O documento resume o capítulo 4.1 da obra "Crítica da Razão Pura" de Immanuel Kant. Nele, Kant apresenta o programa de uma crítica transcendental da razão, mostrando como a metafísica se encontrava em uma situação problemática devido às disputas entre racionalistas, céticos e empiristas. Kant propõe uma solução para essas disputas através de uma autocrítica da razão, na qual a razão julga a si mesma de forma imparcial para determinar os limites e possibilidades do conhecimento.
PROJETO DE EXTENSÃO I - TERAPIAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES.pdf
277123066-Hoffe-Kant.pdf
1. Otfried Hõffe
Immanuel Kant
Tradução
CHRISTIAN VIKTOR HAMM
VALERIO ROHDEN
Martins Fontes
São Paulo 2005
II. O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA
DA RAZÃO PURA
4. O PROGRAMA DE UMA CRíTICA
TRANSCENDENTAL DA RAZÃO
4.1 - O campo de batalha da metafísica
("Prefácio" à primeira edição)
Kant denomina a ciência fundamental filosófica, por
ele projetada, de filosofia transcendental. Para diferen
ciá-la da filosofia transcendental medieval, pode-se falar
de filosofia transcendental crítica. Kant a desenvolve pri
meiro com referência à razão como faculdade de conheci
mento. Esta ele chama também de razão teórica ou espe
culativa, à diferença da razão prática, ou seja, da faculdade
de desejar. Por isso a primeira crítica pode ser chamada
mais exatamente "crítica da razão especulativa pura" (B
XXII). O fato de Kant renunciar ao adjetivo adicional indi
ca que ele, ao redigir esta obra, estava pensando somente
numa única crítica da razão.
Ainda que às vezes a argumentação tome um cami
nho sinuoso nos seus pormenores, a Crítica da razão pura
2. 34 IMMANUEL KANT
é, no seu conjunto, uma obra bem composta. O "prefá
cio" à primeira edição expõe, num tom dramático, a trá
gica situação em que se encontra a razão humana, uma
situação que exige a sua própria crítica, determinando as
investigações seguintes e encontrando seu desenlace so
mente depois de uma grande volta na segunda parte, a
saber, na "Dialética".
Sem explicações prolixas Kant nos confronta com a
condição precária da metafísica, a qual aparece como ne
cessária e ao mesmo tempo impossível. Pois impõem-se
à razão humana certas questões que não podem ser rejei
tadas, mas tampouco podem ser respondidas (AVII).Tais
questões não podem ser rejeitadas porque a razão busca,
ante a variedade de observações e experiências, certos prin
cípios gerais que revelem essa variedade, não como um
caos, senão como um todo estruturado, como coesão e
unidade. Já as ciências naturais procuram por tais princí
pios, que elas unificam em teorias gerais. A metafísica não
quer outra coisa a não ser continuar perguntando até o
final, em vez de parar a meio caminho. A interrogação se
completa com certos princípios que não estão já condi
cionados por outros; os princípios últimos são incondicio
nais. Enquanto a razão se mantiver na experiência, sem
pre vai encontrar condições cada vez mais remotas, mas
nunca algo incondicionado. Para poder, apesar disso, pôr
fim à interrogação, a razão "recorre a princípios... que
transcendem toda experiência possível, mas que parecem,
não obstante, tão insuspeitos que até o senso comum
consente com eles" (A VIII). Parece que o último funda
mento da experiência se encontra além de toda a expe
riência. Por isso sua investigação se chama metafísica, li
teralmente: além (meta) da física, da natureza.
A tentativa de obter conhecimentos independente
mente da experiência precipita a razão "em escuridão e
O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 35
contradições" (ibid.). Por um lado, mostrará Kant mais tar
de, há boas razões para afirmar que o mundo tem um co
meço, que Deus existe, que a vontade é livre e a alma é
imortal; por outro lado, podemos também encontrar boas
razões para afirmar o contrário, assim como que não é
possível dizer qual é a posição certa. Como os princípios
afirmados devem formar a base da experiência, parece na
tural verificá-los na experiência. Mas esta não pode ser o
critério, já que os princípios metafísicos estão, por defi
nição, além de toda experiência. Aquilo que constitui a
metafísica, a saber, o transcender da experiência, é tam
bém a razão de que ela seja impossível como ciência. Não
são obstáculos externos que se opõem à metafísica. É sua
própria natureza, ou seja, o conhecimento independen
te da experiência ou conhecimento puro da razão, que a
estorva; assim, a metafísica se toma campo primordial de
disputas intermináveis (AVIII).
A primeira das partes litigantes constitui a metafísi
ca racionalista, representada na época moderna por no
mes como Descartes, Espinosa, Malebranche e Leibniz,
entre outros. Kant pensa, todavia, primeiro na metafísica
escolar de Wolff, que nesta época prevalece nas cátedras
universitárias. Wolff considera a experiência como fonte
genuína de conhecimento, mas acredita, porém, na possi
bilidade de conhecer algo sobre a realidade com o mero
pensar (razão pura). Kant toma os racionalistas por dog
máticos e despóticos porque impõem ao homem deter
minadas suposições básicas sem crítica prévia da razão,
por exemplo, que a alma é de natureza simples e imortal,
que o mundo tem um começo e Deus existe.
As controvérsias entre os dogmáticos fazem com que
a metafísica acabe em anarquia, e como segunda parte li
tigante aparecem os céticos, que minam "os fundamentos
3. 36 IMMANUEL KANT
de todo o conhecimento... em uma ignorância artificial"
(B 451) e "liquida(m) sumariamente toda a metafísica" (B
XXXVI). Mas eles não podem impedir que os dogmáticos
continuem sempre retomando a palavra. Para Kant, é John
Locke (1632-1704) que em tempos recentes fez a tentativa
de pôr fim a todas as disputas mediante uma"fisiologia"
(teoria da natureza, literalmente) "do entendimento hu
mano" (A IX). John Locke, que rejeita no An Essay concer
ningHuman Understanding [Ensaio acerca do entendimen
to humano, 1690] a doutrina cartesiana das idéias e princí
pios inatos, representa o empirismo, doutrina que funda
menta em última instância todo conhecimento em uma
experiência interna ou externa, negando assim qualquer
possibilidade de um conhecimento extra-empírico. Já que
David Hume, o filósofo cujo ceticismo despertou Kant do
"sono dogmático" (cf. capítulo 3.1), também pertence aos
empiristas (cf. B 127 s.), Kant entenderá, na "Dialética
transcendental", a luta pela metafísica como uma disputa
entre o racionalismo e o empirismo.
As controvérsias entre os dogmáticos, os céticos e os
empiristas levam àquela indiferença que, se não elimina as
perguntas da metafísica, ao menos as exclui do campo de
uma filosofia que pretenda ser científica. Esta é a posição
de um iluminismo vulgar que trata com desprezo a me
tafísica, outrora "rainha de todas as ciências" (AVIII s.).
Mas a indiferença em relação à metafísica, diz Kant, não
pode ser mantida; porque "aqueles pretensos indiferentis
tas. . ., na medida em que pensam realmente alguma coi
sa", recaem "inevitavelmente em afirmações metafísicas"
(A X). Com efeito, fazem enunciados sobre os últimos prin
cípios, sobre o fundamento empírico ou supra-empírico
do conhecimento, tomam partido na disputa - contradi
zendo-se - e renovam o campo de batalha da metafísica.
O QUE POSSO SABER? A CRíTICA DA RAZÃO PURA
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Figura 6. Crítica da razão pura. Folha de rosto da primeira edição.
4. 38 IMMANUEL KANT
Kant não se esquiva das perguntas da metafísica nem
adere a uma das partes litigantes. Segue a única via, ain
da inexplorada, que libera realmente a metafísica de sua
situação aporética: o estabelecimento de um tribunal. Em
lugar da guerra aparece o processo judicial, que examina
imparcialmente as possibilidades de um conhecimento
puro da razão, ratifica as aspirações legítimas e rejeita as
pretensões sem fundamento. Um exame dessa natureza,
que envolve discernimento e justificação, se chama, no
sentido original do termo, "crítica" (em grego krinein: dis
tinguir, julgar, levar ante o tribunal). O título kantiano de
"Crítica" não significa uma condenação da razão pura, se
não uma"determinação tanto das fontes, como da exten
são e dos limites dela, porém tudo a partir de princípios"
(AXII). (Encontramos as primeiras tentativas de uma crí
tica na pergunta, primeiro de Locke, depois de Hume,
sobre a capacidade humana de conhecimento.)
Umavez quetodo conhecimento independente da ex
periência não pode ter, por definição, o seu fundamento
na experiência, precisa ser investigada a possibilidade de
um conhecimento puro da razão pela própriarazão pura.
No tribunal que Kant instaura para resolver o caso "dog
matismo contra empirismo e ceticismo", é a razão pura
que se julga a si mesma. A Crítica da razão pura é o auto
exame e a autolegitimação da razão independente da ex
periência.
É na autocrítica que a razão manifesta o seu poder;
mas este poder serve para sua autolimitação. Na primeira
parte da Crítica, na Estética e na Analítica, encontra-se o
código que contém um primeiro juízo sobre a disputa em
torpo da metafísica: em contraposição ao empirismo exis
tem fundamentos independentes da experiência, e por isso
um conhecimento rigorosamente universal e necessário;
porém este conhecimento se limita, contrariamente ao ra-
O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 39
cionalismo, ao âmbito da experiência possível. Logo, na
segunda parte, na Dialética, o processo é levado a cabo
formalmente é decidido de forma definitiva. Com rela
ção a objetos além de toda a experiência, a razão se mos
tra sem consistência. Assim que ela se move somente no
âmbito de seus próprios conceitos, incorre em contradi
ções. Kant recusa tanto o empirismo como o racionalis
mo; existem idéias puras da razão - mas meramente como
princípios regulativos a serviço da experiência.
No decorrer do auto-exame, a razão rejeita o raciona
lismo porque o pensamento puro não é capaz de conhecer
a realidade. Porém, a razão rejeita também o empirismo.
É verdade que Kant admite que todo conhecimento come
ça com a experiência; mas não resulta disso, como supõe o
empirismo, que o conhecimento provenha exclusivamen
te da experiência. Pelo contrário, mesmo o conhecimento
empírico se mostra impossível sem fontes independen
tes da experiência.
Uma formabásica do conhecimento empírico consis
te na conexão de dois eventos, como causa e efeito. Loc
ke derivou os conceitos de causa e efeito da experiência,
admitindo, contudo, a possibilidade de um conhecimen
to além da experiência. Kant considera isso um"devaneio"
(B 127); certos supostos fundamentais da experiência,
como o princípio de causalidade ("todas as transformações
sucedem conforme ao princípio de causa e efeito"), não
são produto da experiência, nem possibilitam um conhe
cimento além da experiência. Mas os supostos fundamen
tais também não nascem do hábito (psicológico), como
acredita Hume (ibid.). Eles são universalmente válidos, de
modo que Kant finalmente, em contraposição ao ceticismo,
acha possível um conhecimento objetivo. Demonstrando
a existência de certas condições da experiência não em
píricas e, portanto, universalmente válidas, Kant mostra
5. 40 IMMANUEL KANT
que a metafísica é possível, mas, em contraposição ao ra
cionalismo, somente como teoria da experiência, e não
como uma ciência que transcende o âmbito da experiên
cia; e, à diferença do empirismo, não como teoria empí
rica, senão como teoria transcendental da experiência
(cf. cap. 4.5).
Convencido da importância histórica de sua crítica
da razão, Kant fala orgulhosamente da "erradicação de to
dos os erros" (AXII). Ele acredita ter especificado as ques
tões,"com base em princípios e de forma completa" (ibid.)
afirmando ousadamente "que não deve haver um só pro
blema metafísico que não tenha sido solucionado aqui
ou para cuja solução não se tenha fornecido ao menos a
chave" (A XIII). Esta pretensão de Kant parece, pelo me
nos, exagerada. A idéia de que "nada resta à posteriori
dade senão a sistematização de tudo em forma didática"
(A XX) é desmentida não só pela história da filosofia
posterior a Kant, como também pelo desenvolvimento
do pensamento do próprio Kant até seu Opus postumum.
No entanto, não resta nenhuma dúvida: o programa kan
tiano de uma crítica da razão e seus elementos principais,
como a virada copernicana para o sujeito transcendental
e a ligação entre teoria do conhecimento e teoria do ob
jeto, a demonstração de elementos apriorísticos em todo
conhecimento e a distinção entre fenômeno e coisa em
si, causaram uma profunda reforma da Primeira Filoso
fia, que tradicionalmente é chamada metafísica.
4.2 A revolução copernicana ("Prefácio"
à segunda edição)
À diferença do primeiro Prefácio, no qual Kant ainda
precisa chamar a atenção do leitor, o Prefácio à segunda
O QUE POSSO SABER?A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 41
edição deixa transparecer a serenidade de um autor que
está seguro do caráter revolucionário de suas idéias. Kant
integrou os Prolegômenos à sua Crítica alcançando assim,
em algumas partes, uma clareza maior. Como os proble
mas aparecem em geral mais distintamente na segunda
edição, a seguinte exposição basear-se-á nela.Aidéia prin
cipal é a revolução copernicana do pensamento.
Kant pretende levar a metafísica "ao caminho segu
ro de uma ciência" (BVII). Por isso ela não pode cada vez
recomeçar, mas deve avançar. Fazer progressos só é pos
sível quando se procede conforme a um plano e se se
guem metas e quando os especialistas na matéria con
cordam no que se refere à forma do procedimento. Mas
na metafísica não existe um consenso sobre o método;
por isso, ela não pode esperar nenhum progresso, apesar
do esforçode dois mil anos. Na Crítica da razão pura Kant
pretende fornecer esse novo método. O escrito ainda não
contém a metafísica como ciência, mas sim o seu pressu
posto necessário; ele é um "tratado do método" (B XXII).
A exemplo de três disciplinas universalmente reco
nhecidas até hoje como ciências, a lógica, a matemática
e a ciência natural, Kant mostra como se descobre o ca
minho seguro da ciência. O caso mais simples é o da ló
gica.Visto que ela investiga nada mais que as "regras for
mais de todo o pensamento" (B IX), ela seguiu "desde os
tempos mais remotos" (B VIII), nomeadamente desde
Aristóteles, o caminho seguro da ciência. Como nela o
entendimento "só se ocupa de si mesmo e de sua forma",
a lógica é simplesmente o "vestíbulo das ciências" (B IX)
e desempenha na crítica da razão o papel de padrão ne
gativo para as ciências reais.
As ciências reais também se ocupamde objetos.Após
uma fase de "andar às cegas", elas encontram o caminho
6. 42 IMMANUEL KANT
seguro da ciência "graças à intuição feliz de um só ho
mem". Essa intuição fundadora da ciência consiste em
uma "revolução no modo de pensar" (B )([). No caso da
matemática, esta revolução aconteceu já na Antiguidade e
consiste numa idéia que se pratica em toda demonstração
geométrica: para os fins da ciência, não basta ver simples
mente uma figura geométrica ou meramente perseguir seu
conceito; é preciso construí-la a priori segundo conceitos
próprios (BXI s.). Esta idéia tem graves conseqüências: de
uma coisa só se pode saber com certeza aquilo que se co
locou no seu conceito; só mediante um pensar e um cons
truir criativos toma-se possível o conhecimento científico.
Porém, aquilo que se coloca no objeto não pode proceder
dos nossos preconceitos pessoais; do contrário, tratar-se-ia
de ocorrências arbitrárias mas não de um conhecimento
objetivo. A matemática como ciência se deve então a uma
condição aparentemente impossível: um suposto subjetivo
que, no entanto, é objetivamente válido.
Na ciência natural, Kant descobre a mesma estrutura
básica. Para se tomar ciência, também a física necessita
de "uma revolução do seu modo de pensar" (BXIII). Esta
consiste na idéia proposta pelo filósofo britânico Bacon
(1561-1626), mas só realizada nos experimentos de Ga
lilei e de Torricelli, de que a razão só conhece da nature
za "o que ela mesma produz segundo o seu projeto".
Como confirmam os cientistas modernos em sua prática
e em sua teoria, eles não desempenham ante a natureza
o papel "de um aluno que se deixa ditar tudo o que o
professor quer, mas sim o de um juiz nomeado que abri
ga as testemunhas a responder às perguntas que ele lhes
propõe" (ibid.).
Para que também a metafísica alcance finalmente a
dignidade de uma ciência, Kant propõe que ela faça igual-
O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 43
mente uma revolução em seu modo de pensar, uma re
volução que coloque, como no caso da matemática e da
ciência natural, o sujeito cognoscente numa relação cria
dora com o objeto. Kant entende sua proposta como uma
hipótese, como um experimento da razão que só pode se
justificar pelo seu próprio sucesso. Sua filosofia trans
cendental não pretende de modo algum, como se objeta
freqüentemente, ser uma teoria infalível, o que significa
ria contradizera condição mínima da epistemologia atual,
ou seja, o postulado de falibilidade. Só que a refutação
dos projetos transcendentais de pensamento não é pos
sível com os recursos das ciências empíricas. Por tratar-se
de experimentos da razão, só podem validar-se por meio
da razão ou, porém, fracassar ante ela.
O experimento da razão confirma-se em duas etapas.
Por um lado, acredita Kant, sua proposta permite funda
mentar a objetividade da matemática e da ciência natu
ral (matemática); isto ocorre na "Estética transcendental"
e na "Analítica transcendental". A Crítica da razão pura
contém em suas duas primeiras partes uma teoria filosó
fica da matemática e da ciência natural matemática. Em
oposição a algumas tendências do neokantismo, que re
duzem a primeira crítica da razão a uma mera "teoria da
experiência" (Cohen, 1924), o escrito tem mais uma par
te, a "Dialética transcendental". Nesta última, Kant mos
tra que no modo tradicional de pensar o objeto da meta
física, o incondicionado, "não pode ser pensado sem con
tradição" (B XX). Em contrapartida, com o novo modo de
pensar, as contradições (antinomias) desaparecem. Nis
so reside a contraprova em favorda revolução no modo de
pensar: a razão se reconcilia consigo mesma, de modo
que o experimento pode ser considerado bem-sucedido
e a proposta verdadeira e fundada.
7. 44 IMMANUEL KANT
Kant compara sua proposta com a descoberta do as
trônomo Copérnico; o experimento da razão tornou-se,
por isso, célebre como "revolução copernicana". Kant vê
a importância histórica de Copérnico não na refutação de
uma teoria astronômica tradicional. Copérnico faz algo
muito mais fundamental: ele supera a perspectiva de uma
consciência natural, evidenciando o caráter ilusório da
idéia da rotação do Sol em torno da Terra, encontrando a
verdade, antes, numa nova posição, não mais natural, do
sujeito ante seu objeto, ou seja, ante o movimento do Sol
e dos planetas. De modo semelhante, na Crítica da razão
pura, Kant pretende apresentar mais que uma mera re
futação de teorias metafísicas. Ele supera não apenas o
racionalismo, o empirismo e o ceticismo; funda, sobretu
do, uma nova posição do sujeito em relação à objetivida
de. O conhecimento não deve mais regular-se pelo obje
to, mas sim o objeto pelo nosso conhecimento (B XVI).
Esta exigência pode parecer absurda à consciência
natural. Pois fala-se, em contraposição a um conhecimen
to subjetivo, de um conhecimento objetivo somente onde
se vêem as coisas como são em si, portanto, independen
tes do sujeito. A revolução kantiana do modo de pensar
exige que a razão humana se livre desta sua perspectiva
natural limitada, ou seja, do realismo gnosiológico. Kant
afirma que a necessidade e a universalidade que perten
cem ao conhecimento objetivo não nascem, como nós
costumamos pensar, dos objetos, mas se devem ao sujei
to cognoscente. Não obstante, Kant não quer dizer que
o conhecimento objetivo depende da constituição empí
rica do sujeito, da estrutura do cérebro, da filogênese e das
experiências sociais do homem. Tal afirmação seria até
absurda para Kant. O que é investigado são as condições
do conhecimento objetivo que independem da experiên-
O QUE POSSO SABER?A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 45
cia, condições estas que se encontram na constituição pré
empírica do sujeito.
A revolução copernicana de Kant significa que os
objetos do conhecimento objetivo não aparecem por si
mesmos, mas eles devem ser trazidos à luz pelo sujeito
(transcendental). Por isso eles não podem mais ser con
siderados como coisas que existem em si, mas como fe
nômenos. Com a mudança do fundamento da objetivida
de, a teoria do objeto, a ontologia, passa a depender de
uma teoria do sujeito, de modo que não pode mais ha
ver uma ontologia autônoma. O mesmo vale para a teoria
do conhecimento. O substancial da Crítica da razão pura
consiste na interligação de ambos os lados; uma teoria
filosófica do ente, ou seja, daquilo que um objeto é obje
tivamente, só pode ser elaborada, segundo Kant, como
teoria do conhecimento do ente, e uma teoria do conhe
cimento apenas como determinação do conceito da ob
jetividade do objeto.
4.3 A metafísica como ciência, ou sobre
a possibilidade de juízos sintéticos
a priori ("Introdução")
Kant explica o modo específico do saber da metafí
sica, isto é, o conhecimento puro da razão, e também o
caráter do saber da matemática e da ciência pura da na
tureza mediante uma dupla divisão disjuntiva: 1) os co
nhecimentos são válidos ou a priori ou a posteriori; 2) os
juízos são ou sintéticos ou analíticos. A relevância gno
siológica e epistemológica dessas duas distinções não tem
diminuído até hoje. No entanto, as definições de Kant não
se mostram mais suficientemente exatas, e a procura de
8. 46 IMMANUEL KANT
conceitos precisos dá lugar a dificuldades que fizeram
com que pragmatistas como M. G. White e Quine colo
cassem em dúvida a utilidade de tais conceitos.
A priori - a posteriori
Primeiro Kant assume, como se fosse natural, apo
sição do empirismo, seguindo a crítica de Locke referen�
te às idéias inatas de Descartes e afirmando que, pelo
menos segundo o tempo,"todo nosso conhecimento co
meça com a experiência" (B 1). É certo que também ra
cionalistas como Leibniz ou Wolff não teriam dúvida em
afirmar com Kant que não é possível conhecimento al
gum sem "objetos que afetem nossos sentidos e em par
te produzam por si próprios representações, em parte
ponham em movimento a nossa atividade do conheci
mento" (ibíd.). Mas o início no tempo - é isso que Locke
não vê (cf. XVIII 14)- não significa a origem reat da pri
mazia temporal não se segue que não exista outra fonte
de conhecimento fora da experiência. Por isso, o empiris
mo que sustenta esta exclusividade incorre em uma ge
neralização inadmissível. A hipótese de que "mesmo o
nosso conhecimento de experiência seja um composto
do que recebemos por meio de impressões e do que o
nosso próprio poder de conhecimento (apenas provoca
do por impressões sensíveis) fornece de si mesmo" (B 1)
é, segundo Kant, também compatível coma primazia tem
poral da experiência e merece por isso uma investigação
mais detalhada. Com esta hipótese Kant propõe uma
mediação entre o empirismo de Locke e o racionalismo
de Descartes.
O conhecimento que tem sua origem na experiência
Kant chama-o de a posteríori ("posterior", por se basear
em impressões sensíveis); e o conhecimento que é inde-
O QUE POSSO SABER?A CRíTICA DA RAZÃO PURA 47
pendente de toda impressão dos sentidos chama-se a
priori ("anterior", porque sua fundamentação independe
de qualquer experiência). De acordo com a crítica ao em
pirismo e o programa de um conhecimento puro da ra
zão, Kant se interessa por aqueles conhecimentos que
são puramente a priori, já que "a eles não se mescla nada
de empírico" e se realizam não só "independentemente
desta ou daquela experiência, mas de modo absolutamen
te independente de toda a experiência" (B 3).
Para distinguir entre o conhecimento puramente
apriorístico e o conhecimento empírico, Kant indica duas
características que já foram introduzidas por Platão eAris
tóteles (p. ex., nos Segundos analíticos, cap. I 2) a fim de
discernir o verdadeiro saber (episteme: ciência) da mera
opinião (doxa): a necessidade rigorosa, em virtude da qual
algo não pode ser outra coisa do que ela é, e a generali
dade absoluta que "não permite nenhuma exceção como
possível" (B 4). Como a experiência somente comprova
fatos, mas não a impossibilidade de poder ser outra coisa
nem a impossibilidade de uma exceção, a generalidade
absoluta e a necessidade rigorosa são, de fato, as carac
terísticas do a priori puro.
Analítico- sintético
O primeiro par conceitual"a priori- a posteríorí"dis
tingue os conhecimentos, segundo sua origem, em conhe
cimentos da razão ou da experiência. O segundo par con
ceitual, "analítico - sintético", responde à pergunta acerca
do que decide a verdade de um juízo: "O fundamento le
gítimo da ligação entre sujeito e predicado se encontra
no sujeito ou fora dele?" Ainda q�e algumas explicações
de Kant possam causar um mal-entendido psicológico,
Kant não entende por "juízos" os processos psicológicos
9. 48 IMMANUEL KANf
do ato de julgar, mas - de modo lógico - enunciados ou
afirmações, a saber, aquelaligação (síntese) de represen
tações que pretende validade objetiva. Para Kant os juízos ... ·
lingüisticamente têm a estrutura de sujeito e pn:�diéádo,
a partir da qual surge a definição de juízos analíticos e
sintéticos. No entanto, como existem juízos que não pos
suem estrutura de sujeito-predicado, a definição kantia
na teria que ser ampliada.
Kantdesigna como analíticos todos os juízos cujo pre
dicado está contido ocultamente no conceito do sujeito
(B 10). Assim ele considera como analiticamente verda
deira a afirmação de que todos os corpos são extensos,
porque se pode verificar independentemente de toda ex
periência pela mera análise do sujeito "corpo" que este
contém em si o predicado "extenso". Sobre a verdade de
proposições analíticas decidem unicamente os conceitos
do sujeito e do predicado, assim como o princípio de
contradição (B 12), que Kant considera como princípio
de toda a lógica formal (cf. B 189 ss.). Segundo Leibniz,
proposições analíticas são verdadeiras em todos os mun
dos possíveis, segundo Kant sua negação implica uma
contradição. No entanto, para M. G. White e W.V. O. Qui
ne, ambas as explicações não resolvem o problema, já
que os conceitos de "mundo possível" e de "autocontra
dição" precisam por sua vez ser explicados. Mas até essa
crítica é controversa.
Para Kant, "analiticamente verdadeiro" não tem o
mesmo significado que "verdadeiro por definição", uma
vez que ele considera a definição exata e completa como
uma condição mais rigorosa; juízos analíticos podem ser
formados com conceitos cuja definição exata e completa
(ainda) não se conhece. Juízos analíticos podem versar
sobre objetos que pertencem ao mundo da experiência e
O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 49
podem afirmar, por exemplo, que todo "Schimmel" [cavalo
branco] é branco, que nenhum solteiro é casado, ou - com
Kant (B 192) - que um homem inculto não é culto. Po
rém, a verdade do conteúdo afirmado não se decide pela
experiência, mas unicamente com a ajuda de leis lógicas
elementares, pressupondo as regras semânticas daquela
língua em que a afirmação é formulada. Ainda que as re
gras semânticas constituam fatos empíricos e possam va
riar, os juízos analíticos são, segundo Kant, necessaria
mente verdadeiros. Pois a analiticidade não se refere a
regras semânticas, mas- uma vez pressupostas as regras
semânticas- somente à relação entre o conceito do su
jeito e o conceito do predicado. Se as regras semânticas
mudam e, por exemplo, se "Schimmel" não significa mais
"cavalo branco", então não teríamos mais um juízo ana
lítico, apesar de usarmos o mesmo termo.
Sintéticos são todos os juízos não-analíticos, ou seja,
todas aquelas afirmações cuja verdade - supostas as re
gras semânticas da linguagem - não pode ser encontra
da unicamente com a ajuda do princípio de contradição,
ou, mais geralmente, com a ajuda das leis lógicas. Juízos
analíticos só explicam o sujeito através do predicado; juí
zos sintéticos, ao contrário, ampliam o conhecimento
acerca do sujeito.
A dupla distinção "analítico - sintético" e "a priori -
a posteriori" permite ao todo quatro possibilidades de
combinação: (1) juízos analíticos a priori; (2) juízos ana
líticos a posteriori; (3) juízos sintéticos a priori e (4) juízos
sintéticos a posteriori. Duas destas, a saber, (1) e (4), não
são problemáticas, enquanto uma terceira possibilidade
(2) é descartada. Juízos analíticos são válidos a priori por
seu próprio conceito (1), por isso não pode haver juízos
analíticos a posteriori (2). O fato de que a ampliação (sin-
10. 50 IMMANUEL KANT
tética) do conhecimento humano se dá pela experiência
é óbvio para nós e não oferece nenhuma dificuldade; os
juízos empíricos (4) são sempre sintéticos.. (1311);'seu
fundamento é constituído pela experiência.
À diferença dos juízos analíticos a posteriori, os juí
zos sintéticos a priori (3) são possíveis conceitualmente.
A questão se essa possibilidade conceitual pode realizar
se, isto é, se há de fato juízos sintéticos a priori e, portanto,
a ampliação do conhecimento anterior a toda a experiên
cia, esta questão decide sobre a possibilidade da metafísi
ca como ciência. Pois, à diferença da lógica, a metafísica
deve ampliar o conhecimento humano; seus enunciados
são sintéticos. Como a metafísica consiste em um conhe
cimento puro da razão, ela carece da legitimação pela ex
periência; seus juízos são válidos a priori. Assim a per
gunta fundamental da Crítica da razão pura é: "Como são
possíveis juízos sintéticos a priori?" Esta pergunta é ao
mesmo tempo a "questão vital" da filosofia. Da resposta
dependem, com efeito, a possibilidade da existência de
um objeto próprio de investigação para a filosofia e a pos
sibilidade de um conhecimento genuinamente filosófico,
diferente do conhecimento nas ciências analíticas e em
píricas.
À primeira vista um conhecimento independente da
experiência e ao mesmo tempo sintético parece insólito
e, por isso, bastante remota a possibilidade de uma filo
sofia autônoma. No entanto, as possibilidades aumentam
consideravelmente se não só na metafísica mas também
em todas as ciências teóricas ocorrem, como Kant afir
ma, juízos sintéticos a priori. Neste caso, o conhecimen
to da metafísica não ficaria fora do"continuum das ciên
cias". Na sua primeira fase, o empirismo lógico (Schlick,
Carnap, Reichenbach) afirmará que já o conceito de um
O QUE POSSO SABER?A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 51
conhecimento sintético a priori é contraditório, pois a ló
gica e a experiência são as únicas fontes de conhecimento.
Porém, mais tarde ele admitirá que as ciências empíricas
contêm proposições, a saber, proposições nomológicas,
que podem ser apenas confirmadas ou falsificadas pela
experiência, mas não fundamentadas por ela.
Segundo Kant, o caráter sintético a priori da geome
tria e, em geral, da matemática se fundamenta sobretu
do nos princípios como, por exemplo, que a linha reta é
a distância mais curta entre dois pontos (B 16). Mesmo
que os teoremas matemáticos possam ser deduzidos dos
princípios de modo puramente lógico e tenham, portanto,
aspecto lógico, eles somente são válidos sob o pressu
postodos princípios sintéticos, motivo pelo qual Kant afir
ma que"juízos matemáticos são em geral sintéticos" (B 14).
No caso da ciência natural (física), apenas os seus prin
cípios possuem caráter sintético a priori. Como exemplos
Kant cita elementos da física clássica: o princípio da con
servação da matéria e o princípio da igualdade de ação e
reação, isto é, o terceiro axioma de Newton (B 17 s.).
Como a matemática e a ciência natural devem a sua
validade objetiva a elementos independentes da experiên
cia, a pergunta fundamental da Crítica sobre a possibili
dade de juízos sintéticos a priori divide-se, primeiro, nas
duas perguntas específicas: como são possíveis 1) a ma
temática pura e 2) a ciência natural pura. A elas se acres
centa, como pergunta básica, 3) como é possível a meta
física como ciência. Kant responde às duas primeiras
perguntas na estética transcendental e na analítica trans
cendental. A primeira parte da Crítica oferece, pois, uma
epistemologia da matemática e da ciência natural, mas não
no sentido de uma teoria empírico-analítica, mas de uma
crítica da razão. Aliás, a Crítica desenvolve uma teoria de
11. 52 lMMANUEL KANT
ciências não filosóficas exclusivamente para a matemática
e a ciência natural matemática. Pois, para Kant, são uni
camente estas ciências que representam exemplos indu
bitáveis de conhecimento objetivo. As ciências da histó
ria, da literatura e as ciências sociais não são tomadas em
consideração. Isso não tem a ver apenas com o fato de
que estas estavam pouco desenvolvidas na época de Kant.
Kant possui um conceito muito rigoroso de ciência que
não abarca tudo o que se entende hoje por ela. A "ciên
cia autêntica"exige quea sua certeza seja apodítica (neces
sária); "conhecimento que pode conter certeza meramen
te empírica é apenas um saber em sentido impróprio"
(MAN, IV 468). Na Crítica, Kant afirma que aquele mun
do real, que consideramos objetivo em oposição a todos
os mundos fictícios ou subjetivos, coincide com o mun
do da matemática e da ciência natural matemática.
Sem dúvida, uma das razões fundamentais do enor
me sucesso e da influência duradoura da Crítica da razão
pura deve-se a esta dupla circunstância: primeiro, Kant não
só reconhece a primazia do saber da matemática e da
ciência natural matemática, mas também o fundamenta
filosoficamente; e, segundo, desvenda no decorrerda fun
damentação até alguns elementos e condições da mate
mática e da física que não provêm das ciências específi
cas, mas, ao contrário, são sempre já pressupostos por
elas. Assim, a tarefa secular que a filosofia assume com o
nascimento da ciência natural matemática encontra uma
solução satisfatória para ambas as partes: para o impul
so investigador das ciências específicas autônomas, que
recusam toda determinação por parte da filosofia; e para
o legado metafísico da filosofia, que determinou a histó
ria do espírito do Ocidente desde os gregos, com a sua
pretensão a "verdades eternas".
O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 53
No entanto, a fundamentação filosófica da investi
gação científica autônoma não representa para Kant um
fim em si. Os matemáticos, cientistas da natureza e teó
ricos da ciência, que se ocupam do estudo da Crítica da
razão pura, às vezes não vêem que, na verdade, a inten
ção de Kant é saber - e esta é a terceira e principal per
gunta - como é possível a metafísica como ciência. A in
vestigação dos elementos sintéticos a priori da matemá
tica e da ciência natural pura fornece a base para isso. As
condições que possibilitam a única objetividade inques
tionável, a objetividade da matemática e da ciência natu
ral pura, são as que decidem sobre a possibilidade de um
conhecimento objetivo também fora da experiência, ou
seja, sobre a possibilidade da metafísica como ciência.
Na segunda parte da Crítica, na dialética transcendental,
Kant aborda esta questão. Também neste contexto ele se
ocupa de uma "realidade", isto é, da "metafísica como
disposição natural", a qual possui, não obstante, no âm
bito do conhecimento, uma predisposição à auto-ilusão.
A razão humana crê que pode conhecer objetos além de
toda experiência. Porém, todas as tentativas de respon
der às "perguntas naturais" sobre o começo do mundo,
sobre a existência de Deus etc. levam a razão a contradi
ções. Tais questões só podem ser resolvidas se se reco
nhece o resultado da revolução copernicana, a saber, a
distinção entre fenômeno e coisa em si, e se limita o co
nhecimento objetivo ao âmbito da experiência possível.
4.4 A matemática contém juízos sintéticos a priori?
Já Leibniz acreditara que a matemática pode ser fun
damentada só a partir de definições e do princípio de
12. 54 I;"LKANT
contradição (Nouveaux essais sur l'entendement humain
[Novo ensaio sobre o entendimento humano], livro IV,
cap. VII) e que ela é, portanto, uma ciência analítica. Na
pesquisa mais recente, a crítica ao caráter sintético a prio
ri da matemática é quase uma opinião comum. Foram
sobretudo o matemático e filósofo Gottlob Frege (1848-
1925) e o matemático David Hilbert (1862-1943) que de
fenderam o caráter analítico da matemática, Frege com a
prova de que o conceito de número e, através dele, os con
ceitos fundamentais da aritmética podem ser definidos in
contestavelmente com recursos meramente lógicos (Grund
lagen derArithmetik [Fundamentos da aritmética], 1884),
e Hilbert, por meio da axiomatização da aritmética e da
geometria. Os filósofos e matemáticos A N. Whitehead
(1861-1947) e B. Russell (1872-1970), na sua obraPrincipia
Mathematica, e o filósofo Rudolf Carnap (1891-1970) fi
zeram com que a tese do caráter analítico da matemáti
ca se incorporasse à filosofia analítica e ficasse, desde en
tão, quase incontestada.
De outro lado, Albert Einstein (1879-1955), à luz do
desenvolvimento da geometria não euclidiana e de sua
aplicação na teoria geral da relatividade, afirmou que até
os axiomas da geometria são proposições empíricas, ao
passo que o físico Henri Poincaré (1854-1912) os consi
dera como convenções; em ambos os casos os axiomas
perdem seu caráter apriorístico. Assim, os matemáticos e
os filósofos negam o caráter sintético da matemática, e os
físicos seu caráter a priori.
Ao contrário do que se poderia supor, ambas as ver
tentes são compatíveis entre si. É preciso, no entanto,
distinguir entre a geometria matemática (pura) e a geo
metria física (aplicada). Neste caso, a geometria matemá
tica pode ser válida a priori, mas só porque ela é analítica.
O QUEPOSSO SABER?A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 55
A geometria física passa a ser, ao contrário, um sistema
de hipóteses empiricamente verificáveis sobre as pro
priedades do espaço físico. Ela é tida como sintética, mas
só porque se funda na experiência e, portanto, renuncia
à sua pretensão apriorística. Tanto a geometria matemá
tica como também a geometria física perdem seu caráter
de conhecimentos sintéticos a priori, de modo que a con
cepção de Kant parece hoje "completamente errada".
Como Kant tem em vista a matemática pura, a tese
do caráter empírico da geometria aplicada não o atinge.
Mas também a afirmação do caráter analítico da mate
máticapura não é tão indiscutivelmente clara como o su
pôs a filosofia analítica durante muito tempo. Essa posição
é contestada já por duas importantes correntes matemá
ticas: a escola intuicionista do holandês L. E. J. Brouwer
(1881-1966) e a concepção construtivista (operativa) de
Paul Lorenzen (Eínführung in die operative Logik und Ma
thematik, 1955) ou de E. Bishop (The Foundations oJCons
tructíveMathematics, 1967). Mesmo entre filósofos que se
sentem ligados ao pensamento analítico, como, por exem
plo, J. Hintikka ou, já anteriormente, E.W. Beth e, seguindo
a ambos, Brittan (caps. 2-3), o caráter analítico da mate
mática é considerado com ceticismo. O argumento prin
cipal de Hintikka é este: pertencem à matemática intui
ções e representações individuais; ambas não pertencem
à lógica, assim como a matemática não é exclusivamen
te analítica. Segundo K. Lambert e C. Parsons (cf. Brittan,
56 ss.), entre os axiomas da geometria há enunciados exis
tenciais (como, por exemplo, "há pelo menos dois pon
tos"); mas os enunciados existenciais não pertencem às
verdades lógicas, que segundo Leibniz são válidas em
todos os mundos possíveis; os enunciados existenciais da
matemática não são válidos "em todos os mundos pos-
13. 56 IMMANUEL KANT .
síveis", mas somente em todos os mundos "realme/te
possíveis". /
Segundo Brittan (69 ss.), a analiticidade da geome
tria pura pode ser entendida em três aspectos, porém
nenhum deles é convincente. Em um primeiro sentido, a
geometria pura pode ser considerada como analítica,
porque o contrário dos enunciados geométricos seria au
tocontraditório. Mas este não é o caso, já que o axioma
das paralelas, por exemplo, é discutível, de modo que re
sultam descartadas apenas as proposições da geometria
euclidiana, não de toda geometria; é fundada, pelo contrá
rio, uma nova geometria, não euclidiana. (Corresponden
temente, há duas teorias de conjuntos, cada uma delas
livre de contradições.) Em um segundo sentido, a geome
tria pura é analítica porque suas proposições só podem
ser deduzidas com a ajuda de definições e da lógica. A
geometria seria então uma verdade puramente lógica e
teria que valer para todos os mundos possíveis; na reali
dade, porém, isso não é assim na geometria euclidiana.
Em outras palavras: se as proposições da geometria fos
sem verdadeiras no sentido puramente lógico, então te
riam que sê-lo em todas as interpretações; na realidade,
em algumas interpretações de constantes não lógicas,
encontramos proposições geométricas como verdadeiras
e outras como falsas. Finalmente, pode-se considerar a
geometria pura como um conjunto de proposições não
interpretadas, quer dizer, não se pode falar de pontos, li
nhas e superfícies, mas de P's, S's, B's etc., isto é, de con
ceitos elementares de uma teoria axiomatizada (no sen
tido de Hilbert). Neste contexto, uma proposição é tomada
como analítica porque não está interpretada e é, por
tanto, "vazia" e "sem conteúdo", e a geometria matemá
tica se converte em uma ciência analítica, já que ela não
O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 57
afirma nenhum conteúdo. Brittan tem objetado que neste
caso se está confundindo uma distinção, a saber, aquela
entre proposições não interpretadas e proposições inter
pretadas, com um argumento. No entanto, mais impor
tante é a objeção de que as proposições não interpreta
das não constituem ainda uma geometria, uma vez que
não tratam de conceitos e relações espaciais. Só a inter
pretação espacial (interpretação de primeiro grau) dos
axiomas faz de um conjunto de proposições não inter
pretadas uma geometria, enquanto a interpretação (de
segundo grau) da geometria matemática leva a uma geo
metria física.
Tendo em vista estes argumentos, há boas razões,
também segundo Frege, Hilbert e Russell, para conside
rar a matemática como ciência não analítica e a matemá
tica pura como um conhecimento sintético a priori. (Os
argumentos do próprio Kant são expostos no próximo
capítulo.)
Se apesar disso se considera a matemática pura como
analítica, quais são as conseqüências para a Crítica da ra
zão pura? Para Kant, a tese do caráter sintético a priori da
matemática é relevante em dois sentidos. Por um lado, ela
deve, para a crítica da razão como teoria da metafísica,
integrar uma ciência problemática no conjunto das ciên
cias reconhecidas. Para atenuar as dúvidas sobre a meta
física, Kant mostra que pelo menos o tipo de enunciado
de uma metafísica científica, a saber, dos juízos sintéticos
a priori, fica acima de qualquer dúvida. Esse tipo de enun
dado se encontra num âmbito que, desde aAntiguidade,
ninguém tem questionado sua cientificidade, a saber, na
matemática. Esta observação pode reduzir as dúvidas
quanto à possibilidade de uma metafísica científica, mas
não pode garantir a sua cientificidade. Ao contrário, uma
14. 58 IMMANU,PL KANT
/
metafísica científica poderia ser possível mesrr;io se não
houvesse nenhum conhecimento sintético a pr
iori em
outros lugares. A resposta à pergunta crucial d� primeira
Crítica, se é possível uma metafísica científica, indepen
de, portanto, do caráter sintético a príori da matemática.
Poroutro lado, pode-se dizer que, para a crítica da ra
zão como teoria do conhecimento objetivo, a tese do ca
ráter sintético a príori da matemática é um motivo para
procurar os pressupostos apriorísticos de todo conheci
mento. Se o conhecimento objetivo é sintético a priorí,
seus pressupostos devem sê-lo também. Já que, no en
tanto, os pressupostos estão localizados em um nível mais
profundo do que o próprio conhecimento, a afirmação
de Kant sobre a existência de pressupostos sintéticos po
deria ser mantida mesmo sob a condição da não-valida
de da hipótese epistemológica a respeito do modo de co
nhecimento da matemática.
4.5 O conceito de transcendental
Kant chama de transcendental a investigação com a
qual ele responde à tríplice pergunta sobre a possibilida
de dos juízos sintéticos a príorí. Este conceito central para
a crítica da razão está exposto "parcialmente a mal-en
tendidos horríveis" (Vaihinger, I 467). Do mesmo modo
que "transcendente" e "transcendência", o termo"trans
cendental" pertence ao verbo latino "transcendere", que
literalmente significa "ultrapassar um limite". Se os ter
mos "transcendente" e "transcendência" sugerem um
mundo além do nosso mundo da experiência, Kant refu
ta a idéia segundo a qual o "além", o mundo supra-sen
sível, seja algo objetivo para o qual possa haver um co-
O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 59
nhecimento válido no âmbito do teórico. É verdade que
também na investigação transcendental de Kant se ultra
passa a experiência. Porém, o sentido desse ultrapassar
se inverte. Pelo menos no início, Kant se volta para trás,
não para a frente. No âmbito teórico, ele não busca um
"transmundo" atrás da experiência, "muito longe" ou em
"alturas etéreas", mundo esse do qual Nietzsche escar
nece como objeto da filosofia tradicional. Kant pretende
desvendar as condições prévias da experiência. No lugar
do conhecimento de um outro mundo, aparece o conhe
cimento originário de nosso mundo e de nosso saber ob
jetivo. Kant investiga a estrutura profunda, pré-empiri
camente válida de toda experiência, estrutura que ele -
conforme ao experimento de razão da revolução coper
nicana - presume no sujeito. No "retrocesso" reflexivo, a
crítica da razão procura os elementos apriorísticos que
constituem a subjetividade teórica.
Com Kant, o conceito do transcendental adquiriu
uma naturalidade que faz com que não se coloque mais
a pergunta pela sua origem. Já no final do século XVIII se
afirma que o conceito foi introduzido por Kant. Na ver
dade, já a filosofia da Idade Média conhece este conceito.
Ela entende por transcendentais, ou por"transcendentia",
aquelas determinações últimas do ente que ultrapassam
os limites de sua divisão em espécies e gêneros e que va
lem sem restrição para tudo o que é. Tem caráter trans
cendental aquilo que já sempre pressupomos ao pensar
entes como tais: ens, a entidade do ente; res; a qüididade
ou objetividade; unum, a unidade e indivisibilidade inter
na; verum, a cognoscibilidade e referência ao espírito; bo
num, o caráter valioso e apetecível.
Antes de Kant existe não apenas a "filosofia trans
cendental dos antigos" (B 113), que ele próprio não co-
15. 60 IMMANUEL KANT
.�··
·····.
nheceu. Os metafísicos dos séculos XVII e XVIII, especial
mente Wolff e Baumgarten, falam também do "transcen
dental". Wolff emprega a expressão tanto em sua acepção
antiga, primariamente ontológica, como também num
sentido novo, mais gnosiológico, no contexto da "cosmo
logia transcendentalis" por ele criada. Em Baumgarten, com
cuja filosofia Kant se ocupa continuadamente nas suas
aulas, "transcendental" significa algo equivalente a "ne
cessário" ou"essencial"; no seu caso mal se pode falar de
um transcendere, seja qual for o seu alcance (Hinske, 1968,
107). Não é o mérito menor de Kant ter recuperado a
esse conceito esvaziado - ainda que depois de um labo
rioso processo de clarificação - a dimensão da superação
e também ter possibilitado, a partir de sua própria pers
pectiva, uma nova compreensão dele.Apesar de todas as
vacilações, bem naturais em um conceito tão carregado
de tradição, a noção já meio vaga de "transcendental"
adquire em Kant novamente a força de um conceito filo
sófico. De acordo com a virada copernicana, os significa
dos ontológico e gnosiológico estão nele estreitamente
entrelaçados.
Na introdução à Crítica, Kant chama de transcen
dental "todo conhecimento que em geral se ocupa não
tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecer
objetos, na medida em que este deve ser possível a prio
rí (B 25) (mas com os nossos conceitos a priorí de obje
tos: A 11 s.)". O conhecimento transcendental é uma
teoria da possibilidade do conhecimento a priorí ou, em
uma palavra, uma"teoria do a priorí'' (Vaihinger, I 467).
Isso não significa, como esclarecerá Kant mais adiante,
que qualquer conhecimento a priori é transcendental.
Também a matemática e a ciência natural são, segundo
Kant, conhecimentos a priori ou contêm tais elementos.
O QUE POSSO SABER? A CRíTICA DA RAZÃO PURA 61
Transcendental significa, na Crítica, somente aquele co
nhecimento "pelo qual conhecemos que e como certas
representações (intuições ou conceitos) são aplicadas ou
possíveis unicamente a príorí'' (B 80).
Com o"que e como" Kant quer indicar a dupla tare
fa do conhecimento transcendental. Este demonstra, pri
meiro, que certas representações "não são de origem
empírica" (B 81) e mostra, segundo, "a possibilidade pela
qual podem, não obstante, se referir a priori a objetos da
experiência" (ibid.). Em virtude da primeira condição, to
dos os pressupostos empíricos do conhecimento huma
no, por importantes que possam ser, permanecem ex
cluídos do programa da filosofia transcendental; unica
mente o conhecimento não empírico da experiência é
transcendental. Em virtude da segunda condição, as pro
posições da matemática e da ciência natural são objeto
da teoria transcendental mas não fazem parte dela; cha
mam-se transcendentais aqueles pressupostos que não
possuem caráter matemático nem físico, mas estão sem
pre "intervindo"quando praticamos matemática ou física.
Uma interpretação que ignore esta dupla tarefa da
investigação transcendental não faria jus à idéia funda
mental da Crítica; um pensamento sistemático que não a
reconheça não pode se chamar transcendental no senti
do de Kant. Em razão da dupla determinação, dividem
se tanto a estética transcendental (só na segunda edição)
como a analítica transcendental dos conceitos em duas
partes principais. No marco de uma abordagem ou de
dução "metafísica", são procuradas no sujeito representa
ções a priori; e na abordagem ou dedução "transcenden
tal", em sentido estrito, é mostrado como as representações
a priori são imprescindíveis para qualquer conhecimento
objetivo.
16. 62 IMMANUEL KANT
Uma compreensão dos presst?póstos independentes
da experiência de cada conhecimento de objetos não au
menta o conhecimento dos objetos. Por isso a crítica trans
cendental não entra em concorrência com as ciências par
ticulares, tampouco com as protociências e as teorias da
ciência.As ciências particulares tentam conhecer seu ob
jeto específico; as protociências introduzem os conceitos
básicos necessários; as teorias da ciência explicam a for
mação de conceitos e os métodos. À diferença delas, a
crítica transcendental pergunta se é racional, ou melhor,
se faz sentido pensar como possível o esforço das ciên
cias particulares em buscar um conhecimento específico
de objetos e em expor as suas hipóteses a continuadas
tentativas de refutação. A crítica não se ocupa das ques
tões habituais sobre o caráter verdadeiro ou falso de (sis
temas de) proposições, mas pergunta se e como pode ha
ver uma relação objetiva, isto é, verdadeira, com os obje
tos. Investiga como se pode pensar sem contradições e
aporias a verdade do conhecimento objetivo, entendida
como conhecimento obrigatório, geral e necessário.
A Crítica de Kant contém, em sentido transcendental,
uma "lógica da verdade" (B 87). Não procura - no sentido
semântico - o significado de "verdade", nem - no senti
do pragmático - um critério para poder decidir quais (sis
temas de) proposições são verdadeiras. Num sentido mais
radical, a Crítica aborda, na sua primeira parte, a possibili
dade fundamental da verdade e a questão acerca do que
são, em geral, objetos objetivos que permitam enunciar
uma proposição verdadeira. Com isso Kant recorre à defi
nição tradicional da verdade como adequação (correspon
dência) do pensamento ao objeto; mostra, porém, que,
conforme à revolução copemicana, o objeto não é um em
si independente do sujeito, mas é constituído somente pe
las condições apriorísticas do sujeito cognoscente.
O QUE POSSO SABER?A CRíTICA DA RAZÃO PURA 63
A compreensão das condições pré-empíricas do co
nhecimento objetivo está ligada à compreensão de seus
limites. Neste sentido, a utilidade da crítica da razão é
"realmente apenas negativa com respeito à especula
ção". A crítica serve "não para a ampliação, mas apenas
para a purificação da nossa razão" (B 25).
Ainda que Kant tenha contribuído consideravel
mente para a investigação das ciências naturais no seu
período pré-crítico (cf. cap. 2.2), a Crítica não pretende
mais ampliar o saber científico. Isto não significa, no en
tanto, como se costuma objetar, que ela seja "no fundo
irrelevante". É certo que ela não promove diretamente o
saber sobre objetos, senão o saber sobre o saber de ob
jetos. Mas, em primeiro lugar, a Crítica pode indireta
mente alcançar importância para as ciências particulares,
no contexto de discussões de seus fundamentos. Ade
mais, a reflexão transcendental proporciona um conhe
cimento de segundo grau; a ciência se faz transparente a
si mesma e se concebe como racional.
A idéia da ciência leva consigo a pretensão de co
nhecimento objetivo. Esta pretensão é rejeitada pelos cé
ticos, desde a Antiguidade até David Hume, como injus
tificada; eles afirmam que não há nenhum conhecimento
objetivo, isto é, um conhecimento universal e necessário.
Nesta situação, a crítica transcendental considera a pre
tensão de objetividade como algo condicionado, ou seja,
como uma conseqüência para a qual ela busca a condi
ção ou legitimação. Caso a busca tenha sucesso, esta pre
tensão de conhecimento objetivo pode considerar-se como
justificada em um duplo sentido. O fundamento de legi
timação do conhecimento (segundo Kant, as formas pu
ras da intuição, os conceitos e princípios puros) mostra,
primeiro, que é possível um conhecimento objetivo e, se
gundo, no que ele consiste. Não obstante certas obscuri-
17. 64 IMMANUEL KANT
dades, ou até talvez contradições, Kant não parte, como
se afirma por exemplo no neokantismo, da idéia de que
a matemática e a ciência natural representam um fato in
dubitável. Seria uma pressuposição dogmática, incom
patível com a idéia da crítica da razão. Kant parte, em vez
disso, da idéia de que a ciência ou o conhecimento obje
tivo consiste em um saber universal e necessário. Logo, ele
pergunta, de acordo com os céticos, se algo assim pode
ser possível. Sua resposta tem dois aspectos: primeiro, é
possível um conhecimento universal e necessário com
base em intuições puras e conceitos e princípios puros;
mas, segundo, somente como matemática e física (ciência
natural universal). Em poucas palavras: a cientificidade
da matemática e da física não é premissa, mas conclusão;
não é base da prova, mas seu objetivo.
Neste empreendimento,"objetividade" tem dois sen
tidos diferentes, relacionados entre si. Por um lado, "ob
jetividade" (no sentido veritativo) designa a propriedade
de conhecer o mundo real e, portanto, de ser válido não
só para este ou aquele sujeito, mas universal e necessa
riamente. Por outro lado, "objetividade" (no sentido refe
rencial) significa a relação do conhecimento com objetos
reais, ou seja, com fatos, e não com ficções ou meros pro
dutos da imaginação. Assim, o primeiro significado pres
supõe o segundo. Só porque são sabidos os fatos dados
(objetos) no conhecimento objetivo, este pode formular
enunciados objetivos. Como este significado é o mais fun
damental, Kant se interessa por ele em primeiro lugar.
5. A ESTÉTICA TRANSCENDENTAL
A estética transcendental da primeira Crítica não é
uma teoria do belo ou do gosto (cf. cap. 13.2), senão uma
O QUE POSSO SABER?A CRíTICA DA RAZÃO PURA 65
ciência dos princípios da sensibilidade ou da intuição (em
grego: aisthesis) a priori. Como parte da crítica transcen
dental, ela não investiga a intuição em geral, mas unica
mente suas formas puras, espaço e tempo, como fontes
de conhecimento. Por isso, o fato de que certos problemas
de uma teoria geral da intuição não são discutidos não
pode ser imputado a Kant, mas a uma falsa expectativa.
Na sua configuração definitiva, a Estética transcen
dental tem duas partes claramente diferenciadas. Na ex
posição metafísica, Kant mostra que espaço e tempo são
formas puras da intuição, na exposição transcendental,
mostra que essas formas possibilitam o conhecimento sin
tético a priori. Assim, a estética transcendental oferece,
por um lado, uma nova solução na disputa da filosofia
moderna sobre a "essência" do espaço e do tempo e con
tém, por outro lado, a primeira parte da fundamentação
kantiana da matemática e da ciência natural geral.
A possibilidade de um conhecimento a priori me
diante conceitos gerais do entendimento é algo que sem
pre foi afirmado, antes e depois de Kant. Mas a tese de
que a intuição e, portanto, a sensibilidade, implica tam
bém certos elementos não empíricos e que estes são im
prescindíveis para a matemática e a física, deve ser atribuí
da unicamente a Kant. Por isso, a Estética transcenden
tal, não obstante todos os problemas que ela provoca (cf.
Vaihinger, II), constitui uma das partes mais originais da
primeira crítica da razão.
5.1 Os dois troncos de conhecimento:
sensibilidade e entendimento
Seguindo a Baumgarten, Kant distingue entre a fa
culdade cognitiva inferior e a superior, isto é, entre a sen-
18. 66 IMMANUEL KANT
sibilidade e o entendimento (às vezes também: a razão)
no sentido amplo do termo. Paralelamente às três partes
da lógica tradicional, a faculdade superior do conheci
mento articula-se em entendimento no sentido estrito
("conceitos"), faculdade de julgar ("juízos") e razão no
sentido estrito ("conclusões") (cf. B 169). A Crítica da ra
zão pura adota esta divisão. Começa com (1) a teoria da
sensibilidade na Estética transcendental, seguem - den
tro da Analítica transcendental - (2) a Analítica dos con
ceitos e (3) a Analítica dos princípios; a Crítica finaliza
com (4) a teoria das conclusões (da razão) na Dialética
transcendental e (5) com uma Doutrina transcendental
do método.
A Estética transcendental afirma que o conhecimento
- considerado do ponto de vista lógico, e não psicológi
co - se deve à ação conjunta de duas fontes de conheci
mento: a sensibilidade e o entendimento. Ambas as fa
culdades têm o mesmo peso e dependem uma da outra.
(1) A relação imediata do conhecimento com os ob
jetos e o ponto de referência de todo pensamento é a in
tuição, a qual percebe um particular imediatamente. A
intuição supõe um objeto dado.A única possibilidade me
diante a qual nos podem ser dados objetos reside na sen
sibilidade receptiva, ou seja, na capacidade da mente de
ser afetada por objetos; é por isso que podemos ver, ou
vir, cheirar, saborear e tocar. (Kant se pronuncia mais de
talhadamente sobre a sensibilidade e sobre os cinco sen
tidos no primeiro livro da Anthropologíe in pragmatischer
Hinsicht.) Somente a sensibilidade receptiva possibilita
ao homem as intuições. Uma intuição ativa, espontânea
e intelectual, ou seja, uma visão criadora, é algo impos
sível para o homem. A ação do objeto sobre a mente
chama-se sensação; ela constitui a matéria da sensibili-
O QUE POSSO SABER? A CRÍTICADA RAZÃO PURA 67
dade. Devido à falta do intelecto formador, o objeto da
sensibilidade é o indeterminado, contudo determinável;
ele representa o material do conhecimento. A sensibili
dade pressupõe como fundamento necessário a finitude
de todo conhecimento humano. O homem não pode
produzir os objetos do conhecimento por si mesmo, nem
colocá-los ante si, como a razão infinita de Deus o pode.
Ele precisa de objetos previamente dados. A descoberta
que nos leva da posição pré-crítica de Kant à sua Crítica
consiste na idéia de que os nossos conceitos puros do
entendimento não podem prescindir da sensibilidade, isto
é, que não é possível conhecer nada sem os sentidos.
(2) A mera recepção de algo dado ainda não produz
nenhum conhecimento. Em um conhecimento as sensa
ções não são simplesmente reproduzidas, mas elaboradas.
Para isso precisa-se de conceitos, que se devem ao enten
dimento em sentido estrito e com cuja ajuda as sensa
ções são "pensadas", isto é, reunidas e ordenadas segun
do regras.
Kant não fundamentou a suposição de que "há dois
troncos do conhecimento humano" (B 29). Ele apenas
supõe que sensibilidade e entendimento "talvez brotem
de uma raiz comum, mas desconhecida a nós" (ibid.). A
ausência de uma derivação mais profunda corresponde à
intenção kantiana de uma crítica da razão que não pre
tende fornecer uma "fundamentação última" do conhe
cimento, como Descartes, o Idealismo Alemão ou Hus
serl. Mas mostra também que uma crítica da razão não
constitui a última palavra da filosofia. No entanto, a tese
inicial de Kant encontra uma justificação indireta pela
solução bem-sucedida do problema fundamental, de es
capar das aporias do empirismo e do racionalismo me
diante uma posição nova, mediadora. Em contrapartida,
19. 68 IMMANUEL KANT
a definição da sensação como "efeito" do objeto gera di
ficuldades internas à crítica, as quais, já segundo a opi
nião de F. H Jacobi, Fichte e Schelling, não podem ser
superadas sem ir além da Crítica.
Com o reconhecimento da sensibilidade, Kant dá ra
zão ao empirismo em sua concepção fundamental de que
o conhecimento humano necessita de algo previamente
dado, e rejeita um racionalismo puro. Com a constatação
da necessidade do entendimento, Kant dá razão à idéia
do racionalismo, segundo a qual não há nenhum conhe
cimento sem o pensamento, e critica um empirismo puro;
em termos modernos: Kant se manifesta contra a sepa
ração rigorosa entre linguagem de observação e lingua
gem de teoria, já que todo conhecimento, até o saber co
tidiano, contém elementos teóricos (conceituais): "Sem
sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem en
tendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem
conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas"
(B 75; cf. B 33).
Com a distinção de duas fontes de conhecimento
interdependentes, Kant nega a idéia de Leibniz de uma
diferença meramente gradual entre sensibilidade e en
tendimento. Ao contrário de Leibniz, ele não considera a
intuição como um pensar imperfeito que carece de clari
dade. Na realidade, diz Kant, a intuição tem outra origem;
ela provém da sensibilidade, isto é, de uma fonte inde
pendente do entendimento e imprescindível para todo
conhecimento. O desconhecimento desse fato forma, se
gundo Kant, a base da metafísica leibniziana, e o escla
recimento deste desconhecimento a sua refutação.
(3) Na segunda parte da Analítica transcendental,
Kant investiga, como outra faculdade cognitiva, a facul
dade do juízo, isto é, a capacidade de subsumir (conceitos
do entendimento) sob regras.
O QUE POSSO SABER?A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 69
Em todas as três faculdades, indispensáveis para o
conhecimento humano, Kant encontra um elemento não
empírico: na sensibilidade, as formas puras da intuição,
o espaço e o tempo; no entendimento, os conceitos puros
do entendimento, as categorias; no Juízo, os esquemas
transcendentais e os princípios do entendimento puro.
Sinopse das três faculdades do conhecimento
Sensibilidade Entendimento
O objeto é dado por meio de O objeto, uma multiplicidade
uma afecção do ânimo. indeterminada da intuição, é
pensado, ou seja, determinado.
A capacidade do ânimo de ser
afetado se chama sensibilidade
(receptividade). O efeito exer
cido pelo objeto, a matéria da
sensibilidade, se chama sen
sação.
A relação com o objeto me
diante a sensação chama-se
empírica (a posteriori).
O objeto indeterminado (con
ceitualmente) de uma intuição
empírica é of
enômeno.
A capacidade de determinar o
objeto, ou seja, de produzir
representações por si mesmo
(espontaneamente), se chama
entendimento, a faculdade dos
conceitos (regras).
A relação com o objeto me
diante as categorias do en
tendimento se chama pura (a
priori).
O objeto [Gegenstand] como fe
nômeno determinado pelo en
tendimento se chama objeto
[Objekt].
As formaspuras daintuição são Os conceitos puros do enten-
o espaço e o tempo. dimento são as categorias.
20. 70 IMMANUEL KANT
Faculdade do juízo
O juízo é a faculdade de subsumir sob re
gras, ou seja, de discernir se algo cai ou não sob
uma regra dada. As condições da possibilidade
de aplicar conceitos puros do entendimento a
fenômenos são determinações temporais trans
cendentais; são tanto conceituais como sensí
veis: são os esquemas transcendentais, um produto
transcendental da faculdade imaginativa.
A cada categoria corresponde uma modifi
cação da intuição do tempo; por exemplo, o es
quema da substância é a permanência no tempo;
o esquema da necessidade é a existência de um
objeto em todo tempo.
Os juízos sintéticos, que "derivam" dos
conceitos puros do entendimento, conforme às
condições dos esquemas a priorí, e servem de
base a todos os outros conhecimentos a priori,
são os princípios do entendimento puro: para os
juízos analíticos, o princípio da contradição; para
os juízos sintéticos, os axiomas da intuição, as
antecipações da percepção, as analogias da ex
periência (p. ex., o princípio da causalidade) e
os postulados do pensamento empírico.
5.2 A exposição metafísica: o espaço e o tempo
como formas a priori da intuição
A exposição metafísica do espaço e do tempo se su
cede a um duplo processo de abstração (B 36), que isola,
primeiro, no complexo total do conhecimento os com
ponentes da intuição e do entendimento, e elimina de-
O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DARAZÃO PURA 71
pois na intuição tudo o que pertence à sensação, isto é,
cores, sons, impressões de calor etc. Restam assim as for
mas da intuição independentes de toda experiência, ou
seja, as representações originárias de espaço e tempo.
Essa exposição é metafísica porque revela as representa
ções originárias do espaço e do tempo, a espacialidade e
a temporalidade, como intuições dadas a priori (cf. B 38).
Ela mostra, primeiro, que se trata de representações a
priori e, segundo, que estas não têm caráter de conceito
mas de intuição.
Sob o espaço não nos representamos apenas o es
paço intuitivo dos objetos da experiência e da ciência na
tural, mas também o espaço da ação e o espaço vivencial
ou afetivo da psicologia, da arte e da literatura. De modo
semelhante, distinguimos o tempo intuitivo do tempo do
agir e do vivencial. Entretanto, na Estética transcendental
trata-se exclusivamente do espaço intuitivo: relações de
coextensão e justaposição; e do tempo intuitivo: relações
de sucessão e simultaneidade. Só delas Kant afirma que
possuem um ingrediente independente da experiência.
Espaço e tempo pertencem a duas esferas distintas.
O espaço é a forma intuitiva do sentido externo, que nos
fornece, através dos cinco sentidos, as impressões acústi
cas, óticas, gustativas..., enquanto o tempo pertence ao
sentido interno com suas representações, inclinações e
seus sentimentos. No entanto, o sentido interno tem a
primazia, já que toda representação dos sentidos exter
nos é sabida pelo sujeito, sendo assim também uma repre
sentação do sentido interno. Conseqüentemente, o tem
po é a forma de toda intuição, imediatamente da interna
e mediatamente também da externa. Contudo, a priori
dade do tempo não é tão ampla que faça do espaço um
subgênero oupossa ser substituído por ele. Para Heidegger,
a primazia do tempo é motivo de ver na Crítica da razão
21. 72 IMMANUEL KANT
pura uma predecessora de sua própria ontologia funda
mental, apresentada sob o título Sein und Zeit [Ser e tem
po]. Com efeito, o tempo desempenha na Crítica um pa
pel muito mais importante que o espaço; como, por
exemplo, na dedução transcendental das categorias e so
bretudo no capítulo do esquematismo, que Heidegger
analisa minuciosamente (cf. cap. 7.1). A prioridade do
tempo explica talvez também por que na dissertação inau
gural de 1770 o tempo é abordado antes do espaço.
Kant justifica a tese de que o espaço e o tempo são
formas puras da intuição com quatro argumentos. Com
os dois primeiros ele mostra, contra o empirismo, que es
paço e tempo são representações apriorísticas; e com os
outros dois, contra o racionalismo, que eles não possuem
caráter conceitual, mas intuitivo. (No caso do tempo, um
outro argumento, intermediário, já pertence à exposição
transcendental; cf. B 48.)
Espaço e tempo - esse o primeiro argumento, de ca
ráter negativo - não podem derivar da experiência, já
que subjazem a qualquer intuição externa ou interna. Para
que eu possa perceber uma cadeira "fora de mim" e "ao
lado da mesa", já pressuponho - além das representa
ções de mim mesmo, da mesa e da cadeira - a represen
tação de um "fora", isto é, de um espaço no qual a cadei
ra, a mesa e o eu empírico ocupam determinada posição
entre si, sem que esse espaço seja uma propriedade da
cadeira, da mesa ou do eu empírico. Entre as proprieda
des da percepção externa encontramos cores, formas e
sons, mas não o espaço. Analogamente, os processos psí
quicos possuem determinadas qualidades que percebe
mos em sucessão temporal, sem que alguma destas sen
sações possua a qualidade do tempo. A este primeiro ar
gumento negativo segue outro positivo: espaço e tempo
são representações necessárias. Pois podemos imaginar
O QUE POSSO SABER? A CRITICADA RAZÃO PURA 73
um espaço e um tempo sem objetos ou sem fenômenos,
mas não que o espaço e o tempo não existam. Mesmo
na esfera da sensibilidade há algo que já existe "previa
mente", e não só a partir da percepção empírica. Espaço
e tempo se devem à estrutura apriorística do sujeito cog
noscente.
Bennett objetou, contra o caráter apriorístico do tem
po, que é também possível supor o contrário, sem ne
nhuma contradição, a saber, um mundo não temporal, já
que a proposição "todos os dados sensíveis são tempo
rais" não é analítica. Conseqüentemente, Bennett (1966,
49) não considera a temporalidade como necessária, mas
apenas como não dispensável ao pensamento, embora
contingente. Segundo Kant, no entanto, é necessário aqui
lo que não pode ser de outro modo (B 3). Isso acontece
com o espaço e o tempo como formas puras da intuição
de todo o conhecimento humano. Pois a intuição sensí
vel capta objetos concretos que no caso da percepção ex
terna só podem ser dados como ao lado, atrás ou acima
de outros objetos; e, no caso da percepção interna, só an
tes de, junto com ou depois de outros estados internos.
No segundo par de argumentos, Kant conclui, pri
meiro, da unicidade e unidade do espaço e do tempo,
que estes não são conceitos (discursivos), mas intuições.
Pois os conceitos se referem a exemplares independen
tes; o conceito de mesa, por exemplo, se refere a todos os
exemplares de mesas, enquanto existe só o todo de um
único espaço e de um tempo unitário, que contêm em si
todos os espaços e tempos parciais como elementos não
independentes. O segundo argumento prova o cc.ráter
intuitivo mostrando que a representação de espaço é ili
mitada, enquanto um conceito pode ter uma quantidade
indefinida de representações não em si, mas só sob si.
22. 74 IMMANUEL KANT
5.3 A fundamentação transcendental da geometria
À demonstração "metafísica" de que espaço e tem
po são formas puras da intuição Kant junta uma exposi
ção transcendental bastante sucinta. Ela deve mostrar
que espaço e tempo não são meras representações ("en
tes do pensamento"), mas possuem uma função consti
tutiva de objetos; pois são espaço e tempo mediante os
quais se tornam possíveis os objetos de um conhecimen
to sintético a priori. Por serem espaço e tempo formas da
intuição que independem da experiência, pode haver
uma ciência independente da experiência, a saber, a ma
temática. A forma pura da intuição do espaço torna pos
sível a geometria, o tempo torna possível a parte a príori
da teoria geral do movimento (mecânica) e, segundo os
Prolegomena (§ 10; cf. KrV, B 182), devido à numeração,
também a aritmética. Dessa forma, a Estética transcen
dental contém uma parte da fundamentação filosófica da
matemática e da física. Mas, abstraindo de dificuldades
imanentes à exposição, nem para a matemática Kant de
senvolve uma teoria completa. Pois, por um lado, Kant
conclui sua fundamentação da validade objetiva da ma
temática somente com os axiomas da intuição (cf. cap. 7.3).
Por outro, uma filosofia da matemática exige muito mais
que sua fundamentação transcendental.
A exposição transcendental do espaço conecta-se
com a idéia da geometria enquanto ciência que "deter
mina sinteticamente e mesmo assim a priori as proprie
dades do espaço" (B 40). A pergunta transcendental é de
que tipo deve ser a representação do espaço para que seja
possível tal conhecimento dele. A resposta de Kant tem
três graus: primeiro, o espaço não pode ser um conceito,
mas tem que ser uma simples intuição, já que não se po-
O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 75
dem obter proposições sintéticas a partir de meros con
ceitos. Segundo, o espaço também não pode ser uma in
tuição empírica, caso contrário a geometria não teria ca
ráter apriorístico. No terceiro argumento Kant passa, em
detrimento da clareza argumentativa, da geometria pura
(matemática) à geometria aplicada (física) (como em Prol.,
1� parte): uma intuição externa que precede os objetos e
apesar disso os determina a priori só é possível se ela de
riva do sujeito e indica a forma de uma intuição externa.
Dos três argumentos segue-se que só o resultado da
exposição metafísica do espaço, como uma forma subje
tiva, mas pura da intuição, torna compreensível a geome
tria como conhecimento sintético a priori; só porque o
espaço é uma intuição a priori, torna-se possível a geome
tria pura; e porque o espaço é, além disso, a forma que
devem assumir todos os objetos empíricos enquanto in
tuições nossas, torna-se possível a geometria aplicada.
No decorrer da fundamentação transcendental, Kant
cita como exemplo de uma proposição necessária da
geometria "o espaço só tem três dimensões" (B 41). No
contexto da intuição natural e da geometria euclidiana, a
única que se conhecia na época de Kant, esta proposição
é correta. Mais tarde, porém, descobriram-se geometrias
não-euclidianas, das quais a de Riemann é aplicada à
teoria geral da relatividade. Assim, hoje em dia a geome
tria euclidiana não é universalmente válida nem na ma
temática nem na física, e a estética transcendental de
Kant, que afirma essa validade universal, parece irreme
diavelmente ultrapassada. Será que têm razão os críticos
que vêem na teoria kantiana da geometria só mais um
exemplo de como qualquer saber a priori, que os filóso
fos proclamam desde Platão, se desfaz com o progresso
das ciências?
23. 76 IMMANUEL KANT
Para escapar desta conseqüência fatal, Bri:icker (22)
propôs distinguir dois tipos de espaço: (1) o espaço tridi
mensional euclidiano, dado intuitivamente, com o qual até
toda física deve começar e que ele chama de espaço trans
cendental; (2) o espaço empírico, que os físicos adotam no
decorrer de suas experiências e ao qual convertem os re
sultados alcançados no espaço transcendental. Com essa
distinção Bri:icker ameniza a tese kantiana da unicidade da
geometria euclidiana, conferindo a ela uma posição trans
cendental de exceção. Algo parecido faz Strawson (277 ss.)
com a "geometria fenomenal"que ele desenvolve para de
fender Kant das"concepções positivistas".
A primazia transcendental da geometria euclidiana
não só faz jus à representação natural do espaço. Explica
também o fato de que, até hoje, se considera a geometria
euclidiana tridimensional como matematicamente pos
sível e, no âmbito intermédio entre a física atômica e a as
trofísica, como empiricamente válida. Apesar disso, sur
gem graves dúvidas quanto a uma posição transcendental
de exceção. Kant não fundamenta a tridimensionalidade
do espaço nem na exposição metafísica nem na exposição
transcendental, e no seu primeiro escrito V
on der wahren
Schiitzung der lebendígen Kriifte [Sobre a verdadeira ava
liação das forças vivas] (§§ 9-11) até chegou a conside
rar possíveis os espaços não-euclidianos. O caráter aprio
rístico da intuição, a que se refere a exposição transcen
dental, é abordado na exposição metafísica unicamente
para a forma básica de toda intuição externa, isto é, para
o mero "separado" ou "um-ao-lado-do-outro" sem ne
nhuma propriedade estrutural. Terminologicamente ela
deve ser designada como "espacialidade" ou como "espa
ço em geral". A mera espacialidade ainda não é o objeto da
geometria. Este objeto só surge mediante a objetivação
O QUE POSSO SABER?A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 77
da espacialidade; é mediante imaginação e posição que o
matemático representa a simples forma da intuição como
um objeto próprio, dotado de certas estruturas, que ele
investiga no contexto da geometria pura sem recorrer à
experiência. Entre o espaço como condição transcenden
tal e o espaço como objeto da geometria há uma diferen
ça insuperável. Por isso, na exposição transcendental as
três dimensões do espaço não constituem, com razão,
nenhum argumento em favor da possibilidade da geome
tria. São apenas um exemplo para uma proposição su
postamente apodítica; são o predicado de um enunciado
geométrico, não de um enunciado transcendental. Não
são os enunciados matemáticos e físicos que têm um
sentido transcendental, mas somente - num grau infe
rior - suas condições que, conforme a revolução coper
nicana, repousam na "constituição" não-empírica do su
jeito cognoscente. Em virtude de sua problemática mais
geral, nem a exposição metafísica nem a exposição trans
cendental do espaçoestão ligadas a uma determinada geo
metria. A Crítica permanece neutra ante a alternativa pos
terior de uma "geometria euclidiana ou não-euclidiana".
Segundo a objeção mais importante contra Kant, a
geometria não é uma ciência sintética, mas analítica.
Pode-se opor a esta objeção, como já mencionado (cf.
cap. 4.4), que toda geometria é uma ciência do espaço e,
portanto, pressupõe a espacialidade. A espacialidade é,
no entanto, como mostra a exposição metafísica, a forma
pura da intuição externa. Não nasce da experiência nem
de meros conceitos (definições) e tem, por isso, um cará
ter sintético a príorí. Em conseqüência, pode-se dizer que
também a geometria, na medida em que é vista desde
seu pressuposto último, a espacialidade, constitui um co
nhecimento sintético a príori, mesmo que se construa a
24. 78 IMMANUEL KANT
geometria analiticamente (axiomaticamente); algo que, en
tretanto, é controverso entre os matemáticos (cf. cap. 4.4).
Como a geometria investiga um objeto, o espaço, que
tem como pressuposto a forma pura da intuição do sen
tido externo, a espacialidade, ela pode ser empiricamente
substanciosa e fornecer o fundamento de teorias cientí
ficas sobre objetos externos. Mas dado que a estética
transcendental fundamenta unicamente a espacialidade
e não determinadas representações espaciais, ela não
pode nem privilegiar a geometria euclidiana em relação
às geometrias não-euclidianas nem declarar uma deter
minada geometria matemática o fundamento de teorias
físicas. Portanto, temos que distinguir três graus: (1) a es
pacialidade transcendental, (2) o espaço matemático e
(3) o espaço físico. Cada um dos graus subseqüentes de
pende do anterior, sem dele poder ser derivado. Os enun
ciados de geometrias matemáticas não podem ser fun
damentados através da filosofia transcendental; o marco
geométrico de teorias físicas não depende só de conhe
cimentos matemáticos, mas também de conhecimentos
empíricos; não compete de modo algum à crítica trans
cendental da razão julgar a alternativa "concepção clássi
ca (newtoniana) ou concepção relativista (einsteiniana)
do espaço-tempo".
Essa exposição crítica aqui esboçada da Estética trans
cendental de Kant tem uma quádrupla conseqüência.
Em primeiro lugar, não se segue do caráter sintético a prio
ri da intuição geral do espaço que os axiomas específicos
do espaço de uma geometria sejam sintéticos a priori. É
verdade que se poderiam considerar as proposições da
geometria matemática como sintéticas a priori no senti
do fraco, isto é, como não ligadas a um pressuposto não
analítico, a saber, a espacialidade transcendental. Entre-
O QUE POSSO SABER?A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 79
tanto, esse pressuposto não tem o sentido de uma pre
missa dentro de determinada argumentação geométrica,
mas é o fundamento transcendental de qualquer geome
tria. Portanto, não constitui um argumento suficiente para
chamar um espaço geométrico e seus axiomas de sinté
ticos a priori num sentido estritamente epistemológico.
Segundo, a geometria (matemática) purapossui, ante Kant,
um caráter cognoscitivo só num sentido muito limitado.
Ela não estabelece a estrutura da realidade empírica, mas
oferece várias geometrias matematicamente possíveis,
entre as quais a física escolhe independentemente, con
forme à experiência. T
erceiro, a Estética transcendental não
está ligada, nem na exposição metafísica, nem na expo
sição transcendental, à situação histórica da matemática
e da física. Quarto, a fundamentação transcendental da
geometria e da física, a partir das formas puras da intui
ção, não tem um voto direto nas controvérsias científicas
de fundamentação. A decisão sobre a matemática axio
mática ou a matemática construtivista, assim como a de
cisão a favor ou contra a física relativista, não pode ser
tomada por uma crítica da razão. Uma teoria transcen
dental é invariável relativamente às muitas mudanças na
matemática ou na física.
5.4 Realidade empírica e idealidade
transcendental de espaço e tempo
O caráter do espaço e do tempo é bastante controver
so na metafísica moderna (quanto ao espaço, cf. Heim
soeth, I 93-124): são eles algo objetivo e real ou algo me
ramente subjetivo e ideal (Berkeley)? E, se são reais, eles
representam substâncias (Descartes), atributos da subs-
25. 80 IMMANUEL KANT
tância divina (Espinosa), ou uma relação das substâncias
finitas (Leibniz)? As diversas teorias levam a aporias que
Kant tenta superar com sua nova solução: espaço e tem
po são algo totalmente diferente de todas as outras entida
des conhecidas; são as formas a priori da nossa intuição
externa e da nossa sensação interna (humana).
Dado que o conhecimento empírico não é possível
sem sensações externas e internas, e que estas, no entan
to, não são possíveis sem espaço e tempo, as formas pu
ras da intuição possuem "realidade empírica" (B 44 com
B 52). Em contraposição ao "idealismo dogmático" do fi
lósofo e teólogo britânico G. Berkeley (1684-1753) que,
segundo Kant, considera o espaço com todos os objetos
como mera imaginação (B 274), para Kant, espaço e tem
po são válidos objetivamente: sem eles não pode haver
objetos da intuição externa e interna e, conseqüentemen
te, nenhum conhecimento objetivo. Disso não se segue,
entretanto, que espaço e tempo existam em si, ou seja, em
forma de substâncias, propriedades ou relações. São, bem
pelo contrário, as condições sob as quais unicamente po
dem aparecer os objetos para nós; elas possuem, diz Kant,
"idealidade transcendental" (B 44 com B 52). Com essa
teoria Kant refuta também a idéia de Newton do espaço
como Sensorium Dei, infinito e uniforme, mostrando assim
que reconhece a física dele como modelo de uma ciência
exata sem adotar cegamente seus pressupostos filosóficos.