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Ponto de Vista



    Que interesses há na negação da
    etnicidade dos índios no Ceará?
          A história dos índios no Ceará       dígenas e tradicionais, tanto do ser-    se está apto a se incorporar ao projeto
    é marcada por um intenso processo          tão quanto do litoral cearenses.         de modernização capitalista.
    de lutas e resistências. Lutas contra as                                                  É imprescindível denunciarmos
    invasões que já no início do século           Não é de se estranhar que o
                                            mesmo Estado que negou a existên-           a falsidade do discurso ancorado em
    XVII tentavam expulsá-los de seus                                                   declarações infundadas, baseadas
    territórios e negar suas existências e  cia de índios no Ceará na segunda
                                            metade do século XIX, venha hoje            numa visão estereotipada, há tanto
    culturas. No alvorecer da moderni-                                                  ultrapassada, de que não existem
    dade, discutia-se se os índios tinham   apoiar empreendimentos que têm na
                                            apropriação da terra e na utilização        mais índios no Ceará, ou de que os
    alma, se eram gente, pois se não o                                                  índios que existem se travestem a
    fossem, poderiam ser escravizados e     de nativos como mão de obra barata
                                            sua lógica, sob a justificativa de que       partir de invenções de intelectuais
    ter suas terras legitimamente apossa-                                               e organizações não-governamentais.
    das pelos invasores. Hoje, a justifica-  trarão o famigerado “progresso” e
                                            “desenvolvimento”. Afinal, a existên-        Pois, as comunidades indígenas or-
    tiva de que as populações tradicionais                                              ganizadas no Ceará, que totalizam
    não são indígenas basta para tentar     cia de populações indígenas organi-
                                            zadas emperram o projeto político e         cerca de doze etnias e mais de 20
    expulsá-las dos locais onde vivem há                                                agrupamentos, afirmam sua etnici-
    várias gerações.                        econômico em curso. Pois pressupõe
                                            a existência de terras tradicionais, ha-    dade e se mobilizam pelo reconheci-
         Concomitantemente à cons- bitadas pelos índios, que não podem                  mento e demarcação de suas terras.
    trução deste discurso, as elites locais ser vendidas, uma vez que estão pro-             Resta-nos, pois, desmascarar
    impõem à sociedade cearense um tegidas por lei federal desde 1988.                  essas afirmações e apoiar a luta des-
    projeto de modernização que está                                                    tes povos, dando visibilidade às suas
    modificando completamente sua                  A problemática da etnicidade no
                                            Ceará coloca-se como um fator mais          ações políticas e o apoio jurídico e
    paisagem, com a construção de uma                                                   científico necessários à demarcação
    complexa infra-estrutura que visa à complexo no contexto das relações               definitiva de seus territórios. Torna-
    imersão efetiva do estado nas ma- político-econômicas locais e externas.            mos nossa a consigna dos índios no
    lhas do neoliberalismo. Sob a capa A agressiva especulação imobiliária              Ceará que diz: Não nos vendemos
    do velho discurso do progresso, pro- avança Ceará adentro sem nenhuma               nem nos rendemos!
    metem emprego e “desenvolvimen- preocupação com os impactos sócio-
    to”. Na verdade, um projeto de de- ambientais por ela ocasionada. O                       Alexandre Gomes e João Paulo
    senvolvimento nitidamente elitista e que importa é saber se o Estado con-             Vieira, historiadores e integrantes do
    concentrador de renda. Insustentá- cede meios legais e estruturais para                               Projeto Historiando*
    vel e explorador de recursos huma- receber os recursos internacionais
                                                                                        * O Projeto Historiando realiza programa de educação patri-
    nos e naturais, com fortes impactos tão sonhados pelas elites industriais             monial em comunidades étnicas no Ceará. O projeto apóia
    no modo de vida das populações in- e agrárias locais. Em outras palavras,             a criação de museus indígenas, como espaços de formação,
                                                                                          mobilização e organização comunitária.




       Os Programas da Fundação Cepema são financiados            Fundação CEPEMA
       por: Governo Federal - Ministério do Meio Ambiente/        Danillo Galvão - Presidente
       Fundo Nacional do Meio Ambiente/PDA, Ministério do         Henrique César Paiva Barroso - Vice-Presidente
    Desenvolvimento Agrário, Ministério da Educação, Ministério   Heleni Lima da Rocha - Dir. Adm. Financeiro Patrimonial
                                                                  Adalberto Alencar - Coordenador Pedagógico
            da Cultura e Terra do Futuro/UBV - Suécia.
                                                                  e-mail: cepema@attglobal.net / www.fundacaocepema.org.br



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ENTREVISTA

     À SOMBRA DE UM CAJUEIRO
                                        Cepema: Você se considera índia?            Cepema: E isso não tira de vocês o status
                                        Adriana: Sim. A gente é da etnia Tre-       de serem índios?
                                        membé. Os Tremembés vem de Almo-            Adriana: Em nenhum momento. Não é
                                        fala [comunidade pesqueira a 242 km de      isso que vai tirar de nós o nosso direito
                                        Itarema, município cearense]. Vieram pra    de ser índio e de lutar pelos nossos direi-
                                        cá pela Praia do Mundaú. Aqui é tudo        tos. Ter uma casa de tijolo não vai tirar
                                        familiar, não só por ser irmãos índios,     o nosso direito.
                                        mas por ter o mesmo sangue.                 Cepema: Essa região é muito cobiçada
                                        Cepema: Como a comunidade se susten-        pelo turismo. Como a comunidade vê essa
                                        ta?                                         disputa para se construir a cidade turísti-
                                        Adriana: Da agricultura e da pesca.         ca do grupo Nova Atlântida?
          Adriana Carneiro de Cas-      Planta roça, feijão, milho, bananeira,      Adriana: O nosso território é um ter-
     tro – 37 anos, casada e mãe de     batata, melancia... A gente vem com         ritório saudável e a ganância do ho-
     dois filhos – é descendente dos     essa cultura. É da terra que nós sobre-     mem branco quer destruir tudo que o
                                        vive. Mas, hoje, a gente tem apoio do       Criador nos deu. Tudo aqui é natural e
     Índios Tremembés de Almofala,
                                        Governo Federal, tem o benefício da         a gente ver esse empreendimento que-
     Ceará. Ela é uma das lideran-      aposentadoria e o Bolsa Família que         rendo instalar uma cidade... Não é nem
     ças do seu povo na defesa de sua   vêm ajudando o nosso povo.                  um projeto pequeno, mas é uma cida-
     terra e contra o maior projeto                                                 de. Transformar tudo que é nosso em
                                        Cepema: Para o Governo reconhecer
                                                                                    cidade. E a gente ainda sente que eles
     turístico da atualidade no País:   como indígena é preciso que a comunida-
                                                                                    têm o apoio do governo do estado, do
     o empreendimento imobiliário,      de se reconheça primeiro. Faz tempo que
                                                                                    município... Nós que moramos aqui e
                                        vocês se reconhecem como índios?
     orçado em US$ 15 bilhões, do                                                   vivemos no dia-a-dia sentimos uma tris-
                                        Adriana: Faz muitos anos que o nosso        teza com esse empreendimento.
     grupo espanhol Nova Atlânti-       povo sabia que era um povo indígena,
                                                                                    Cepema: Na proposta do Grupo Nova
     da. Esse grupo (que está sob a     mas não tinha coragem de falar. Foi em
                                                                                    Atlântida, vocês sairiam daqui para onde?
     mira do Conselho de Controle       2002 que a gente realmente levantou
                                                                                    Adriana: Eles chegaram com a propos-
                                        essa bandeira de defender a nossa terra
     de Atividades Financeiras, do                                                  ta que o empreendimento iria abranger
                                        e dizer a nossa própria etnia. Já tem 107
     Ministério da Fazenda, por         famílias que se cadastraram na Funasa       toda a nossa moradia e que era um pro-
     suspeita de movimentação fi-                                                    jeto de tirar nossas casas e fazer casas po-
                                        [Fundação Nacional de Saúde] se reco-
                                                                                    pulares em outro canto. Só que a gente
     nanceira incompatível de seus      nhecendo como indígena.
                                                                                    não aceita, porque onde a gente está é a
     sócios) quer construir uma ci-     Cepema: Mas, a Funai [Fundação Na-          nossa raiz, é um bem da gente. A gente
                                        cional do Índio] já veio aqui?              tem uma vida e não aceita essa retirada
     dade turística com 13 hotéis
                                        Adriana: Já, já. A gente tem apoio da       para outro local que a gente nem sabe
     cinco estrelas, 14 resorts, seis   Funai. E a gente já está cadastrado pela    onde vai ser. A visão da Nova Atlântida
     condomínios residenciais e três    Funasa que é para o saneamento básico.      é tirar as famílias pra residir em outro
     campos de golfe de tamanho ofi-     Cepema: Aqui há casas de tijolos. Tem,      local e nós nem sabemos onde é que
     cial, na Praia da Baleia a 200     também, água encanada e energia?            fica.
     km de Fortaleza. A área de 3,1     Adriana: Não temos energia elétrica,        Cepema: O Ministério Público embargou
                                        nem encanação de água. A gente tem          a construção. Mas, no caminho, eu perce-
     mil hectares é uma Reserva In-                                                 bi algumas obras, com desmatamento e
                                        essas casas porque os nossos antepassa-
     dígena Tremembé onde moram         dos sofreram muito porque não tinham        queimada. O que está acontecendo ali?
     200 famílias das comunidades       como fazer uma casa. Com essas melho-       Adriana: Ali é exatamente obra da Nova
     São José e Buriti.                 rias que o Governo tem dado, a gente        Atlântida. A gente já denunciou por
                                        quer ter um espaço melhor.                  duas vezes e até agora nada foi feito. O


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próprio Ibama veio verificar, mas achou      de Itapipoca como de Trairi. Perseguição     Adriana: Antes de a Nova Atlântida
natural essa queimada do pessoal da         muito forte. Teve parentes presos. Mu-       chegar, nós lutava juntos. Com a Nova
Nova Atlântida. A gente vê com muita        lheres que apanharam de policiais. Até       Atlântida, começou esses empregos, en-
tristeza até agora não ter sido tomada      crianças que foram corridas com medo         tão, o nosso povo não se identificou mais
nenhuma posição com relação a isso.         da perseguição da Nova Atlântida.            como índio. Porque se eles se identifica-
                                            Cepema: Isso intimida vocês?                 rem eles não vão ter mais os empregos
       Ter uma casa de                      Adriana: Pelo contrário. Quanto mais
                                                                                         da Nova Atlântida. Há esse conflito en-
                                                                                         tre se identificar e não se identificar. Se
                                            eles tentam, mais a gente se sente forta-
     tijolo não vai tirar                   lecido porque é um direito nosso. Nós
                                                                                         identificar, é claro, que a Nova Atlântida
                                                                                         não vai dar o emprego. O jeito é ficar
        o nosso direito.                    nascemos e fomos criados aqui. Vive-
                                                                                         caladinho.
                                            mos a nossa cultura, a nossa vida. O
Cepema: Há quanto tempo vocês lutam         nosso trabalho é aqui e não tem como a       Cepema: Que empregos eles têm?
para manter a terra de vocês?               gente se intimidar diante disso. A gente     Adriana: Como vocês viram, desmatan-
                                            não tem medo de que a Nova Atlântida         do... Outros são vigias dentro das nossas
Adriana: Desde os nossos ancestrais
                                            vai tirar a gente daqui porque se real-      terras.
que eles vêm lutando para ter a terra
que era deles e que deixou de herança       mente isso acontecer, aí não é pra existir   Cepema: Vigia? Então, existem obras da
pra nós. Mas, nossos antepassados não       justiça no mundo... Porque ninguém           Nova Atlântida aqui?
tinham como lutar pelos seus direitos,      vai fazer uma barbaridade dessa com o
                                                                                         Adriana: Existe. Ela está como um cân-
pelos seus territórios, então, muitos       povo Tremembé de São José e Buriti.
                                                                                         cer na nossa terra. Ela não está em um
saíram por não aceitar a chegada dos        Cepema: Vocês têm apoio nessa luta?          lugar só. Está se espalhando no corpo
portugueses. Eles não tinham como re-       Adriana: Temos apoio de movimentos           da nossa terra. Está focada no Buriti;
correr. Hoje, nós somos uma raiz e nós      sociais, de outras comunidades, assen-       tá lá na Barra do Mundaú e tem outro
brotamos. Nós já temos os nossos direi-     tamentos. Até da Funai, Funasa, Missão       pertinho daqui, em um sítio. Ela está
tos pela Constituição. Mesmo assim, a       Tremembé. De outros povos [indígenas]        se espalhando não com os hotéis, mas
gente ainda tem muito medo de falar         que vêm nos ajudando pra gente não se        tá fazendo tomada de parte das nossas
por causa do preconceito. Nós sofremos      sentir tão abandonado. Até porque está       terras.
muitos preconceitos, mas a gente vem        na Constituição os direitos dos povos        Cepema: Se o Ministério Público proibiu
lutando contra isso. Nosso grito tá eco-    indígenas. E a gente se mobiliza pra lu-     as obras, por que eles permanecem aqui?
ando no mundo inteiro e nós continu-        tar juntos pela nossa terra.
amos aqui pra defender a nossa terra e                                                   Adriana: Aí é uma pergunta que a gen-
                                            Cepema: Saiu na mídia que vocês seriam       te mesmo se faz. Porque se o Ministério
nossos direitos.
                                                                                         Público deu uma liminar pra impedir
Cepema: Que preconceitos vocês sofrem?          Nosso grito tá eco-                      essas construções e a Nova Atlântida
Adriana: Ficam dizendo que não somos                                                     não respeita e continua com esses traba-
índios, que não adianta lutar contra esse        ando no mundo                           lhos na nossa terra... Até agora nós não
empreendimento. Que não adianta pei-            inteiro e nós conti-                     sabemos o porquê disso.
xe pequeno lutar contra peixe grande.                                                    Cepema: Nunca veio nenhuma ação para
Vem com esses preconceitos pra gente             nuamos aqui pra                         tirá-los daqui?
continuar calado, mas a gente não fica
calado diante disso não.
                                               defender a nossa ter-                     Adriana: Até agora não houve. A única
                                                                                         coisa que pode nos ajudar é o estudo da
Cepema: Existe perseguição a lideranças         ra e nossos direitos.                    nossa terra, mas que ainda não foi feito.
por defender a permanência de vocês?                                                     A gente vem cobrando da Funai que eles
Adriana: A gente é muito perseguido,        aliciados por uma Ong para dizer que são     possam encaminhar o mais breve possí-
eu, minha irmã. Outros parentes foram       índios. O que você me diz disso?             vel esse grupo de trabalho pra fazer o
alvos de processos por conta do nosso                                                    estudo e o laudo. A gente tem cinco sí-
                                            Adriana: A empresa usa isso pra nos
movimento. Por não ter medo de dizer                                                     tios arqueológicos dos nossos antepassa-
                                            intimidar. Mas, a única coisa que está
o que somos. Eles vêm querendo nos in-                                                   dos. Esses sítios estão, exatamente, onde
                                            sendo paga aqui é os nossos parentes. A
timidar levando nós até os tribunais de                                                  o empreendimento quer instalar o seu
                                            Nova Atlântida está pagando os nossos
justiça do município de Itapipoca.                                                       projeto de hotéis e de campo de golfe. É
                                            parentes para não se identificar como
Cepema: Então, já houve embates entre                                                    em cima desses sítios arqueológicos...
                                            índio. A única que está pagando é ela.
vocês e o grupo da Nova Atlântida?          Eu não conheço nem outro povo que            Cepema: Foi pedido o grupo de trabalho?
Adriana: Houve policiais que vieram         está sendo pago aqui.                        Adriana: A gente vem cobrando desde
contratados pela Nova Atlântida, tanto      Cepema: Como assim pagos?                    o início. Em 2006, numa reunião com


                                                                                                                                     29
o Ministério Público, ficou tudo certo        do que isso tudo se resolveria. Mas, em     dançar o torém. Cada um sabe como
     que o grupo de trabalho viria. Mas, até      nenhum momento ele se disponibilizou        pegar o seu maracazim, sabe fazer o ri-
     hoje nada foi concretizado.                  em ajudar a gente com saneamento bá-        tual. É uma coisa que vem de cada um.
     Cepema: A Funai diz o porquê de eles         sico ou energia elétrica.                   A gente nasce com esse dom.
     não terem começado?                          Cepema: Você é uma das lideranças da        Cepema: Além do torém, há outras coisas
     Adriana: Nem a Funai daqui, nem a de         comunidade. Como é ter uma mulher à         que vêm dos seus antepassados?
     Fortaleza. Só diz que está no sistema,       frente?                                     Adriana: As raízes que são remédios
     mas não tem data de se realizar.             Adriana: Pois é, as mulheres estão mes-     que os nossos antepassados deixaram. A
     Cepema: E em que pé está o conflito com       mo na frente pra defender a nossa Mãe       nossa mata é composta de medicina. Às
     a Nova Atlântida?                            Terra. (risos) Nós temos também muitos      vezes, a pessoa tem problema de colu-
                                                  homens que nos apóiam nessa luta. Mas       na, inflamação, então, a gente usa essas
     Adriana: Esse momento é tenso. A gente
                                                  a maioria é mesmo mulher que são ca-        medicinas das nossas matas pra se curar.
     continua na espera do Ministério Públi-
                                                                                              A gente ainda vive uma vida dos nossos
     co, da Funai. Porque só eles podem nos
                                                    Se tem que vir turis-                     antepassados porque a gente não deixou
     ajudar a resolver essa situação. A gente
                                                                                              de usar as tradições. E a conservação da
     está esperando que isso venha acontecer
     pra gente realmente ter paz.
                                                      mo. Se quer haver                       nossa terra, do meio ambiente. Que-
                                                                                              rer continuar com tudo que é sagrado
     Cepema: O atual governador já se envol-        desenvolvimento, que                      pra nós. A nossa Mãe Terra, a natureza.
     veu nesse conflito?
                                                     seja um desenvolvi-                      Tudo isso pra nós é sagrado. É o que os
     Adriana: Bom, o governador está envol-                                                   nossos antepassados passaram pra nós.
     vido. Quando o governador esteve aqui,          mento legal, estável                     Cepema: Mas, a entrada do homem
     exatamente como nós estamos aqui sen-
     tados... O governador esteve aqui com o
                                                        para todos nós.                       branco acabou misturando muita coisa...
                                                                                              Adriana: A gente não pode dizer que
     interesse de defender a Nova Atlântida.
                                                                                              não tem essa mistura, ela tem desde a
     Ele querendo que nós negociasse, dei-        pazes de liderar o nosso povo.
                                                                                              invasão do Brasil e está aí entre os povos
     xasse esse empreendimento acontecer.         Cepema: Por que as mulheres tomaram         indígenas. O Ceará está todo mistura-
     Que é pra trazer riqueza, trabalho para      à frente?                                   do com as raízes brancas. Mas, a raiz
     a população. O governador disse pra
                                                  Adriana: É porque não dá pra esperar        indígena é mais forte que a branca. E
     nós que terra pra ele tem que ser pro-
                                                  pelos homens. A gente tem coragem, a        estamos comprovando que somos mais
     dutiva. Se não for, não vale nada. Ele
                                                  gente enfrenta logo e faz as coisas acon-   fortes do que o branco.
     estava dizendo aquilo pra nos intimidar
                                                  tecerem. Ninguém vai esperar que eles       Cepema: Você tem orgulho de ser índia?
     e que nós não teria outra opção. Mas,
                                                  tomem a iniciativa.
     nós mostramos que ele é que vá fazer                                                     Adriana: Muito orgulho. Eu agradeço
     esse empreendimento em outro canto           Cepema: Como vocês se organizam?            a Deus ter nos dado coragem de nos
     porque nós não vamos sair daqui. Nós         Adriana: No fim de semana, a gente tá        identificar. Os nossos parentes que ain-
     temos que ficar aqui nas nossas terras.       reunido pra discutir o que aconteceu na     da não se identificam com certeza vão
     Se tem que vir turismo. Se quer haver        semana e pra dançar o torém.                se identificar, porque é um sangue que
     desenvolvimento, que seja um desen-          Cepema: Vocês dançam o torém?               corre nas veias de cada um de nós que
     volvimento legal, estável para todos                                                     moramos aqui na comunidade.
                                                  Adriana: Dançamos. Essa é a nossa for-
     nós. Não um desenvolvimento que vai                                                      Cepema: Então, deixa uma mensagem
                                                  ça maior. A resistência que nós temos. O
     acabar com a maioria da nossa terra e                                                    para aquele descendente de índio que tem
                                                  resgate dos nossos antepassados. A dan-
     deixar muito do nosso povo sem con-                                                      vergonha de se assumir como tal.
                                                  ça do torém é onde nós encontramos
     tato com os nossos manguezais, nossas
                                                  forças pra dar continuidade a essa luta.    Adriana: A mensagem que eu quero
     matas e rios.
                                                  Naquele momento, a gente se encontra        dizer para esse povo que é nosso povo
     Cepema: O governador falou em ajudar         com o Criador, eleva nossos pensamen-       também, mas que não se identifica até
     vocês, trazer, por exemplo, saneamento       tos a ele, aos nossos ancestrais. Pedimos   hoje é que eles possam ter a mesma co-
     básico?                                      ajuda, força e discernimento na nossa       ragem que nós tivemos de lutar pelo
     Adriana: Em nenhum momento. A                caminhada. Pra dar saúde, paz, alegria      objetivo maior que é a nossa Mãe Terra,
     gente até reivindicou energia elétrica,      e nós resistir a tudo isso.                 porque sem a terra nós não somos nada.
     então, ele disse que do jeito que estava,    Cepema: E você sabe dançar?                 Nós somos filhos dessa terra, então, nós
     em conflito, ele não poderia fazer nada.                                                  temos que defender a nossa mãe. Ainda
                                                  Adriana: Eu sei (risos). O torém é um
     Então, eu disse que ele poderia fazer                                                    é tempo de cada um, de cada uma, lu-
                                                  ritual que todos nós sabemos. Ninguém
     muita coisa se ele tivesse mesmo inte-                                                   tar pelos seus direitos e defender o que
                                                  ensinou. A gente já nasce sabendo como
     resse em nos ajudar. Que ele se aliasse ao                                               Deus nos deu de beleza que é a nossa
                                                  é que faz. As crianças na escola já sabem
     governo federal e pudesse fazer o estu-                                                  terra.

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À Sombra de um cajueiro

  • 1. Ponto de Vista Que interesses há na negação da etnicidade dos índios no Ceará? A história dos índios no Ceará dígenas e tradicionais, tanto do ser- se está apto a se incorporar ao projeto é marcada por um intenso processo tão quanto do litoral cearenses. de modernização capitalista. de lutas e resistências. Lutas contra as É imprescindível denunciarmos invasões que já no início do século Não é de se estranhar que o mesmo Estado que negou a existên- a falsidade do discurso ancorado em XVII tentavam expulsá-los de seus declarações infundadas, baseadas territórios e negar suas existências e cia de índios no Ceará na segunda metade do século XIX, venha hoje numa visão estereotipada, há tanto culturas. No alvorecer da moderni- ultrapassada, de que não existem dade, discutia-se se os índios tinham apoiar empreendimentos que têm na apropriação da terra e na utilização mais índios no Ceará, ou de que os alma, se eram gente, pois se não o índios que existem se travestem a fossem, poderiam ser escravizados e de nativos como mão de obra barata sua lógica, sob a justificativa de que partir de invenções de intelectuais ter suas terras legitimamente apossa- e organizações não-governamentais. das pelos invasores. Hoje, a justifica- trarão o famigerado “progresso” e “desenvolvimento”. Afinal, a existên- Pois, as comunidades indígenas or- tiva de que as populações tradicionais ganizadas no Ceará, que totalizam não são indígenas basta para tentar cia de populações indígenas organi- zadas emperram o projeto político e cerca de doze etnias e mais de 20 expulsá-las dos locais onde vivem há agrupamentos, afirmam sua etnici- várias gerações. econômico em curso. Pois pressupõe a existência de terras tradicionais, ha- dade e se mobilizam pelo reconheci- Concomitantemente à cons- bitadas pelos índios, que não podem mento e demarcação de suas terras. trução deste discurso, as elites locais ser vendidas, uma vez que estão pro- Resta-nos, pois, desmascarar impõem à sociedade cearense um tegidas por lei federal desde 1988. essas afirmações e apoiar a luta des- projeto de modernização que está tes povos, dando visibilidade às suas modificando completamente sua A problemática da etnicidade no Ceará coloca-se como um fator mais ações políticas e o apoio jurídico e paisagem, com a construção de uma científico necessários à demarcação complexa infra-estrutura que visa à complexo no contexto das relações definitiva de seus territórios. Torna- imersão efetiva do estado nas ma- político-econômicas locais e externas. mos nossa a consigna dos índios no lhas do neoliberalismo. Sob a capa A agressiva especulação imobiliária Ceará que diz: Não nos vendemos do velho discurso do progresso, pro- avança Ceará adentro sem nenhuma nem nos rendemos! metem emprego e “desenvolvimen- preocupação com os impactos sócio- to”. Na verdade, um projeto de de- ambientais por ela ocasionada. O Alexandre Gomes e João Paulo senvolvimento nitidamente elitista e que importa é saber se o Estado con- Vieira, historiadores e integrantes do concentrador de renda. Insustentá- cede meios legais e estruturais para Projeto Historiando* vel e explorador de recursos huma- receber os recursos internacionais * O Projeto Historiando realiza programa de educação patri- nos e naturais, com fortes impactos tão sonhados pelas elites industriais monial em comunidades étnicas no Ceará. O projeto apóia no modo de vida das populações in- e agrárias locais. Em outras palavras, a criação de museus indígenas, como espaços de formação, mobilização e organização comunitária. Os Programas da Fundação Cepema são financiados Fundação CEPEMA por: Governo Federal - Ministério do Meio Ambiente/ Danillo Galvão - Presidente Fundo Nacional do Meio Ambiente/PDA, Ministério do Henrique César Paiva Barroso - Vice-Presidente Desenvolvimento Agrário, Ministério da Educação, Ministério Heleni Lima da Rocha - Dir. Adm. Financeiro Patrimonial Adalberto Alencar - Coordenador Pedagógico da Cultura e Terra do Futuro/UBV - Suécia. e-mail: cepema@attglobal.net / www.fundacaocepema.org.br 4
  • 2. ENTREVISTA À SOMBRA DE UM CAJUEIRO Cepema: Você se considera índia? Cepema: E isso não tira de vocês o status Adriana: Sim. A gente é da etnia Tre- de serem índios? membé. Os Tremembés vem de Almo- Adriana: Em nenhum momento. Não é fala [comunidade pesqueira a 242 km de isso que vai tirar de nós o nosso direito Itarema, município cearense]. Vieram pra de ser índio e de lutar pelos nossos direi- cá pela Praia do Mundaú. Aqui é tudo tos. Ter uma casa de tijolo não vai tirar familiar, não só por ser irmãos índios, o nosso direito. mas por ter o mesmo sangue. Cepema: Essa região é muito cobiçada Cepema: Como a comunidade se susten- pelo turismo. Como a comunidade vê essa ta? disputa para se construir a cidade turísti- Adriana: Da agricultura e da pesca. ca do grupo Nova Atlântida? Adriana Carneiro de Cas- Planta roça, feijão, milho, bananeira, Adriana: O nosso território é um ter- tro – 37 anos, casada e mãe de batata, melancia... A gente vem com ritório saudável e a ganância do ho- dois filhos – é descendente dos essa cultura. É da terra que nós sobre- mem branco quer destruir tudo que o vive. Mas, hoje, a gente tem apoio do Criador nos deu. Tudo aqui é natural e Índios Tremembés de Almofala, Governo Federal, tem o benefício da a gente ver esse empreendimento que- Ceará. Ela é uma das lideran- aposentadoria e o Bolsa Família que rendo instalar uma cidade... Não é nem ças do seu povo na defesa de sua vêm ajudando o nosso povo. um projeto pequeno, mas é uma cida- terra e contra o maior projeto de. Transformar tudo que é nosso em Cepema: Para o Governo reconhecer cidade. E a gente ainda sente que eles turístico da atualidade no País: como indígena é preciso que a comunida- têm o apoio do governo do estado, do o empreendimento imobiliário, de se reconheça primeiro. Faz tempo que município... Nós que moramos aqui e vocês se reconhecem como índios? orçado em US$ 15 bilhões, do vivemos no dia-a-dia sentimos uma tris- Adriana: Faz muitos anos que o nosso teza com esse empreendimento. grupo espanhol Nova Atlânti- povo sabia que era um povo indígena, Cepema: Na proposta do Grupo Nova da. Esse grupo (que está sob a mas não tinha coragem de falar. Foi em Atlântida, vocês sairiam daqui para onde? mira do Conselho de Controle 2002 que a gente realmente levantou Adriana: Eles chegaram com a propos- essa bandeira de defender a nossa terra de Atividades Financeiras, do ta que o empreendimento iria abranger e dizer a nossa própria etnia. Já tem 107 Ministério da Fazenda, por famílias que se cadastraram na Funasa toda a nossa moradia e que era um pro- suspeita de movimentação fi- jeto de tirar nossas casas e fazer casas po- [Fundação Nacional de Saúde] se reco- pulares em outro canto. Só que a gente nanceira incompatível de seus nhecendo como indígena. não aceita, porque onde a gente está é a sócios) quer construir uma ci- Cepema: Mas, a Funai [Fundação Na- nossa raiz, é um bem da gente. A gente cional do Índio] já veio aqui? tem uma vida e não aceita essa retirada dade turística com 13 hotéis Adriana: Já, já. A gente tem apoio da para outro local que a gente nem sabe cinco estrelas, 14 resorts, seis Funai. E a gente já está cadastrado pela onde vai ser. A visão da Nova Atlântida condomínios residenciais e três Funasa que é para o saneamento básico. é tirar as famílias pra residir em outro campos de golfe de tamanho ofi- Cepema: Aqui há casas de tijolos. Tem, local e nós nem sabemos onde é que cial, na Praia da Baleia a 200 também, água encanada e energia? fica. km de Fortaleza. A área de 3,1 Adriana: Não temos energia elétrica, Cepema: O Ministério Público embargou nem encanação de água. A gente tem a construção. Mas, no caminho, eu perce- mil hectares é uma Reserva In- bi algumas obras, com desmatamento e essas casas porque os nossos antepassa- dígena Tremembé onde moram dos sofreram muito porque não tinham queimada. O que está acontecendo ali? 200 famílias das comunidades como fazer uma casa. Com essas melho- Adriana: Ali é exatamente obra da Nova São José e Buriti. rias que o Governo tem dado, a gente Atlântida. A gente já denunciou por quer ter um espaço melhor. duas vezes e até agora nada foi feito. O 28
  • 3. próprio Ibama veio verificar, mas achou de Itapipoca como de Trairi. Perseguição Adriana: Antes de a Nova Atlântida natural essa queimada do pessoal da muito forte. Teve parentes presos. Mu- chegar, nós lutava juntos. Com a Nova Nova Atlântida. A gente vê com muita lheres que apanharam de policiais. Até Atlântida, começou esses empregos, en- tristeza até agora não ter sido tomada crianças que foram corridas com medo tão, o nosso povo não se identificou mais nenhuma posição com relação a isso. da perseguição da Nova Atlântida. como índio. Porque se eles se identifica- Cepema: Isso intimida vocês? rem eles não vão ter mais os empregos Ter uma casa de Adriana: Pelo contrário. Quanto mais da Nova Atlântida. Há esse conflito en- tre se identificar e não se identificar. Se eles tentam, mais a gente se sente forta- tijolo não vai tirar lecido porque é um direito nosso. Nós identificar, é claro, que a Nova Atlântida não vai dar o emprego. O jeito é ficar o nosso direito. nascemos e fomos criados aqui. Vive- caladinho. mos a nossa cultura, a nossa vida. O Cepema: Há quanto tempo vocês lutam nosso trabalho é aqui e não tem como a Cepema: Que empregos eles têm? para manter a terra de vocês? gente se intimidar diante disso. A gente Adriana: Como vocês viram, desmatan- não tem medo de que a Nova Atlântida do... Outros são vigias dentro das nossas Adriana: Desde os nossos ancestrais vai tirar a gente daqui porque se real- terras. que eles vêm lutando para ter a terra que era deles e que deixou de herança mente isso acontecer, aí não é pra existir Cepema: Vigia? Então, existem obras da pra nós. Mas, nossos antepassados não justiça no mundo... Porque ninguém Nova Atlântida aqui? tinham como lutar pelos seus direitos, vai fazer uma barbaridade dessa com o Adriana: Existe. Ela está como um cân- pelos seus territórios, então, muitos povo Tremembé de São José e Buriti. cer na nossa terra. Ela não está em um saíram por não aceitar a chegada dos Cepema: Vocês têm apoio nessa luta? lugar só. Está se espalhando no corpo portugueses. Eles não tinham como re- Adriana: Temos apoio de movimentos da nossa terra. Está focada no Buriti; correr. Hoje, nós somos uma raiz e nós sociais, de outras comunidades, assen- tá lá na Barra do Mundaú e tem outro brotamos. Nós já temos os nossos direi- tamentos. Até da Funai, Funasa, Missão pertinho daqui, em um sítio. Ela está tos pela Constituição. Mesmo assim, a Tremembé. De outros povos [indígenas] se espalhando não com os hotéis, mas gente ainda tem muito medo de falar que vêm nos ajudando pra gente não se tá fazendo tomada de parte das nossas por causa do preconceito. Nós sofremos sentir tão abandonado. Até porque está terras. muitos preconceitos, mas a gente vem na Constituição os direitos dos povos Cepema: Se o Ministério Público proibiu lutando contra isso. Nosso grito tá eco- indígenas. E a gente se mobiliza pra lu- as obras, por que eles permanecem aqui? ando no mundo inteiro e nós continu- tar juntos pela nossa terra. amos aqui pra defender a nossa terra e Adriana: Aí é uma pergunta que a gen- Cepema: Saiu na mídia que vocês seriam te mesmo se faz. Porque se o Ministério nossos direitos. Público deu uma liminar pra impedir Cepema: Que preconceitos vocês sofrem? Nosso grito tá eco- essas construções e a Nova Atlântida Adriana: Ficam dizendo que não somos não respeita e continua com esses traba- índios, que não adianta lutar contra esse ando no mundo lhos na nossa terra... Até agora nós não empreendimento. Que não adianta pei- inteiro e nós conti- sabemos o porquê disso. xe pequeno lutar contra peixe grande. Cepema: Nunca veio nenhuma ação para Vem com esses preconceitos pra gente nuamos aqui pra tirá-los daqui? continuar calado, mas a gente não fica calado diante disso não. defender a nossa ter- Adriana: Até agora não houve. A única coisa que pode nos ajudar é o estudo da Cepema: Existe perseguição a lideranças ra e nossos direitos. nossa terra, mas que ainda não foi feito. por defender a permanência de vocês? A gente vem cobrando da Funai que eles Adriana: A gente é muito perseguido, aliciados por uma Ong para dizer que são possam encaminhar o mais breve possí- eu, minha irmã. Outros parentes foram índios. O que você me diz disso? vel esse grupo de trabalho pra fazer o alvos de processos por conta do nosso estudo e o laudo. A gente tem cinco sí- Adriana: A empresa usa isso pra nos movimento. Por não ter medo de dizer tios arqueológicos dos nossos antepassa- intimidar. Mas, a única coisa que está o que somos. Eles vêm querendo nos in- dos. Esses sítios estão, exatamente, onde sendo paga aqui é os nossos parentes. A timidar levando nós até os tribunais de o empreendimento quer instalar o seu Nova Atlântida está pagando os nossos justiça do município de Itapipoca. projeto de hotéis e de campo de golfe. É parentes para não se identificar como Cepema: Então, já houve embates entre em cima desses sítios arqueológicos... índio. A única que está pagando é ela. vocês e o grupo da Nova Atlântida? Eu não conheço nem outro povo que Cepema: Foi pedido o grupo de trabalho? Adriana: Houve policiais que vieram está sendo pago aqui. Adriana: A gente vem cobrando desde contratados pela Nova Atlântida, tanto Cepema: Como assim pagos? o início. Em 2006, numa reunião com 29
  • 4. o Ministério Público, ficou tudo certo do que isso tudo se resolveria. Mas, em dançar o torém. Cada um sabe como que o grupo de trabalho viria. Mas, até nenhum momento ele se disponibilizou pegar o seu maracazim, sabe fazer o ri- hoje nada foi concretizado. em ajudar a gente com saneamento bá- tual. É uma coisa que vem de cada um. Cepema: A Funai diz o porquê de eles sico ou energia elétrica. A gente nasce com esse dom. não terem começado? Cepema: Você é uma das lideranças da Cepema: Além do torém, há outras coisas Adriana: Nem a Funai daqui, nem a de comunidade. Como é ter uma mulher à que vêm dos seus antepassados? Fortaleza. Só diz que está no sistema, frente? Adriana: As raízes que são remédios mas não tem data de se realizar. Adriana: Pois é, as mulheres estão mes- que os nossos antepassados deixaram. A Cepema: E em que pé está o conflito com mo na frente pra defender a nossa Mãe nossa mata é composta de medicina. Às a Nova Atlântida? Terra. (risos) Nós temos também muitos vezes, a pessoa tem problema de colu- homens que nos apóiam nessa luta. Mas na, inflamação, então, a gente usa essas Adriana: Esse momento é tenso. A gente a maioria é mesmo mulher que são ca- medicinas das nossas matas pra se curar. continua na espera do Ministério Públi- A gente ainda vive uma vida dos nossos co, da Funai. Porque só eles podem nos Se tem que vir turis- antepassados porque a gente não deixou ajudar a resolver essa situação. A gente de usar as tradições. E a conservação da está esperando que isso venha acontecer pra gente realmente ter paz. mo. Se quer haver nossa terra, do meio ambiente. Que- rer continuar com tudo que é sagrado Cepema: O atual governador já se envol- desenvolvimento, que pra nós. A nossa Mãe Terra, a natureza. veu nesse conflito? seja um desenvolvi- Tudo isso pra nós é sagrado. É o que os Adriana: Bom, o governador está envol- nossos antepassados passaram pra nós. vido. Quando o governador esteve aqui, mento legal, estável Cepema: Mas, a entrada do homem exatamente como nós estamos aqui sen- tados... O governador esteve aqui com o para todos nós. branco acabou misturando muita coisa... Adriana: A gente não pode dizer que interesse de defender a Nova Atlântida. não tem essa mistura, ela tem desde a Ele querendo que nós negociasse, dei- pazes de liderar o nosso povo. invasão do Brasil e está aí entre os povos xasse esse empreendimento acontecer. Cepema: Por que as mulheres tomaram indígenas. O Ceará está todo mistura- Que é pra trazer riqueza, trabalho para à frente? do com as raízes brancas. Mas, a raiz a população. O governador disse pra Adriana: É porque não dá pra esperar indígena é mais forte que a branca. E nós que terra pra ele tem que ser pro- pelos homens. A gente tem coragem, a estamos comprovando que somos mais dutiva. Se não for, não vale nada. Ele gente enfrenta logo e faz as coisas acon- fortes do que o branco. estava dizendo aquilo pra nos intimidar tecerem. Ninguém vai esperar que eles Cepema: Você tem orgulho de ser índia? e que nós não teria outra opção. Mas, tomem a iniciativa. nós mostramos que ele é que vá fazer Adriana: Muito orgulho. Eu agradeço esse empreendimento em outro canto Cepema: Como vocês se organizam? a Deus ter nos dado coragem de nos porque nós não vamos sair daqui. Nós Adriana: No fim de semana, a gente tá identificar. Os nossos parentes que ain- temos que ficar aqui nas nossas terras. reunido pra discutir o que aconteceu na da não se identificam com certeza vão Se tem que vir turismo. Se quer haver semana e pra dançar o torém. se identificar, porque é um sangue que desenvolvimento, que seja um desen- Cepema: Vocês dançam o torém? corre nas veias de cada um de nós que volvimento legal, estável para todos moramos aqui na comunidade. Adriana: Dançamos. Essa é a nossa for- nós. Não um desenvolvimento que vai Cepema: Então, deixa uma mensagem ça maior. A resistência que nós temos. O acabar com a maioria da nossa terra e para aquele descendente de índio que tem resgate dos nossos antepassados. A dan- deixar muito do nosso povo sem con- vergonha de se assumir como tal. ça do torém é onde nós encontramos tato com os nossos manguezais, nossas forças pra dar continuidade a essa luta. Adriana: A mensagem que eu quero matas e rios. Naquele momento, a gente se encontra dizer para esse povo que é nosso povo Cepema: O governador falou em ajudar com o Criador, eleva nossos pensamen- também, mas que não se identifica até vocês, trazer, por exemplo, saneamento tos a ele, aos nossos ancestrais. Pedimos hoje é que eles possam ter a mesma co- básico? ajuda, força e discernimento na nossa ragem que nós tivemos de lutar pelo Adriana: Em nenhum momento. A caminhada. Pra dar saúde, paz, alegria objetivo maior que é a nossa Mãe Terra, gente até reivindicou energia elétrica, e nós resistir a tudo isso. porque sem a terra nós não somos nada. então, ele disse que do jeito que estava, Cepema: E você sabe dançar? Nós somos filhos dessa terra, então, nós em conflito, ele não poderia fazer nada. temos que defender a nossa mãe. Ainda Adriana: Eu sei (risos). O torém é um Então, eu disse que ele poderia fazer é tempo de cada um, de cada uma, lu- ritual que todos nós sabemos. Ninguém muita coisa se ele tivesse mesmo inte- tar pelos seus direitos e defender o que ensinou. A gente já nasce sabendo como resse em nos ajudar. Que ele se aliasse ao Deus nos deu de beleza que é a nossa é que faz. As crianças na escola já sabem governo federal e pudesse fazer o estu- terra. 30