiva, que "um ateísmo cultural cada vez maior" constitui de
fato a fé deste século.16 Esta fé, o secularismo, reflete uma ideia do homem como senhor
total do seu próprio destino, das coisas materiais como a fonte primeira dos valores, e da
ordem natural como abrangendo toda a realidade. O homem como centro dos
relacionamentos humanos, o materialismo nos valores humanos e a crença de que este
mundo é o fim de todas as coisas — eis aí as características da fé do homem moderno.
Portanto, "cornamos e bebamos, que amanhã morreremos". É verdade que, ao lado desta
fé, há sempre a expressão do desejo de conhecer o significado da "noite", das trevas e do
medo: "Morremos apenas uma vez e por tão longo tempo." Mas o que realmente domina o
nosso mundo é "o ateísmo cultural cada vez maior", e estes outros deuses (humanismo,
materialismo, naturalismo) representam um forte desafio à ideia cristã da providência de
Deus.
Uma cultura dividida
O crescimento da ciência moderna, o seu desenvolvimento no cientismo (a ideia de
que a ciência tem a chave paratodo o conhecimento)e as realizações da tecnologia moderna
têm sido, para muita gente, as pontes para a falta de fé em Deus. Como a "Natureza" (uma
palavra que antes tinha implicações dos propósitos de Deus para o mundo natural)
passou a ser identificada com as "causas naturais", já não mais oramos pelo "pão nosso de
cada dia", mas, em lugar disso (e não além disso), esforçamo-nos no cultivo da lavoura e na
eficiência da arte de fazer pão. Ainda que Addison cresse que
O espaçoso firmamento no alto, Com todo o céu azul etéreo, E o firmamento
salpicado de estrelas, Proclamam sua grande Origem,17assim como cria o salmista ("Os céus
proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos"),18 nós
sabemos muito mais. Os buracos negros, os gigantes vermelhos, os duendes brancos e os
programas espaciais de milhões de dólares fazem com que a "Grande Origem" pareça um
tanto arcaica, além de improvável. E há muitos cuja compreensão cada vez maior do
universo vem acompanhada, não de um profundo senso de adoração, mas de um
profundo ceticismo. Steven Weinberg, autor de The First Three Minutes (Os Três Primeiros
Minutos), conclui: "Quanto mais compreensível parece o universo, tanto mais parece
igualmente sem sentido."19
Embora, naturalmente, muitos membros da comunidade científica estejam alertas às
limitações do método científico, ou, melhor dizendo, ilo próprio lugar da questão do
conhecimento humano nos processos da ciência,20 bem como às questões éticas que as
possibilidades tecnológicas levantam cada vez mais,21 a nossa cultura ficou soterrada pela
aparente irrelevância de Deus para a nossa mentalidade e moralidade modernas.22 Isto se
aplica à maneira como encaramos os assuntos globais e nacionais, como também à forma
como organizamos nossas prioridades familiares. Mesmo entre os cristãos, a
"mentalidade cristã"23 desapareceu quase por completo, e muitas decisões éticas são
tomadas com base num hedonismo cristianizado ("Se assim nos sentimos tão bem, só
pode ser a vontade de Deus!"), ou um utilitarismo cristianizado (que mede "o que Deus
quer" apenas pela quantidade de "benefícios" que produz). Em seu livro God Alive (Deus
Vivo), o Bispo Leonard escreve acertadamente que "não é exagero dizer que o cristão
comum de hoje vê a religião principalmente em termos da ajuda que Deus lhe pode dar
neste mundo, com uma vaga expectativa em relação ao mundo vindouro, e não como um
relacionamento criativo e ativo com Deus; um relacionamento que tem implicações
confessionais para esta vida, mas que se concretiza na eternidade. Falando de maneira
franca, é uma atitude que olha para Deus em termos de sua utilidade e não como um
objeto de adoração e amor".24
Um "positivismo utilitário" (que se concentra principalmente em observar os fatos
que lhe são úteis) está se tornando cada vezmais um ponto de vista dominante da natureza
da ciência. Mas continua sem resposta a pergunta se a ciência, seccionada de suas raízes na
tradição cristãdentro da qual ela nasceu,25 pode permanecer sem se diluir em algo que não
passe de uma tecnologia secularizada na qual os lucros se tornaram mais importantes do
que a verdade.26 Além disso, em certos trabalhos científicos, por exemplo nos bebés de
proveta, parece que também ouvimos a variante da canção do pesquisador: "Parece tão
certo que não pode estar errado."
Em tal ambiente, não nos surpreende que tenha ocorrido uma divisão
esquizofrênica: os aspectos "religiosos" da vida ficaram separados do mundo de cada dia.
Vemos isto, às vezes, no voo místico das experiências religiosas subjetivas que podem
perder de tal forma o contato com o solo objetivo da fé que se tornam emocionalmente
equivalentes a outras experiências que intensificam as nossas per- cepções, exceto que
usam a linguagem religiosa para descrevê-las. Às vezes, a divisão se percebe no piedoso
afastamento do "mundo", considerado um lugar ruim, para um ambiente "mais puro" de
interesses "espirituais" e para uma fé pessoal que é apenas individual. No voo rumo ao
subjetivismo vemos como a ênfase na experiência por amor à experiência é separada (ou
privada) de uma compreensão da verdade divina como revelação objetiva. No pietismo
geralmente há uma reverência paracom a palavra de revelação divina e, ao mesmo tempo,
também a imposição de uma divisão, estranha à mentalidade da Bíblia, entre o mundo do
espírito e o mundo de cada dia, frequentemente com linhas de "separação" traçadas por
uma convenção arbitrária ou pela tradição.
Esta divisão cultural, que separa a "religião" da questão principal da história e da
ciência, representa uma ameaça à compreensão unificada de vida e de mundo que era
possível, e ainda é, através da crença na providência de Deus.
O problema do mal
Sem dúvida, a maior ameaça à fé na providência de Deus é a realidade do mal em
nosso mundo. Não apenas os campos de concentração e os pogroms, mas também a dor do
luto, as manchetes sobre mais uma seca ou um furacão devastador, a cruel desigualdade de
oportunidades e prosperidade em diferentes partes do mundo, o câncer do nosso
vizinho, tudo isto levanta a pergunta: "Onde está Deus?" Como, num mundo onde tanto
mal parece não ter sentido, podemos continuar acreditando na manutenção e no governo
providencial de Deus? Para o crente cristão, parte do significado da fé é que é o dom de
Deus que nos capacita a enfrentar as incertezas e a aparente falta de significado (que o
Pregador chamou de "vaidade")27 de grande parte da história deste mundo desmoronado.
Mas imaginar que essa fé nunca se sente ameaçada pela maldade do homem para com o
homem, ou pêlos azares da "natureza", é superproteção bem-avenrurada ou estupidez
obstinada.
Há, deste lado do céu, muitas coisas cujo significado encontra-se escondido no
mistério de Deus. Há muitas experiências que muitos de nós teríamos preferido não
atravessar. Embora grande parte do mal possa ser entendida em termos do abandono
pecaminoso, por parte do homem, dos padrões de vida que, como ensina a fé cristã,
personificam a vontade de Deus, há muita coisa que não tem explicação ou causa humana.
A nossa fé na providência de Deus deve ser suficientemente grande para enfrentar estas
incertezas, como também para lidar com os sentimentos dolorosos e às vezes amargos que
elas j;oram. Conforme veremos, os personagens do livro de Rute também tiveram de
enfrentar incertezas. Descobriremos também como, para eles, a fé em Deus foi um dom
que ajudou a enfrentar tudo.
"Nos dias em que julgavam os juizes"
Os detalhes da vida do século XX diferem de tantas formas dos dias da Palestina do
século XI ou XII a. C. que abrir o livro de Rute no contexto desse período dos juizes de
Israel é como andar em outro mundo. Mas os crentes em Javé, o nome pelo qual eles
foram convidados a conhecer o seu Deus,28 estavam eles mesmos enfrentando um período
de desafios sem precedentes à sua fé.
Israel passara por anos de sublevações. Conforme criam, no êxodo o seu Deus os
havia libertado da escravidão no Egito. Depois dos anos no deserto, ele os preservara
através das guerras da conquista e os introduzira na posse da terra prometida. Mas a
confederação das tribos de Israel estava mal estabelecida na fé. O povo de Deus, agora em
Canaã, lutava para se ajustar a um estilo de vida rural e para se tornar uma nação. B. W.
Anderson chama isto de "luta entre a fé e a cultura".29 Usando títulos similares aos que
usamos para os nossos tempos, podemos separar as principais pressões exercidas sobre
o crente israelita pelas tentações da cultura cananita que o rodeava.
Outros deuses
Como os povos de hoje, os cananeus da antiguidade estavam absorvidos pela busca
do segredo da prosperidade. Como fortalecer a economia? Como garantir empregos
para todos? Como prover um salário adequado às necessidades e à manutenção dos
padrões de vida? Considerando que sua economia era predominantemente agrícola, sua
busca da prosperidade focalizava a necessidade de uma terra fértil que desse colheitas
abundantes e rebanhos férteis, e de um casamento fértil que produzisse, no devido tempo,
trabalhadores e herdeiros para a fazenda. A religião era, segundo pensavam, a chave da
prosperidade. Apenas Deus podia criar a fertilidade, e particularmente o deus Baal, que
significa "senhor", ou "dono". Baal era o nome de sua divindade masculina. Na crença
cananita, ele era o dono da terra e controlava a sua fertilidade. Sua companheira feminina
era Astarte (pi. Astarote).30 Baal e Astarte eram entendidos como divindades cósmicas que
habitavam nos céus e também eram associados a localidades particulares. O ciclo regular
da naturezae a fertilidade do solo, a nova vida da primavera seguindo-se à esterilidade do
inverno, eram devidos às relações sexuais entre Baal e sua companheira.
O homem não era um simples espectador deste casamento dos deuses. Era
extremamente importante que os deuses não se esquecessem disso, e a técnica
empregada para lembrá-los constante-mente das necessidades da terra era a "mágica
imitativa". As pessoas realizavam, na terra, atos equivalentes àqueles que desejavam que
os deuses realizassem nos céus. Por este motivo, os santuários de Baal, geralmente
localizados nos altos desnudos das montanhas para terem mais chances de serem vistos
pêlos deuses, eram cenários de ritos sexuais orgíacos. Homens e mulheres se alistavam no
serviço do deus e copulavam livremente com os adoradores femininos e masculinos.
Tal religião parecia atraente a Israel, que acabara de se envolver com um estilo de
vida agrícola. Como Anderson observa,31 não nos surpreende que os israelitas, não
acostumados com a agricultura, se sentissem tentados a buscar os deuses da terra.
Naturalmente, namente israelita, a fertilidade da terra e a prosperidade entre o povo
faziam parte das bênçãos prometidas e associadas à aliança que Javé fizera com eles e suas
famílias. O desfrute dessas bênçãos da fertilidade e da prosperidade estava ligado às
obrigações da aliança que o povo tinha com Javé, de viver em obediência responsiva à
vontade deste. Tal princípio, engastado talvez de maneira mais clara na bênção e nas
maldições do capítulo 28 de Deuteronômio, é o padrão da aliança desde os primeiros
dias: "Eu serei vosso Deus; vós sereis o meu povo."32 "Se ouvires a voz do Senhor teu Deus,
virão sobre ti e te alcançarão todas estas bênçãos."33 Mas a fascinação dos outros deuses
era forte.
Hoje, a atração não se encontra na mágica imitativa parasacudir a memória de Baal.
É, antes, o engano da crença vã de que "as leis económicas", "as políticas monetárias", "o
comércio livre", "a nacionalização", ou seja lá o que for, vão por si mesmos gerar
prosperidade, se nos submetermos a eles e os adorarmos. Com muita facilidade nos
esquecemos de que a santidade obediente em atender o que sabemos ser a vontade de
Deus será sempre o fator principal da força, da harmonia e da prosperidade social.
Conforme comentou Len Murray, na reedição do livro de William Temple, Christianüy and
Social Order (Cristianismo e Ordem Social): "É um constante lembrete da verdade das
palavras de R. A. Butler, que 'se não for tocada pela moralidade e pelo idealismo, a
economia é uma atividade árida e a política é inútil'".34 Se em lugar de "moralidade"
colocarmos "santidade" e, em vez de "idealismo", "interesses espirituais", a questão fica
ainda mais incisiva. Os problemas fundamentais que jazem no âmago da vida nacional
não são económicos ou políticos, mas espirituais: ou seja, a falha em perceber que a
adoração da economia ou da teoria política é uma idolatria que nos cega em relação ao Deus
vivo. Assim como nos dias em que os juizes julgavam, também hoje a fé na providência de
Deus não pode andar confortavelmente de mãos dadas com a fascinação pêlos outros
deuses.
Uma cultura dividida
Muitas vezes, a religião tem sido usada para manter o status quo.ss Para aqueles que
têm conforto, a religião pode ser facilmente invocada como sanção divina para que
continuem vivendo no conforto. E o adorador de Baal não era exceção. Para ele, a
religião, com seu interesse central focalizado na fertilidade, servia para preservar e
intensificar o ciclo perpétuo da natureza. O alvo dos deuses era preservar a ordem
estabelecida; a religião, portanto, tinha um interesse de mante-la. O adorador de Baal,
através de sua mágica imitativa, procurava controlar os deuses para esse fim. Mas isso
não acontecia com o israelita que conhecesse Javé!
Javé se revelara na história, no acontecimento único do êxodo e no estabelecimento
de sua aliança. Javé é o Deus vivo que se revela na ação como o Senhor da história, e cujo
envolvimento nos processos comuns da vida humana constitui um constante desafio ao
status quo com um convite à obediência renovada, crescimento em santidade, justiça e
amor. Não vamos imaginar que o crente israelita tentasse desvirtuar a vontade de Javé!
O povo da aliança de Javé buscava servir ao seu Deus em obediência cheia de gratidão e
sensibilidade.
Na verdadeira espiritualidade israelita, a fé religiosa e a vida moral estavam
inseparavelmente unidas. Um exemplo claro é a maneira como o nome de Deus ("Eu
sou o Senhor") perpassa, nas prescrições éticas naturais do Código Santo,36 por cada
aspecto da vida doméstica, social, económica e agrícola, como também da religião e do
culto. Sendo Deus o que ele é ("Eu sou o que sou"), cada aspecto da vida ética envolve para o
israelita uma aplicação da natureza de Deus à situação humana.
Descrevendo os pontos altos da espiritualidade israelita, H. H.
Rowley observa:
A vida benéfica ... conforme nos é apresentada no Antigo Testamento, é a vida que é
vivida em harmonia com a vontade de Deus e que se expressa na vida diária em reflexo do
caráter divino traduzido em termos de experiência humana, que extrai a sua inspiração e a sua
força da comunhão com Deus na confraternização do seu povo e na experiência particular, e
que sabe como adorar e louvá-lo em público e também na solidão do próprio coração.37
Contudo, nos dias em que os juizes julgavam, as pessoas que tinham fé ficavam
tolhidas na tensão entre a vontade de Javé, que eles sabiam terrelevância para cada área da
vida, e a ordem social vigente, com o seu ciclo de padrões da vida agrícola. O povo estava
rodeado pela religião de Baal. Parece que esta tensão às vezes se comprovava pela
tentação de deixar Javé mais à vontade, deixando-o agir em apenas um cantinho da vida
e sendo, nos demais aspectos, abertos aos métodos mais naturalistas do culto a Baal. Esta
tendência de manter o culto a Javé e a Baal lado a lado é expresso por B. W. Anderson desta
forma: "Para Javé eles olhavam nos períodos de crise militar; para Baal, voltavam-se para
ter sucesso na agricultura."38
Como é fácil relegar Deus a apenas determinadas áreas de nossos interesses! Este,
porém, é o primeiro passo decisivo para a divisão cultural, que já mencionamos antes, na
qual o verdadeiro significado de Deus e da vida humana se perde na fuga rumo ao
subjetivismo e ao pietismo.
Existe, realmente, uma verdadeira "separação" para o povo de Deus, mas não em
termos de divisão entre o "sagrado" e o "secular", sendo que os interesses de Deus se
encaixam no primeiro. Isso, infelizmente, foi exemplificado pela observação do Lorde
Melbourne, Primeiro Ministro da Rainha Vitória, depois de ouvir um pregador
evangélico, ao dizer que se a religião interfere com os negócios particulares da vida, isso
já é demais!39 Não, para o povo de Deus a verdadeira separação é a sua característica de
povo chamado para formar a família da aliança de Deus, perceptível em suas reações
corporativa e individual, de santidade obediente a Deus e de serviço prestado ao
próximo, expresso em cada área da vida e dos relacionamentos humanos.
A fé na providência de Deus e no seu ativo envolvimento em toda a vida não dura
muito tempo quando Deus é mantido "guardado" em um canto, enquanto esperamos para
ver o que Baal tem a oferecer.
Oproblemadomal
Não devemos imaginar que o período dos juizes foi totalmente sem fé! Se houvesse
tempo, o escritor de Hebreus teria desenvolvido mais a rápida citação que fez da fé de
Gideão, Baraque, Sansão e Jefté.40 Longe de serem homens perfeitos, é verdade, mas
homens que conheciam o seu Deus e que, à sua própria maneira, demonstraram a
realidade de uma fé viva. Eles trouxeram um pouco de liderança e orientação a um povo
confuso e ameaçado por novas circunstâncias. Mas isto foi convulsivo e passageiro, e não
houve estabilidade duradoura. Foi também um período de grande maldade. A apostasia
do povo provocou o castigo de Deus.41 Os homicídios e a guerra, os estupros e os saques
faziam parte da ordem do dia. A poli rica inimiga da devastação da terra42 acabou com a
economia agrícola.
A segunda parte do livro de Juizes43 descreve um quadro sinistro de inquietação civil
e de violência, de desintegração social, de imoralidade sexual, de agressões e de guerras.
As pessoas que tinham fé entendiam isto em termos do juízo de Javé por causa do
fracasso do povo em viver segundo a justiça de Javé. "Naqueles dias não havia rei em Israel:
cada um fazia o que achava mais reto."44
Mas como Deus podia permitir este mal? Onde ficavam agora as bênçãos da
aliança?Como podiam terfé na providência de Deus? Será que ele ainda se preocupava com
cada aspecto da vida? Tais perguntas deveriam se esgotar facilmente na mente daqueles
cujo destino se resumia simplesmente em acatar o mal aparentemente sem fim.
A atração exercida pêlos outros deuses e a tentação de desligar os interesses de Javé
da vida quotidiana; o caos social, a miséria pessoal e a dura experiência do juízo divino: é
isto que caracteriza de maneira especial "os dias em que julgavam os juizes". A
abrangência do l;vro de Juizes é imensa (lutas nacionais e internacionais) e o ambiente é
sombrio e difícil para quem crê na providência de Deus.
O livro de Rute
É na escuridão dessas questões que reluz o livro de Rute.45 Embora tenha sido
escrito bem depois dos acontecimentos descritos,46 o autor coloca a história "nos dias em
que julgavam os juizes".47 É uma história de encanto e deleite. De acordo com A.
Weiser, Goethe a chamou de "a mais bela obra completa em escala reduzida, que nos foi
dada como um tratado ético e um idílio". Ele também cita o veredito de Rud. Alexander
Schroeder: "Nenhum poeta do mundo escreveu um conto mais belo."48
O livro de Rute é uma história sobre gente muito comum que enfrenta
acontecimentos muito comuns. Aqui vemos Noemi, que passou por muitas
dificuldades, fome e perda de entes queridos, mas que finalmente encontrou paz e
segurança. Encontramos Rute, a moça estrangeira de Moabe, que se apegou à sua
sogra Noemi e ao Deus desta, recebendo a sua bênção. E encontramos Boaz, o parente
afim de Noemi, que foi bondoso para com Rute e Noemi e que, casando-se com Rute,
entrou no propósito de Deus para a história: história tão significativa que o grande rei
Davi49 e, portanto, o próprio Senhor Jesus Cristo,50 encontram-se entre os seus
descendentes.
Das muitas genealogias apresentadas no Antigo Testamento, sabemos que até o
período de Cristo os crentes em Javé preservavam a árvore genealógica através de
séculos de sua história. É sobre essa tradição que o nosso autor se apoia. Conforme
comentário de G. A. F. Knight, "não temos motivos para duvidar que houve uma Noemi
que realmente foi a Moabe com o marido e os dois filhos."51 Estamos, segundo consta,
lidando com uma história real. Como todo historiador, o autor do livro de Rute
selecionou, dentre todos os acontecimentos, aqueles que melhor serviam aos seus
propósitos de escritor.
Quais eram exatamente estes propósitos tem constituído um assunto para
discussão entre especialistas do Antigo Testamento. Há muitos que pensam que o
livro foi escrito depois do exílio, como reação aos aparentemente rígidos pontos de vista
de Esdras e Neemias, que faziam o povo de Deus lembrar sua exclusividade; aqueles que
se casaram com estrangeiros foram chamados de volta à fé dos seus pais, na qual tais
casamentos mistos eram banidos.52 Alguns dos que tinham feito tais casamentos agora
tinham filhos. "Teria sido o clamor de algum desses filhos", pergunta Knight,53 "que
levou um escritor totalmente desconhecido (talvez até uma mulher) a escrever este
pequeno livreto que nós intitulamos de Livro de Rute?" Essa explicação é atraente,
pois Esdras parece ter estendido a proibição legal contra o casamento com os
cananeus54 também ao casamento com moabitas, amonitas e egípcios. E Rute era
moabita. Se o grande rei Davi é descendente de um casamento misto com uma
moabita, Esdras não estaria sendo demasiadamente estrito anulando tais casamentos?
Mas55 a proibição legal da Tora contra o casamento misto com os cananeus era uma
proteção contra a idolatria, e a extensão da preocupação de Esdras para com outras
nações idólatras era adequada, especialmente no novo ajuntamento dos israelitas
exilados novamente como nação. Afinal, os moabitas eram proibidos pela lei de entrar
na congregação.56 Portanto, dizem alguns, talvez o livro de Rute fosse um tratado contra
essas disposições da Tora. Mas tudo isso coloca a composição de Rute numa data muito
tardia, com o que não concordamos. E parece muito difícil discernir uma intenção tão
polémica na história. Rute realmente não parece ser um tratado político.
Outra sugestão é que o livro de Rute foi escrito muito antes do período de
Esdras, durante ou pouco depois da época do próprio rei I Davi. (Há uma tradição
rabínica que diz que o autor foi Samuel, mas dgora ninguém usaria tal argumento.)
Uma data assim tão precoce, talvez do tempo de Salomão, explicaria a conclusão, de
outra forma um tanto surpreendente, do livro com uma genealogia que leva ao
próprio rei Davi. Não há motivos textuais para considerarmos a genealogia como
adição posterior. Seria uma história tradicional que foi então registrada junto com
outra literatura sobre o grande rei?
Ou teria sido a história de Rute escrita deliberadamente a fim de prover uma
ilustração e definição para o conceito de "redenção"? No decorrer da história são-nos
apresentadas as diversas práticas legais do antigo povo de Israel relacionadas com os
deveres da família e os direitos de propriedade. Vamos gastar algum tempo
examinando o significado do levirato (concernente aos costumes matrimoniais quando o
homem da casa morria) e especialmente do goel (o "parente remi-dor"). Eles apontam
para a ideia israelita da redenção, da terra e do povo. Mostram como a lei era
interpretada e em que espírito de amorosa generosidade ela era aplicada. E, diversas
vezes, as características do povo nesta história combinam com o que ele cria sobre o
caráter de Deus. Seria para expressar sua ideia sobre a graça redentora de Javé que o
escritor selecionou esta história em particular, tratando especialmente destes temas?
Rute certamente permanece em notável contraste com a severa e legalista adesão aos
códigos da lei que colocam a lei de Deus fora do contexto da aliança de Deus, e que
reduz a fé viva a um moralismo frio.
Ou será que o livro de Rute foi simplesmente escrito para contar, numa história
de grande beleza, os acontecimentos que envolveram as perdas de Noemi e o
casamento de Rute, talvez para incentivar virtudes tais como o amor e a fidelidade
nos relacionamentos familiares?
Não conhecemos o propósito exato do nosso autor. Mas o que está claro é que,
através de sua leitura, aprendemos algo da vida rural do século XI ou XII a. C. na
Palestina, a rotina do dia-a-dia, a necessidade do trabalho, as alegrias familiares, a dor
da morte, a separação dos parentes, o relacionamento com a sogra. E, na ilustração de
pureza, inocência, fidelidade e lealdade, dever e amor, o escritor deseja que os seus leitores
percebam a mão de Deus, que cuida, sustenta e provê.
Gastamos muito tempo observando que a história foi colocada no período dos
juizes. É como se o autor quisesse que soubéssemos que houve um outro lado da vida na
época dos juizes. Certamente houve os grandes líderes carismáticos de Juizes 4-16, com seu
sucesso inter-t mi tentee seu fracasso geral em proporcionar estabilidade e segurança ao povo
de Deus. Houve igualmente a apostasia, violência, imoralidade e guerra civil de Juizes 17 -
21. Mas não havia fé: fé viva na providência cheia da graça de Deus, que enriquecia e
satisfazia. Talvez o autor conte a história dessa forma para destacar o fato de maneira
especial e para reacender esse tipo de fé em seus leitores.
Com uma fé assim, o nosso escritor apega-se a um valor da vida humana que é
precioso para Deus e para os outros e a uma compreensão dos propósitos de Deus em seu
mundo, transcendendo as barreiras raciais, e a um prazer no envolvimento do Todo-
Poderoso com os problemas de uma família comum que ora pelo seu pão de cada dia.
Procurando acompanhar a fé do autor na providência de Deus, descobrimos a
segunda história (a perspectiva divina) que permeia a história humana, e aprendemos
hoje, quando muitos têm medo "da noite e das trevas", que o Deus de Israel quer ser
conhecido como o nosso Deus. Vivendo, como vivemos, do lado de cá do Calvário e da
sepultura vazia, com o conhecimento que temos da encarnação e da ascenção do Senhor,
podemos dar à expressão "parente remidor " um significado muito mais completo do que
Noemi, Rute ou Boaz foram capazes de entender. Mas nós, à nossa moda, podemos
compartilhar com eles do conhecimento de que "sob suas asas", nos sofrimentos e nas
alegrias do nosso dia-a-dia, podemos encontrar a segurança do seu "refúgio".57
Densas trevas
envolvem o meu ser.
Sozinha.
Com medo.
Minha mente é um sorvedouro
voltado para dentro
na direção de uma eternidade de sofrimento intolerável.
Eu costumava estender a mão
nas trevas desconhecidas com esperança.
Mas minha alma foi arrancada de mim, e eu já não tenho mais esperança.
Foi como um poço. Profundidade insondável. Humilhação tortuosa. Apenas o som de minhas
lágrimas na impenetrável escuridão.
Eu me lembro desse poço,
e do medo,
e da desesperança
de uma eterna agonia da mente,
e da peregrinação cruel
no deserto inexplorado.
Agora eu me encontro neste oásis,
neste porto inesperado,
neste refúgio.
Eu não mereci esta graça
de ser arrancada daquelas profundezas todo-poderosas.
Eu não tinha esperanças,
mas quando voltei pelo caminho que trilhava,
vi uma mão cheia de graça
e um sorriso amoroso.
Eu vi uma luz orientadora
e senti uma asa protetora.
Aninhando-me no seu calor,
meu coração gelado se derreteu.
A negrura de minha alma
desabrochou em milhares de flores.
Minhas lágrimas se transformaram em jóias, e minha amargura em mel.
Mas eu me lembro do poço.
Mantém-me, ó Senhor,
Segura
no refúgio das tuas asas.
Elisabeth
PARTE I
AS LÁGRIMAS
1:1-7
1. Partindo
Preocupação com as coisas comuns (1:1)
Nos diasem que julgavam osjuizes ...um homem.
Em um mundo dominado (se acreditarmos nos meios de comunicação) pela "crise" e
pêlos "desafios", no qual cada pequeno acontecimento pode ser transformado em
manchete, contanto que haja nela uma "história interessante" (e até mesmo em uma
igreja, onde o incomum e espetacular costuma ser recebido por certas pessoas como mais
autêntico que a monotonia e a rotina), é um alívio abrir o livro de Rute. Já descrevemos a
agradável simplicidade de seus assuntos: a vida do interior, suas alegrias e tristezas, suas
"virtudes agradáveis" e, especialmente, sua concentração nos personagens à volta dos quais
se tece a história. Isto se destaca mais aindapelo contraste com o livro dos Juizes, com o qual
as palavras iniciais estabelecem uma ligação. O livro de Juizes termina com uma referência
ao caos social e à miséria pessoal resultantes da falta de autoridade justa entre o povo:
"Naqueles dias não havia rei em Israel: cada um fazia o que achava mais reto."1 O livro de
Juizes foi pintado numa tela grande. Embora apareçam no livro personagens individuais,
sempre surgem no contexto da guerra civil, das convulsões nacionais, dos assuntos
internacionais. Mas o livro de Rute, embora não fique totalmente esquecido do significado
nacional, e até mesmo global, dos seus personagens, trata de um < homem, sua família e
seu destino. Lembra-nos de que o Deus das nações também está interessado nas coisas
comuns relacionadas a "um homem".
Nosso Senhor, que nos ensinou a orar ao "nosso Pai que está no céu" e a elevar
nossos corações e mentes para a visão global da vinda do seu reino (pois seu é o reino e a
glória para todo o sempre),também nos ensinou a orar pelo pão nosso de cada dia. Deus, que
sabe quando um pardal cai ao chão e que notaquando oferecemos um copo de água fresca a
quem precisa dele,2 também se interessa pelas coisas comuns. Como Helmut Thielicke o
destaca:
Diga-me até que ponto você considera Deus sublime e eu lhe direi quão pouco ele
significa para você. Este pode ser um axioma teológico. O Deus sublime foi arrancado de
minha vida particular... Se Deus não tem significado para as minúsculas peças do mosaico
de minha vidinha particular e para as coisas que são do meu interesse, então ele não tem
significado algum para mim.3
O interesse de Deus no destino de um homem nos dias em que julgavam os juizes
deveria nos lembrar que até mesmo as nossas coisas mais comuns são significantes para
Deus e se encaixam no seu cuidado todo-poderoso.
A fome (1:1)
Nos dias em que julgavam os juizes, houve fome na terra; e um homem de Belém de Judá saiu a
habitarnaterradeMoabe,com sua mulher eseusdois filhos.
Mudar de residência não é uma tarefa que a maioria das pessoas assume com
leviandade. É uma coisa dispendiosa e inquietante. Implica arrancar raízes e deixar
amigos e vizinhos. Geralmente leva a procurar uma nova casa, estabelecer uma nova
vizinhança, conhecer outras pessoas. Para uma família é um verdadeiro terremoto.
Embora Elimeleque certamente não tivesse a mesma quantidade de utensílios domésticos
para transportar que um chefe de família moderno, não foi uma decisão menos
importante para ele. Ele resolveu sair de Belém por causa de uma fome.
Belém de Judá era uma cidade, cerca de oito quilómetros ao sul da atual Jerusalém.
Seu nome significa "casa do pão", nome que aponta para a incomum fertilidade daquela
região para o plantio de cereais (como o esclarece o capítulo 2 do livro de Rute), Também
destaca que a fome era fora do comum. Alguns comentaristas crêem que a fome local na
região de Belém (aparentemente não havia tal dificuldade cerca de oitenta quilómetros a
sudeste, em Moabe, do outro lado do atual Mar Morto) devia-se em parte às pilhagens
associadas com o período caótico dos juizes. A invasão midianitano período de Gideão, por
exemplo,4 destruiu a lavoura e o gado.
Por causa da fome, Elimeleque decidiu que ele e sua família iriam morar durante
algum tempo como estrangeiros residentes (peregrinos) na terra de Moabe.
Não temos certeza do que o induziu a partir. Embora a religião cananéia
procurasse controlar o processo da natureza com os seus niveis da fertilidade, o povo de
Javé fora ensinado a confiar nele conquanto à prosperidade da terra. Será que a fome, na
mente de Elimeleque, era um sinal do descontentamento divino?5 Não sabemos. Sabemos
que outros belemitas permaneceram na terra à espera tio final da fome e, ao que parece,
passaram muito melhor do que lilimeleque (versículo 6). À luz dos acontecimentos
subsequentes, fie.imos imaginando se o autor não pretende nos levar a pensar que
lilimeleque não foi sábio na sua atitude! Certamente a viagem não alcançou o seu
objetivo: escapar da morte. Todos os três homens da fnmília morreram em Moabe. Além
disso, com a mudança, morreram numa terra estranha, deixando Noemi, a viúva, muito
mais desolada do que se tivesse permanecido na companhia dos seus conhecidos.
Ali, com tantos lugares, por que ir a Moabe?!
Localizadano planalto, ao leste do Mar Morto, Moabe erapovoada pt-Ios descendentes
de Ló.6 Embora não tivessem sido atacados pêlos israelitas em seu retorno à terra prometida
depois do êxodo, apesar de sua falta de amabilidade característica, os moabitas não
deviam ser admitidos na congregação de Israel.7 Por quê? Eles eram adoradores ile Camos,
um deus ao qual aparentemente se faziam sacrifícios humanos. Os moabitas eram, às
vezes, chamados de "povo de Camos".8 Além disso, durante o primeiro período dos juizes,
Eglom, rei de Moabe, invadiu a terra dos israelitas e manteve o povo de Israel na
escravidão durante dezoito anos.9 Portanto, era um lugar muito estranho para um crente
em Javé, habitante de Belém, escolher para morar. Por que não foram para algum lugar
onde se adorava Javé? Será que era falta de confiança na providência de Deus? Embora
elogiando o pretenso desejo de Elimeleque de cuidar de sua família durante a fome,
Matthew Henry pergunta como se poderia justificar a mudança a Moabe. "Aborrecer-nos
com o lugar no qual Deus nos coloca e abandoná-lo na primeiraoportunidade, logo que nos
deparamos com algum desconforto ou alguma inconveniência, é evidência de um espírito
descontente, desconfiado e instável."10
Não temos dados suficientes para saber se a atitude de Elimeleque justifica o
comentário de Matthew Henry. Porém, mesmo que a atitude de Elimeleque implique falta
de fé ou expressão de descontentamento para com Javé, o restante do livro de Rute
demonstra amplamente que a providência graciosa de Deus não é limitada pela loucura
do homem. A alegria final na família e o propósito de sua história, resultante da entrada
de Rute no cenário, demonstram a rica benignidade da providência de Deus. Ver que tais
benefícios foram colhidos como resultado de uma conduta impensada é uma evidência
de seu amor. Felizmente, a providência de Deus cobre até os nossos erros!
Os nomes (1:2-5)
Este homem se chamava Elimeleque, e sua mulher, Noemi; os filhos se chamavamMalome
Quiliom, efrateus, de Belém de Judá; vieram à terra de Moabe e ficaram ali. 3 MorreuElimeleque, marido de
Noemi; e ficou ela com seus dois filhos, 4os quais casaram com mulheres moabitas; era o nome duma Órfã, e o
nome da outra Rute; e ficaram ali quase dez anos. 5 Morreram também ambos, Malom e Quiliom, ficando
assimamulher desamparadade seusdoisfilhosedeseumarido.
Para o nosso autor, os nomes são significativos. Temos alguns personagens no
livro cujos nomes não são mencionados, como o "resgatador" que aparece em Rute
4:1. Portanto devemos presumir que, se o escritor nos cita nomes, é com algum
propósito especial. Na maneira hebraica de pensar, saber o nome de uma pessoa é
conhecer o seu caráter, conhecer a pessoa. O nome é a pessoa. Quando Abrão se tornou
uma nova pessoa, ele recebeu um novo nome.11 Quando o nome de uma pessoa é
destruído ou retirado, a pessoa, é extinguida da memória humana, como se nunca
tivesse existido.12 Era uma coisa terrível ser deixado sem nome nem descendentes.13
Portanto, quando Deus diz o seu próprio nome, está falando do seu caráter e comparti-
lhando o seu próprio ser com aqueles aos quais falou.14 "Javé" é o seu nome pessoal, o
nome do Deus da aliança.
Elimeleque significa "meu Deus é rei". Alguns comentaristas, como Henry, que já
citamos acima, imaginam que talvez haja alguma censura implícita no fato de citar
este nome. Não deveria tal nome expressar dependência e confiança em Deus? Com
certeza deveríamos lembrar que para todo aquele que pode dizer "meu Deus é rei",
embora não receba uma promessa de uma vida livre de problemas, há sempre a
promessa do pão de cada dia e a certeza de que não há necessidade de ficar
morbidamente ansioso por causa do amanhã.15 Parte do significado da fé pode ser
expressa declarando que a f é é aquilo que Deus nos dá para nos ajudar a enfrentar
as incertezas da vida. Será que Elimeleque vivia de acordo com o seu nome?
Noemi significa "amável, encantadora, agradável". E o comovente significado
deste nome destaca-se mais tarde, quando Noemi volta de Moabe com sua nora Rute,
entristecida pelas experiências amargas que ela cria ter recebido da mão do Senhor.
"Não me chameis de
Noemi", ela diz aos seus vizinhos, "chamai-me Mara; porque grande .unargura
me tem dado o Todo-poderoso" (1:20).
Malom e Quiliom, os filhos de Noemi, aparentemente tinham antigos nomes
cananeus, mas foram aqui mencionados devido ao seu sig-n i ficado dentro do cenário,
para que entendamos as lágrimas e o sofrimento do restante de Rute 1. "Malom"
parece estar ligado a uma raiz cujo significado é "estar enfermo"; e "Quiliom" significa
algo assim como "enfraquecer", ou "definhar", ou até mesmo "aniquilação".
Órfã e Rute são nomes moabitas e os seus significados não são muito claros. Mas o
que está claro é a sua nacionalidade. Os filhos de lïlimeleque casaram-se com
adoradoras de Camos e, embora tal casamento não fosse aparentemente proibido,16 os
moabitas não eram admitidos na congregação para o culto.17
A família, diz-nos o autor, era de efrateus. Efrata é uma palavra geralmente
associada com Belém, mas o seu significado é muito incerto. As passagens onde
aparece sugerem que há uma dignidade especial ou alguma importância em se estar
ligado a um efrateu. Aqui, provavelmente, indica que estamos sendo apresentados a
uma família bem estabelecida. Certamente, quando Noemi voltou, não era uma
pessoa sem importância (1:19). Talvez, como sugere Leon Morris,18 sua família
pertencesse à "aristocracia" local, uma família que, quando partiu para Moabe, era
conhecida como de pessoas ricas ("Ditosa eu parti", 1:21). Mas a riqueza e o prestígio
não são garantias de felicidade material ou de ausência de sofrimento. A fome
angustiou a família o suficiente para que esta abandonasse o seu lar e partisse para
Moabe. Depois, além da perda do conforto físico e da segurança do lar, veio a dor, não
de uma morte, mas de três. Noemi, em quem se concentra este primeiro capítulo de
Rute, ficou sozinha, sem lar, sem marido, sem filhos, sem amigos, sem esperança, sem
herança. O que o culto a Javé significava para ela agora?
A morte (1:3-5)
Morreu Elimeleque... 5Morreram também ambos, Malom e Quiliom, ficando assim a mulher
desamparadadeseus doisfilhosedeseumarido.
A morte, num certo sentido, é um dos acontecimentos mais naturais da vida,
mas, num outro, é o menos natural. Todos os homens são mortais;19 o tempo de
permanência do homem aqui na terra é limitado. A morte inexoravelmente lembra o
homem de sua fragilidade e limitação;limitação essa (o salmista nos diz) da qual o Senhor
não fica esquecido, e que faz par te do significado da compaixão que sente para com o seu
povo: "Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece dos que o
temem. Pois ele conhece a nossa estrutura, e sabe que somos pó."20 Assim como toda a
"natureza", a morte faz parte do homem desde o princípio. E certas casas funerárias
modernas parecem recusar-se a crer que ela seja real.
Que significado, ficamos imaginando, o crente em Javé dava à morte quando
Noemi ficou desamparada de seus dois filhos e de seu marido? Eles não tinham consciência da
transformação do significado da morte trazida pelo Novo Testamento. Eles tinham muito
menos fundamento do que nós para crer na vidaapós a morte. Não poderiam ter entendido
a plenitude do significado das palavras de Paulo sobre a morte, que "perdeu o seu
aguilhão", ou da sua descrição da morte como um simples "adormecer".21 Mas não
devemos esquecer a confiança de Davi em que estaria com o seu filho morto,22 nem o
pensamento positivo dos Salmos 49 e 73. Mesmo para um homem de fé do Antigo
Testamento, morrer era "dormir com os seus pais", ou "ser reunido ao seu povo".23 E o
desespero expresso em passagens tais como o Salmo 88 parte daquele que se julga
alienado da compaixão de Deus, morrendo sob a sua ira, e não de um crente plenamente
confiante na graça de Deus.
Mas é a ressurreição de Jesus Cristo que dá forma àquilo que para o cristão agora é
uma certeza: para o crente a morte proporciona comunhão infinita com o Senhor.24 Para o
cristão, morrer é "zarpar rumo a outra terra".25 Nossos corpos são preparados para uma
vida espiritual mais completa, preparados para a vida no céu, com seus correlativos
celestiais mais ricos do que os corpos físicos que são apropriados para este mundo de espaço
e tempo.26 A esperança cristã aguarda "aquela grande multidão que ninguém pode
enumerar", cujas roupas foram alvejadas "no sangue do Cordeiro", que ficarão em pé
diante do trono de Deus e o servirão "de dia e de noite no seu santuário".27
Algumas partes do Antigo Testamento dão indicações destas afirmações de fé. Isaías,
numa seção que poderia ser considerada como a base da fé no destino pessoal, como
também da sorte da nação, fala do tempo quando o Senhor "tragará a morte para sempre e
assim enxugará o Senhor Deus as lágrimas de todos os rostos." Então ele afirma que "os
vossos mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai e exultai, os
que habitais no pó."28 E nas visões apocalípticas de Daniel, ele se estende pela fé em busca
daquilo que talvezapenas percebaindistintamente: "Muitos dos que dormem no pó da terra
ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para a vergonha e horror eterno."29
Mas, de um modo geral, a morte no Antigo Testamento é um estado nmbíguo e
escuro. De um lado, os mortos são às vezes considerados como aqueles que foram
separados da esfera da influência de Javé. A morte para eles significa o fim de um
relacionamento consciente com Deus; já não se ouvem mais louvores a Javé. A morte é o
rei dos terrores.30 O submundo tenebroso do Seol, o lugar dos mortos, é um local profanado
que enfatiza o horror da morte. O crente em Javé não deve tentar alcançar aqueles que
morreram, nem deve, como os demais cananeus, ocupar-se em rituais da morte, como
cortar o cabelo ou ferir sua carne como um reconhecimento do poder da morte.31 O povo de
Moabe, entre o qual Noemi habitava, possivelmente tinha atitudes para com a morte que
eram intoleráveis para o crente em Javé (indicadas, talvez, pelo modo como Amos teve de
denunciá-lo porque "queimou os ossos do rei de Edom, até os reduzir a cal"32).
Por outro lado, também encontramos no Antigo Testamento uma forte fé em Javé
como Senhor, e o Senhor da vida.33 Nenhum outro soberano pode reinar no reino da
morte. Assim, neste vácuo, a fé em Javé cria indícios de esperança. O salmista, quando se
encontra à beira da morte, clama a Javé para que se lembre dele; e, em outra passagem, o
poeta expressa a certeza de que Deus vai recebê-lo através da morte numa outra vida.34 Ou,
então, mesmo que venha a fazer a sua cama no Seol, "lá estás também". O Senhor não vai
abandoná-lo.35 Há um sentido no qual, no momento da morte, Javé vai "arrebatar" o
crente para que fique em comunhão com ele.36 O próprio Deus está presente junto ao crente
na vida e na morte, e não vai abandoná-lo no reino de Seol.
Quanto desta fé crescente Noemi partilhava nós não sabemos. Talvez ela tivesse
vislumbres dessa verdade que nos foi totalmente revelada no Novo Testamento: para
aquele que se aproxima de Deus pela fé, a morte, num certo sentido, já ficou para trás. Os
crentes cristãos são "batizados na morte de Cristo"37 e, embora a sua morte física ainda
tenha de acontecer porque a glória completa ainda não foi revelada,38 sua comunhão
contínua com o Senhor é coisa segura.
Mas seja quanto for que Noemi tenha captado sobre o significado da morte para o
crente em Javé, existem dois aspectos de suas próprias circunstâncias que são evidentes.
Primeiro, seu marido e filhos haviam morrido prematuramente. Como podemos nos
identificar bem com a tristeza do Antigo Testamento, quando enfrentamos aquilo que os
que ficam só podem classificar de morte prematura! Abraão morreu em idade avançada,
um homem velho e cheio de anos. Numa vida assim há realização, como na de Jó, que
viu seus filhos, netos e até mesmo bisnetos.39 Mas a morte de uma pessoa jovem tem um
tom de tragédia: "Em pleno vigor de meus dias hei de entrar nas portas do além; roubado
estou do resto dos meus anos."40 Hagar, a mãe, lamenta a morte iminente de seu filho:
"Assim não verei morrer o menino"; e Davi sofre com a morte do seu filho.41 Para Malom e
Quiliom certamente, e podemos imaginar que também para Elimeleque, a morte chegou
cedo na vida; eles foram "roubados" do resto dos seus anos. E Noemi ficou desamparada de
seus dois filhos e de seu marido muito cedo na vida.
Em segundo lugar, embora o livro de Rute apenas nos dê um rápido vislumbre de fé
em que a morte não seja o fim da comunhão (1:17), havia uma certeza. O nome do homem
não deve ser esquecido. Seu nome permaneceria na sua herança. Como era importante
para ele, portanto, que tivesse um filho (4:5,10)!E como deveria ser desespera-dor, portanto,
para Noemi o fato de que, além de ter perdido os três homens de sua família, ela não
tivesse um único herdeiro através do qual os nomes deles continuassem e sua herança
ficasse garantida! Seus homens morreram, e com eles os seus nomes!
Aqui o autor coloca um desastre em cima do outro na vida de Noemi, dando-nos
um senso real do choque que atinge uma pessoa nessas condições. Ela certamente não
havia merecido; com certeza fora inesperado. Não estaremos penetrando aqui no lado
oculto da providência de Deus: o fato de que certos sofrimentos nossos parecem
insuportáveis; algumas de nossas circunstâncias parecem tão injustas; e algumas de nossas
perguntas ficam sem respostas?
Com Noemi aprendemos que fé, às vezes, significa uma disposição de deixar essas
perguntas como mistérios de Deus, na confiança de que, em dias melhores, ele tem se
mostrado fidedigno.
O Senhor visita (1:6-7)
Então se dispôs ela comassuasnoras,evoltoudaterradeMoabe,porquanto nestaouviuqueoSenhorse
lembrara do seu povo, dando-lhe pão. 7Saiu, pois, ela com suas noras do lugar onde estivera; e, indo elas
caminhando, devolta paraaterradeJudá,...
A nossa memória mantém vivo no presente o significado das experiências
passadas. Com que frequência o povo de Deus recebeu a instrução de "lembrar" de como
Deus o ajudou no passado. Depois do êxodo do Egito, na noite de Páscoa, a primeira
palavra de Moisés , ao povo foi: "Lembrai-vos deste mesmo dia ... pois com mão forte o Se-
nhor vos tirou de lá." Eles deviam se lembrar do seu tempo de escravos no Egito como
um incentivo para a guarda do sábado; deviam lembrar que o Senhor era o seu Deus.
Quando tivessem medo, deviam se lembrar do poder do Senhor. Quando repousassem
em bênçãos, deviam se lembrarde que também o tinham provocado à ira. Ci rande parte das
regras éticas de sua sociedade estava fundamentada na lembrança do tempo em que eram
escravos e na salvação de Deus. Nos dias dos juizes, logo depois que Gideão morreu, houve
problemas, porque o povo se voltou novamente para Baal e não se lembrou do Senhor seu
Deus.42
Mas Noemi se lembrou. As linhas de comunicação com os amigos da pátria
continuaram abertas. Pelo testemunho posterior de Rute vemos que Noemi fora uma
servidora fiel de Javé em Moabe. Ela mantivera viva em sua consciência a realidade da ajuda
do Senhor ao seu povo no passado. E aguardava sinais da sua ajuda no presente. Como o
salmista, quando consumido com sofrimento e depressão, Noemi sem dúvida consolava-
se "invocando os feitos do Senhor". Como Jonas em seu nada invejável estado aquático,
a mente de Noemi estava em oração ("Quando dentro em mim desfalecia a minha alma, eu
me lembrei do Senhor; e subiu a ti a minha oração").43 Nos tempos de provação, fé às vezes
significa deixar as dificuldades nas mãos de Deus, mesmo sem receber uma resposta. Uma
fé assim é fortalecida pela lembrança constante de como Deus nos ajudou no passado.
Pedro insiste com os seus leitores cristãos para que tenham em mente as promessas e os
dons graciosos de Deus, e que os tenham como lembrete.44 E, acima de tudo, somos
aconselhados a lembrar, a descansar e a nos alimentarda graçasalvadora de Deus em Cristo
sempre que comermos o pão e bebermos o cálice do Senhor "em memória" dele.45 A fé é
uma caminhada de confiança e crescimento; é um móbile em movimento, não uma vida
estática. E quando algumas partes balançam por algum tempo nas sombras, confiamos
que aparecerão de novo na luz, como já aconteceu muitas outras vezes. Parte da
espiritualidade dos homens e mulheres de fé no tempo de Noemi consistia em meditar
nos grandes feitos de Deus no passado, e podemos aprender com eles a manter assim a fé
viva em períodos de trevas.
Assim, o coração de Noemi permaneceu em Judá e ela não se esqueceu do seu
Deus. Na verdade os seus ouvidos ficaram alertas às notícias que chegavam a Moabe, de
que Javé não abandonara o seu povo: a fome terminara, o Senhor se lembrara do seupovo, dando-
lhe pão. O Senhor, como já dissemos, traduz o nome de Deus, Javé. Ele é o Deus cujo nome
pessoal indica o seu caráter: o Deus que está em atividade, o Deus que vem ao encontro
do seu povo na necessidade, o Deus que liberta o seu povo pela ação de um remidor
(goel)-46 É através do caráter deste Senhor, revelado ao seu povo gerações antes, que Noemi
mede agora a amargura de suas perdas e do seu isolamento (1:13, 21). É este Senhor que,
descobrimos mais tarde, é adorado por Boaz e seus empregados, e cuja bênção é invocada
sobre Rute (2:4,12). É este Senhor que é bendito por Noemi por causa da graciosa
generosidade de Boaz, que é visto como o doador da vida e sob cujos cuidados
providenciais Noemi finalmente encontra alegria (2:20,4:13-14). O livro de Rute é rico em sua
revelação do tipo de Deus que é Javé.
O nosso autor anseia que o caráter deste Senhor domine a sua narrativa. É
como se quisesse que os seus leitores colocassem os acontecimentos detalhados das
alegrias e tristezas de sua história dentro do contexto do Deus cujo caráter foi descrito
como "Javé".
Quanto significado existe na frase O Senhor se lembrará! As notícias que Noemi
recebeu não são expressas em termos tais como "o tempo melhorou", ou "houve uma
inversão económica", ou "a ameaça da invasão desapareceu". Tudo isso poderia fazer
parte da cadeia das causas para a recuperação da fartura em Belém. Mas não, as notícias
chegaram a Noemi em termos de ação do Senhor. Aqui há um tema central na Bíblia:
toda a vida é traçada diretamente pela mão de Deus. Quando nos concentrarmos
principalmente nas causas secundárias sentimo-nos encorajados a manipular o sistema.
É a concentração na Grande Causa que nos ensina a viver pela fé.
Quando o Senhor "visita" o seu povo, ele o faz pelo julgamento47 ou através de
bênção.48 O alimento que agora existia em Belém é entendido por Noemi como um
dom de Deus. O sentido disto foi captado pelo salmista ("Abençoarei com
abundância o seu mantimento, e de pão fartarei os seus pobres"49), como também
pelo sacerdote Zacarias séculos mais tarde, quando ele se deleitou no nascimento do
mensageiro do Messias ("Bendito seja o Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu
povo"50). Com a confiança de Noemi nesse Deus, ela podia lidar, como veremos, com os
sentimentos de ira que suas circunstâncias viessem a provocar.
Agora, com Rute e Órfã, ela inicia sua viagem de volta ao lar.
1:8-22
2. Voltando para casa
A preocupação de Noemi (1:8-9)
Disse-lhes Noemi: Ide, voltaicada uma àcasa desua mãe; eo Senhor use convoscodebenevolência,
comovósusastescomosquemorreram,ecomigo.9OSenhorvosdêquesejaisfelizes,cadaumaemcasadeseu
marido.Ebeijou-as.Elas,porém,choraramemaltavoz.
A verdadeira fé sempre pode ser avaliada pêlos frutos do amor;1 e Rute, a moabita
que veio a crer no Deus de Noemi, devia ter aprendido com esta a realidade da fé,
experimentando seus benefícios através do amor praticante de sua sogra para com ela.
Noemi surge agora como a personagem principal de Rute 1. No desdobramento da
"outra história", o tema da providência de Deus na sucessão dos acontecimentos de
situações humanas nas quais Noemi e suas noras se encontram, e a subsequente provisão
divina para com Rute e Boaz, vamos nos concentrar primeiro em Noemi e especialmente
na fé inabalável de Noemi em Javé. Especificamente aqui vemos como a sua fé se
demonstrou ativa em amor.2
Antes de mais nada, a preocupação amorosa de Noemi com suas noras encontra sua
expressão na oração. Como já se disse com muito acerto: "O que um homem crê ou não crê a
respeito da oração é uma boa indicação de suas crenças religiosas de um modo geral. O que
ele crê sobre a oração é uma indicação do que ele crê sobre Deus. Mais particularmente, o
que o homem faz com a oração é uma indicação do que ele crê a respeito dela."3
A oração é, e sempre foi, o lado ativo da doutrina da providência. A oração é o
reconhecimento, não do benefício psicológico de algum exercício mitológico, mas do fato de
que nós cremos que Deus existe, que Deus se importa conosco, que Deus está no controle e
que Deus providencia tudo, e cremos de tal modo que estamos dispostos a fazer alguma
coisa com base nisso, isto é, a falar com ele. A providência nos lembra que não passamos de
criaturas, que somos dependentes de Deus e que, junto com o mundo todo, estamos sob o
senhorio de Deus; a oração é uma atividade pela qual reconhecemos que não podemos ser
nosso próprio senhor. A providência nos lembra que nem tudo é desesperadamente
absurdo ou sem sentido; a oração é a nossa maneira de dizer "sim" diante da convicção de
que Deus está operando os seus propósitos na natureza, nos homens e na história. A
providência é um lembrete de que o Senhor é um Deus de graça e generosidade; a
oração é a nossa maneira de responder ao seu convite para fazermos parte da família da
sua aliança, para sermos seu filho ou sua filha, seus cooperadores neste mundo. A
providência nos lembra que o Deus vivo não é um destino imutável diante do qual só
podemos manter silêncio e ficar passivos; a oração é a nossa reação diante do convite de
Deus para que partilhemos da comunhão com ele, uma expressão da nossa união com
ele. Como disse P. Forster:
A profundidade do senhorio de Deus é tal que ele permite que tenhamos um
lugar no seu governo do mundo ... isto aponta para a seriedade de nossas ações como
cristãos. Não significa que estejamos segurando as rédeas do governo do mundo. Elas
estão nas mãos de Deus. Mas nós temos o nosso lugar no seu exercício. Em sua
onipotência e onisciência supremas, Deus quer partilhar sua vida conosco.4
Forster prossegue dizendo que Deus vai retificar e compensar nossa oração
quando a responder. Não que a nossa oração seja a coisa certa e segura a fazer, e a resposta
de Deus a coisa incerta e insegura. Pelo contrário, nós é que somos desafiados na oração,
e não Deus.
Portanto, através da oração nós expressamos a nossa confiança na providência de
Deus e descobrimos como a nossa própria vontade deve ser alinhada com a sua
vontade soberana e cheia de amor por nós. A nossa ação na oração se encontra na sua
resposta transformadora.
Isto aconteceu com Noemi em sua oração a favor de Rute e Órfã. Ela orou como
alguém que conhecia o seu Deus como o Senhor da aliança. A sua oração aqui é de
confiante entrega do futuro nas mãos do Senhor. Ao pensar em suas noras e nas
necessidades delas, Noemi ora pedindo que o Senhor, o Deus da aliança, use de benevolência
para com elas.
O amor da aliança
Benevolência (versículo 8) traduz a palavra central do relacionamento de Deus com o
seu povo através da aliança: hesed, amor constante e fidelidade. É uma palavra "que
combina o calor da comunhão de Deus com a segurança da sua fidelidade".5 É a palavra
de amor que Moisés canta ao louvar o redentor,6 e pela qual o povo é convocado para a
comunhão da aliança com ele. Noemi louva a Deus por seu hesed em 2:20, e Rute é
louvada pelo seu em 3:10. Portanto, é uma palavra que nos diz algo do cará ter do Deus da
aliança, e também diz algo das pessoas que demonstram esse caráter em suas vidas. Vamos
retornar a este assunto no capítulo 4.
O correlativo desta palavra no Novo Testamento é ágape, que descreve o amor
sacrificial de Deus pelo seu povo e o amor que ele espera que o seu povo demonstre em
troca disso. Talvez a definição mais aproximada é a que encontramos em l João 4:10-11:
"Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou,
e enviou o seu Filho como propiciação pêlos nossos pecados. Amados, se Deus de tal
maneira .nos amou, devemos nós também amar uns aos outros."
Noemi confia no Deus do amor e entrega Rute e Órfã aos cuidados dele. Suas noras
demonstraram uma bondade maravilhosa para com ela e sua extinta família; que Deus
demonstre o seu amor para com elas. Sua preocupação particular era que elas
retornassem às suas próprias famílias em Moabe, onde aparentemente pelo menos os pais
de Rute ainda viviam (2:11), e que se casassem novamente.
Um lar
O Senhor vos dê que sejais felizes, cada uma em casa de seu marido', isto indica principalmente o
anseio por um "lugar de descanso".7 A palavra não se refere apenas ao fim dos
problemas e do sofrimento (que Rute e Órfã pudessem superar a dor de suas perdas),
mas também à experiência positiva da segurança e do conforto divinos. "Volta, minha
alma, ao teu sossego (descanso)", canta o salmista, "pois o Senhor tem sido generoso para
contigo."8
Para entender o pleno significado da oração de Noemi, temos de saber alguma
coisa sobre a situação das mulheres viúvas naquele tempo. Considerando que o status
das mulheres na sociedade do Antigo Testamento era muito aquém do que lhes foi
concedido por Jesus 110 Novo Testamento (na sua maneira de tratar a mulher junto ao poço,
com a siro-fenícia, Maria e Marta, como também no que ensinou sobre o divórcio,
garantindo às mulheres direitos iguais aos dos homens),9 a situação da viúva era ainda
pior. A esposa estava incluída na propriedade do marido, podendo ser repudiada, e não
tinha direito de herança.10 Era, entretanto, bem superior a uma escrava e, especialmente
quando nascia um filho do sexo masculino, era respeitada dentro da família. Mas a sua
segurança repousava no marido e ela tinha poucos direitos próprios.
Portanto, quando morria o marido, a viúva (especialmente se tivesse filhos
pequenos para sustentar) ficava em posição muito difícil. A palavra traduzida para
"viúva" não apenas indica a morte do marido, mas também dá ideia de solidão,
abandono e desamparo.11 As viúvas eram geralmente mencionadas junto com os órfãos
e os estrangeiros.12 Elas tinham necessidade especial de proteção, e Javé cuida delas de
maneira singular." Portanto, o povo era convocado a cuidar do direito das viúvas e
diversas leis do Pentateuco procuravam aliviar o destino delas.14 Contudo, a queixa do
tratamento injusto recebido pelas viúvas é um tema constante nos profetas.15
A única esperança que restava de recuperar o status social para uma viúva ainda
jovem era casar outra vez. Toda a profundeza de sentimentos extraídos de sua
própria viuvez Noemi colocou em sua oração em favor das duas jovens: O Senhor vos dê
que sejais felizes, cada umaemcasadeseumarido.
A dor da separação (l:9b-14)
E beijou-as.Elas,porém,choraramemalta voz,welhedisseram:Não,iremos contigoaoteupovo."Porém
Noemi disse: Voltai, minhas filhas, por que iríeis comigo? Tenho euainda no ventre filhos, para que vos sejam
por maridos? nTornai, filhas minhas, ide-vos embora, porque souvelha demais para ter marido. Ainda quando
eudissesse:Tenhoesperança,ouaindaque estanoite tivessemaridoe houvessefilhos, ^esperá-los-íeisaté que
viessem a ser grandes? Abster-vos-íeis de tomardes marido? Não, filhas minhas, porque por vossa causa a
num me amarga o ter o Senhor descarregado contra mim a sua mão. uEntão de novo choraram em voz alta;
Órfã com um beijo se despediudesuasogra,porémRute seapegouaela.
O choro expressava a dor, e a dor era em parte um sentimento de ambivalência
de Órfã e Rute, que precisavam escolher entre o seu amor por Noemi e a sua
esperança de serem mães num segundo casamento. Inicialmente as duas se recusaram
a partir, mas, com a insistência de Noemi, Órfã foi persuadida. O raciocínio de Noemi
girava em redor da prática do casamento de levirato, que explicaremos mais
detalhadamente na seção 5. Quando um homem morria sem deixar um filho homem, o
seu irmão devia agir como "levir": isto é, tomar a viúva, a fim de gerar um filho para o
homem morto. Talvez Noemi estivesse dizendo a Rute e Órfã que não havia irmãos
vivos de Malom e Quiliom que pudessem agir como "levir" e, naturalmente, as jovens
não podiam esperar que futuros filhos seus atingissem a idade de casar! De qualquer
forma, Noemi já havia ultrapassado a idade de conceber.16
O autor pretende descrever um quadro de desesperança: Noemi está
enfatizando a completa impossibilidade de providenciar pais para os filhos de Órfã e
Rute.17 Conforme veremos, a situação estava longe de tal desespero, pois na providência
de Deus, e através da ação de um goel (um parente remidor), Rute receberia um
marido e um filho. Mas, por agora, essa esperança não estava ainda no horizonte. E
Órfã foi persuadida a partir. Ela beijou Noemi, despedindo-se dela (versículo 14), e
presumivelmente voltou a Moabe para procurar outro marido. A propriedade de
Quiliom retornou para Noemi (4:9).
A dor não era apenas das noras. Tanto o sofrimento da própria Noemi como a
sua participação na dolorosa escolha que Rute e Órfã tinham de fazer expressavam-se
nas suas palavras: "Não, filhas minhas, porque por vossa causa a mim me amarga o ter o Senhor
descarregado contra mim a sua mão." Vamos retomar a este versículo quando chegarmos a
Rute 1:21. Note-se, porém, que, apesar do sofrimento, seus pensamentos são voltados
para o benefício dos outros (por vossa causa). E, apesar do sofrimento (e até mesmo ira),
Noemi ainda se apega ao fato de que aquilo que recebeu veio das mãos do Senhor. Não
há sentimentos ocultos, não há fingimento de que não existe ira, não há qualquer gesto
estóico, nem falsas afirmativas de que tudo vai bem. Enquanto, da perspectiva de sua
fé na providência de Deus, tudo vai bem, ela certamente não se sente assim. Como o
grito de Habacuque diante de Deus por causa de seu aparente fracasso em evitar que
se levantassem os opressores caldeus,18 para descobrir depois, finalmente, que os
próprios caldeus faziamparte do propósito amoroso de Deus19 e havia, não obstante,
fundamentos para confiança na força de Deus, até mesmo alegria,20 assim também
Noemi, aqui, não esconde de Deus seus sentimentos mais profundos.
Muitos de nós até já esqueceram como se lamenta a morte de alguém. Embora
devamos nos lembrar de que a fé cristã acabou com o aguilhão da morte e que há lugar
para uma palavra gentil de compaixão em certas ocasiões ("Não chores!"21), não
devemos negar a dor da separação daqueles que perderam os seus queridos. Chegará o
dia em que a afirmação cristã da esperança de vida em Cristo se tornará a realidade
do novo céu e da nova terra, quando "a morte já não existirá, já não haverá luto, nem
pranto, nem dor";22 mas haverá momentos ainda deste lado do céu quando choraremos
e lamentaremos antes de nossa tristeza ser convertida em alegria.23
Naturalmente, a fé cristã tomou obsoleta grande parte da lamentação pública
prolongada e dolorosa pêlos mortos, o que era costume no Israel de antigamente.
Embora os crentes em Javé fossem proibidos de praticar alguns rituais da morte dos
cananeus, eles ainda ficavam, durante longos períodos, gemendo e batendo no peito
depois da morte de um ente querido.24 A parábola de Jesus sobre as crianças lamentando os
mortos quando brincavam de enterro25 indica que alguns desses costumes ainda
prevaleciam no seu tempo. Mas, embora grande parte do desespero dessa lamentação
tenha se transformado para o cristão com a morte e ressurreição de Cristo,26 ainda há uma
tristeza muito espiritual quando perdemos um amigo e quando a morte penetra em
nossa vida. Não foi por isso que Jesus chorou junto à sepultura do seu amigo?27 Em
nossa tristeza pela morte, nós, como cristãos, somos sustentados pela esperança da
ressurreição dos mortos. Mas não vamos fingir que a morte não machuca e que a tristeza
não pode ser expressada. A tristeza é uma coisa real e a sensibilidade renovada pela graça
de Cristo pode sentir-se profundamente ferida e, portanto, muito mais suscetível a revelar-
se em lágrimas.
Após o choque inicial de dor pela morte de alguém, e após o pequeno período de
serenidade forçada por causa dos outros (no funeral, por exemplo), o verdadeiro
sofrimento muito naturalmente leva a uma experiência de retorno às emoções que
alguns de nós esquecemos desde a infância. Sentimentos, às vezes de culpa, às vezes de
raiva, vêm junto com uma tensão que anseia ser aliviada com lágrimas. É depois de
passar por esta importante fase, na qual a dor pode ser expressa e chorada, que uma
pessoa pode começar a se consolidar e a edificar novamente um futuro.28 Muitos de nós
perdemos contato com os nossos sentimentos, ou esquecemos como é que se chora. Para
nós geralmente é mais difícil atingir este estágio de reconstrução. Que as lágrimas dessas
mulheres nos lembrem a importância de não esconder nossos sentimentos, ou de não
fingir que eles não existem. Maturidade implica aprender a expressar nossas emoções
apropriadamente. Noemi passou pela dor e chegou à determinação de edificar uma vida
nova no futuro.
Que Noemi também nos faça lembrar que nossos sentimentos mais profundos e
nossas ansiedades não estão ocultos de Deus. Ela delibe-radamente apresenta a ele os
seus sentimentos de maneira bem franca. Realmente, ela lança toda a responsabilidade
do seu destino nas costas de Deus! Ela agora experimenta Deus como um inimigo (cuja
mão foi descarregada contra ela). Dele foi também a mão por trás da fome e das mortes,
primeiro de seu marido e, depois, dos sevis filhos. Mas ela mantém estas amargas
experiências dentro do contexto da sua promessa, lembrando-se, e às suas noras, do seu
nome:
Javé, o Senhor.
O que significa a fé em Javé em períodos de aflição? Mais tarde voltamos os olhos
para o sofrimento e, às vezes, discernimos o bem que veio após ele. Outras vezes, não.
Frequentemente, podemos crer, o sofrimento nos confronta, mais que qualquer outra
coisa, com a transitoriedade e fragilidade de nossas vidas. O sofrimento, como bem se
vê no livro do Dr. Martin Israel, The Pain that Heals (O Sofrimento que Cura), pode nos
colocar em contato com dimensões mais profundas da vida espiritual. O sofrimento (que
o Dr. Israel chama de "a face escura" de Deus) pode ser o caminho para o crescimento e a
maturidade do caráter: dor que cura. Mas na hora não sentimos assim. Na hora, como o
testifica a experiência de Noemi, a essência da confiança, durante toda a experiência da
aflição, é nos colocarmos humildemente debaixo da mão de Deus, da qual recebemos o
golpe, na firme crença de que (apesar de todas as aparências) é a mão do Pai de amor.
"Garante-me, ó Senhor, a força de atravessar o vale da sombra da morte de modo
que, ao sair do outro lado, eu seja uma pessoa melhor, mais compassiva, mais aproveitável
por ti como testemunha e mais útil ao meu irmão como servo."29
Uma fé assim deve ter tido uma influência vital na vida de Rute.
A fé de Rute (l:14b-18)
Órfã com um beijo se despediu de sua sogra, porém Rute se apegou a ela. l5Disse Noemi: Eis que tua
cunhada voltou ao seu povo e aos seus deuses; também tu, volta após a tua cunhada. l6Disse, porém, Rute:
Não me instes para que te deixe, e me obrigue a não seguir-te; porque aonde quer que fores, irei eu, e onde quer
que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. l7Onde quer que morreres,
morrerei eu, e aí serei sepultada; faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver, se outra cousa que não seja a morte
me separar de ti. wVendo, pois, Noemi que de todo estava resolvidaaircom ela, deixoude insistircom ela.
Enquanto Órfã deu prova do seu amor na obediência ao desejo de Noemi de que
partisse para se casar novamente, Rute demonstrou o seu amor tornando-se sua filha.
Lemos que Rute se apegou a Noemi (versículo 14). Este verbo é a palavra que expressa um
"apego" fiel e sincero em um relacionamento pessoal, como o do homem com a esposa
no jardim do Éden.30 Também é usado em relação à sincera fidelidade que Deus espera
do povo da aliança em resposta à sua iniciativa da graça salvadora.31 Rute, a moabita,
ex-adoradora de Camos, está demonstrando uma qualidade de vida característica do
povo de Javé.
Apesar de Noemi citar o exemplo de Órfã e da óbvia adequabili-dade de que
Rute permaneça com o "seu povo", e apesar de que, de acordo com a sabedoria
humana, uma adoradora de Camos devesse obviamente permanecer onde os "seus
deuses" eram adorados, Rute insiste em ficar com Noemi. O nosso autor apresenta aqui
as palavras de Rute, sua clássica e bela afirmação de fidelidade, determinação e
compromisso de amor. Rute quer compartilhar do futuro de Noemi: sua viagem, seu
lar, sua fé. É a promessa de uma fidelidade sincera na vida e para toda a vida. Ou, por
que não dizer, além da vida: os membros de uma família partilhavam do mesmo chão
ao serem sepultados, pelo menos na Palestina primitiva;32 e supomos que isto também
acontecia com o povo de Rute. Como diz Leon Morris, a firme determinação de Rute
é que nada, nem mesmo a morte, vá separá-la de Noemi.33 E no centro desta expressão
de amor e compromisso para com Noemi (na viagem, no lar, na família, na vida e na
morte) está o compromisso de adorar o Deus de Noemi. Embora, num certo sentido, seja
verdade que Rute talvez pensasse que uma mudança para Belém poderia implicar a
necessidade de reconhecer "o deus de Belém",34 num outro, a sua fé mostra-se
explicitamente mais profunda. Rute está disposta a colocar nos seus lábios o nome do
Deus da aliança de Noemi, Javé, o Senhor, numa determinada profissão de fé naquele
que fundamenta o seu juramento. Faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver: esta expressão
deveria incluir um gesto invocando a punição de Javé sobre ela, caso deixasse de
cumprir o seu voto.
A fé de Noemi com certeza era tão eficaz, mesmo na adversidade, apontando
para o governo soberano de Javé, que Rute, através do testemunho de Noemi, foi
agora capaz de exercer a sua própria fé no Deus dela e de se considerar agora como
parte do povo da aliança de Javé. Não teria sido precisamente a fé de Noemi, em meio
às incertezas, que mostrou a Rute o Senhor?
Com que frequência o Senhor usa as experiências do seu povo, especialmente
em períodos de aflição e dificuldades, para atrair outros a si! Quando Moisés foi ao
encontro de Jetro, seu sogro, ele contou "tudo o que o Senhor havia feito a Faraó e aos
egípcios por amor de Israel, todo o trabalho que passaram no Egüo, e como o Senhor os livrara."
Jetro se regozijou pelo livramento cheio de graça de Deus: "Agora sei que o Senhor é
maior que todos os deuses."35
Da mesma forma, Paulo, preso sob a guarda romana, o que ele considerava
como parte de sua "incumbência"36 para com Cristo, escreve aos leitores em Filipos:
"Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm antes
contribuído para o progresso do evangelho."37 Por meio dos seus sofrimentos a igreja foi
incitada a uma renovada devoção e Cristo foi pregado.
Aqui, nesta passagem, o Senhor está atraindo Rute à fé, certamente usando como
testemunho persuasivo a experiência da graça de Noemi através da aflição. Um Deus
que se revela no vale das sombras é digno de nossa confiança também nos dias de
maior conforto.
Noemi ou Mara? (1:19-22)
Então ambas se foram, até que chegaramaBelém;sucedeuqueaochegaremali,todaacidadesecomoveu
porcausadelas,easmulheresdiziam:Nãoéesta Noemi? 20Porémelalhesdizia:NãomechameisNoemi,chamai-
me Mara; porque grande amargura me tem dado o Todo-poderoso. 2}Ditosa eu parti, porém o Senhor me fez
voltarpobre;porque,pois,mechamareisNoemi,visto queoSenhorsemanifestoucontramim,eoTodo-poderoso
me tem afligido? 22Assim voltouNoemi da terra de Moabe, com Rute, sua nora, a moabita; e chegaramaBelém
no princípiodasegadascevadas.
Quando Noemi viu que Rute estava "resolvida", firmemente determinada por
uma decisão inabalável (1:18), ela concordou, e as duas viúvas seguiram juntas para
Belém. Quando chegaram, os homens, ao que parece, estavam fazendo a colheita da
cevada, no começo da sega, isto é, em abril. Mas as mulheres (Knox as restringe a "todas
as fofoqueiras"!) começaram a fazer perguntas. Noemi estivera fora durante muitos
anos. Ela partira com marido e dois filhos, e voltava agora viúva com uma nora viúva.
Talvez sua aparência falasse da amargura que tinham experimentado. Quando lhe
perguntaram: Não é esta Noemi?, o jogo de palavras com o significado do seu nome é
comovente: Não me chameis Noemi (que significa "alegre"); antes, chamai-me Mara (que
significa "amargura"). Conforme percebemos em 1:13, ela crê que as amargas
experiências que enfrentou vieram da mão de Deus: "porquegrande amargura me tem dado o
Toâo-Poderoso."
O Todo-poderoso
O título divino traduz a palavra hebraica Shadai, geralmente usada no Pentateuco
e particularmente em Génesis. Discordam os autores sobre o significado de sua raiz,
sugerindo alguns que mais provavelmente a etimologia relacione "Shadai" com
"montanha", no sentido qualitativo de possuir durabilidade, solidez e veracidade.38
Contudo, se verificarmos o seu uso em Génesis, descobriremos três referências que
podem esclarecer o seu significado, levando-nos ao pensamento de Noemi ao usá-lo.
Primeiro, em Génesis 17:1, descobrimos que Deus fez a um Abraão de noventa e
nove anos de idade a promessa de gerar filhos, e se revela como "Deus Todo-poderoso".
Aqui ele é o Deus que pode transformar a impotência do homem em bênção, para o
bem do próprio homem e para a sua glória. Segundo, em Génesis 43:14, o velho Jacó,
em sua perplexidade, concorda relutantemente com que os seus angustiados filhos
retornem ao Egito, levando o irmão mais moço para o (até então) ainda não
identificado José: "Deus Todo-poderoso vos dê misericórdia perante o homem."
"Shadai" aqui fala da esperança da proteção de Deus para um período de incertezas. E,
terceiro, em Génesis 49:25, a profecia de Jacó sobre os seus filhos fala da futura
"fertilidade" de José apesar de todo o "embaraço", e o atribui ao "Todo-poderoso, o
qual te abençoará com bênçãos dos altos céus, com bênçãos das profundezas, com
bênçãos dos seios e da madre." Depois de treze anos de sofrimento e isolamento na
prisão, José é elevado a primeiro ministro do Egito! Esse tipo de bênção é
característico de Shadai.
E é com referência a esse aspecto do caráter de Javé descrito por "Shadai" ("o
Deus que é melhor quando o homem está na pior", como J. A. Motyer uma vez
expressou) que Noemi apresenta a estrutura de sua fé naquele em quem ela deposita o
seu sofrimento. É como se ela dissesse: "Vocês podem ver a amargura que tenho
experimentado: a fome, a perda de entes queridos, as dúvidas, as separações, o
aparente desespero; mas eu conheço Deus como Shadai, e posso deixar as explicações, e
até mesmo a responsabilidade, desta amargura com ele."
Será que ela não estava conseguindo enfrentar a realidade? Será que Noemi
estava errada em pensar assim? Será que ela estava acusando Deus do mal que
sofria, usando aquele tipo de astuta explicação mais apropriada aos inúteis
consoladores de Jó ao invés de observações que eram fruto de uma fé amadurecida?
Não nos parece assim. Antes, parece que é exatamente a chave de como uma pessoa de
fé aprende a enfrentar a dor e a incerteza das muitas tribulações da vida. Em um
mundo, no qual, da perspectiva humana, as palavras do Pregador parecem
sobremodo verdadeiras ("Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e
eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento")3'1, suas outras palavras podem
fornecer o contexto completo, a perspectiva mais ampla dentro da qual a "vaidade"
pode ser enfrentada: "não sabes as obras de Deus, que faz todas as cousas".40 É a
pessoa que conhece o seu Deus como Shadai que pode perceber a outra história: que
até mesmo a aparente falta de significado do sofrimento terreno faz parte de um
padrão da providência, e pode ser enfrentada quando colocada nas mãos de Deus. E
não apenas Shadai, pois o Deus que se revelou nessa característica é o Deus que
também declarou o seu nome ao seu povo: Javé, um nome que aponta para o seu amor
expresso na aliança. E Noemi sabe que o Shadai com o qual ela pode deixar sua
amargura é o Javé que a trouxe para casa.
Conta-se a história de um pregador que usava como ilustração os fios
emaranhados do avesso de uma tapeçaria, destacando que grande parte da experiência
desta vida "debaixo do sol", neste mundo decaído e afligido pelo pecado, em todos os
seus diferentes caminhos, geralmente nos parece ser uma confusão de cores sem relação
alguma, fios soltos e nós indesembaraçáveis. Apenas quando o outro lado da tapeçaria
se torna visível é que esses mesmos fios nos apresentam o que foi bordado: "Deus é
Amor". Talvez não vejamos o outro lado, que nós chamamos de "outra história", que
está sendo escrito ao longo e ao redor da história humana a qual nós lemos às vezes
de maneira tão dolorosa. Mas a fé é a garantia divina de que esse outro lado existe, e
de que, no seu amor, até mesmo o sofrimento tem um significado.
Este é um tema exemplificado em outras passagens das Escrituras. Quando o
salmista ficou desesperado por causa da prosperidade dos perversos e da aparente
futilidade de uma vida honesta, de modo que até a sua própria fé parecia estar sendo
tragada pela calamidade e pela dúvida, ele achou que era "mui pesada tarefa" tentar
compreendê-lo. "Até que entrei no santuário de Deus": então o homem perverso e ele
mesmo foram vistos a uma nova luz. Ele pôde, apesar da contínua incerteza,
exclamar: "Todavia, estou sempre contigo, quanto a mim, bom é estar junto a Deus; no
Senhor Deus ponho o meu refúgio."41 Davi também, no Salmo 30, chegou a "clamar" a
Deus pedindo ajuda. Ele experimentou o que chama de "ira" de Deus. Ele chora e
suplica a Deus, e descobre que até mesmo a profunda tristeza pode produzir alegria. O
visitante noturno que chega vestido de "choro" é transformado pela luz do dia em
exclamações de alegria.42
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  • 2. http://ebooksgospel.blogspot.com www.ebooksgospel.com.br ANTES DE LER Estes e-books são disponibilizados gratuitamente, com a única finalidade de oferecer leitura edificante à aqueles que não tem condições econômicas para comprar. Se você é financeiramente privilegiado, então utilize nosso acervo apenas para avaliação, e, se gostar, abençoe autores, editoras e livrarias, adquirindo os livros. * * * * “Se você encontrar erros de ortografia durante a leitura deste e-book, você pode nos ajudar fazendo a revisão do mesmo e nos enviando.” Precisamos de seu auxílio para esta obra. Boa leitura! E-books Evangélicos
  • 4. ABU EDITORA LIVROS PARA GENTE QUE PENSA AMENSAGEM DE RUTE Traduzido do original em inglês THE WINGS OF REFUGE Inter-Varsity Press, Leicester, Inglaterra ©David Atkinson, 1983 Direitos reservados pela ABU Editora S/C Caixa Postal 7750 01064- São Paulo –SP Tradução de Yolanda Mirdsa Krievin Revisão de estilo de Silêda Silva Steuernagel 1a Edição -1991
  • 5. Um típico rolo hebraico dos cinco livros de Moisés, chamados de Lei (Tora). Este exemplar, com cabos modernos, esteve em uso numa sinagoga em Jerusalém durante um período de 200 anos ou mais até ser aposentado em 1924 devido ao desgaste e desbotamento da tinta. (Foto gentilmente cedida por D. J. Wiseman.) O texto bíblico utilizado neste livro é o da Edição Revista e Atualizada no Brasil, da Sociedade Bíblica do Brasil, exceto quando outra versão é indicada. Comentários do autor quanto às diferentes versões inglesas foram, sempre que possível, adaptados às principais versões da Bíblia em português.
  • 6. Fala Hoje constitui uma série de exposições, tanto do Antigo como do Novo Testamento, que se caracterizam por um triplo objetivo: expor acuradamente o texto bíblico, relacioná-lo com a vida contemporânea e proporcionar uma leitura agradável. Esses livros não são, pois, "comentários", já que um comentário busca mais elucidar o texto do que aplicá-lo, e tende a ser urna obra mais de referência do que literária. Por outro lado, esta série também não apresenta aquele tipo de "sermões" que, pretendendo ser contemporâneos e de leitura acessível, deixam de abordar a Escritura com suficiente seriedade. As pessoas que contribuíram nesta série unem-se na convicção de que Deus ainda fala através do que já falou, e que nada é mais necessário para a vida, o crescimento e a saúde das igrejas ou dos cristãos do que ouvir e atentar ao que o Espírito lhes diz através da sua Palavra tão antiga e mesmo assim sempre atual. J. A. Motyer J. R. W. Stott EditoresdaSérie
  • 7. ÍNDICE I - As Lágrimas 1. Partindo (1:1-7) 2. Voltando para casa (1:8-22) II - Asas de Refúgio 3. G raça e Gratidão(2:1-13) 4. Um lugar na família (2:14-23) III - O Parente-Remidor 5. O levir e ogod 6. Fé em ação no amor (3:1-18) IV - A Redenção e a Alegria 7. Amor acima da lei (4:1-12) 8. Temos uma história (4:13-22) Senhor seja contigo
  • 8. Prefácio do Autor Já se passaram alguns anos desde que eu tentei, pela primeira vez, apresentar alguns sermões sobre o livro de Rute para uma congregação onde tive o privilégio de servir como pastor. Num período de sofrimento pessoal em minha própria vida e na vida de nossa família, de repente eu me vi pregando sobre Noemi e sobre como Deus ficou ao lado dela. Descobri que o Deus de Noemi também estava ao nosso lado e que, mais do que nunca, eu estava aprendendo a dar um significado muito mais rico a palavras tais como "providência" e "graça". Mais tarde, em um outro pastorado, alguns amigos também me incentivaram a apresentar parte do livro de Rute em uma reunião semanal da igreja. Naquela ocasião, a bondade demonstrada para conosco reforçou a minha convicção de que o cuidado de Deus por nós é percebido e recebido, na maioria das vezes, através do cuidado que os outros nos demonstram. Boaz é um bom exemplo de como o padrão do fiel amor de Deus para com o seu povo deve ser o padrão do nosso relacionamento uns com os outros. Nós, que vivemos deste lado da encarnação, do Calvário e da sepultura vazia, conseguimos entender o significado da graça redentora e do amor fiel com muito mais riqueza de detalhes do que o autor do livro de Rute jamais foi capaz de compreender. Ao trabalhar, mais recentemente, sobre esse livro, o que mais tem me impressionado é a profunda fé do autor e a maneira com que ele (ou ela) cria firmemente que todas as coisas se encaixam dentro dos cuidados providenciais de um Deus cheio de graça. Foi esta convicção que eu tive o privilégio de fortalecer um pouco mais em tempos de dificuldade: que, em Cristo, Deus nos dá aquilo que precisamos para enfrentar as incertezas. Isso, creio eu, faz parte do significado da fé. Que Deus use esta exposição para ajudar outros a descobrir algo mais doseucuidadoedasua graça, para que se sintam mais à vontade sob o "refúgio de suas asas". Principais Abreviaturas David Atkinson
  • 9. Introdução Providência? "É noite, está escuro e eu estou com medo." Assim diz o juiz ao padre no filme de Bergman, "O Ritual", gritando para o desconhecido todo O medo, o silêncio e a solidão de grande parte do nosso mundo desmoronado do século vinte. Em "O Sétimo Selo", outro de seus filmes, um dos personagens, buscando, talvez, uma indicação para o lignificado de algumas das questões e incertezas da vida e da morte, diz: "Transformamos em ídolo o nosso medo e o chamamos de Deus". A voz de Bergman, vinda da incerteza e do medo da vida vivida apenas dentro da perspectiva desta ordem natural, ou, quando muito, de uma perspectiva dentro da qual a questão "Onde estás, ó Deus?" parece nunca obter uma resposta, fala em nome de muitos outros nos quais uma viva fé em Deus e na sua graciosa intervenção com este mundo já se extinguiu. Seus olhos parecem perceber apenas o fluxo e o refluxo dos acontecimentos e das experiências; suas mentes não conseguem discernir qualquer padrão ou significado; eles perderam o contato (se é que chegaram a captá-lo algum dia) da mão do Deus invisível que tudo governa, que tudo planeja e cujos propósitos dão significado à história, tanto a nível mundial como individual. Ao contrário dos personagens de Bergman, a fé na providência de Deus (nome generalizado que os cristãos deram à atual atividade de Deus no mundo) está muito viva nos personagens principais e no autor desconhecido do pequeno livro de Rute. A história acontece "nos dias em que julgavam os juizes", dias em que, como veremos, a fé em Deus estava ameaçada por muita coisa "sombria" e "temível". Mas, mesmo num contexto em que a fé era desafiada, o autor insiste conosco, os seus leitores, para que tenhamos certeza da alegria na garantia da providência de Deus. Antes de examinar os detalhes do livro de Rute, vamos rever o que nós, os cristãos, costumamos entender pelo termo "providência", e destacar algumas das dificuldades que se opõem à fé nos dias de hoje. Retrocederemos, então, a um mundo totalmente diferente do nosso, à Palestina do século XI ou XII a. C., "nos dias em que julgavam os juizes", e descobriremos que, de certa forma, os desafios à fé na providência de Deus naquela época não eram tão diferentes dos desafios de hoje. O significado de "providência" é bem expresso pêlos cristãos de um período anterior ao nosso: Deus, o grande Criador de todas as coisas, realmente sustenta, dirige, predispõe e governa todas as criaturas, ações e coisas, desde a maior até a menor, através de sua
  • 10. sapientíssima e santíssima providência, de acordo com a sua previsão infalível e com o livre e imutável conselho de sua própria vontade, para o louvor e a glória de sua sabedoria, seu poder, sua justiça, sua bondade e sua misericórdia.1 Ou, atualizando um pouco a linguagem, os cristãos acreditavam que Deus não apenas criou o mundo, de modo que nós, como criaturas suas, dependemos dele para a nossa existência, mas também sustenta e governa o seu mundo, de forma que dependemos constantemente dele para recebermos "vida, respiração e tudo o mais".2 Neste ponto talvez convenha estabelecer uma diferença entre a atividade criadora e sustentadora de Deus, por um lado, e, por outro, a sua providência geral e especial (com as quais lidaremos de forma especial no livro de Rute). Alguns autores usam a palavra "providência" como sinónimo da atividade de Deus ao orientar e governar a ordem das coisas que criou.3 Neste sentido, como observa Michael Langford, a providência já é parte integrante da ideia cristã da criação. "Dentro da própria noção do universo criado já temos a ideia de uma ordem que tem suas próprias leis, sua própria causalidade e sua própria independência relativa."4 Semelhantemente, os cristãos falam da atividade sustentadora de Deus como sendo a mantenedora dessa espécie de ordem, dentro da qual acontecem as mudanças e o progresso na criação. Assim, num sentido mais amplo, "providência" inclui também a atividade mantenedora de Deus. Contudo, é geralmente num sentido pouco mais restrito que se usa o termo "providência", ou seja, para descrever "o governo ou a direção da natureza, do homem e da história".5 É neste sentido que usaremos o termo quando estivermos tratando do livro de Rute. Muitos autores cristãos aconselham estabelecer uma diferença entre providência geral e providência especial. A primeira "refere-se ao governo do universo através de leis universais que controlam ou influenciam o mundo sem a necessidade de atos específicos ou ad hoc da vontade divina".6 A providência especial, por sua vez, trata de acontecimentos específicos que são entendidos pelo homem de fé como evidências particulares da atividade de Deus. "Providência", assim, indica um modo especial de interpretar os acontecimentos e a natureza, o homem e a história. A bem da clareza, convém distinguirmos entre "providência" e "milagre", que se refere especificamente a uma exceção irrepetível de uma lei da natureza que, em circunstâncias normais, seria demonstrável. "Providência", pelo contrário, é "o governo ou a direção da natureza, do homem e da história; não é a manipulação destas ordens com a introdução de fatores causais que levariam à mistificação dos cientistas".7 A fé na providência reconhece a dependência criada do mundo e também a sua eventualidade, isto é, Deus poderia ter criado o mundo de maneira diferente. A "providência" reconhece tanto a soberania de Deus no mundo quanto a liberdade do homem de viver de maneira responsável dentro dos limites estabelecidos por Deus. "Para os cristãos, o mundo e a história não são essencialmente significativos por si mesmos, mas têm a ver com Deus e os seus propósitos".8 Toda interação de Deus com o seu mundo (seja escolhendo Abraão para ser o pai de uma nação ou estabelecendo sua aliança no Sinai; sejam os acontecimentos do nascimento, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo ou o estabelecimento da igreja cristã e o derramamento do Espírito Santo, ou seja a experiência contemporânea dos cristãos), tanto a nível global como pessoal, está alinhada com o seu propósito geral para a criação, "de compartilhar sua vida, amor e glória com uma outra realidade sobre a qual ele seria o Senhor".9 Esse Deus, assim crêem os cristãos, revelado em Cristo e comprovado nas Escrituras, existe; ele se importa, ele
  • 11. governa, ele provê. Em tal visão de Deus há extremos que devem ser evitados. O deísmo, por exemplo, separa Deus totalmente do seu mundo: ele o criou, afirma, e agora o mundo tem que seguir o seu próprio curso. O panteísmo confunde Deus com tudo o que ele criou. A fé cristã, contrastando com estes dois extremos, entende que Deus é um ser isolado e maior que a sua criação, mas está intimamente envolvido com ela em cada acontecimento. De igual forma, ao contrário da noção epicurista de que o mundo não passa de um acidente do acaso (um ponto de vista ainda largamente defendido),10 e também da filosofia estóica de que nos encontramos nas mãos de um destino cego, os cristãos crêem que o Deus Criador, vivo, pessoal, racional, santo e amoroso, sustenta e governa o seu mundo. Tal fé na providência de Deus provê um firme ponto de apoio a partir do qual podemos procurar entender o mundo. Para nós, as glórias e as tragédias dos acontecimentos nacionais e globais ou as alegrias e sofrimentos da vida familiar quotidiana não têm significado apenas dentro da história humana ou da biografia pessoal. Seu verdadeiro significado faz parte do propósito de um Deus que se revelou como amor e santidade, como pessoal e infinito, como Criador e Redentor, como sustentador e governador. Desta forma as alegrias humanas são enriquecidas, e as incertezas da vida são colocadas no contexto de uma fé com a qual se pode enfrentá-las. A "providência" diz que Deus está conosco, que Deus nos ama, que Deus governa e que Deus provê. É a fé nesse Deus que orienta cada capítulo do livro de Rute. Desafios à fé Uma fé como a que descrevemos sofre a ameaça de muitas pressões que isolam, confundem e dão medo, na vida deste nosso século. Ou, quem sabe, deveríamos dizer que a doutrina da providência tem sido negligenciada. Comparemos nossas atuais atitudes com o que J. H. Newman disse há cem anos atrás: "O que as Escrituras exemplificam acima de tudo, desde a primeira até a última página, é a providência de Deus, e esta é quase a única doutrina sustentada de comum acordo pela maioria" das pessoas religiosas.11 O nosso século, além de ter passado por guerras mundiais de imensa destruição e de experimentar crescentes pressões para que aguarde e se prepare para mais uma, também tem sido angustiado por enormes questões apocalípticas que ameaçam alterar toda a noção do que significa ser humano. O sacrifício de crianças entre os cananitas parece nada em comparação com a matança, em escala sem precedentes, de crianças que nem chegam a nascer, nos dias de hoje. Além disso, embora se reconheçam as inúmeras pressões sociais que há por trás dos muitos pedidos de interrupção de gravidez, o aborto geralmente é discutido apenas em termos de "direitos" e "benefícios" dos que já nasceram. Isto tem desencadeado um profundo efeito em nossa consciência social com referência ao que tradicionalmente se tem ensinado como "santidade" da vida. Muitos argumentos a favor do aborto levam logicamente à justificação do infanticídio. Cresce cada vez mais a pressão para que se aplique aos idosos a chamada "morte com dignidade" e para que se negue a vida a algumas crianças que nascem com defeitos. Centenas de milhares de pessoas do nosso mundo morrem de fome devido à negligência da conhecida fartura do Ocidente, e porque os chamados "poderes" preferem usar os menos privilegiados como joguetes políticos em vez de se disporem a resolver os problemas através de uma justa
  • 12. distribuição da rica fartura da terra de Deus. Tudo isto e muito mais traz à tona a questão que os cristãos costumam proclamar: que cada pessoa é preciosa porque foi criada "à imagem de Deus". A disponibilidade da tecnologia para o controle da natalidade (que, como qualquer outro benefício é passível de abusos), aliada aos meios de comunicação e outras pressões que apoiam a chamada "permissividade", contribui de maneira crescente para uma total separação entre os aspectos unitivos e procriativos da relação sexual, e entre a relação sexual e o casamento heterosexual, desafiando assim o pensamento tradicional cristão quanto ao significado da masculinidade e da feminilidade.12 A crescente promessa do que podemos fazer na pesquisa científica e biomédica, sem a ideia correspondente do que temos o direito de fazer;13 o poder de que dispõem os monopólios multinacionais para tragar os interesses e os direitos dos indivíduos; tudo isto, a seu próprio modo, apresenta a questão: "O que é o ser humano?" E o flagelo do racismo ameaça com violência e guerra em muitos lugares. G. C. Berkouwer escreveu: O século vinte, emboraproduzindo muita coisa boa, não permanecerá para sempre como o século dos campos de concentração e dos pogroms, da guerra e do ódio, do ataque contra a dignidade da própria humanidade? E não devemos suspender a respiração diante doque está por vir?14 E, então, ele pergunta, com razão: Será que o evangelho tem algum significado e valor para a nossa época? Será que a igreja tem a coragem e o direito de pregar o Deus vivo no meio deste mundo sem sentido?15 Para muitos o ateísmo parece ser a única conclusão lógica e per-missível diante da evidência de nosso tempo. Concluindo esta discussão, podemos isolar três fatores específicos que têm desafiado a fé na providência de Deus: outros deuses, uma cultura dividida e o problema do mal. Outros deuses Não se trata apenas de que "o homem moderno não crê na realidade de Deus", mas, expondo de maneira mais positiva, que "um ateísmo cultural cada vez maior" constitui de fato a fé deste século.16 Esta fé, o secularismo, reflete uma ideia do homem como senhor total do seu próprio destino, das coisas materiais como a fonte primeira dos valores, e da ordem natural como abrangendo toda a realidade. O homem como centro dos relacionamentos humanos, o materialismo nos valores humanos e a crença de que este mundo é o fim de todas as coisas — eis aí as características da fé do homem moderno. Portanto, "cornamos e bebamos, que amanhã morreremos". É verdade que, ao lado desta fé, há sempre a expressão do desejo de conhecer o significado da "noite", das trevas e do medo: "Morremos apenas uma vez e por tão longo tempo." Mas o que realmente domina o nosso mundo é "o ateísmo cultural cada vez maior", e estes outros deuses (humanismo, materialismo, naturalismo) representam um forte desafio à ideia cristã da providência de Deus. Uma cultura dividida O crescimento da ciência moderna, o seu desenvolvimento no cientismo (a ideia de
  • 13. que a ciência tem a chave paratodo o conhecimento)e as realizações da tecnologia moderna têm sido, para muita gente, as pontes para a falta de fé em Deus. Como a "Natureza" (uma palavra que antes tinha implicações dos propósitos de Deus para o mundo natural) passou a ser identificada com as "causas naturais", já não mais oramos pelo "pão nosso de cada dia", mas, em lugar disso (e não além disso), esforçamo-nos no cultivo da lavoura e na eficiência da arte de fazer pão. Ainda que Addison cresse que O espaçoso firmamento no alto, Com todo o céu azul etéreo, E o firmamento salpicado de estrelas, Proclamam sua grande Origem,17assim como cria o salmista ("Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos"),18 nós sabemos muito mais. Os buracos negros, os gigantes vermelhos, os duendes brancos e os programas espaciais de milhões de dólares fazem com que a "Grande Origem" pareça um tanto arcaica, além de improvável. E há muitos cuja compreensão cada vez maior do universo vem acompanhada, não de um profundo senso de adoração, mas de um profundo ceticismo. Steven Weinberg, autor de The First Three Minutes (Os Três Primeiros Minutos), conclui: "Quanto mais compreensível parece o universo, tanto mais parece igualmente sem sentido."19 Embora, naturalmente, muitos membros da comunidade científica estejam alertas às limitações do método científico, ou, melhor dizendo, ilo próprio lugar da questão do conhecimento humano nos processos da ciência,20 bem como às questões éticas que as possibilidades tecnológicas levantam cada vez mais,21 a nossa cultura ficou soterrada pela aparente irrelevância de Deus para a nossa mentalidade e moralidade modernas.22 Isto se aplica à maneira como encaramos os assuntos globais e nacionais, como também à forma como organizamos nossas prioridades familiares. Mesmo entre os cristãos, a "mentalidade cristã"23 desapareceu quase por completo, e muitas decisões éticas são tomadas com base num hedonismo cristianizado ("Se assim nos sentimos tão bem, só pode ser a vontade de Deus!"), ou um utilitarismo cristianizado (que mede "o que Deus quer" apenas pela quantidade de "benefícios" que produz). Em seu livro God Alive (Deus Vivo), o Bispo Leonard escreve acertadamente que "não é exagero dizer que o cristão comum de hoje vê a religião principalmente em termos da ajuda que Deus lhe pode dar neste mundo, com uma vaga expectativa em relação ao mundo vindouro, e não como um relacionamento criativo e ativo com Deus; um relacionamento que tem implicações confessionais para esta vida, mas que se concretiza na eternidade. Falando de maneira franca, é uma atitude que olha para Deus em termos de sua utilidade e não como um objeto de adoração e amor".24 Um "positivismo utilitário" (que se concentra principalmente em observar os fatos que lhe são úteis) está se tornando cada vezmais um ponto de vista dominante da natureza da ciência. Mas continua sem resposta a pergunta se a ciência, seccionada de suas raízes na tradição cristãdentro da qual ela nasceu,25 pode permanecer sem se diluir em algo que não passe de uma tecnologia secularizada na qual os lucros se tornaram mais importantes do que a verdade.26 Além disso, em certos trabalhos científicos, por exemplo nos bebés de proveta, parece que também ouvimos a variante da canção do pesquisador: "Parece tão certo que não pode estar errado." Em tal ambiente, não nos surpreende que tenha ocorrido uma divisão esquizofrênica: os aspectos "religiosos" da vida ficaram separados do mundo de cada dia. Vemos isto, às vezes, no voo místico das experiências religiosas subjetivas que podem perder de tal forma o contato com o solo objetivo da fé que se tornam emocionalmente
  • 14. equivalentes a outras experiências que intensificam as nossas per- cepções, exceto que usam a linguagem religiosa para descrevê-las. Às vezes, a divisão se percebe no piedoso afastamento do "mundo", considerado um lugar ruim, para um ambiente "mais puro" de interesses "espirituais" e para uma fé pessoal que é apenas individual. No voo rumo ao subjetivismo vemos como a ênfase na experiência por amor à experiência é separada (ou privada) de uma compreensão da verdade divina como revelação objetiva. No pietismo geralmente há uma reverência paracom a palavra de revelação divina e, ao mesmo tempo, também a imposição de uma divisão, estranha à mentalidade da Bíblia, entre o mundo do espírito e o mundo de cada dia, frequentemente com linhas de "separação" traçadas por uma convenção arbitrária ou pela tradição. Esta divisão cultural, que separa a "religião" da questão principal da história e da ciência, representa uma ameaça à compreensão unificada de vida e de mundo que era possível, e ainda é, através da crença na providência de Deus. O problema do mal Sem dúvida, a maior ameaça à fé na providência de Deus é a realidade do mal em nosso mundo. Não apenas os campos de concentração e os pogroms, mas também a dor do luto, as manchetes sobre mais uma seca ou um furacão devastador, a cruel desigualdade de oportunidades e prosperidade em diferentes partes do mundo, o câncer do nosso vizinho, tudo isto levanta a pergunta: "Onde está Deus?" Como, num mundo onde tanto mal parece não ter sentido, podemos continuar acreditando na manutenção e no governo providencial de Deus? Para o crente cristão, parte do significado da fé é que é o dom de Deus que nos capacita a enfrentar as incertezas e a aparente falta de significado (que o Pregador chamou de "vaidade")27 de grande parte da história deste mundo desmoronado. Mas imaginar que essa fé nunca se sente ameaçada pela maldade do homem para com o homem, ou pêlos azares da "natureza", é superproteção bem-avenrurada ou estupidez obstinada. Há, deste lado do céu, muitas coisas cujo significado encontra-se escondido no mistério de Deus. Há muitas experiências que muitos de nós teríamos preferido não atravessar. Embora grande parte do mal possa ser entendida em termos do abandono pecaminoso, por parte do homem, dos padrões de vida que, como ensina a fé cristã, personificam a vontade de Deus, há muita coisa que não tem explicação ou causa humana. A nossa fé na providência de Deus deve ser suficientemente grande para enfrentar estas incertezas, como também para lidar com os sentimentos dolorosos e às vezes amargos que elas j;oram. Conforme veremos, os personagens do livro de Rute também tiveram de enfrentar incertezas. Descobriremos também como, para eles, a fé em Deus foi um dom que ajudou a enfrentar tudo. "Nos dias em que julgavam os juizes" Os detalhes da vida do século XX diferem de tantas formas dos dias da Palestina do século XI ou XII a. C. que abrir o livro de Rute no contexto desse período dos juizes de Israel é como andar em outro mundo. Mas os crentes em Javé, o nome pelo qual eles foram convidados a conhecer o seu Deus,28 estavam eles mesmos enfrentando um período de desafios sem precedentes à sua fé. Israel passara por anos de sublevações. Conforme criam, no êxodo o seu Deus os havia libertado da escravidão no Egito. Depois dos anos no deserto, ele os preservara
  • 15. através das guerras da conquista e os introduzira na posse da terra prometida. Mas a confederação das tribos de Israel estava mal estabelecida na fé. O povo de Deus, agora em Canaã, lutava para se ajustar a um estilo de vida rural e para se tornar uma nação. B. W. Anderson chama isto de "luta entre a fé e a cultura".29 Usando títulos similares aos que usamos para os nossos tempos, podemos separar as principais pressões exercidas sobre o crente israelita pelas tentações da cultura cananita que o rodeava. Outros deuses Como os povos de hoje, os cananeus da antiguidade estavam absorvidos pela busca do segredo da prosperidade. Como fortalecer a economia? Como garantir empregos para todos? Como prover um salário adequado às necessidades e à manutenção dos padrões de vida? Considerando que sua economia era predominantemente agrícola, sua busca da prosperidade focalizava a necessidade de uma terra fértil que desse colheitas abundantes e rebanhos férteis, e de um casamento fértil que produzisse, no devido tempo, trabalhadores e herdeiros para a fazenda. A religião era, segundo pensavam, a chave da prosperidade. Apenas Deus podia criar a fertilidade, e particularmente o deus Baal, que significa "senhor", ou "dono". Baal era o nome de sua divindade masculina. Na crença cananita, ele era o dono da terra e controlava a sua fertilidade. Sua companheira feminina era Astarte (pi. Astarote).30 Baal e Astarte eram entendidos como divindades cósmicas que habitavam nos céus e também eram associados a localidades particulares. O ciclo regular da naturezae a fertilidade do solo, a nova vida da primavera seguindo-se à esterilidade do inverno, eram devidos às relações sexuais entre Baal e sua companheira. O homem não era um simples espectador deste casamento dos deuses. Era extremamente importante que os deuses não se esquecessem disso, e a técnica empregada para lembrá-los constante-mente das necessidades da terra era a "mágica imitativa". As pessoas realizavam, na terra, atos equivalentes àqueles que desejavam que os deuses realizassem nos céus. Por este motivo, os santuários de Baal, geralmente localizados nos altos desnudos das montanhas para terem mais chances de serem vistos pêlos deuses, eram cenários de ritos sexuais orgíacos. Homens e mulheres se alistavam no serviço do deus e copulavam livremente com os adoradores femininos e masculinos. Tal religião parecia atraente a Israel, que acabara de se envolver com um estilo de vida agrícola. Como Anderson observa,31 não nos surpreende que os israelitas, não acostumados com a agricultura, se sentissem tentados a buscar os deuses da terra. Naturalmente, namente israelita, a fertilidade da terra e a prosperidade entre o povo faziam parte das bênçãos prometidas e associadas à aliança que Javé fizera com eles e suas famílias. O desfrute dessas bênçãos da fertilidade e da prosperidade estava ligado às obrigações da aliança que o povo tinha com Javé, de viver em obediência responsiva à vontade deste. Tal princípio, engastado talvez de maneira mais clara na bênção e nas maldições do capítulo 28 de Deuteronômio, é o padrão da aliança desde os primeiros dias: "Eu serei vosso Deus; vós sereis o meu povo."32 "Se ouvires a voz do Senhor teu Deus, virão sobre ti e te alcançarão todas estas bênçãos."33 Mas a fascinação dos outros deuses era forte. Hoje, a atração não se encontra na mágica imitativa parasacudir a memória de Baal. É, antes, o engano da crença vã de que "as leis económicas", "as políticas monetárias", "o comércio livre", "a nacionalização", ou seja lá o que for, vão por si mesmos gerar prosperidade, se nos submetermos a eles e os adorarmos. Com muita facilidade nos
  • 16. esquecemos de que a santidade obediente em atender o que sabemos ser a vontade de Deus será sempre o fator principal da força, da harmonia e da prosperidade social. Conforme comentou Len Murray, na reedição do livro de William Temple, Christianüy and Social Order (Cristianismo e Ordem Social): "É um constante lembrete da verdade das palavras de R. A. Butler, que 'se não for tocada pela moralidade e pelo idealismo, a economia é uma atividade árida e a política é inútil'".34 Se em lugar de "moralidade" colocarmos "santidade" e, em vez de "idealismo", "interesses espirituais", a questão fica ainda mais incisiva. Os problemas fundamentais que jazem no âmago da vida nacional não são económicos ou políticos, mas espirituais: ou seja, a falha em perceber que a adoração da economia ou da teoria política é uma idolatria que nos cega em relação ao Deus vivo. Assim como nos dias em que os juizes julgavam, também hoje a fé na providência de Deus não pode andar confortavelmente de mãos dadas com a fascinação pêlos outros deuses. Uma cultura dividida Muitas vezes, a religião tem sido usada para manter o status quo.ss Para aqueles que têm conforto, a religião pode ser facilmente invocada como sanção divina para que continuem vivendo no conforto. E o adorador de Baal não era exceção. Para ele, a religião, com seu interesse central focalizado na fertilidade, servia para preservar e intensificar o ciclo perpétuo da natureza. O alvo dos deuses era preservar a ordem estabelecida; a religião, portanto, tinha um interesse de mante-la. O adorador de Baal, através de sua mágica imitativa, procurava controlar os deuses para esse fim. Mas isso não acontecia com o israelita que conhecesse Javé! Javé se revelara na história, no acontecimento único do êxodo e no estabelecimento de sua aliança. Javé é o Deus vivo que se revela na ação como o Senhor da história, e cujo envolvimento nos processos comuns da vida humana constitui um constante desafio ao status quo com um convite à obediência renovada, crescimento em santidade, justiça e amor. Não vamos imaginar que o crente israelita tentasse desvirtuar a vontade de Javé! O povo da aliança de Javé buscava servir ao seu Deus em obediência cheia de gratidão e sensibilidade. Na verdadeira espiritualidade israelita, a fé religiosa e a vida moral estavam inseparavelmente unidas. Um exemplo claro é a maneira como o nome de Deus ("Eu sou o Senhor") perpassa, nas prescrições éticas naturais do Código Santo,36 por cada aspecto da vida doméstica, social, económica e agrícola, como também da religião e do culto. Sendo Deus o que ele é ("Eu sou o que sou"), cada aspecto da vida ética envolve para o israelita uma aplicação da natureza de Deus à situação humana. Descrevendo os pontos altos da espiritualidade israelita, H. H. Rowley observa: A vida benéfica ... conforme nos é apresentada no Antigo Testamento, é a vida que é vivida em harmonia com a vontade de Deus e que se expressa na vida diária em reflexo do caráter divino traduzido em termos de experiência humana, que extrai a sua inspiração e a sua força da comunhão com Deus na confraternização do seu povo e na experiência particular, e que sabe como adorar e louvá-lo em público e também na solidão do próprio coração.37 Contudo, nos dias em que os juizes julgavam, as pessoas que tinham fé ficavam tolhidas na tensão entre a vontade de Javé, que eles sabiam terrelevância para cada área da
  • 17. vida, e a ordem social vigente, com o seu ciclo de padrões da vida agrícola. O povo estava rodeado pela religião de Baal. Parece que esta tensão às vezes se comprovava pela tentação de deixar Javé mais à vontade, deixando-o agir em apenas um cantinho da vida e sendo, nos demais aspectos, abertos aos métodos mais naturalistas do culto a Baal. Esta tendência de manter o culto a Javé e a Baal lado a lado é expresso por B. W. Anderson desta forma: "Para Javé eles olhavam nos períodos de crise militar; para Baal, voltavam-se para ter sucesso na agricultura."38 Como é fácil relegar Deus a apenas determinadas áreas de nossos interesses! Este, porém, é o primeiro passo decisivo para a divisão cultural, que já mencionamos antes, na qual o verdadeiro significado de Deus e da vida humana se perde na fuga rumo ao subjetivismo e ao pietismo. Existe, realmente, uma verdadeira "separação" para o povo de Deus, mas não em termos de divisão entre o "sagrado" e o "secular", sendo que os interesses de Deus se encaixam no primeiro. Isso, infelizmente, foi exemplificado pela observação do Lorde Melbourne, Primeiro Ministro da Rainha Vitória, depois de ouvir um pregador evangélico, ao dizer que se a religião interfere com os negócios particulares da vida, isso já é demais!39 Não, para o povo de Deus a verdadeira separação é a sua característica de povo chamado para formar a família da aliança de Deus, perceptível em suas reações corporativa e individual, de santidade obediente a Deus e de serviço prestado ao próximo, expresso em cada área da vida e dos relacionamentos humanos. A fé na providência de Deus e no seu ativo envolvimento em toda a vida não dura muito tempo quando Deus é mantido "guardado" em um canto, enquanto esperamos para ver o que Baal tem a oferecer. Oproblemadomal Não devemos imaginar que o período dos juizes foi totalmente sem fé! Se houvesse tempo, o escritor de Hebreus teria desenvolvido mais a rápida citação que fez da fé de Gideão, Baraque, Sansão e Jefté.40 Longe de serem homens perfeitos, é verdade, mas homens que conheciam o seu Deus e que, à sua própria maneira, demonstraram a realidade de uma fé viva. Eles trouxeram um pouco de liderança e orientação a um povo confuso e ameaçado por novas circunstâncias. Mas isto foi convulsivo e passageiro, e não houve estabilidade duradoura. Foi também um período de grande maldade. A apostasia do povo provocou o castigo de Deus.41 Os homicídios e a guerra, os estupros e os saques faziam parte da ordem do dia. A poli rica inimiga da devastação da terra42 acabou com a economia agrícola. A segunda parte do livro de Juizes43 descreve um quadro sinistro de inquietação civil e de violência, de desintegração social, de imoralidade sexual, de agressões e de guerras. As pessoas que tinham fé entendiam isto em termos do juízo de Javé por causa do fracasso do povo em viver segundo a justiça de Javé. "Naqueles dias não havia rei em Israel: cada um fazia o que achava mais reto."44 Mas como Deus podia permitir este mal? Onde ficavam agora as bênçãos da aliança?Como podiam terfé na providência de Deus? Será que ele ainda se preocupava com cada aspecto da vida? Tais perguntas deveriam se esgotar facilmente na mente daqueles cujo destino se resumia simplesmente em acatar o mal aparentemente sem fim. A atração exercida pêlos outros deuses e a tentação de desligar os interesses de Javé da vida quotidiana; o caos social, a miséria pessoal e a dura experiência do juízo divino: é
  • 18. isto que caracteriza de maneira especial "os dias em que julgavam os juizes". A abrangência do l;vro de Juizes é imensa (lutas nacionais e internacionais) e o ambiente é sombrio e difícil para quem crê na providência de Deus. O livro de Rute É na escuridão dessas questões que reluz o livro de Rute.45 Embora tenha sido escrito bem depois dos acontecimentos descritos,46 o autor coloca a história "nos dias em que julgavam os juizes".47 É uma história de encanto e deleite. De acordo com A. Weiser, Goethe a chamou de "a mais bela obra completa em escala reduzida, que nos foi dada como um tratado ético e um idílio". Ele também cita o veredito de Rud. Alexander Schroeder: "Nenhum poeta do mundo escreveu um conto mais belo."48 O livro de Rute é uma história sobre gente muito comum que enfrenta acontecimentos muito comuns. Aqui vemos Noemi, que passou por muitas dificuldades, fome e perda de entes queridos, mas que finalmente encontrou paz e segurança. Encontramos Rute, a moça estrangeira de Moabe, que se apegou à sua sogra Noemi e ao Deus desta, recebendo a sua bênção. E encontramos Boaz, o parente afim de Noemi, que foi bondoso para com Rute e Noemi e que, casando-se com Rute, entrou no propósito de Deus para a história: história tão significativa que o grande rei Davi49 e, portanto, o próprio Senhor Jesus Cristo,50 encontram-se entre os seus descendentes. Das muitas genealogias apresentadas no Antigo Testamento, sabemos que até o período de Cristo os crentes em Javé preservavam a árvore genealógica através de séculos de sua história. É sobre essa tradição que o nosso autor se apoia. Conforme comentário de G. A. F. Knight, "não temos motivos para duvidar que houve uma Noemi que realmente foi a Moabe com o marido e os dois filhos."51 Estamos, segundo consta, lidando com uma história real. Como todo historiador, o autor do livro de Rute selecionou, dentre todos os acontecimentos, aqueles que melhor serviam aos seus propósitos de escritor. Quais eram exatamente estes propósitos tem constituído um assunto para discussão entre especialistas do Antigo Testamento. Há muitos que pensam que o livro foi escrito depois do exílio, como reação aos aparentemente rígidos pontos de vista de Esdras e Neemias, que faziam o povo de Deus lembrar sua exclusividade; aqueles que se casaram com estrangeiros foram chamados de volta à fé dos seus pais, na qual tais casamentos mistos eram banidos.52 Alguns dos que tinham feito tais casamentos agora tinham filhos. "Teria sido o clamor de algum desses filhos", pergunta Knight,53 "que levou um escritor totalmente desconhecido (talvez até uma mulher) a escrever este pequeno livreto que nós intitulamos de Livro de Rute?" Essa explicação é atraente, pois Esdras parece ter estendido a proibição legal contra o casamento com os cananeus54 também ao casamento com moabitas, amonitas e egípcios. E Rute era moabita. Se o grande rei Davi é descendente de um casamento misto com uma moabita, Esdras não estaria sendo demasiadamente estrito anulando tais casamentos? Mas55 a proibição legal da Tora contra o casamento misto com os cananeus era uma proteção contra a idolatria, e a extensão da preocupação de Esdras para com outras nações idólatras era adequada, especialmente no novo ajuntamento dos israelitas exilados novamente como nação. Afinal, os moabitas eram proibidos pela lei de entrar na congregação.56 Portanto, dizem alguns, talvez o livro de Rute fosse um tratado contra
  • 19. essas disposições da Tora. Mas tudo isso coloca a composição de Rute numa data muito tardia, com o que não concordamos. E parece muito difícil discernir uma intenção tão polémica na história. Rute realmente não parece ser um tratado político. Outra sugestão é que o livro de Rute foi escrito muito antes do período de Esdras, durante ou pouco depois da época do próprio rei I Davi. (Há uma tradição rabínica que diz que o autor foi Samuel, mas dgora ninguém usaria tal argumento.) Uma data assim tão precoce, talvez do tempo de Salomão, explicaria a conclusão, de outra forma um tanto surpreendente, do livro com uma genealogia que leva ao próprio rei Davi. Não há motivos textuais para considerarmos a genealogia como adição posterior. Seria uma história tradicional que foi então registrada junto com outra literatura sobre o grande rei? Ou teria sido a história de Rute escrita deliberadamente a fim de prover uma ilustração e definição para o conceito de "redenção"? No decorrer da história são-nos apresentadas as diversas práticas legais do antigo povo de Israel relacionadas com os deveres da família e os direitos de propriedade. Vamos gastar algum tempo examinando o significado do levirato (concernente aos costumes matrimoniais quando o homem da casa morria) e especialmente do goel (o "parente remi-dor"). Eles apontam para a ideia israelita da redenção, da terra e do povo. Mostram como a lei era interpretada e em que espírito de amorosa generosidade ela era aplicada. E, diversas vezes, as características do povo nesta história combinam com o que ele cria sobre o caráter de Deus. Seria para expressar sua ideia sobre a graça redentora de Javé que o escritor selecionou esta história em particular, tratando especialmente destes temas? Rute certamente permanece em notável contraste com a severa e legalista adesão aos códigos da lei que colocam a lei de Deus fora do contexto da aliança de Deus, e que reduz a fé viva a um moralismo frio. Ou será que o livro de Rute foi simplesmente escrito para contar, numa história de grande beleza, os acontecimentos que envolveram as perdas de Noemi e o casamento de Rute, talvez para incentivar virtudes tais como o amor e a fidelidade nos relacionamentos familiares? Não conhecemos o propósito exato do nosso autor. Mas o que está claro é que, através de sua leitura, aprendemos algo da vida rural do século XI ou XII a. C. na Palestina, a rotina do dia-a-dia, a necessidade do trabalho, as alegrias familiares, a dor da morte, a separação dos parentes, o relacionamento com a sogra. E, na ilustração de pureza, inocência, fidelidade e lealdade, dever e amor, o escritor deseja que os seus leitores percebam a mão de Deus, que cuida, sustenta e provê. Gastamos muito tempo observando que a história foi colocada no período dos juizes. É como se o autor quisesse que soubéssemos que houve um outro lado da vida na época dos juizes. Certamente houve os grandes líderes carismáticos de Juizes 4-16, com seu sucesso inter-t mi tentee seu fracasso geral em proporcionar estabilidade e segurança ao povo de Deus. Houve igualmente a apostasia, violência, imoralidade e guerra civil de Juizes 17 - 21. Mas não havia fé: fé viva na providência cheia da graça de Deus, que enriquecia e satisfazia. Talvez o autor conte a história dessa forma para destacar o fato de maneira especial e para reacender esse tipo de fé em seus leitores. Com uma fé assim, o nosso escritor apega-se a um valor da vida humana que é precioso para Deus e para os outros e a uma compreensão dos propósitos de Deus em seu mundo, transcendendo as barreiras raciais, e a um prazer no envolvimento do Todo-
  • 20. Poderoso com os problemas de uma família comum que ora pelo seu pão de cada dia. Procurando acompanhar a fé do autor na providência de Deus, descobrimos a segunda história (a perspectiva divina) que permeia a história humana, e aprendemos hoje, quando muitos têm medo "da noite e das trevas", que o Deus de Israel quer ser conhecido como o nosso Deus. Vivendo, como vivemos, do lado de cá do Calvário e da sepultura vazia, com o conhecimento que temos da encarnação e da ascenção do Senhor, podemos dar à expressão "parente remidor " um significado muito mais completo do que Noemi, Rute ou Boaz foram capazes de entender. Mas nós, à nossa moda, podemos compartilhar com eles do conhecimento de que "sob suas asas", nos sofrimentos e nas alegrias do nosso dia-a-dia, podemos encontrar a segurança do seu "refúgio".57 Densas trevas envolvem o meu ser. Sozinha. Com medo. Minha mente é um sorvedouro voltado para dentro na direção de uma eternidade de sofrimento intolerável. Eu costumava estender a mão nas trevas desconhecidas com esperança. Mas minha alma foi arrancada de mim, e eu já não tenho mais esperança. Foi como um poço. Profundidade insondável. Humilhação tortuosa. Apenas o som de minhas lágrimas na impenetrável escuridão. Eu me lembro desse poço, e do medo, e da desesperança de uma eterna agonia da mente, e da peregrinação cruel no deserto inexplorado. Agora eu me encontro neste oásis, neste porto inesperado, neste refúgio. Eu não mereci esta graça de ser arrancada daquelas profundezas todo-poderosas. Eu não tinha esperanças, mas quando voltei pelo caminho que trilhava, vi uma mão cheia de graça e um sorriso amoroso. Eu vi uma luz orientadora e senti uma asa protetora. Aninhando-me no seu calor, meu coração gelado se derreteu. A negrura de minha alma desabrochou em milhares de flores.
  • 21. Minhas lágrimas se transformaram em jóias, e minha amargura em mel. Mas eu me lembro do poço. Mantém-me, ó Senhor, Segura no refúgio das tuas asas. Elisabeth PARTE I AS LÁGRIMAS
  • 22. 1:1-7 1. Partindo Preocupação com as coisas comuns (1:1) Nos diasem que julgavam osjuizes ...um homem. Em um mundo dominado (se acreditarmos nos meios de comunicação) pela "crise" e pêlos "desafios", no qual cada pequeno acontecimento pode ser transformado em manchete, contanto que haja nela uma "história interessante" (e até mesmo em uma igreja, onde o incomum e espetacular costuma ser recebido por certas pessoas como mais autêntico que a monotonia e a rotina), é um alívio abrir o livro de Rute. Já descrevemos a agradável simplicidade de seus assuntos: a vida do interior, suas alegrias e tristezas, suas "virtudes agradáveis" e, especialmente, sua concentração nos personagens à volta dos quais se tece a história. Isto se destaca mais aindapelo contraste com o livro dos Juizes, com o qual as palavras iniciais estabelecem uma ligação. O livro de Juizes termina com uma referência ao caos social e à miséria pessoal resultantes da falta de autoridade justa entre o povo: "Naqueles dias não havia rei em Israel: cada um fazia o que achava mais reto."1 O livro de Juizes foi pintado numa tela grande. Embora apareçam no livro personagens individuais, sempre surgem no contexto da guerra civil, das convulsões nacionais, dos assuntos internacionais. Mas o livro de Rute, embora não fique totalmente esquecido do significado nacional, e até mesmo global, dos seus personagens, trata de um < homem, sua família e seu destino. Lembra-nos de que o Deus das nações também está interessado nas coisas comuns relacionadas a "um homem". Nosso Senhor, que nos ensinou a orar ao "nosso Pai que está no céu" e a elevar nossos corações e mentes para a visão global da vinda do seu reino (pois seu é o reino e a glória para todo o sempre),também nos ensinou a orar pelo pão nosso de cada dia. Deus, que sabe quando um pardal cai ao chão e que notaquando oferecemos um copo de água fresca a quem precisa dele,2 também se interessa pelas coisas comuns. Como Helmut Thielicke o destaca: Diga-me até que ponto você considera Deus sublime e eu lhe direi quão pouco ele significa para você. Este pode ser um axioma teológico. O Deus sublime foi arrancado de minha vida particular... Se Deus não tem significado para as minúsculas peças do mosaico de minha vidinha particular e para as coisas que são do meu interesse, então ele não tem
  • 23. significado algum para mim.3 O interesse de Deus no destino de um homem nos dias em que julgavam os juizes deveria nos lembrar que até mesmo as nossas coisas mais comuns são significantes para Deus e se encaixam no seu cuidado todo-poderoso. A fome (1:1) Nos dias em que julgavam os juizes, houve fome na terra; e um homem de Belém de Judá saiu a habitarnaterradeMoabe,com sua mulher eseusdois filhos. Mudar de residência não é uma tarefa que a maioria das pessoas assume com leviandade. É uma coisa dispendiosa e inquietante. Implica arrancar raízes e deixar amigos e vizinhos. Geralmente leva a procurar uma nova casa, estabelecer uma nova vizinhança, conhecer outras pessoas. Para uma família é um verdadeiro terremoto. Embora Elimeleque certamente não tivesse a mesma quantidade de utensílios domésticos para transportar que um chefe de família moderno, não foi uma decisão menos importante para ele. Ele resolveu sair de Belém por causa de uma fome. Belém de Judá era uma cidade, cerca de oito quilómetros ao sul da atual Jerusalém. Seu nome significa "casa do pão", nome que aponta para a incomum fertilidade daquela região para o plantio de cereais (como o esclarece o capítulo 2 do livro de Rute), Também destaca que a fome era fora do comum. Alguns comentaristas crêem que a fome local na região de Belém (aparentemente não havia tal dificuldade cerca de oitenta quilómetros a sudeste, em Moabe, do outro lado do atual Mar Morto) devia-se em parte às pilhagens associadas com o período caótico dos juizes. A invasão midianitano período de Gideão, por exemplo,4 destruiu a lavoura e o gado. Por causa da fome, Elimeleque decidiu que ele e sua família iriam morar durante algum tempo como estrangeiros residentes (peregrinos) na terra de Moabe. Não temos certeza do que o induziu a partir. Embora a religião cananéia procurasse controlar o processo da natureza com os seus niveis da fertilidade, o povo de Javé fora ensinado a confiar nele conquanto à prosperidade da terra. Será que a fome, na mente de Elimeleque, era um sinal do descontentamento divino?5 Não sabemos. Sabemos que outros belemitas permaneceram na terra à espera tio final da fome e, ao que parece, passaram muito melhor do que lilimeleque (versículo 6). À luz dos acontecimentos subsequentes, fie.imos imaginando se o autor não pretende nos levar a pensar que lilimeleque não foi sábio na sua atitude! Certamente a viagem não alcançou o seu objetivo: escapar da morte. Todos os três homens da fnmília morreram em Moabe. Além disso, com a mudança, morreram numa terra estranha, deixando Noemi, a viúva, muito mais desolada do que se tivesse permanecido na companhia dos seus conhecidos. Ali, com tantos lugares, por que ir a Moabe?! Localizadano planalto, ao leste do Mar Morto, Moabe erapovoada pt-Ios descendentes de Ló.6 Embora não tivessem sido atacados pêlos israelitas em seu retorno à terra prometida depois do êxodo, apesar de sua falta de amabilidade característica, os moabitas não deviam ser admitidos na congregação de Israel.7 Por quê? Eles eram adoradores ile Camos, um deus ao qual aparentemente se faziam sacrifícios humanos. Os moabitas eram, às vezes, chamados de "povo de Camos".8 Além disso, durante o primeiro período dos juizes, Eglom, rei de Moabe, invadiu a terra dos israelitas e manteve o povo de Israel na escravidão durante dezoito anos.9 Portanto, era um lugar muito estranho para um crente em Javé, habitante de Belém, escolher para morar. Por que não foram para algum lugar
  • 24. onde se adorava Javé? Será que era falta de confiança na providência de Deus? Embora elogiando o pretenso desejo de Elimeleque de cuidar de sua família durante a fome, Matthew Henry pergunta como se poderia justificar a mudança a Moabe. "Aborrecer-nos com o lugar no qual Deus nos coloca e abandoná-lo na primeiraoportunidade, logo que nos deparamos com algum desconforto ou alguma inconveniência, é evidência de um espírito descontente, desconfiado e instável."10 Não temos dados suficientes para saber se a atitude de Elimeleque justifica o comentário de Matthew Henry. Porém, mesmo que a atitude de Elimeleque implique falta de fé ou expressão de descontentamento para com Javé, o restante do livro de Rute demonstra amplamente que a providência graciosa de Deus não é limitada pela loucura do homem. A alegria final na família e o propósito de sua história, resultante da entrada de Rute no cenário, demonstram a rica benignidade da providência de Deus. Ver que tais benefícios foram colhidos como resultado de uma conduta impensada é uma evidência de seu amor. Felizmente, a providência de Deus cobre até os nossos erros! Os nomes (1:2-5) Este homem se chamava Elimeleque, e sua mulher, Noemi; os filhos se chamavamMalome Quiliom, efrateus, de Belém de Judá; vieram à terra de Moabe e ficaram ali. 3 MorreuElimeleque, marido de Noemi; e ficou ela com seus dois filhos, 4os quais casaram com mulheres moabitas; era o nome duma Órfã, e o nome da outra Rute; e ficaram ali quase dez anos. 5 Morreram também ambos, Malom e Quiliom, ficando assimamulher desamparadade seusdoisfilhosedeseumarido. Para o nosso autor, os nomes são significativos. Temos alguns personagens no livro cujos nomes não são mencionados, como o "resgatador" que aparece em Rute 4:1. Portanto devemos presumir que, se o escritor nos cita nomes, é com algum propósito especial. Na maneira hebraica de pensar, saber o nome de uma pessoa é conhecer o seu caráter, conhecer a pessoa. O nome é a pessoa. Quando Abrão se tornou uma nova pessoa, ele recebeu um novo nome.11 Quando o nome de uma pessoa é destruído ou retirado, a pessoa, é extinguida da memória humana, como se nunca tivesse existido.12 Era uma coisa terrível ser deixado sem nome nem descendentes.13 Portanto, quando Deus diz o seu próprio nome, está falando do seu caráter e comparti- lhando o seu próprio ser com aqueles aos quais falou.14 "Javé" é o seu nome pessoal, o nome do Deus da aliança. Elimeleque significa "meu Deus é rei". Alguns comentaristas, como Henry, que já citamos acima, imaginam que talvez haja alguma censura implícita no fato de citar este nome. Não deveria tal nome expressar dependência e confiança em Deus? Com certeza deveríamos lembrar que para todo aquele que pode dizer "meu Deus é rei", embora não receba uma promessa de uma vida livre de problemas, há sempre a promessa do pão de cada dia e a certeza de que não há necessidade de ficar morbidamente ansioso por causa do amanhã.15 Parte do significado da fé pode ser expressa declarando que a f é é aquilo que Deus nos dá para nos ajudar a enfrentar as incertezas da vida. Será que Elimeleque vivia de acordo com o seu nome? Noemi significa "amável, encantadora, agradável". E o comovente significado deste nome destaca-se mais tarde, quando Noemi volta de Moabe com sua nora Rute, entristecida pelas experiências amargas que ela cria ter recebido da mão do Senhor. "Não me chameis de Noemi", ela diz aos seus vizinhos, "chamai-me Mara; porque grande .unargura
  • 25. me tem dado o Todo-poderoso" (1:20). Malom e Quiliom, os filhos de Noemi, aparentemente tinham antigos nomes cananeus, mas foram aqui mencionados devido ao seu sig-n i ficado dentro do cenário, para que entendamos as lágrimas e o sofrimento do restante de Rute 1. "Malom" parece estar ligado a uma raiz cujo significado é "estar enfermo"; e "Quiliom" significa algo assim como "enfraquecer", ou "definhar", ou até mesmo "aniquilação". Órfã e Rute são nomes moabitas e os seus significados não são muito claros. Mas o que está claro é a sua nacionalidade. Os filhos de lïlimeleque casaram-se com adoradoras de Camos e, embora tal casamento não fosse aparentemente proibido,16 os moabitas não eram admitidos na congregação para o culto.17 A família, diz-nos o autor, era de efrateus. Efrata é uma palavra geralmente associada com Belém, mas o seu significado é muito incerto. As passagens onde aparece sugerem que há uma dignidade especial ou alguma importância em se estar ligado a um efrateu. Aqui, provavelmente, indica que estamos sendo apresentados a uma família bem estabelecida. Certamente, quando Noemi voltou, não era uma pessoa sem importância (1:19). Talvez, como sugere Leon Morris,18 sua família pertencesse à "aristocracia" local, uma família que, quando partiu para Moabe, era conhecida como de pessoas ricas ("Ditosa eu parti", 1:21). Mas a riqueza e o prestígio não são garantias de felicidade material ou de ausência de sofrimento. A fome angustiou a família o suficiente para que esta abandonasse o seu lar e partisse para Moabe. Depois, além da perda do conforto físico e da segurança do lar, veio a dor, não de uma morte, mas de três. Noemi, em quem se concentra este primeiro capítulo de Rute, ficou sozinha, sem lar, sem marido, sem filhos, sem amigos, sem esperança, sem herança. O que o culto a Javé significava para ela agora? A morte (1:3-5) Morreu Elimeleque... 5Morreram também ambos, Malom e Quiliom, ficando assim a mulher desamparadadeseus doisfilhosedeseumarido. A morte, num certo sentido, é um dos acontecimentos mais naturais da vida, mas, num outro, é o menos natural. Todos os homens são mortais;19 o tempo de permanência do homem aqui na terra é limitado. A morte inexoravelmente lembra o homem de sua fragilidade e limitação;limitação essa (o salmista nos diz) da qual o Senhor não fica esquecido, e que faz par te do significado da compaixão que sente para com o seu povo: "Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece dos que o temem. Pois ele conhece a nossa estrutura, e sabe que somos pó."20 Assim como toda a "natureza", a morte faz parte do homem desde o princípio. E certas casas funerárias modernas parecem recusar-se a crer que ela seja real. Que significado, ficamos imaginando, o crente em Javé dava à morte quando Noemi ficou desamparada de seus dois filhos e de seu marido? Eles não tinham consciência da transformação do significado da morte trazida pelo Novo Testamento. Eles tinham muito menos fundamento do que nós para crer na vidaapós a morte. Não poderiam ter entendido a plenitude do significado das palavras de Paulo sobre a morte, que "perdeu o seu aguilhão", ou da sua descrição da morte como um simples "adormecer".21 Mas não devemos esquecer a confiança de Davi em que estaria com o seu filho morto,22 nem o pensamento positivo dos Salmos 49 e 73. Mesmo para um homem de fé do Antigo Testamento, morrer era "dormir com os seus pais", ou "ser reunido ao seu povo".23 E o
  • 26. desespero expresso em passagens tais como o Salmo 88 parte daquele que se julga alienado da compaixão de Deus, morrendo sob a sua ira, e não de um crente plenamente confiante na graça de Deus. Mas é a ressurreição de Jesus Cristo que dá forma àquilo que para o cristão agora é uma certeza: para o crente a morte proporciona comunhão infinita com o Senhor.24 Para o cristão, morrer é "zarpar rumo a outra terra".25 Nossos corpos são preparados para uma vida espiritual mais completa, preparados para a vida no céu, com seus correlativos celestiais mais ricos do que os corpos físicos que são apropriados para este mundo de espaço e tempo.26 A esperança cristã aguarda "aquela grande multidão que ninguém pode enumerar", cujas roupas foram alvejadas "no sangue do Cordeiro", que ficarão em pé diante do trono de Deus e o servirão "de dia e de noite no seu santuário".27 Algumas partes do Antigo Testamento dão indicações destas afirmações de fé. Isaías, numa seção que poderia ser considerada como a base da fé no destino pessoal, como também da sorte da nação, fala do tempo quando o Senhor "tragará a morte para sempre e assim enxugará o Senhor Deus as lágrimas de todos os rostos." Então ele afirma que "os vossos mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai e exultai, os que habitais no pó."28 E nas visões apocalípticas de Daniel, ele se estende pela fé em busca daquilo que talvezapenas percebaindistintamente: "Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para a vergonha e horror eterno."29 Mas, de um modo geral, a morte no Antigo Testamento é um estado nmbíguo e escuro. De um lado, os mortos são às vezes considerados como aqueles que foram separados da esfera da influência de Javé. A morte para eles significa o fim de um relacionamento consciente com Deus; já não se ouvem mais louvores a Javé. A morte é o rei dos terrores.30 O submundo tenebroso do Seol, o lugar dos mortos, é um local profanado que enfatiza o horror da morte. O crente em Javé não deve tentar alcançar aqueles que morreram, nem deve, como os demais cananeus, ocupar-se em rituais da morte, como cortar o cabelo ou ferir sua carne como um reconhecimento do poder da morte.31 O povo de Moabe, entre o qual Noemi habitava, possivelmente tinha atitudes para com a morte que eram intoleráveis para o crente em Javé (indicadas, talvez, pelo modo como Amos teve de denunciá-lo porque "queimou os ossos do rei de Edom, até os reduzir a cal"32). Por outro lado, também encontramos no Antigo Testamento uma forte fé em Javé como Senhor, e o Senhor da vida.33 Nenhum outro soberano pode reinar no reino da morte. Assim, neste vácuo, a fé em Javé cria indícios de esperança. O salmista, quando se encontra à beira da morte, clama a Javé para que se lembre dele; e, em outra passagem, o poeta expressa a certeza de que Deus vai recebê-lo através da morte numa outra vida.34 Ou, então, mesmo que venha a fazer a sua cama no Seol, "lá estás também". O Senhor não vai abandoná-lo.35 Há um sentido no qual, no momento da morte, Javé vai "arrebatar" o crente para que fique em comunhão com ele.36 O próprio Deus está presente junto ao crente na vida e na morte, e não vai abandoná-lo no reino de Seol. Quanto desta fé crescente Noemi partilhava nós não sabemos. Talvez ela tivesse vislumbres dessa verdade que nos foi totalmente revelada no Novo Testamento: para aquele que se aproxima de Deus pela fé, a morte, num certo sentido, já ficou para trás. Os crentes cristãos são "batizados na morte de Cristo"37 e, embora a sua morte física ainda tenha de acontecer porque a glória completa ainda não foi revelada,38 sua comunhão contínua com o Senhor é coisa segura. Mas seja quanto for que Noemi tenha captado sobre o significado da morte para o
  • 27. crente em Javé, existem dois aspectos de suas próprias circunstâncias que são evidentes. Primeiro, seu marido e filhos haviam morrido prematuramente. Como podemos nos identificar bem com a tristeza do Antigo Testamento, quando enfrentamos aquilo que os que ficam só podem classificar de morte prematura! Abraão morreu em idade avançada, um homem velho e cheio de anos. Numa vida assim há realização, como na de Jó, que viu seus filhos, netos e até mesmo bisnetos.39 Mas a morte de uma pessoa jovem tem um tom de tragédia: "Em pleno vigor de meus dias hei de entrar nas portas do além; roubado estou do resto dos meus anos."40 Hagar, a mãe, lamenta a morte iminente de seu filho: "Assim não verei morrer o menino"; e Davi sofre com a morte do seu filho.41 Para Malom e Quiliom certamente, e podemos imaginar que também para Elimeleque, a morte chegou cedo na vida; eles foram "roubados" do resto dos seus anos. E Noemi ficou desamparada de seus dois filhos e de seu marido muito cedo na vida. Em segundo lugar, embora o livro de Rute apenas nos dê um rápido vislumbre de fé em que a morte não seja o fim da comunhão (1:17), havia uma certeza. O nome do homem não deve ser esquecido. Seu nome permaneceria na sua herança. Como era importante para ele, portanto, que tivesse um filho (4:5,10)!E como deveria ser desespera-dor, portanto, para Noemi o fato de que, além de ter perdido os três homens de sua família, ela não tivesse um único herdeiro através do qual os nomes deles continuassem e sua herança ficasse garantida! Seus homens morreram, e com eles os seus nomes! Aqui o autor coloca um desastre em cima do outro na vida de Noemi, dando-nos um senso real do choque que atinge uma pessoa nessas condições. Ela certamente não havia merecido; com certeza fora inesperado. Não estaremos penetrando aqui no lado oculto da providência de Deus: o fato de que certos sofrimentos nossos parecem insuportáveis; algumas de nossas circunstâncias parecem tão injustas; e algumas de nossas perguntas ficam sem respostas? Com Noemi aprendemos que fé, às vezes, significa uma disposição de deixar essas perguntas como mistérios de Deus, na confiança de que, em dias melhores, ele tem se mostrado fidedigno. O Senhor visita (1:6-7) Então se dispôs ela comassuasnoras,evoltoudaterradeMoabe,porquanto nestaouviuqueoSenhorse lembrara do seu povo, dando-lhe pão. 7Saiu, pois, ela com suas noras do lugar onde estivera; e, indo elas caminhando, devolta paraaterradeJudá,... A nossa memória mantém vivo no presente o significado das experiências passadas. Com que frequência o povo de Deus recebeu a instrução de "lembrar" de como Deus o ajudou no passado. Depois do êxodo do Egito, na noite de Páscoa, a primeira palavra de Moisés , ao povo foi: "Lembrai-vos deste mesmo dia ... pois com mão forte o Se- nhor vos tirou de lá." Eles deviam se lembrar do seu tempo de escravos no Egito como um incentivo para a guarda do sábado; deviam lembrar que o Senhor era o seu Deus. Quando tivessem medo, deviam se lembrar do poder do Senhor. Quando repousassem em bênçãos, deviam se lembrarde que também o tinham provocado à ira. Ci rande parte das regras éticas de sua sociedade estava fundamentada na lembrança do tempo em que eram escravos e na salvação de Deus. Nos dias dos juizes, logo depois que Gideão morreu, houve problemas, porque o povo se voltou novamente para Baal e não se lembrou do Senhor seu Deus.42 Mas Noemi se lembrou. As linhas de comunicação com os amigos da pátria
  • 28. continuaram abertas. Pelo testemunho posterior de Rute vemos que Noemi fora uma servidora fiel de Javé em Moabe. Ela mantivera viva em sua consciência a realidade da ajuda do Senhor ao seu povo no passado. E aguardava sinais da sua ajuda no presente. Como o salmista, quando consumido com sofrimento e depressão, Noemi sem dúvida consolava- se "invocando os feitos do Senhor". Como Jonas em seu nada invejável estado aquático, a mente de Noemi estava em oração ("Quando dentro em mim desfalecia a minha alma, eu me lembrei do Senhor; e subiu a ti a minha oração").43 Nos tempos de provação, fé às vezes significa deixar as dificuldades nas mãos de Deus, mesmo sem receber uma resposta. Uma fé assim é fortalecida pela lembrança constante de como Deus nos ajudou no passado. Pedro insiste com os seus leitores cristãos para que tenham em mente as promessas e os dons graciosos de Deus, e que os tenham como lembrete.44 E, acima de tudo, somos aconselhados a lembrar, a descansar e a nos alimentarda graçasalvadora de Deus em Cristo sempre que comermos o pão e bebermos o cálice do Senhor "em memória" dele.45 A fé é uma caminhada de confiança e crescimento; é um móbile em movimento, não uma vida estática. E quando algumas partes balançam por algum tempo nas sombras, confiamos que aparecerão de novo na luz, como já aconteceu muitas outras vezes. Parte da espiritualidade dos homens e mulheres de fé no tempo de Noemi consistia em meditar nos grandes feitos de Deus no passado, e podemos aprender com eles a manter assim a fé viva em períodos de trevas. Assim, o coração de Noemi permaneceu em Judá e ela não se esqueceu do seu Deus. Na verdade os seus ouvidos ficaram alertas às notícias que chegavam a Moabe, de que Javé não abandonara o seu povo: a fome terminara, o Senhor se lembrara do seupovo, dando- lhe pão. O Senhor, como já dissemos, traduz o nome de Deus, Javé. Ele é o Deus cujo nome pessoal indica o seu caráter: o Deus que está em atividade, o Deus que vem ao encontro do seu povo na necessidade, o Deus que liberta o seu povo pela ação de um remidor (goel)-46 É através do caráter deste Senhor, revelado ao seu povo gerações antes, que Noemi mede agora a amargura de suas perdas e do seu isolamento (1:13, 21). É este Senhor que, descobrimos mais tarde, é adorado por Boaz e seus empregados, e cuja bênção é invocada sobre Rute (2:4,12). É este Senhor que é bendito por Noemi por causa da graciosa generosidade de Boaz, que é visto como o doador da vida e sob cujos cuidados providenciais Noemi finalmente encontra alegria (2:20,4:13-14). O livro de Rute é rico em sua revelação do tipo de Deus que é Javé. O nosso autor anseia que o caráter deste Senhor domine a sua narrativa. É como se quisesse que os seus leitores colocassem os acontecimentos detalhados das alegrias e tristezas de sua história dentro do contexto do Deus cujo caráter foi descrito como "Javé". Quanto significado existe na frase O Senhor se lembrará! As notícias que Noemi recebeu não são expressas em termos tais como "o tempo melhorou", ou "houve uma inversão económica", ou "a ameaça da invasão desapareceu". Tudo isso poderia fazer parte da cadeia das causas para a recuperação da fartura em Belém. Mas não, as notícias chegaram a Noemi em termos de ação do Senhor. Aqui há um tema central na Bíblia: toda a vida é traçada diretamente pela mão de Deus. Quando nos concentrarmos principalmente nas causas secundárias sentimo-nos encorajados a manipular o sistema. É a concentração na Grande Causa que nos ensina a viver pela fé. Quando o Senhor "visita" o seu povo, ele o faz pelo julgamento47 ou através de bênção.48 O alimento que agora existia em Belém é entendido por Noemi como um
  • 29. dom de Deus. O sentido disto foi captado pelo salmista ("Abençoarei com abundância o seu mantimento, e de pão fartarei os seus pobres"49), como também pelo sacerdote Zacarias séculos mais tarde, quando ele se deleitou no nascimento do mensageiro do Messias ("Bendito seja o Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo"50). Com a confiança de Noemi nesse Deus, ela podia lidar, como veremos, com os sentimentos de ira que suas circunstâncias viessem a provocar. Agora, com Rute e Órfã, ela inicia sua viagem de volta ao lar. 1:8-22 2. Voltando para casa A preocupação de Noemi (1:8-9) Disse-lhes Noemi: Ide, voltaicada uma àcasa desua mãe; eo Senhor use convoscodebenevolência, comovósusastescomosquemorreram,ecomigo.9OSenhorvosdêquesejaisfelizes,cadaumaemcasadeseu marido.Ebeijou-as.Elas,porém,choraramemaltavoz. A verdadeira fé sempre pode ser avaliada pêlos frutos do amor;1 e Rute, a moabita que veio a crer no Deus de Noemi, devia ter aprendido com esta a realidade da fé, experimentando seus benefícios através do amor praticante de sua sogra para com ela. Noemi surge agora como a personagem principal de Rute 1. No desdobramento da "outra história", o tema da providência de Deus na sucessão dos acontecimentos de situações humanas nas quais Noemi e suas noras se encontram, e a subsequente provisão divina para com Rute e Boaz, vamos nos concentrar primeiro em Noemi e especialmente na fé inabalável de Noemi em Javé. Especificamente aqui vemos como a sua fé se demonstrou ativa em amor.2 Antes de mais nada, a preocupação amorosa de Noemi com suas noras encontra sua expressão na oração. Como já se disse com muito acerto: "O que um homem crê ou não crê a respeito da oração é uma boa indicação de suas crenças religiosas de um modo geral. O que ele crê sobre a oração é uma indicação do que ele crê sobre Deus. Mais particularmente, o que o homem faz com a oração é uma indicação do que ele crê a respeito dela."3 A oração é, e sempre foi, o lado ativo da doutrina da providência. A oração é o reconhecimento, não do benefício psicológico de algum exercício mitológico, mas do fato de que nós cremos que Deus existe, que Deus se importa conosco, que Deus está no controle e que Deus providencia tudo, e cremos de tal modo que estamos dispostos a fazer alguma coisa com base nisso, isto é, a falar com ele. A providência nos lembra que não passamos de criaturas, que somos dependentes de Deus e que, junto com o mundo todo, estamos sob o senhorio de Deus; a oração é uma atividade pela qual reconhecemos que não podemos ser nosso próprio senhor. A providência nos lembra que nem tudo é desesperadamente absurdo ou sem sentido; a oração é a nossa maneira de dizer "sim" diante da convicção de que Deus está operando os seus propósitos na natureza, nos homens e na história. A providência é um lembrete de que o Senhor é um Deus de graça e generosidade; a oração é a nossa maneira de responder ao seu convite para fazermos parte da família da
  • 30. sua aliança, para sermos seu filho ou sua filha, seus cooperadores neste mundo. A providência nos lembra que o Deus vivo não é um destino imutável diante do qual só podemos manter silêncio e ficar passivos; a oração é a nossa reação diante do convite de Deus para que partilhemos da comunhão com ele, uma expressão da nossa união com ele. Como disse P. Forster: A profundidade do senhorio de Deus é tal que ele permite que tenhamos um lugar no seu governo do mundo ... isto aponta para a seriedade de nossas ações como cristãos. Não significa que estejamos segurando as rédeas do governo do mundo. Elas estão nas mãos de Deus. Mas nós temos o nosso lugar no seu exercício. Em sua onipotência e onisciência supremas, Deus quer partilhar sua vida conosco.4 Forster prossegue dizendo que Deus vai retificar e compensar nossa oração quando a responder. Não que a nossa oração seja a coisa certa e segura a fazer, e a resposta de Deus a coisa incerta e insegura. Pelo contrário, nós é que somos desafiados na oração, e não Deus. Portanto, através da oração nós expressamos a nossa confiança na providência de Deus e descobrimos como a nossa própria vontade deve ser alinhada com a sua vontade soberana e cheia de amor por nós. A nossa ação na oração se encontra na sua resposta transformadora. Isto aconteceu com Noemi em sua oração a favor de Rute e Órfã. Ela orou como alguém que conhecia o seu Deus como o Senhor da aliança. A sua oração aqui é de confiante entrega do futuro nas mãos do Senhor. Ao pensar em suas noras e nas necessidades delas, Noemi ora pedindo que o Senhor, o Deus da aliança, use de benevolência para com elas. O amor da aliança Benevolência (versículo 8) traduz a palavra central do relacionamento de Deus com o seu povo através da aliança: hesed, amor constante e fidelidade. É uma palavra "que combina o calor da comunhão de Deus com a segurança da sua fidelidade".5 É a palavra de amor que Moisés canta ao louvar o redentor,6 e pela qual o povo é convocado para a comunhão da aliança com ele. Noemi louva a Deus por seu hesed em 2:20, e Rute é louvada pelo seu em 3:10. Portanto, é uma palavra que nos diz algo do cará ter do Deus da aliança, e também diz algo das pessoas que demonstram esse caráter em suas vidas. Vamos retornar a este assunto no capítulo 4. O correlativo desta palavra no Novo Testamento é ágape, que descreve o amor sacrificial de Deus pelo seu povo e o amor que ele espera que o seu povo demonstre em troca disso. Talvez a definição mais aproximada é a que encontramos em l João 4:10-11: "Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou, e enviou o seu Filho como propiciação pêlos nossos pecados. Amados, se Deus de tal maneira .nos amou, devemos nós também amar uns aos outros." Noemi confia no Deus do amor e entrega Rute e Órfã aos cuidados dele. Suas noras demonstraram uma bondade maravilhosa para com ela e sua extinta família; que Deus demonstre o seu amor para com elas. Sua preocupação particular era que elas retornassem às suas próprias famílias em Moabe, onde aparentemente pelo menos os pais de Rute ainda viviam (2:11), e que se casassem novamente. Um lar
  • 31. O Senhor vos dê que sejais felizes, cada uma em casa de seu marido', isto indica principalmente o anseio por um "lugar de descanso".7 A palavra não se refere apenas ao fim dos problemas e do sofrimento (que Rute e Órfã pudessem superar a dor de suas perdas), mas também à experiência positiva da segurança e do conforto divinos. "Volta, minha alma, ao teu sossego (descanso)", canta o salmista, "pois o Senhor tem sido generoso para contigo."8 Para entender o pleno significado da oração de Noemi, temos de saber alguma coisa sobre a situação das mulheres viúvas naquele tempo. Considerando que o status das mulheres na sociedade do Antigo Testamento era muito aquém do que lhes foi concedido por Jesus 110 Novo Testamento (na sua maneira de tratar a mulher junto ao poço, com a siro-fenícia, Maria e Marta, como também no que ensinou sobre o divórcio, garantindo às mulheres direitos iguais aos dos homens),9 a situação da viúva era ainda pior. A esposa estava incluída na propriedade do marido, podendo ser repudiada, e não tinha direito de herança.10 Era, entretanto, bem superior a uma escrava e, especialmente quando nascia um filho do sexo masculino, era respeitada dentro da família. Mas a sua segurança repousava no marido e ela tinha poucos direitos próprios. Portanto, quando morria o marido, a viúva (especialmente se tivesse filhos pequenos para sustentar) ficava em posição muito difícil. A palavra traduzida para "viúva" não apenas indica a morte do marido, mas também dá ideia de solidão, abandono e desamparo.11 As viúvas eram geralmente mencionadas junto com os órfãos e os estrangeiros.12 Elas tinham necessidade especial de proteção, e Javé cuida delas de maneira singular." Portanto, o povo era convocado a cuidar do direito das viúvas e diversas leis do Pentateuco procuravam aliviar o destino delas.14 Contudo, a queixa do tratamento injusto recebido pelas viúvas é um tema constante nos profetas.15 A única esperança que restava de recuperar o status social para uma viúva ainda jovem era casar outra vez. Toda a profundeza de sentimentos extraídos de sua própria viuvez Noemi colocou em sua oração em favor das duas jovens: O Senhor vos dê que sejais felizes, cada umaemcasadeseumarido. A dor da separação (l:9b-14) E beijou-as.Elas,porém,choraramemalta voz,welhedisseram:Não,iremos contigoaoteupovo."Porém Noemi disse: Voltai, minhas filhas, por que iríeis comigo? Tenho euainda no ventre filhos, para que vos sejam por maridos? nTornai, filhas minhas, ide-vos embora, porque souvelha demais para ter marido. Ainda quando eudissesse:Tenhoesperança,ouaindaque estanoite tivessemaridoe houvessefilhos, ^esperá-los-íeisaté que viessem a ser grandes? Abster-vos-íeis de tomardes marido? Não, filhas minhas, porque por vossa causa a num me amarga o ter o Senhor descarregado contra mim a sua mão. uEntão de novo choraram em voz alta; Órfã com um beijo se despediudesuasogra,porémRute seapegouaela. O choro expressava a dor, e a dor era em parte um sentimento de ambivalência de Órfã e Rute, que precisavam escolher entre o seu amor por Noemi e a sua esperança de serem mães num segundo casamento. Inicialmente as duas se recusaram a partir, mas, com a insistência de Noemi, Órfã foi persuadida. O raciocínio de Noemi girava em redor da prática do casamento de levirato, que explicaremos mais detalhadamente na seção 5. Quando um homem morria sem deixar um filho homem, o seu irmão devia agir como "levir": isto é, tomar a viúva, a fim de gerar um filho para o homem morto. Talvez Noemi estivesse dizendo a Rute e Órfã que não havia irmãos vivos de Malom e Quiliom que pudessem agir como "levir" e, naturalmente, as jovens
  • 32. não podiam esperar que futuros filhos seus atingissem a idade de casar! De qualquer forma, Noemi já havia ultrapassado a idade de conceber.16 O autor pretende descrever um quadro de desesperança: Noemi está enfatizando a completa impossibilidade de providenciar pais para os filhos de Órfã e Rute.17 Conforme veremos, a situação estava longe de tal desespero, pois na providência de Deus, e através da ação de um goel (um parente remidor), Rute receberia um marido e um filho. Mas, por agora, essa esperança não estava ainda no horizonte. E Órfã foi persuadida a partir. Ela beijou Noemi, despedindo-se dela (versículo 14), e presumivelmente voltou a Moabe para procurar outro marido. A propriedade de Quiliom retornou para Noemi (4:9). A dor não era apenas das noras. Tanto o sofrimento da própria Noemi como a sua participação na dolorosa escolha que Rute e Órfã tinham de fazer expressavam-se nas suas palavras: "Não, filhas minhas, porque por vossa causa a mim me amarga o ter o Senhor descarregado contra mim a sua mão." Vamos retomar a este versículo quando chegarmos a Rute 1:21. Note-se, porém, que, apesar do sofrimento, seus pensamentos são voltados para o benefício dos outros (por vossa causa). E, apesar do sofrimento (e até mesmo ira), Noemi ainda se apega ao fato de que aquilo que recebeu veio das mãos do Senhor. Não há sentimentos ocultos, não há fingimento de que não existe ira, não há qualquer gesto estóico, nem falsas afirmativas de que tudo vai bem. Enquanto, da perspectiva de sua fé na providência de Deus, tudo vai bem, ela certamente não se sente assim. Como o grito de Habacuque diante de Deus por causa de seu aparente fracasso em evitar que se levantassem os opressores caldeus,18 para descobrir depois, finalmente, que os próprios caldeus faziamparte do propósito amoroso de Deus19 e havia, não obstante, fundamentos para confiança na força de Deus, até mesmo alegria,20 assim também Noemi, aqui, não esconde de Deus seus sentimentos mais profundos. Muitos de nós até já esqueceram como se lamenta a morte de alguém. Embora devamos nos lembrar de que a fé cristã acabou com o aguilhão da morte e que há lugar para uma palavra gentil de compaixão em certas ocasiões ("Não chores!"21), não devemos negar a dor da separação daqueles que perderam os seus queridos. Chegará o dia em que a afirmação cristã da esperança de vida em Cristo se tornará a realidade do novo céu e da nova terra, quando "a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor";22 mas haverá momentos ainda deste lado do céu quando choraremos e lamentaremos antes de nossa tristeza ser convertida em alegria.23 Naturalmente, a fé cristã tomou obsoleta grande parte da lamentação pública prolongada e dolorosa pêlos mortos, o que era costume no Israel de antigamente. Embora os crentes em Javé fossem proibidos de praticar alguns rituais da morte dos cananeus, eles ainda ficavam, durante longos períodos, gemendo e batendo no peito depois da morte de um ente querido.24 A parábola de Jesus sobre as crianças lamentando os mortos quando brincavam de enterro25 indica que alguns desses costumes ainda prevaleciam no seu tempo. Mas, embora grande parte do desespero dessa lamentação tenha se transformado para o cristão com a morte e ressurreição de Cristo,26 ainda há uma tristeza muito espiritual quando perdemos um amigo e quando a morte penetra em nossa vida. Não foi por isso que Jesus chorou junto à sepultura do seu amigo?27 Em nossa tristeza pela morte, nós, como cristãos, somos sustentados pela esperança da ressurreição dos mortos. Mas não vamos fingir que a morte não machuca e que a tristeza não pode ser expressada. A tristeza é uma coisa real e a sensibilidade renovada pela graça
  • 33. de Cristo pode sentir-se profundamente ferida e, portanto, muito mais suscetível a revelar- se em lágrimas. Após o choque inicial de dor pela morte de alguém, e após o pequeno período de serenidade forçada por causa dos outros (no funeral, por exemplo), o verdadeiro sofrimento muito naturalmente leva a uma experiência de retorno às emoções que alguns de nós esquecemos desde a infância. Sentimentos, às vezes de culpa, às vezes de raiva, vêm junto com uma tensão que anseia ser aliviada com lágrimas. É depois de passar por esta importante fase, na qual a dor pode ser expressa e chorada, que uma pessoa pode começar a se consolidar e a edificar novamente um futuro.28 Muitos de nós perdemos contato com os nossos sentimentos, ou esquecemos como é que se chora. Para nós geralmente é mais difícil atingir este estágio de reconstrução. Que as lágrimas dessas mulheres nos lembrem a importância de não esconder nossos sentimentos, ou de não fingir que eles não existem. Maturidade implica aprender a expressar nossas emoções apropriadamente. Noemi passou pela dor e chegou à determinação de edificar uma vida nova no futuro. Que Noemi também nos faça lembrar que nossos sentimentos mais profundos e nossas ansiedades não estão ocultos de Deus. Ela delibe-radamente apresenta a ele os seus sentimentos de maneira bem franca. Realmente, ela lança toda a responsabilidade do seu destino nas costas de Deus! Ela agora experimenta Deus como um inimigo (cuja mão foi descarregada contra ela). Dele foi também a mão por trás da fome e das mortes, primeiro de seu marido e, depois, dos sevis filhos. Mas ela mantém estas amargas experiências dentro do contexto da sua promessa, lembrando-se, e às suas noras, do seu nome: Javé, o Senhor. O que significa a fé em Javé em períodos de aflição? Mais tarde voltamos os olhos para o sofrimento e, às vezes, discernimos o bem que veio após ele. Outras vezes, não. Frequentemente, podemos crer, o sofrimento nos confronta, mais que qualquer outra coisa, com a transitoriedade e fragilidade de nossas vidas. O sofrimento, como bem se vê no livro do Dr. Martin Israel, The Pain that Heals (O Sofrimento que Cura), pode nos colocar em contato com dimensões mais profundas da vida espiritual. O sofrimento (que o Dr. Israel chama de "a face escura" de Deus) pode ser o caminho para o crescimento e a maturidade do caráter: dor que cura. Mas na hora não sentimos assim. Na hora, como o testifica a experiência de Noemi, a essência da confiança, durante toda a experiência da aflição, é nos colocarmos humildemente debaixo da mão de Deus, da qual recebemos o golpe, na firme crença de que (apesar de todas as aparências) é a mão do Pai de amor. "Garante-me, ó Senhor, a força de atravessar o vale da sombra da morte de modo que, ao sair do outro lado, eu seja uma pessoa melhor, mais compassiva, mais aproveitável por ti como testemunha e mais útil ao meu irmão como servo."29 Uma fé assim deve ter tido uma influência vital na vida de Rute. A fé de Rute (l:14b-18) Órfã com um beijo se despediu de sua sogra, porém Rute se apegou a ela. l5Disse Noemi: Eis que tua cunhada voltou ao seu povo e aos seus deuses; também tu, volta após a tua cunhada. l6Disse, porém, Rute: Não me instes para que te deixe, e me obrigue a não seguir-te; porque aonde quer que fores, irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. l7Onde quer que morreres, morrerei eu, e aí serei sepultada; faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver, se outra cousa que não seja a morte
  • 34. me separar de ti. wVendo, pois, Noemi que de todo estava resolvidaaircom ela, deixoude insistircom ela. Enquanto Órfã deu prova do seu amor na obediência ao desejo de Noemi de que partisse para se casar novamente, Rute demonstrou o seu amor tornando-se sua filha. Lemos que Rute se apegou a Noemi (versículo 14). Este verbo é a palavra que expressa um "apego" fiel e sincero em um relacionamento pessoal, como o do homem com a esposa no jardim do Éden.30 Também é usado em relação à sincera fidelidade que Deus espera do povo da aliança em resposta à sua iniciativa da graça salvadora.31 Rute, a moabita, ex-adoradora de Camos, está demonstrando uma qualidade de vida característica do povo de Javé. Apesar de Noemi citar o exemplo de Órfã e da óbvia adequabili-dade de que Rute permaneça com o "seu povo", e apesar de que, de acordo com a sabedoria humana, uma adoradora de Camos devesse obviamente permanecer onde os "seus deuses" eram adorados, Rute insiste em ficar com Noemi. O nosso autor apresenta aqui as palavras de Rute, sua clássica e bela afirmação de fidelidade, determinação e compromisso de amor. Rute quer compartilhar do futuro de Noemi: sua viagem, seu lar, sua fé. É a promessa de uma fidelidade sincera na vida e para toda a vida. Ou, por que não dizer, além da vida: os membros de uma família partilhavam do mesmo chão ao serem sepultados, pelo menos na Palestina primitiva;32 e supomos que isto também acontecia com o povo de Rute. Como diz Leon Morris, a firme determinação de Rute é que nada, nem mesmo a morte, vá separá-la de Noemi.33 E no centro desta expressão de amor e compromisso para com Noemi (na viagem, no lar, na família, na vida e na morte) está o compromisso de adorar o Deus de Noemi. Embora, num certo sentido, seja verdade que Rute talvez pensasse que uma mudança para Belém poderia implicar a necessidade de reconhecer "o deus de Belém",34 num outro, a sua fé mostra-se explicitamente mais profunda. Rute está disposta a colocar nos seus lábios o nome do Deus da aliança de Noemi, Javé, o Senhor, numa determinada profissão de fé naquele que fundamenta o seu juramento. Faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver: esta expressão deveria incluir um gesto invocando a punição de Javé sobre ela, caso deixasse de cumprir o seu voto. A fé de Noemi com certeza era tão eficaz, mesmo na adversidade, apontando para o governo soberano de Javé, que Rute, através do testemunho de Noemi, foi agora capaz de exercer a sua própria fé no Deus dela e de se considerar agora como parte do povo da aliança de Javé. Não teria sido precisamente a fé de Noemi, em meio às incertezas, que mostrou a Rute o Senhor? Com que frequência o Senhor usa as experiências do seu povo, especialmente em períodos de aflição e dificuldades, para atrair outros a si! Quando Moisés foi ao encontro de Jetro, seu sogro, ele contou "tudo o que o Senhor havia feito a Faraó e aos egípcios por amor de Israel, todo o trabalho que passaram no Egüo, e como o Senhor os livrara." Jetro se regozijou pelo livramento cheio de graça de Deus: "Agora sei que o Senhor é maior que todos os deuses."35 Da mesma forma, Paulo, preso sob a guarda romana, o que ele considerava como parte de sua "incumbência"36 para com Cristo, escreve aos leitores em Filipos: "Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm antes contribuído para o progresso do evangelho."37 Por meio dos seus sofrimentos a igreja foi incitada a uma renovada devoção e Cristo foi pregado.
  • 35. Aqui, nesta passagem, o Senhor está atraindo Rute à fé, certamente usando como testemunho persuasivo a experiência da graça de Noemi através da aflição. Um Deus que se revela no vale das sombras é digno de nossa confiança também nos dias de maior conforto. Noemi ou Mara? (1:19-22) Então ambas se foram, até que chegaramaBelém;sucedeuqueaochegaremali,todaacidadesecomoveu porcausadelas,easmulheresdiziam:Nãoéesta Noemi? 20Porémelalhesdizia:NãomechameisNoemi,chamai- me Mara; porque grande amargura me tem dado o Todo-poderoso. 2}Ditosa eu parti, porém o Senhor me fez voltarpobre;porque,pois,mechamareisNoemi,visto queoSenhorsemanifestoucontramim,eoTodo-poderoso me tem afligido? 22Assim voltouNoemi da terra de Moabe, com Rute, sua nora, a moabita; e chegaramaBelém no princípiodasegadascevadas. Quando Noemi viu que Rute estava "resolvida", firmemente determinada por uma decisão inabalável (1:18), ela concordou, e as duas viúvas seguiram juntas para Belém. Quando chegaram, os homens, ao que parece, estavam fazendo a colheita da cevada, no começo da sega, isto é, em abril. Mas as mulheres (Knox as restringe a "todas as fofoqueiras"!) começaram a fazer perguntas. Noemi estivera fora durante muitos anos. Ela partira com marido e dois filhos, e voltava agora viúva com uma nora viúva. Talvez sua aparência falasse da amargura que tinham experimentado. Quando lhe perguntaram: Não é esta Noemi?, o jogo de palavras com o significado do seu nome é comovente: Não me chameis Noemi (que significa "alegre"); antes, chamai-me Mara (que significa "amargura"). Conforme percebemos em 1:13, ela crê que as amargas experiências que enfrentou vieram da mão de Deus: "porquegrande amargura me tem dado o Toâo-Poderoso." O Todo-poderoso O título divino traduz a palavra hebraica Shadai, geralmente usada no Pentateuco e particularmente em Génesis. Discordam os autores sobre o significado de sua raiz, sugerindo alguns que mais provavelmente a etimologia relacione "Shadai" com "montanha", no sentido qualitativo de possuir durabilidade, solidez e veracidade.38 Contudo, se verificarmos o seu uso em Génesis, descobriremos três referências que podem esclarecer o seu significado, levando-nos ao pensamento de Noemi ao usá-lo. Primeiro, em Génesis 17:1, descobrimos que Deus fez a um Abraão de noventa e nove anos de idade a promessa de gerar filhos, e se revela como "Deus Todo-poderoso". Aqui ele é o Deus que pode transformar a impotência do homem em bênção, para o bem do próprio homem e para a sua glória. Segundo, em Génesis 43:14, o velho Jacó, em sua perplexidade, concorda relutantemente com que os seus angustiados filhos retornem ao Egito, levando o irmão mais moço para o (até então) ainda não identificado José: "Deus Todo-poderoso vos dê misericórdia perante o homem." "Shadai" aqui fala da esperança da proteção de Deus para um período de incertezas. E, terceiro, em Génesis 49:25, a profecia de Jacó sobre os seus filhos fala da futura "fertilidade" de José apesar de todo o "embaraço", e o atribui ao "Todo-poderoso, o qual te abençoará com bênçãos dos altos céus, com bênçãos das profundezas, com bênçãos dos seios e da madre." Depois de treze anos de sofrimento e isolamento na prisão, José é elevado a primeiro ministro do Egito! Esse tipo de bênção é característico de Shadai. E é com referência a esse aspecto do caráter de Javé descrito por "Shadai" ("o
  • 36. Deus que é melhor quando o homem está na pior", como J. A. Motyer uma vez expressou) que Noemi apresenta a estrutura de sua fé naquele em quem ela deposita o seu sofrimento. É como se ela dissesse: "Vocês podem ver a amargura que tenho experimentado: a fome, a perda de entes queridos, as dúvidas, as separações, o aparente desespero; mas eu conheço Deus como Shadai, e posso deixar as explicações, e até mesmo a responsabilidade, desta amargura com ele." Será que ela não estava conseguindo enfrentar a realidade? Será que Noemi estava errada em pensar assim? Será que ela estava acusando Deus do mal que sofria, usando aquele tipo de astuta explicação mais apropriada aos inúteis consoladores de Jó ao invés de observações que eram fruto de uma fé amadurecida? Não nos parece assim. Antes, parece que é exatamente a chave de como uma pessoa de fé aprende a enfrentar a dor e a incerteza das muitas tribulações da vida. Em um mundo, no qual, da perspectiva humana, as palavras do Pregador parecem sobremodo verdadeiras ("Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento")3'1, suas outras palavras podem fornecer o contexto completo, a perspectiva mais ampla dentro da qual a "vaidade" pode ser enfrentada: "não sabes as obras de Deus, que faz todas as cousas".40 É a pessoa que conhece o seu Deus como Shadai que pode perceber a outra história: que até mesmo a aparente falta de significado do sofrimento terreno faz parte de um padrão da providência, e pode ser enfrentada quando colocada nas mãos de Deus. E não apenas Shadai, pois o Deus que se revelou nessa característica é o Deus que também declarou o seu nome ao seu povo: Javé, um nome que aponta para o seu amor expresso na aliança. E Noemi sabe que o Shadai com o qual ela pode deixar sua amargura é o Javé que a trouxe para casa. Conta-se a história de um pregador que usava como ilustração os fios emaranhados do avesso de uma tapeçaria, destacando que grande parte da experiência desta vida "debaixo do sol", neste mundo decaído e afligido pelo pecado, em todos os seus diferentes caminhos, geralmente nos parece ser uma confusão de cores sem relação alguma, fios soltos e nós indesembaraçáveis. Apenas quando o outro lado da tapeçaria se torna visível é que esses mesmos fios nos apresentam o que foi bordado: "Deus é Amor". Talvez não vejamos o outro lado, que nós chamamos de "outra história", que está sendo escrito ao longo e ao redor da história humana a qual nós lemos às vezes de maneira tão dolorosa. Mas a fé é a garantia divina de que esse outro lado existe, e de que, no seu amor, até mesmo o sofrimento tem um significado. Este é um tema exemplificado em outras passagens das Escrituras. Quando o salmista ficou desesperado por causa da prosperidade dos perversos e da aparente futilidade de uma vida honesta, de modo que até a sua própria fé parecia estar sendo tragada pela calamidade e pela dúvida, ele achou que era "mui pesada tarefa" tentar compreendê-lo. "Até que entrei no santuário de Deus": então o homem perverso e ele mesmo foram vistos a uma nova luz. Ele pôde, apesar da contínua incerteza, exclamar: "Todavia, estou sempre contigo, quanto a mim, bom é estar junto a Deus; no Senhor Deus ponho o meu refúgio."41 Davi também, no Salmo 30, chegou a "clamar" a Deus pedindo ajuda. Ele experimentou o que chama de "ira" de Deus. Ele chora e suplica a Deus, e descobre que até mesmo a profunda tristeza pode produzir alegria. O visitante noturno que chega vestido de "choro" é transformado pela luz do dia em exclamações de alegria.42