COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
Revista Sinais Sociais (abril 2011)
1. v.5 nº15
janeiro > abril | 2011
SESC | Serviço Social do Comércio
Administração Nacional
ISSN 1809-9815
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 1-176 | janeiro > abril 2011
2. SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional
PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL
Antonio Oliveira Santos
DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL
Maron Emile Abi-Abib
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento
Mauro Lopez Rego
CONSELHO EDITORIAL
Álvaro de Melo Salmito
Luis Fernando de Mello Costa
Mauricio Blanco
Nivaldo da Costa Pereira
secretário executivo
Mauro Lopez Rego
assessoria editorial
Andréa Reza
EDIÇÃO
Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral
Christiane Caetano
projeto gráfico
Vinicius Borges
produção editorial
Duas Águas editoração e consultoria
revisão
Clarissa Penna
revisão do inglês
Idiomas & cia
diagramação
Livros & Livros | Susan Johnson
produção gráfica
Celso Clapp
Sinais Sociais / SESC, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/
ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : SESC,
Departamento Nacional, 2006 - .
v.; 30 cm.
Quadrimestral.
ISSN 1809-9815
1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade.
3. Brasil. I. SESC. Departamento Nacional.
As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.
As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
3. SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO5
EDITORIAL7
SOBRE OS AUTORES8
a desordem do mundo10
André Bueno
escuta, arte e sociedade a partir do
músico enfurecido44
Daniel Belquer
A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: O
RETORNO PRIVADO E AS RESTRIÇÕES AO
INGRESSO82
Márcia Marques de Carvalho
APRENDIZAGEM POR PROBLEMATIZAÇÃO112
Pedro Demo
A CIDADANIA ATRAVÉS DO ESPELHO: DO
ESTADO DO BEM-ESTAR ÀS POLÍTICAS DE
EXCEÇÃO138
Sylvia Moretzsohn
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 1-176 | janeiro > abril 2011 3
4.
5. APRESENTAÇÃO
A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um espaço
de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira.
Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação. Plu-
ralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a publica-
ção de todas as tendências marcantes do pensamento social no Brasil hoje.
A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas páginas, um locus
no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício poder-se-ão manifestar.
Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da
Sinais Sociais é garantida. O fundamento deste pressuposto está nas Diretri-
zes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da entidade: “Valores
maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cida-
dania, o amor à liberdade e à democracia como principais caminhos da bus-
ca do bem-estar social e coletivo.”
Igualmente, é respeitada a forma como os artigos são expostos – de acor-
do com os cânones das academias ou seguindo expressão mais heterodoxa,
sem ajustes aos padrões estabelecidos.
Importa para a revista Sinais Sociais artigos em que a fundamentação
teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das ideias
tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises que
acrescentem, que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos lei-
tores ou lhes tragam um novo olhar sobre os objetos em estudo.
O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas semelhantes,
de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com suas reflexões
como para segmentos do grande público interessados em se informar e se
qualificar para uma melhor compreensão do país.
Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao mun-
do acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais deste debate, é a inten-
ção do SESC com a revista Sinais Sociais.
Antonio Oliveira Santos
Presidente do Conselho Nacional do SESC
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 1-176 | janeiro > abril 2011 5
6.
7. EDITORIAL
O mito de Narciso apaixonado por si mesmo a ponto de morrer em sua
imagem serve de fio condutor a esta edição da revista Sinais Sociais. Como
evitar a busca por espelhos indulgentes, como dialogar com realidades que
desmentem nossas premissas, como prevenir o autoencantamento que pode
antecipar a morte?
Conhecer a violência existente no diálogo entre o “mesmo” e o “não eu”
– para usar conceitos de Levinas – nos remete às escolhas éticas que todos
devemos tomar para o entendimento e a ação.
O artigo de Sylvia Moretzsohn traz já em seu título o questionamento da
“naturalização” da cidadania referida nos meios de comunicação pela repe-
tição, pelo reducionismo, pela face de benevolência que se lhe atribui. A
visão da violência, a omissão da escuta, a criação estética como recurso de
compreensão do mundo se fazem presentes nos instigantes textos de André
Bueno e Daniel Belquer.
Para o entendimento acerca da aprendizagem, Pedro Demo reflete sobre o
processo educacional não como uma reprodução de “mesmos”, mas como o
estímulo e o acompanhamento à autoconstrução individual.
O estudo sobre a abrangência da educação superior, desenvolvido por Márcia
Marques de Carvalho, ilustra as possibilidades restritas de acesso, no Brasil, a
uma formação crítica, questionadora, criativa e não reprodutora ou autorre-
ferenciada.
Com esse conteúdo, a revista Sinais Sociais 15 propõe desafios sobre o pen-
sar e o agir no mundo, confrontando-os criativamente com os dilemas de
nossos diversos “eus” frente à vida em sociedade.
Maron Emile Abi-Abib
Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC
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8. SOBRE OS AUTORES
André Bueno
É paulista radicado no Rio de Janeiro, professor associado da Faculdade de Letras
da UFRJ, pesquisador do CNPq desde 1991, no presente período, com o projeto
A desordem do mundo – literatura e estados de exceção. É mestre em Literatura
Brasileira (PUC-Rio, 1978), doutor em Teoria da Literatura (UFRJ, 1987), pós-dou-
tor em Letras Modernas (USP 2008) e escreveu vários livros, capítulos de livros e
,
artigos publicados em revistas. Em livro, publicou nos últimos anos Memórias do
futuro (2009), Pássaro de fogo no Terceiro Mundo – o poeta Torquato Neto e sua
época (2005) e Formas da crise – estudos de literatura, cultura e sociedade (2002).
É coordenador do grupo de pesquisa Formação do Brasil Moderno – Literatura,
Cultura e Sociedade, registrado no diretório de grupos de pesquisas do CNPq,
que reúne pesquisadores da UFRJ, USP UFPR, UFG, UFCE e UFRN. Foi coorde-
,
nador da Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ de 1991 a 1995. Até
o momento, já orientou cinquenta teses de doutorado, dissertações de mestrado e
projetos de iniciação científica.
Daniel Belquer
Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio), desenvolve pesquisa interdisciplinar em artes. Trabalha como compositor,
diretor de espetáculos, diretor musical e diretor de vídeo, programador em MAX/
MSP/Jitter, músico instrumentista e performer. Interessa-se pela pesquisa que in-
tegra pensamento, ação artística, tecnologia e as chamadas vanguardas históricas.
Últimas publicações: Escutar a cena: um outro olhar para o que soa (dissertação de
mestrado) e o artigo “Descontrole, sensores e o atuador interativo”.
Márcia Marques de Carvalho
Formada pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE) do Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatística (IBGE), mestre em Engenharia de Produção pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutoranda em Economia pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora assistente do Departamento
de Estatística da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora da Economia
da Educação (ensino superior) e Políticas Sociais (previdência social e programas
assistenciais como bolsa-escola).
8 Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 1-176 | janeiro > abril 2011
9. Pedro Demo
PhD em Sociologia (Alemanha, 1971). Teve sua tese aprovada com nota máxima,
premiada e publicada (Herrschaft und Geschichte, 1973). Técnico de Planejamento
e Pesquisa do IPEA (1976-1994). Professor titular, aposentado e emérito de Socio-
logia do Departamento de Sociologia da UnB (1976-2008). Consultor de experiên-
cias pedagógicas locais (atualmente, em Campo Grande/MS e Porto Franco/MA).
Autor de 90 livros nas áreas de metodologia científica e política social (com ênfase
em Sociologia da Educação). Mantém um blog (http://pedrodemo.sites.uol.com.br)
voltado para questões educacionais, em particular, para as experiências locais.
Sylvia Moretzsohn
Jornalista e professora adjunta de jornalismo no curso de Comunicação Social da
Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Comunicação e doutora em
Serviço Social, leciona também no Mestrado Profissionalizante em Justiça Admi-
nistrativa, da mesma Universidade, na área de mídia e justiça. É membro de con-
selhos editoriais e parecerista de revistas acadêmicas. Desenvolve pesquisas de
cunho interdisciplinar, voltadas principalmente para as relações entre jornalismo
e tecnologia, ética, cidadania, questão social, cotidianidade e senso comum. Tem
diversos artigos publicados sobre o tema. Atualmente, é diretora de Jornalismo da
Associação Brasileira de Imprensa.
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10. A DESORDEM DO MUNDO
André Bueno
10 Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 10-43 | janeiro > abril 2011
11. Este artigo trata de um problema crítico difícil: como dar forma literária a al-
terações radicais da vida cotidiana, produzidas pelos estados autoritários de
exceção, sem estetizar a violência e o sofrimento humano, como não banalizar
a oscilação radical entre civilização e barbárie que resulta da desordem do
mundo à qual o título alude. Com isso em mente, este artigo oferece uma breve
abordagem de alguns trabalhos específicos dos escritores W.G. Sebald, Roberto
Bolaño, José Saramago, Julio Cortázar e Juan José Saer.
Palavras-chave: estado de exceção, literatura, violência
This article deals with a very difficult critical problem: how to give literary form
to the radical alterations of daily life, produced by authoritarian states of excep-
tion, without aestheticizing violence and human suffering, how not to banalize
the radical oscillation between civilization and barbarism that results from the
disorder of the world to which the title alludes. Having that in mind, this article
offers a brief approach to some specific works by writers W.G. Sebald, Roberto
Bolaño, José Saramago, Julio Cortázar and Juan José Saer.
Keywords: state of exception, literature, violence
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 10-43 | janeiro > abril 2011 11
12. INTRODUÇÃO
O que se lê a seguir é uma análise de representações literárias que
tratam de alterações extremas da produção e reprodução da vida
comum e cotidiana, resultando em rupturas radicais com a apenas
aparente normalidade e estabilidade da experiência do dia a dia. No
limite, rupturas que suspendem o Estado de Direito, as garantias in-
dividuais, os parâmetros básicos da vida civilizada, mostrando como
são frágeis os limites que separam civilização e barbárie e instaurando
pela violência a desordem do mundo a que alude o título deste tra-
balho. A história do século XX mostrou, pelo ângulo mais negativo,
como é possível instaurar estados de exceção a partir de situações
de aguda crise social. Mostrou mais, e muito pior, que estados de
exceção são criados a partir de uma peculiar combinação de coerção
e consenso, não apenas da imposição direta e arbitrária de sistemas
políticos totalitários.
Essa combinação se expressa na vida cotidiana, misturando o tri-
vial e o terrível, a violência extrema e uma aparência de normali-
dade, daí resultando uma mistura insidiosa, que interessa pensar.
A convivência pacífica e sem conflitos, em uma mesma pessoa, do
torturador e do chefe de família, do delator e do defensor exemplar
da moral e da religião, do bom vizinho que fica indiferente ou aju-
da a promover perseguições e massacres, ilustra em profundidade o
alcance crítico do problema. Sem esquecer das livrarias, dos teatros,
dos museus, dos espetáculos, que continuam na vida cotidiana da
cidade ocupada pelo estado de exceção, indicando uma sempre in-
cômoda relação entre cultura e regressão bárbara, fazendo justiça a
Walter Benjamin, quando notou que “não há documento de cultura
que não seja também documento de barbárie”, contribuindo muito
para que não se pense a cultura pelo ângulo idealista, como se fosse
o lugar por excelência dos mais altos atributos humanos, compar-
tilhada sem crises por espíritos sensíveis e cultivados. A história do
século XX, na Europa e em quase toda a periferia do capitalismo,
deixou em seu rastro uma quantidade enorme de massacres e es-
tados de exceção. Indicação segura, para lembrar aqui Freud, de
que a civilização é um compromisso frágil e instável, que precisa
ser cultivado e preservado o tempo todo, justo contra o mal-estar
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13. que a própria civilização produz, não sendo descabido associar essas
regressões autoritárias a uma volta desordenada do reprimido e do
recalcado, invertendo os sinais da cidade e promovendo uma pro-
funda desordem do mundo.
Na outra ponta do processo, para não criar uma redução drástica do
problema, há também as variadas redes de resistência, que se orga-
nizam e espalham na contramão da vida cotidiana ocupada pela vio-
lência e pelo arbítrio. São vários os exemplos, e às vezes inesperados,
da virtude cívica que se prova justo em situações extremas de crise
social, onde não há mais espaço para a retórica das boas consciências
querendo se colocar à margem das impurezas do branco e da sujei-
ra do mundo, ao modo dos inocentes do Leblon, virando o rosto e
passando na pele um óleo suave e perfumado, marca da indiferença
e da aceitação passiva da desordem do mundo. Em resumo, há uma
variedade de configurações, de relações, de refrações, de matizes, de
sutilezas, de ângulos agudos e sutis, a que cabe ao escritor de primeira
linha dar forma literária elaborada. E ao crítico e estudioso cabe pen-
sar com paciência e atenção, para trazer à tona sentidos cifrados, os
que realmente contam para uma boa análise.
Inevitável, o problema que se apresenta para a análise crítica é a
própria dificuldade da representação estética dessas experiências ex-
tremas que alteram de modo radical todas as esferas da vida social.
No limite, o que se apresenta é o problema de nomear o inominável,
pensar o impensável, representar o mal absoluto sem estetizar a vio-
lência, que tornaria desfrutáveis e consumíveis formas extremas de
sofrimento humano. Não é uma tarefa simples, de jeito nenhum se
trata de um trabalho fácil. Tudo considerado, o problema crítico é, ao
mesmo tempo, estético e ético. Como estar à altura de experiências
extremas, ao mesmo tempo triviais e terríveis, opacas e sutis, difíceis e
muitas vezes quase intratáveis? Como não há uma resposta simples e
direta para nenhuma dessas perguntas, tampouco uma forma estética
abstrata e ideal que possa dar conta do alcance e da profundidade do
problema, resta ao crítico discernir, caso a caso, com cuidado, os erros
e os acertos na tarefa de evitar as inúmeras armadilhas que a complexa
configuração dos estados de exceção apresenta o tempo todo.
Há sempre a tentação, fácil, de aderir ao ângulo aberto dos proces-
sos históricos e sociais, como que aderindo, sem mais, à superfície dos
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 10-43 | janeiro > abril 2011 13
14. processos, deixando de lado o ângulo fechado. Vale dizer, perdendo
de vista o particular sensível, configurado e cifrado na experiência co-
mum de todo dia, daí tirando consequências que apontam para uma
percepção mais forte do movimento geral em curso. Interessa, nesse
passo, a conquista propriamente moderna que traz a vida comum e
cotidiana e seus personagens, também comuns e nada heroicos, para
o centro mesmo da configuração literária, com pleno direito de cida-
de. Os leitores de Eric Auerbach, de Walter Benjamin, de Theodor
Adorno, de Antonio Candido e de Roberto Schwarz, para ficar em
alguns exemplos fortes, sabem a força crítica que deriva da análise
imanente, objetiva e detida, do pequeno e do particular, dos detalhes
relevantes e carregados de significado, dos restos e sobras, das mar-
gens quase sempre anônimas. Irrelevantes para os grandes sistemas
filosóficos, totalizados e fechados, irrelevantes também para os siste-
mas positivos e abrangentes de análise histórica, preocupados com a
generalidade das linhas de força, esses particulares sensíveis apresen-
tam um elevado teor de verdade, lembrando nesse passo da análise
de Theodor Adorno e os modos de exposição sistemática do negativo,
do avesso das visões triunfais.
Ao modo também dialético, lembrando agora Walter Benjamin, o
cuidado com os particulares sensíveis, com os restos e sobras, com
as margens consideradas irrelevantes ou pouco importantes pelos sis-
temas fechados, a atenção neles focada permite, muito justamente,
perceber a totalidade a partir do particular, a verdade negativa do
todo através da percepção intensa do detalhe e da variedade da vida
cotidiana. A forma do ensaio nos interessa na sua mobilidade e intran-
sigência, na sua capacidade de modular, de variar os ângulos da per-
cepção analítica, no seu modo peculiar de não aderir ao que existe,
ao que se apresenta como dado objetivo, ao que se deseja positivo
e determinado. Para dizer de outro modo, fechado e integrado num
sistema domesticado e sem falhas. Por extensão, o que interessa é o
ensaio como uma forma do espírito crítico insubmisso, que não quer
se reconciliar com a miséria do mundo.
Como se trata de uma tradição crítica do cotidiano, desde logo
se evitam os equívocos, simétricos e complementares, de aderir
sem mais aos dados imediatos e positivos da vida cotidiana, como
se fossem naturais e transparentes; e também o oposto, considerar
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15. irrelevante a vida cotidiana, com isso esvaziando de sentido a
experiência da vida de todo dia em favor de algum tipo de análise
abstrata e impessoal, do tipo que reduz os massacres a números e
estatísticas, a abstrações impessoais, tratando de tantos milhares ou
milhões de mortos. O que seria uma forma de reproduzir o horror
dos massacres, deixando de lado e esquecendo o sofrimento e as
dores pessoais e particulares, intransferíveis e irredutíveis a qualquer
abstração desse tipo.
Passando pela configuração dos particulares sensíveis da vida co-
tidiana, o artista de primeira linha é capaz de dar forma aos estados
de exceção, mostrando uma espécie de verdade negativa dos mitos
que acompanham a expansão do capitalismo a partir da Europa,
à frente as trocas mercantis, o progresso triunfante, a ciência e a
técnica como ideologia, o domínio cego e a destruição da natureza,
a civilização industrial e urbana como parâmetro de que se queria
uma “civilização avançada”, o tempo todo desmentida em suas pre-
tensões. Mas nem por isso é menos forte e capaz de criar um mundo
à sua imagem e semelhanças. Verdade negativa, vale insistir, que
se apresentou dentro e fora da Europa. Fora da Europa, verdade
negativa amplamente demonstrada pelo Imperialismo e pelo Colo-
nialismo, assim como pelas sequelas de longo prazo deixadas mundo
afora. Dentro da Europa, pela ascensão dos sistemas totalitários, que
levaram a “civilização avançada” a extremos de barbárie até então
impensáveis. No vértice mais agudo e difícil dessa oscilação, o nazis-
mo e o Holocausto, memória incontornável e indesculpável do pior
estado de exceção.
As narrativas do escritor alemão W.G. Sebald, um conjunto muito
forte e configurado, se dedicam a esses temas, com uma capacidade
crítica e criativa que, de fato, dão notícia da grandeza literária possível
em nossa época, para lembrar aqui o comentário de Susan Sontag. Os
leitores de Os emigrantes, Os anéis de Saturno, Vertigem e Austerlitz
por certo não discordariam da avaliação. Também entre os escrito-
res contemporâneos, não é descabido lembrar de Roberto Bolaño,
escritor chileno muito capaz de representar estados de exceção ao
modo forte e configurado. Os leitores de Nocturno de Chile, Amuleto
e Estrela distante dificilmente discordariam. Muito conhecidos, o En-
saio sobre a cegueira e o Ensaio sobre a lucidez, dão notícia do modo
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 10-43 | janeiro > abril 2011 15
16. alegórico de representar estados de exceção, combinando justamente
ficção e ensaio, reflexão crítica e narração, em contextos imaginados
pelo autor, sem referências históricas e sociais específicas e definidas,
como é o caso de W.G. Sebald e Roberto Bolaño. Para estender um
pouco a lista de exemplos mais próximos da representação literária de
estados de exceção, é possível lembrar de Libro de Manuel e dos con-
tos “Escuela de noche” e “Pesadilla”, todos de Julio Cortázar, situados
em polos por assim dizer opostos, mais adiante comentados. Ainda
um exemplo: Nadie, nada, nunca, de Juan José Saer, narrativa das mais
densas e cifradas, muito capaz de ir fundo nos avessos e refrações da
experiência individual e coletiva.
Os exemplos apresentados, é fácil notar, carregam em si tanto a
evidência das escolhas objetivas quanto o peso das afinidades eleti-
vas, sempre menos definíveis, mas nem por isso menos importantes.
Desde logo, são escritores que se deslocam e tomam distância de seus
contextos nacionais de origem. Distância e deslocamento que vão de
par com os temas fortes da viagem, do exílio, da memória, do trauma
e do luto. Escritores que se deslocam e tomam distância de seus con-
textos nacionais de origem, mas que continuam escrevendo na língua
materna, e que continuam sendo, caso seja necessário enfatizar, escri-
tores que de longe percebem e pensam melhor seus países. Escapam
de certos constrangimentos do nacionalismo, da pátria, do localismo
estreito, do orgulho vulgar e das cores locais folclóricas, mas não se
lançam no espaço fútil e estéril do “cidadão do mundo”, vale dizer, do
cosmopolita vazio e, tantas vezes, pedante e presunçoso. No limite,
escritores que se colocam, por escolha ou sob pressão, em uma po-
sição que tem sempre algo de extraterritorial. Para dizer melhor, posi-
ção distanciada e deslocada, difícil e refratada, que ressalta a profunda
estranheza do material configurado pela forma literária, aumentando
sua potência crítica e criativa.
Uma breve apresentação de cada um desses escritores dá notícia do
que foi acima indicado. W.G. Sebald nasceu em Wertach im Allgäu,
na Alemanha, em 1944, quase no final da Segunda Guerra. Desde
1966 foi professor de literatura na Inglaterra, primeiro em Manches-
ter, depois, por muitos anos, em East Anglia. Viveu na Inglaterra até
sua morte, em 2001, num acidente de automóvel. Roberto Bolaño
nasceu em Santiago do Chile, em 1953. Em 1968 foi para o México.
16 Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 10-43 | janeiro > abril 2011
17. Em 1973, foi preso, no Chile, após o golpe militar. Libertado, voltou
para o México, indo em 1977 para a Espanha, onde viveu até 2003,
ano de sua morte. José Saramago nasceu em Portugal, na província do
Ribatejo, em 1922. Viveu a maior parte de sua vida em Portugal e, já
entrando na velhice, deixou seu país e foi com a mulher para Lanzarote,
nas Ilhas Canárias, onde morreu. Julio Cortázar nasceu por acaso
na Bélgica, em 1914, filho de pai diplomata. Desde pequeno viveu na
Argentina, onde estudou Letras e foi professor em diversas cidades do
interior do país. Em 1951 se mudou para Paris, vivendo como tradutor
da Unesco, depois como escritor reconhecido. Viveu em Paris até sua
morte e lá está enterrado, no cemitério de Montparnasse. Juan José
Saer, filho de imigrantes sírios, nasceu na província Argentina de Santa
Fé, região dos pampas, em 1937. A partir de 1968 passou a viver na
França, onde foi professor universitário até sua morte. Sem forçar a
mão, são escritores contemporâneos, das últimas décadas do século
XX e começo do XXI, muito diferentes entre si, e que interessam pela
variedade de modos de montar a desordem do mundo que deriva dos
estados de exceção.
1 LITERATURA E ESTADOS DE EXCEÇÃO
Antes de seguir, vale a pena voltar um pouco no tempo e lem-
brar narrativas fundamentais, que marcaram o tratamento literário
do mesmo problema. A primeira referência, sem dúvida, é a obra de
Franz Kafka, pioneiro na representação da vida cotidiana opaca que
se altera, configurando o mundo administrado e controlado, de cima
até embaixo, que se veria em seguida na história da Europa. Na obra
de Kafka, O processo é exemplar no modo como cifra a força cega e
impessoal que destrói a vida de um personagem comum, absoluta-
mente comum na sua rotina de vida e de trabalho. De ponta a ponta,
Joseph K. faz perguntas que nunca são respondidas. Não entende
porque está sendo processado, nem sabe quem o está processando.
A cena final, em que é morto como um cão na periferia da cidade
que conhecia tão bem, cujos sinais pareciam para ele perfeitamente
comuns e normais, é exemplo marcante de tantas outras vidas e roti-
nas que seriam alteradas e destruídas quando os estados de exceção,
totalitários, destruíram a civilização europeia. Lido como romance
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 10-43 | janeiro > abril 2011 17
18. na linha do fantástico ou do absurdo, O processo perde toda sua
força crítica. Se assim fosse, no final do livro Joseph K. acordaria,
digamos, de um pesadelo, e a vida comum de todo dia continuaria.
Lido de outro ângulo, como o fez Theodor Adorno, o pesadelo era
a própria realidade, da qual era impossível acordar. Pior, que era
impossível entender.
Uma segunda referência importante é A peste, de Albert Camus.
Também trata de um estado de exceção, mais referido e situado que
o universo de Kafka. A narrativa se passa em Argel, num momento
histórico definido, com personagens também nomeados e definidos,
postos em situação crítica pela chegada dos ratos e da peste. Num
primeiro nível de leitura, se trataria da peste literal que já assolou an-
tes a humanidade. Num segundo nível, peste alegórica, que aponta
para a barbárie e a regressão totalitária, tendo no vértice os massa-
cres da Segunda Guerra. Postos em situação crítica, os personagens
dão respostas diferentes à pressão e ao isolamento. Escapa ao alcan-
ce desse pequeno estudo, mas vale a pena analisar esses persona-
gens e suas respostas à crise, indicando, por exemplo, que a virtude
cívica sem alarde, digna diante do desastre, pode vir de um simples
funcionário público, nada heroico e bastante prosaico. No livro, fica
claro que a peste existe há séculos, reaparece e pode voltar a apare-
cer. Indicador seguro, não de um pessimismo vago e genérico, mas
de uma visão realista dos processos históricos e sociais. A mostrar,
ainda uma vez, como são frágeis os limites que separam civilização
e barbárie.
Uma terceira referência fundamental são os livros de Primo Levi, que
tratam diretamente do estado de exceção cujo vértice foi o Holocausto.
São as narrativas de um sobrevivente do campo de concentração que
montam uma figura forte do mais difícil dos problemas de repre
sentação estética, sem nunca ceder passo à estetização da realidade
violenta do estado de exceção. Traçam um arco completo: em A tabela
periódica, a vida do químico de Turim em seu contexto comum e
cotidiano, um homem pacato vivendo uma vida regular, sem qualquer
traço de heroísmo; em É isso um homem?, a descida ao inferno do
Lager, do campo de extermínio como forma extrema do mal. Como
em todos os campos de concentração, mal absoluto, inominável, que
convive com as casas bem cuidadas dos alemães, seus jardins, seus
18 Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 10-43 | janeiro > abril 2011
19. jantares em família, suas formas banais de viver ao lado do inferno
como se estivessem em suas cidades na Alemanha, pacatos, ordeiros,
metódicos, disciplinados, impessoais, como quem estivesse fazendo
apenas mais um trabalho. Fique sempre frisado o alcance crítico desse
contraste, dessa insólita e estranha convivência do banal e do bestial,
do trivial e do terrível. Fecha o arco A trégua, livro cujo assunto é
o final da guerra, a saída do campo e a volta para casa. Mostra o
mundo ainda desordenado, uma incrível variedade de personagens
que se encontram, que se cruzam, que conversam, que voltam à vida.
Segundo o próprio Primo Levi, a do livro foi uma das épocas mais
felizes de sua vida, simbolizando não a guerra e a destruição, mas a
volta para casa. Ulisses voltando para casa. Para viver, amar, trabalhar,
em seu ambiente familiar e rotineiro, por muitos anos ainda, até certa
altura na fábrica, depois apenas como escritor. Até não suportar o peso
da memória e, já na velhice, se matar.
2 W. G. SEBALD
Voltando aos escritores contemporâneos, faço a seguir uma apre-
sentação, resumida, do escritor alemão W.G. Sebald. A força crítica e
criativa das narrativas de Sebald indica, sem nenhum exagero, o lugar
central que ocupa na literatura do final do século XX e início do XXI,
a começar por Vertigem – sensações, passando por Os emigrantes e
Anéis de Saturno, até chegar a Austerlitz, seu último livro. O método
de composição surpreende e fascina, pelo modo original e o longo
alcance das narrativas, altamente digressivas e cifradas, que combinam
biografia, memória, anotações variadas, relatos de viagem, ensaios his-
tóricos e científicos e um uso constante de imagens: fotos, filmes, de-
senhos, esboços e quadros. Nascido no final da Segunda Guerra, num
vilarejo distante dos centros urbanos, de família católica, as primeiras
cidades que Sebald conheceu foram as cidades alemãs destruídas pela
guerra. Pensou que era essa a forma das cidades, imagens de uma vas-
ta devastação. Crescendo na Alemanha do pós-guerra, ficou surpreso
com a “conspiração de silêncio” que suprimia a guerra, os massacres
e o envolvimento dos alemães com o nazismo.
Fez sua a tarefa, extremamente difícil, de acertar as contas com esse
passado, sempre sabendo dos riscos da empreitada, que podia resultar
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20. em fracasso. Levando mais longe a composição, Sebald também acer-
ta as contas com a verdade negativa da própria formação do mundo
moderno: a expansão colonial e imperial da Europa e seus resultados
destrutivos nos países periféricos que vão sendo tomados e ocupa-
dos. Leitor atento de Walter Benjamin, assim como da Teoria Crítica,
Sebald traz para suas narrativas uma visão crítica do progresso que pro-
move regressão, da dialética de dominação que relaciona civilização
e natureza, da personalidade autoritária, do antissemitismo, da vida
administrada, da experiência empobrecida, da razão apenas instru-
mental e pragmática, colonizando não apenas a vida e o mundo das
trocas mercantis, mas também dando a forma e a lógica da organiza-
ção dos massacres. A relação de suas narrativas com Walter Benjamin
é forte e marcada. Sebald escreve depois do desastre, depois do “avi-
so de incêndio” do crítico judeu-alemão, que via a proximidade do
desasre e que por esse mesmo desastre foi destruído. Sem dúvida,
t
memória e melancolia, luto e trauma, em narrativas que passam longe
da estetização banal da violência, justo pela sutileza, precisão, delica-
deza e dignidade da composição.
É notável como Sebald monta o mosaico da memória através de
aproximações sutis e inesperadas, em que os destinos particulares de
seres humanos específicos são trazidos para o centro da cena e não
se dissolvem, sem mais, na também precisa e sutil combinação de
ensaios históricos e científicos, por sua vez combinados com exer-
cícios de imaginação criadora dignos de artistas de primeira linha.
Por exemplo, as digressões, as recorrências, os acasos, o diálogo com
outros escritores, com a pintura, com a arquitetura, com a paisagem,
com a vida nas cidades industriais, sempre vistas a partir da decadên-
cia e da ruína, jamais do ponto de vista de algum apogeu histórico do
progresso e do capitalismo triunfante. Quanto ao narrador, temos a
figura do viajante, que se desloca, que observa, que anota, que anda
à margem, que está sempre deslocado e desconfortável nas cenas e
situações. Não é difícil, nem é exagerado, perceber a proximidade,
frequente, entre o narrador e o próprio Sebald, um pouco a que-
brar o dogma teórico, muito marcado, que separa por inteiro vida
e obra, autor e narrador. Sem esquecer que essa aproximação, de
fato muito evidente, não dá conta dos processos mais elaborados de
composição criados por Sebald, que vão muito além, por certo, de
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21. uma simples aproximação entre vida e obra, autor e narrador. Par-
tindo dos destinos particulares, dos detalhes carregados de sentido,
fazendo digressões cujo sentido a princípio o leitor não acompanha,
Sebald também usa na composição de suas narrativas ensaios históri-
cos e ensaios científicos que conferem um inegável peso de realidade
a seus livros. Muito ao contrário de quem o imaginasse escritor de
jogos de linguagem vazios e abstratos, combinatórias elegantes sem
qualquer teor de verdade digno de nota. Não é nem de longe o caso.
Porque a elaboração estética, de primeira, vai sempre fundada numa
ética rigorosa.
Sebald, de modo muito original, renova a tradição do romance,
elaborando um narrador-viajante, sempre em movimento, desloca-
do e distanciado, através de monólogos dramáticos, que lembram
Thomas Bernhard, e de uma prosa lírica e elegíaca, daí resultando
seu estilo sutil e digressivo, que jamais aborda diretamente o as-
sunto: a própria arquitetura do capitalismo moderno como processo
que conduz à catástrofe. Depois da catástrofe, Sebald trabalha com
rastros e ruínas, montando o mosaico da memória em linha com a
teoria crítica e a imaginação dialética de Walter Benjamin. Na exata
contramão do esquecimento, da mitologia regressiva do progresso,
dos aparatos técnicos e produtivos, da larga escala monumental, do
tempo e do espaço tornados homogêneos e vazios pela lógica ex-
pansiva do capitalismo ao longo da formação do mundo moderno.
Sebald desconfia do canto da sereia do progresso que promove re-
gressão, da dialética da dominação do mundo natural e humano, do
fetichismo técnico e mercantil.
Mais que isso, não confia nos sistemas de pensamento fechados e
totalizados, sem restos e absolutos, associando esses sistemas dire-
tamente à própria lógica da dominação e da destruição. É possível
argumentar que o estilo digressivo e distanciado de Austerlitz, para
ficar em apenas um exemplo, traz para a configuração literária a for-
ma do ensaio, que trabalha justamente com restos, refugos, ruínas,
com o transitório e o passageiro. Vale dizer, os particulares sensíveis
da vida cotidiana montando contraste estrutural com a larga escala
monumental. É no contraste da pequena escala dos particulares sen-
síveis da vida cotidiana com a larga escala monumental do processo
histórico que se pode ler uma linha forte, carregada de sentido,
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22. indicando uma relação marcante com a imaginação dialética
de Walter Benjamin no modo como monta imagens/conceitos que
explodem o continuum cego e fechado do progresso, através de
uma percepção profunda e aguda das sutilezas, dos detalhes, da va-
riedade da experiência da vida cotidiana. Escapa, assim, da estetiza-
ção da violência e da banalização do mal, com a infinita delicadeza
de uma escuta incansável e paciente, enfrentando a conspiração
de silêncio que desde sua juventude na Alemanha o incomodava
profundamente.
3 ROBERTO BOLAÑO
O escritor chileno Roberto Bolaño também desconfiava das fron-
teiras e limites nacionais. Não é difícil aproximar seu tipo de revolta
das recusas radicais que gravitam em torno de 1968, dos impulsos
contraculturais vindos da década de 1950, como também não é difí-
cil aproximar seu anticapitalismo das revoltas românticas que vieram
do século XIX e foram retomadas pelas vanguardas do começo do
século XX, por exemplo, o Dadá e o Surrealismo. O Infrarrealismo,
como uma espécie de Dadá à mexicana, que criou com alguns ami-
gos, ilustra bem esse ponto. Seu tipo de recusa passava com muita
ênfase, como era de se esperar, pela própria literatura, sobretudo
pela poesia, porque mais que tudo Bolaño pode ser considerado
poeta, apesar da sua extensa obra narrativa. Com ironia forte, sua
crítica se voltou para a própria posição do escritor e do intelectual,
pelos compromissos e pelas carreiras, pelas formas de se estabelecer
e se conformar e ia longe na ironia contra esse mundinho estabele-
cido, instituído, conformado e cooptado. Era, e refiro aqui o título
de um livro de poemas do próprio Bolaño, un perro romântico. Sem
sombra de purismo estético, Bolaño não se incomodava em com-
binar e misturar estilos e tipos diferentes de cultura. Nisso, e não
apenas nisso, mas também no sentido de sua recusa radical, pode-
ria ser aproximado de Julio Cortázar. Resumindo a originalidade de
Bolaño, Alan Pauls escreveu que se tratava do cruzamento eficaz de
tradições que nunca tiveram muita simpatia uma pela outra: a aven-
tureira e espontânea beatnik com a erudita e sofisticada ficção mais
letrada. Vale dizer, uma espécie de combinação de Jack Kerouac e
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23. Jorge Luis Borges. Pode ser, mas certamente é bem mais que isso,
traduzindo a posição iconoclasta do escritor chileno, que recusa a
integração e não se cansa de fustigar as facilidades e futilidades que
percebia. Foi assim até o final, com o longuíssimo 2666, publicado
depois de sua morte.
Duas narrativas de Roberto Bolaño podem ser referidas, quando
se trata do assunto deste trabalho, a desordem do mundo produzida
pelos estados de exceção: Noturno do Chile e Amuleto. O primeiro
é, a meu ver, uma pequena obra-prima. Seu narrador é um padre
conservador, ligado ao Opus Dei, crítico literário, pertencente à elite
chilena e cúmplice da ditadura de Augusto Pinochet. Às vésperas de
sua morte, agonizando, entre o delírio e a lucidez, o padre católico
Sebastian Urritia Lacroix monta um monólogo febril, passando em re-
vista sua vida e, através dela, todo um período da história do Chile.
Padre, conservador e católico, Lacroix entra para o mundo das letras
apadrinhado pelo maior crítico do país, o proprietário rural cujo pseu-
dônimo é Farewel.
De modo estranho e obscuro, é enviado pelo Opus Dei para uma
missão, na aparência muito banal, que é estudar a conservação de
catedrais antigas contra os dejetos dos pombos. Indo além desse pri-
meiro nível de leitura, a peregrinação de Lacroix por sete catedrais
da Europa, monta na verdade uma poderosa alegoria da violência,
que em seguida se abateria sobre o Chile. É a dureza dos falcões
atacando e destroçando os pombos que o padre chileno aprende
a ver, alegoria de uma linha dura de católicos, militares, políticos e
intelectuais que criaram o estado de exceção no Chile. Na volta ao
Chile, Lacroix, já conhecido pelo pseudônimo de Padre Ibacache,
se defronta com o período de crise que marca o golpe de Estado
que derruba Allende e dá início à ditadura de Pinochet. É marcante
o modo como Lacroix, que se percebe como um portador da civili-
zação em terras bárbaras e atrasadas, símbolo da posição de tantos
intelectuais latino-americanos, responde à crise: por contraste com a
violência que ocupa a vida cotidiana, se dedica à leitura e releitura
dos clássicos gregos, como refúgio “culto e civilizado”. Em um dos
momentos fortes de Noturno do Chile, Padre Ibacache, insuspeito
católico, membro do Opus Dei, é chamado para dar aulas de marxis-
mo à junta militar e ao próprio Pinochet. Morto de medo, temendo
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24. ser associado ao inimigo, dá várias aulas sobre o materialismo histó-
rico para os tiranos.
No vértice do livro, a convivência aguda entre civilização e bar-
bárie, a convivência estranha e sintomática entre uma pretensa nor-
malidade da vida cultural, das letras e das artes, do espírito e do
conhecimento, com as câmaras de tortura. A certa altura crucial do
livro, em uma mesma casa, a de Maria Canales, uma mulher com
veleidades poéticas, convivem a tertúlia e a tortura, como se esse
fosse o mais natural dos mundos. Na sala de visitas, em pleno estado
de exceção, o convescote literário e poético. No subsolo, a desco-
berta acidental de um homem sendo torturado, já que o marido da
anfitriã era agente norte-americano, especialista em tortura a serviço
da tirania.
Um grande acerto de Noturno do Chile é a escolha do narrador, do
ponto de vista do narrador, que é o da elite e que a partir dessa posi-
ção conduz o relato, o tempo todo acossado por um estranho perso-
nagem, denominado “o jovem envelhecido”, que cobra de Sebastian
Urritia Lacroix seus atos, suas escolhas e seus compromissos com o
poder. Há uma divisão da consciência, uma culpa constante, que atra-
vessa o livro inteiro. Ao final, o leitor entende que “o jovem envelhe-
cido” é o próprio Lacroix, a consciência culpada que cobra, na hora
da morte, as escolhas, que poderiam ter sido outras; a vida vivida, que
poderia ter sido muito diferente. Tarde demais, é claro. Narrado pelo
alto, Noturno do Chile apresenta ao leitor o processo histórico e social
do período, refratado e referido de viés, de modo muito eficaz, já que
evita a facilidade de narrar a partir, por exemplo, de um militante da
Unidade Popular, coalizão que apoiou Salvador Allende. Em surdina,
pelo avesso, refratado, o processo se apresenta ao leitor com a força e
a concisão, de fato, das obras-primas.
Como segundo exemplo de narrativa de estados de exceção em
Bolaño, cabe Amuleto, relato situado em outra ruptura radical com a
vida cotidiana da cidade, suspendendo garantias e direitos pela força
bruta: a ocupação da Universidade Autônoma do México em 1968.
No centro do relato, conduzindo a narrativa, uma figura de mulher
fora de todos os padrões convencionais: Auxilio Lacouture, que se
refugia em um dos banheiros da Faculdade de Filosofia e Letras, lá
ficando durante um mês inteiro. Inspirada na pintora Alcira, Auxilio
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25. Lacouture é uma outsider em vários sentidos, fora de toda norma
burguesa, alheia a toda convenção, uma imigrante uruguaia, disso-
nante, lírica e delirante, que se intitula “mãe de todos os poetas”. É
musa fora de esquadro, desafinando o coro dos contentes, destoan-
do da desordem do mundo, na improvável resistência no banheiro
de uma Universidade ocupada pelos militares. É também o ponto
de condensação e de inflexão de toda a narrativa, que vai e volta,
entrecortada, montando fragmentos da memória. E que é, bem feitas
as contas, a elegia trágica da geração derrotada em 1968 em toda a
América Latina.
O final de Amuleto dá o tom trágico de todo o conjunto: uma ge-
ração inteira de jovens que cantam e caminham para o abismo, de
peito aberto, com o coração generoso dos idealistas que não medem
riscos. E mais belo se torna o trecho final do livro narrado por Auxilio
Lacouture, a mãe de todos os poetas, vendo os meninos cantando e
caminhando para o abismo, sem nada a ser feito. Ao modo de uma
homenagem, e com respeito, cito o final do livro:
Assim, pois, os rapazes cruzaram o vale e despencaram no abismo.
Um trânsito breve. E seu canto fantasma ou o eco do seu canto fan-
tasma, que é como dizer o eco do nada, seguia marchando ao mes-
mo passo que eles, que era o passo do destemor e da generosidade,
em meus ouvidos. Uma canção apenas audível, um canto de guerra
e de amor, porque os meninos sem dúvida se dirigiam para a guerra,
mas faziam isso recordando as atitudes teatrais e soberanas do amor.
Mas que classe de amor eles puderam conhecer?, pensei quando o
vale ficou vazio e só seu canto seguia ressoando em meus ouvidos. O
amor a seus pais, o amor, o amor a seus cães e a seus gatos, o amor
a seus brinquedos, mas sobretudo o amor que tiveram entre eles, o
desejo e o prazer. E embora o canto que escutei falasse da guerra,
das façanhas heroicas de uma geração inteira de jovens latino-ame-
ricanos sacrificados, eu soube que acima de tudo falava do destemor
e dos espelhos, do desejo e do prazer. E esse canto é nosso amuleto
(BOLAÑO, 2008, p. 131).
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26. 4 JOSÉ SARAMAGO
No conjunto da obra de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira e
Ensaio sobre a lucidez apresentam ao leitor exercícios literários que
combinam relato e reflexão, criando situações e contextos largamen-
te imaginados, distantes de referências históricas situadas e precisas.
Para tratar, justamente, de estados de exceção, o escritor português
constrói situações de crise extrema, que alteram a vida cotidiana da
cidade e provocam rupturas radicais no contrato social. Embora situ-
ados em contextos genéricos e imaginados, os dois ensaios têm uma
clara intenção crítica ao combinar relato e reflexão. Desde logo, o que
se lê, se percebe e se pensa a partir das narrativas é matéria crítica e
imaginativa que gravita sempre em torno do problema do contrato so-
cial, da vida coletiva, do modo como a apenas aparente normalidade
da produção e reprodução da vida de todo dia pode ser rompida. De
certo modo, são ensaios de um escritor racionalista, cético, herdeiro
da tradição francesa que passa por Voltaire, mas também, não é ocio-
so acrescentar, são ensaios de um escritor de esquerda em uma época
de derrota e desencanto. Basta aqui marcar a distância que separa
esses dois livros de Levantado do chão, muito anterior, ainda ligado ao
Neorrealismo e às lutas dos camponeses.
No Ensaio sobre a cegueira, o que cabe desde logo indicar é o recur-
so à alegoria como elemento forte da composição da narrativa, já que
a cegueira que de súbito acomete os habitantes de uma cidade mo-
derna qualquer não é biológica, não é do campo das doenças físicas.
Tem outro sentido, de todo alegórico, que arma a narrativa a partir da
cena em que o médico não reconhece na cegueira nenhuma doença
conhecida. É uma “cegueira branca”, que precisa ser pensada, caso se
queira entender o sentido do Ensaio sobre a cegueira. A composição
do Ensaio parte do contraponto entre a vida comum e cotidiana, de
gente também muito comum, no espaço que poderia ser o de qual-
quer cidade moderna, já que não há referências históricas que situem
o contexto da narrativa e a súbita entrada em cena da cegueira altera a
vida de todos os personagens. Mais adiante, quando a cegueira ganha
dimensões de epidemia, o problema põe em movimento o aparato do
Estado, que precisa lidar com a emergência. E lida, justamente, pela
via típica de um estado de exceção: os cidadãos cegos são confinados,
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27. vigiados, mantidos fora da vida da cidade. Aqui, sem dúvida o
modelo é o campo de confinamento, típico do século XX, em vários
momentos de crise aguda. Confinados e vigiados, presos e segregados,
os cidadãos cegos experimentam uma espécie de regressão à barbárie,
reduzidos quase que a uma horda primitiva, o que se pode entender
como um avesso bem negativo do mal-estar na civilização, como se
lê em Freud.
Rompido o contrato social e as garantias básicas da vida civil, os
cidadãos cegos – indefesos, isolados, vigiados e punidos pela polícia –
são submetidos à degradação, à sujeira, à fome, ao abuso, quando um
grupo de cegos, pela via da força bruta, controla a comida e o sexo.
Regressão que pode ser lida como uma forma de descida ao inferno,
em pleno contexto de uma cidade moderna, que não é jamais preci-
sada e identificada, mas tem como referência, inescapável, os extre-
mos negativos do século XX, o breve século que combinou as mais
altas esperanças – científicas, tecnológicas, políticas, culturais – com as
piores formas de regressão totalitária, para lembrar Eric Hobsbawn.
Para a condução da narrativa, é central a posição da mulher do mé-
dico, único personagem que não cega, a quem cabe guiar e conduzir
os que cegaram. Perguntada sobre o estranho privilégio de não ter
cegado, em trecho marcante do livro, ela responde que não cegou
para “testemunhar o inominável”. O passo seguinte do Ensaio sobre
a cegueira é a volta à cidade, ficando para trás o campo de confina-
mento. Mas não se trata de um movimento de ascese e redenção, ao
modo idealista, resolvendo a crise pelo caminho fácil do final feliz. Os
cidadãos cegos passam então por várias praças e por uma igreja, cenas
cujo sentido é central para o entendimento crítico do Ensaio. A praça
onde se vendem milagres de todo tipo, a lembrar o bazar místico e
de autoajuda de nossa época, mas não apenas dela. A praça onde se
vendem falsas promessas de felicidade, ligadas ao progresso, à técnica,
às maravilhas da vida integrada às trocas mercantis. A igreja com as
estátuas de olhos vendados, pondo em pânico os fiéis, que de repente
se percebem sem o amparo, ilusório mas necessário, da religião, pro-
blema de fundo também analisado por Freud.
Passam também, em cenas muito sutis e delicadas, por lugares mar-
cados pela memória humana. A moça prostituta deixa uma mecha
de cabelo na porta da casa dos pais para que a reconheçam, caso
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28. ainda estejam vivos e voltem para casa. Um escritor cego continua
a escrever, compondo um estranho palimpsesto, sua maneira de re-
sistir à regressão e manter viva a força da civilização e da cultura. No
espaço protegido de uma casa limpa e clara, a mulher do médico lê
para os cegos, marcando um vivo contraste com o confinamento e a
degradação a que foram submetidos. É possível perceber, ao longo
de todo o Ensaio sobre a cegueira, uma espécie constante de oscila-
ção dialética, gestos e cenas humanos em meio à desumanidade do
processo. Oscilação, parece-me, boa para se entender o movimento
geral. Ainda aqui, a força dos detalhes significativos, dos particulares
sensíveis, versus a força cega do aparato do Estado e seus mecanismos
de controle e repressão.
No final do livro, os cegos voltam a enxergar a cidade, que lá está,
bem diante de seus olhos, mas de um modo muito peculiar e refletido,
que o narrador indica: “cegos estavam e cegos continuaram”. Qual o
sentido dessa cegueira que não termina quando os olhos voltam a en-
xergar? Entra aqui, é certo, o sentido principal do recurso à alegoria no
Ensaio sobre a cegueira. Alegoria que pode ser entendida como crítica
à época em que vivemos, cega diante da necessidade de pensar a polis
em profundidade e refazer o contrato social marcado pela injustiça e
pela violência. Por extensão, cega diante da profusão de sinais sociais à
solta, literais e virtuais, regidos o tempo todo pela lógica do fetiche da
mercadoria. Não seria descabido ainda lembrar, lógica de coisas con-
versando com outras coisas, num mundo que os humanos não reco-
nhecem como seu, no qual se sentem pouco à vontade. Pode ser isso,
mas também caberia, quem sabe, a seguinte crítica: o recurso à alegoria
generaliza demais a narrativa do Ensaio, perdendo de vista a força es-
pecífica e contraditória dos processos sociais e históricos. Se assim for,
enfraquece a própria crítica, generalizada, de fundo moralista, mas in-
capaz de dar conta da complexidade do processo em curso. Problema
que se torna mais claro quando se contrasta, por exemplo, os ensaios de
Saramago e as narrativas de Sebald, mais complexas e elaboradas, por
esse motivo muito mais capazes de dar conta da densidade e da dificul-
dade da matéria social e histórica configurada pela forma literária.
O Ensaio sobre a lucidez também combina relato e reflexão, tendo
no vértice o problema do contrato social e da vida coletiva. Ao contrá-
rio do Ensaio sobre a cegueira, não faz uso da alegoria como princípio
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29. forte de construção da narrativa. Mas também simula, para seus pro-
pósitos, uma situação de crise na vida comum e cotidiana: certo dia,
em mais uma eleição, a maior parte dos cidadãos, sem combinação
prévia de qualquer tipo, vota em branco. Apenas isto: uma esmagado-
ra maioria de eleitores saturados dos simulacros da política formal vota
em branco. É esse o ponto de partida e de inflexão do livro. Não há
nada de ilegal ou de subversivo no voto branco, pois se trata de uma
escolha elementar da vida social democrática e do contrato social dos
estados modernos em que há eleições. Se quase oitenta por cento dos
eleitores votam em branco, está criado um impasse. Dentro das regras
do jogo, mas um impasse. No mínimo, matéria para reflexão. A reação
do aparato do Estado, no entanto, indica uma percepção completa-
mente diversa da situação. É como se um jogo de cartas marcadas,
cheio de fundos falsos, de repente viesse à tona.
O que se lê, na sequência do Ensaio sobre a lucidez, é uma respos-
ta agressiva. Em nossa época, estamos acostumados, todos os dias, a
associar terrorismo a pequenos grupos extremistas, desta ou daquela
posição política e religiosa, com uma força real muitas vezes menor
que a que os Estados lhes atribuem. A resposta que se lê no livro de
Saramago é de tipo bem diverso: é uma reação terrorista, mas de ter-
rorismo do próprio Estado, que não aceita a formação de uma ampla
maioria negativa. Não aceita e abandona a cidade, imaginando que se
instalaria o caos na vida cotidiana. Manobra com alvo certo: instalado
o caos na vida cotidiana, os cidadãos, arrependidos, pediriam a volta
de seus senhores e protetores, para estabelecer de novo a ordem. Bem
ao contrário, a vida de todo dia segue, não há ondas de saques, de es-
tupros, de incêndios e outras barbaridades, e os cidadãos se mostram
capazes de organizar o essencial para que a vida coletiva continue,
sem maiores atropelos. É uma primeira reflexão a ser pensada com
cuidado: o mito do Estado onipotente, onipresente, provedor e pro-
tetor, indispensável, faz logo água, mostrando que outras formas de
vida e de organização da sociedade são possíveis. Vale dizer, formas
solidárias e democráticas de associação coletiva, contratos sociais de
tipo horizontal, não as hierarquias fossilizadas e falsas dos simulacros
de democracia que se conhecem até a saturação.
Por certo que o aparato do Estado terrorista tenta sempre e o tem-
po todo associar os movimentos que o ameaçam à anarquia, como
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30. sinônimo exato de bagunça, baderna, confusão e desordem. No en-
tanto, é interessante notar, um princípio fundamental e positivo do
pensamento anarquista é justamente o contrário disso: as organiza-
ções horizontais, solidárias, sem hierarquias, sem Estado onipotente,
a partir de baixo, justo na vida mais comum e cotidiana. Claro que
esse possível histórico e social precisa ser o tempo todo minado e
combatido, porque desmonta o mito do Estado e todo o aparato bu-
rocrático, político e militar que o sustenta. No caso do Ensaio sobre
a lucidez, não será diferente. Toda a tensão da narrativa se concentra
nesse contraponto forte, anteriormente indicado, criando um hiato
radical de representação política. Não havendo inimigos, é preciso
criar um para justificar a repressão e a necessidade do Estado forte. A
lógica do terrorismo de Estado, é claro, segue este caminho: inventa
uma conspiração, um grupo organizado que, como todo grupo po-
lítico organizado, precisa ter um líder bem identificado. Não há tal
grupo, nem tal líder, mas as forças da polícia política se encarregam
da tarefa.
Unindo as pontas de seus dois ensaios, o da cegueira e o da lu-
cidez, Saramago coloca justamente a mulher do médico, a mesma
que não cegara no livro anterior, como protagonista. Sem o recurso
à alegoria, já que voto em branco, ao contrário de cegueira branca,
tem fundamento real, a mulher do médico é apenas uma cidadã
comum vivendo sua vida. Não tem nada a ver com qualquer tra-
ma ou conspiração. Posta no ângulo agudo do estado de exceção,
ela é espionada, investigada, delatada, perseguida e acossada. A
cena final do livro, lírica e difícil, dá mais uma volta no parafuso do
ceticismo de Saramago. Um agente da polícia política do Estado,
com arma de precisão e longo alcance, mata a mulher do médi-
co, ao mesmo tempo em que um pássaro se assusta e levanta voo.
Símbolo e síntese de todo o Ensaio, seca e direta, a cena é um contra-
ponto difícil a uma possível mudança coletiva na vida social, marcan-
do, pela força direta do assassinato político, o poder do Estado e sua
capacidade de se perpetuar. Por certo um final cético e desencanta-
do. A seu modo, realista. Na contramão da época em que vivemos,
onde se vê Estados fortes e hegemônicos recorrendo à existência de
grupos terroristas, ampliando largamente sua existência e alcance,
quando não francamente forjando tais grupos de opositores, plantando
30 Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 10-43 | janeiro > abril 2011
31. no imaginário de massa as bases para consensos forjados cujos
resultados são bem conhecidos: a invasão arbitrária, a destruição, a
guerra civil, o massacre, levados aos países que precisam ser trazidos
de volta para o mundo “livre” e “democrático”. Atualiza a novilingua
que já se usava no 1984, de George Orwell, onde as palavras signi-
ficam sempre algo muito diferente do que parecem significar. Assim
como dá razão aos argumentos críticos de Avram Noam Chomsky,
crítico rigoroso dos consensos sociais fabricados e manipulados. In-
ventado o inimigo, os meios justificam os fins. E o massacre da popu-
lação civil se justifica. No extremo maniqueísta do problema, afinal,
se o Bem está combatendo o Mal, todos os desastres e horrores da
guerra são válidos.
5 JULIO CORTÁZAR
No conjunto da obra de Cortázar, o Libro de Manuel ocupa um
lugar difícil. Sem exagero, é possível dizer que nessa narrativa o es-
critor argentino fez uma aposta de alto risco, com plena consciência
do que fazia e das reações que poderia desencadear. Ao contrário
do escritor famoso que apenas administra sua obra e seu patrimô-
nio, o valor do seu nome já firmado e consolidado, na década de
1970, em meio ao estado de exceção duríssimo criado pela dita-
dura militar Argentina, Cortázar se arrisca escrevendo e publicando
o Libro de Manuel. De fato, as críticas vieram, várias vezes muito
duras, algumas vezes de uma flagrante injustiça. E vieram de dois
ângulos muito definidos. Numa ponta, os admiradores de Cortázar
como grande escritor ligado ao fantástico, à construção da estranhe-
za a partir da mais comum vida cotidiana, linha de força que teria
sido desperdiçada pela intenção de narrar e participar diretamente
de um estado de exceção, da resistência armada ao regime. Na ou-
tra ponta, críticos muito politizados, de esquerda, que consideraram
o livro um lamentável equívoco, até certo ponto um exercício fútil,
incapaz de dar conta da dureza do processo em curso na Argenti-
na, a secura do estado de exceção, a realidade da própria ditadura
militar e dos grupos armados. É como se fossem, essas duas linhas
fortes, inconciliáveis, sobretudo no tratamento de um estado radical
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32. de exceção. O que criaria um problema quase insolúvel na própria
estrutura da narrativa, tentando combinar princípios de construção
incompatíveis, como que se desautorizando mutuamente. Em re-
sumo, como se Cortázar lançasse Rayuela, seu Jogo da Amarelinha,
com todas as suas inquietações e experimentações, no contexto rea
lista da ditadura e da luta armada.
Logo na abertura do livro, Cortázar mostra como se dá conta do
problema, nos seguintes termos:
Por razones obvias habré sido el primero em descobrir que este libro
no solamente no parece lo que quiere ser sino que con frecuencia
parece lo que no quiere, y asi los propugnadores de la realidad en lite-
ratura lo van a encontrar más bien fantástico, mientras que los encara-
mados en la literatura de ficción deplorarán su deliberado contubernio
con la historia de nuestros dias... (CORTÁZAR, 1973, p. 5).
O destinatário do polêmico livro é um bebê, para quem um grupo
de militantes latino-americanos exilados em Paris monta uma espécie
de álbum para o futuro. Nele se pode ler, desde logo, a esperança
de um vir a ser, de um mundo diferente daquele, regido pela vio-
lência. Fiel a si mesmo e a seus empenhos, Cortázar tenta fazer a
ponte entre as duas principais linhas de força de sua vida e de sua
trajetória como escritor. De um lado, a herança da revolta romântica,
que remonta a Rimbaud e ao lema il faut changer la vie. De outro, a
herança revolucionária, cuja referência é Marx e “a necessidade de
mudar o mundo”.
A tradição da revolta romântica remete mesmo a Rimbaud, e não
apenas a ele, passando depois pelas vanguardas do começo do século
XX, chegando com força ao Maio de 1968 na França, a Paris, onde
Cortázar viveu até sua morte. O espírito libertário e antidogmático
dessa tradição encontra no escritor argentino um representante dos
mais lúcidos e dotados, o que se pode ler em muitos momentos de sua
obra. No vértice da posição está uma ideia radical de liberdade, asso-
ciada a um inconformismo em sentido forte, que não se acomoda ao
existente e não aceita compromissos e comissões, a pretexto de prag-
matismo. Aqui, é possível lembrar Walter Benjamin, quando percebeu
no Surrealismo “o último instantâneo da inteligência europeia”, porque
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33. apresentava uma “ideia radical de liberdade”. Valha o exemplo do
Surrealismo para lembrar como nunca foi simples a aproximação entre
revolta romântica e revolução organizada. Ao tentar aproximar sua
estética da política da época, essa vanguarda bateu de frente com o
dogmatismo stalinista.
O Libro de Manuel, eis a hipótese, ensaia e aposta na aproximação
justamente entre a herança das revoltas românticas e a organização
revolucionária da luta política, no contexto mais que difícil de um
estado de exceção. Não era, sem dúvida, uma aposta pequena. Mas é
evidente que, para Cortázar, era a aposta fundamental: a Revolução,
para ser bem-sucedida, não poderia se enrijecer, perder seu impulso
radical de mudança, fechando-se em posições duras e dogmáticas,
mas precisaria sempre do impulso libertário, da afirmação constante
de uma ideia e uma prática inseparáveis da liberdade. Pode-se per-
ceber, talvez e desde logo, o que há de idealismo romântico na posi-
ção quando se faz apenas uma breve e objetiva consideração sobre
o mundo moderno e a história do século XX. Mas não se deve nunca
esquecer que foram os recuos autoritários e contrarrevolucionários
que jogaram na lata de lixo da história as cem flores que poderiam ter
brotado e mudado a história do mundo. Quando se dizia “matem os
sonhos, sejam realistas”, faltava sempre acrescentar: bem-vindos ao
vosso velho modelo, o pesadelo.
Na fortuna crítica de Cortázar, é comum encontrar quem o con-
sidere um contista de primeira linha, mas um romancista de menor
envergadura. Libro de Manuel seria Rayuela, “o jogo da amarelinha”
trazido diretamente para a luta armada no contexto de um estado
de exceção. E seria um experimento falhado, apesar de suas ótimas
intenções. O escritor argentino gostava dos livros-montagem, dos li-
vros-almanaque, bastando lembrar aqui a inusitada combinação de
materiais que se leem nos volumes de Ultimo round e La vuelta al dia
en ochenta mundos. Livros que se leem e releem com muito prazer e
admiração, dada a liberdade e a variedade da combinação de mate-
riais. O problema crítico, no entanto, é a representação literária de um
estado de exceção. Sem levar adiante o debate, que tomaria muito
tempo e escaparia dos limites deste pequeno estudo, há na obra de
Cortázar dois exemplos bons, e não apenas dois, de como representar
estados de exceção fazendo uso da forma breve e concisa do conto:
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34. “Pesadilla” e “Escuela de noche”. De fato, a leitura desses contos pa-
rece dar razão aos críticos do Libro de Manuel. Em poucas páginas,
muito cifradas e carregadas de sentido, sem se alongar e sem se ex-
plicar, Cortázar dá forma ao mais íntimo dos estados de exceção, por
meio de um efeito estético poderoso, que pega o leitor de surpresa e
deixa um largo campo para imaginação de tudo que cerca o medo, a
violência, a covardia, a crueldade humana, percebida do ângulo mais
íntimo e sutil da vida cotidiana. O pesadelo a que alude o primeiro
conto, na aparência o estado de coma de uma mulher jovem, é de
fato o pesadelo da história que invade a casa da família a golpes de
bota e de fuzis, enquanto lá fora se ouvem tiros e gritos. A visita que
os meninos fazem à escola, de noite, na aparência uma peraltice sem
consequências, vai longe e fundo, de modo premonitório, no ovo da
serpente que já rondava a Argentina, muito antes do golpe militar e
dos massacres que começam na década de 1970. Sem o compromisso
de se explicar, de se alongar, de se justificar, que se percebe no Libro
de Manuel, apesar de seus acertos, os dois contos acertam no alvo
com incrível precisão.
6 JUAN JOSÉ SAER
Para Ricardo Piglia, Juan José Saer é o maior escritor argentino con-
temporâneo. Para acrescentar em seguida, escapando da armadilha
nacionalista, regionalista e localista, escritor de primeira linha, que
pode ser situado, com justiça, no nível de escritores europeus como
Thomas Bernhard e W.G. Sebald. O leitor de Saer não tem motivos
para discordar da avaliação de Piglia. De fato, trata-se de um escritor
de primeira linha.
Filho de imigrantes sírios, Saer nasceu em Santa Fé, no meio dos
pampas, às margens do Rio Paraná, no armazém do pai, em junho
de 1937. Radicou-se na França, onde foi professor universitário por
muitos anos, até sua morte, em Paris. Escreveu sempre em espanhol,
vivendo os contrastes e confrontos do artista que muda de país e de
continente, sem nunca perder de vista o lugar de onde veio. Fique,
como exemplo saliente, o peso que tem a vastidão dos pampas em
suas narrativas, configurando um modo denso e cerrado de narrar,
fazendo da paisagem, da vastidão e da geografia extensa e plana
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35. personagens importantes, contribuindo muito para a estranheza, a
densidade e a opacidade que se leem em seus relatos. Não é dife-
rente no romance que comento a seguir, de interesse a este pequeno
estudo. Em Nadie, nada, nunca a vastidão e a presença opressiva dos
pampas montam um efeito estético poderoso, associado à espera,
ao medo, ao misterioso assassinato de cavalos, no contexto de uma
ditadura militar que em nenhum ponto da narrativa é abordada di-
retamente. Bem ao contrário, a presença opressiva da repressão está
cifrada e, por assim dizer, escondida nos níveis mais evidentes dos
personagens e situações da narrativa.
No posfácio da edição brasileira, Bernardo Carvalho nota que, em
Saer, a força dos pampas é centrípeta, uma espécie de limbo, onde
o calor e a gravidade subjugam os corpos e os jogam para dentro
da natureza. É assim, mas cabe acrescentar que geografia não é
destino, interessando muito pensar a relação entre geografia física,
sociedade e história. Na obra de Saer, um bom exemplo é El rio
sin orillas, cujo assunto é justamente a civilização que se forma às
margens do Rio da Prata e se estende pelos pampas em linha reta,
tendo como vértice a cidade de Buenos Aires. Desde os primórdios
da colonização até o presente, uma formação geográfica, social, his-
tórica e cultural muito marcada, que inclui o Uruguai, marcando
uma região cultural, uma espécie de comarca, que vai além das
fronteiras nacionais.
É certo que essa posição tem peso na obra de Juan José Saer. Mas
também é certo que o escritor argentino radicado em Paris evitou,
com toda a ênfase, ser absorvido por qualquer clichê que o vinculasse
a uma ideia estreita do que deveria ser uma típica literatura argen-
tina. Indo além, refutou a ideia de uma literatura latino-americana
como conceito unificado, que desse conta da variedade de regiões e
situações dos diversos países do nosso Continente. Evitava, assim, ser
fixado e reduzido a algum tipo de cor local, de lugar comum turístico,
de visão idealizada da nossa realidade, mesmo quando lugar comum
mais ou menos culto, para consumo de letrados daqui, da Europa e
dos Estados Unidos. Seu projeto estético foi muito além dessas deter-
minações limitadoras. Levando longe o alcance de suas indagações,
o projeto estético de Saer deriva sua força do modo como enfrenta o
próprio problema da representação, os limites e impasses que se apre-
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 10-43 | janeiro > abril 2011 35
36. sentam para o escritor ao tentar dar forma à realidade. Ou seja, pro-
blema com o qual todos os escritores de talento se defrontam, sejam
daqui ou de qualquer outro país. Na verdade, precisam se confrontar,
ao preço de caírem na diluição, na abordagem ingênua dos assuntos e
materiais abordados, na redução a priori do alcance de sua literatura,
como forma crítica e criativa.
Daí que não seja exagerada a aproximação de Saer a escritores do
porte de Sebald e Bernhard. Também para o escritor argentino a dis-
tância e o deslocamento foram partes importantes de um projeto es-
tético, inseparável, por sua vez, de um projeto crítico. Desse ângulo, o
problema mais constante foi evitar a evidência do material histórico e
social, pela escolha de modos muito mediados e elaborados para tra-
tar do peso da história e da vida política. Em Nadie, nada, nunca isso
pode ser percebido com clareza: o estranho assassinato dos cavalos, o
clima opressivo da narrativa, quase de romance policial, a espera an-
gustiada, a noite em que o carro dos sequestradores chega ao Paraná,
são modos muito fortes e mediados de dar forma ao clima opressivo
de um estado de exceção.
Assim considerado, o problema crítico passa pelo uso da alegoria
no relato, pois não é difícil perceber que o assassinato dos cavalos,
de forma cruel e sangrenta, impiedosa e seca, não é apenas literal,
remetendo mais longe e mais fundo, ao próprio clima de massacre
e perseguição, esse sim situado no plano da vida social e histórica
da desordem do mundo criada pelo estado de exceção. Nesse passo
da análise, cabe considerar que, ao tratar desse tipo de problema,
há uma divergência de fundo, que merece consideração. Para alguns
críticos, de pendor universalista, Nadie, nada, nunca é um comentário
filosófico, de tipo existencialista, acerca do mal-estar no mundo, um
desconforto profundo, absorvido e ampliado pela força da paisagem,
da natureza física, levando a uma espécie de consideração metafísica.
É um ângulo de leitura que o livro de Saer pode sugerir e sustentar.
Mas também é possível pensar o contexto muito preciso em que se
situa a narrativa, a força e a violência do que se passa, dando a forma
e o sentido da alegoria que se lê. Por essa via, mais que a representa-
ção de tipo trágico da existência humana emparedada e limitada, o
livro de Saer cifra e dá forma à violência histórica e social. De modo
muito acertado, porque evita sempre o tratamento direito da matéria
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37. histórica e social, daí resultando uma potência crítica e criadora de
longo alcance.
Para levar um pouco adiante a análise, há interesse em contras-
tar o modo de narrar de Juan José Saer em Nadie, nada, nunca e o
de Julio Cortázar em Libro de Manuel. No plano mais imediato da
biografia, ambos foram escritores argentinos que se radicaram na
França, não por motivos de perseguição política, mas por escolha
pessoal, mantida até o final da vida. Saer e Cortázar nunca se inte-
graram, de modo conformista, à França e a Paris, como se tivessem
aportado, deslumbrados, à própria civilização. Tiveram sempre mui-
ta consciência de sua posição como escritores estrangeiros vivendo
na França, percebendo muito bem as ilusões e armadilhas colocadas
por essa posição, deslocada e distanciada, compondo um campo de
força que atravessa suas vidas e suas obras. No que diz respeito à
relação entre estética e política, há uma divergência de fundo. Para
Saer, o modo direto e explícito como Cortázar trouxe seus empenhos
políticos para a forma mesma de sua literatura era um equívoco, um
modo fraco de lidar com a densidade do material, prejudicando a
força da configuração estética das narrativas, como, por exemplo, no
Libro de Manuel. Vale acrescentar que Saer também estava situado
no campo crítico da esquerda, embora numa posição diferente da
defendida por Cortázar. Em resumo, o que estava em jogo era mes-
mo um problema crítico forte e difícil: a própria representação da
realidade de estados de exceção, de alterações radicais na vida co-
tidiana. Divergência que não se confunde com uma crítica vinda do
campo conservador, que considera a forma estética uma espécie de
castelo da pureza, que precisa ser defendido, a todo custo, da sujeira
do mundo e das impurezas do branco. O que equivale a ter uma
visão elitista, fechada e estetizante da arte e da literatura. Alguns
críticos de Cortázar, que não gostaram do Libro de Manuel, podem
ser situados nessa posição. Não é, em nenhum nível, o caso de Saer,
que considerava Cortázar um contista de primeira linha, mas não um
bom romancista.
Analisando a obra de Saer, Beatriz Sarlo nota que suas obras dia-
logam entre si, havendo uma constante recorrência de situações e
de personagens, montando um cenário que permitiria uma leitura de
conjunto das narrativas. É o caso, para ficar no exemplo que aqui
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 10-43 | janeiro > abril 2011 37
38. mais interessa, da noite em que o carro dos sequestradores chega à
costa do Paraná, que se lê em Nadie, nada, nunca, de 1980, mas que
também se lê em Glosa e a pesquisa, de 1994. Aproveitando mais
uma indicação crítica de Beatriz Sarlo, é notável como a poesia está
presente nas narrativas de Saer. Não ao modo de um lirismo esteti-
zante, efeitista e fácil, mas como princípio de construção. A leitura
em voz alta de trechos de Nadie, nada, nunca torna bem perceptível
essa força lírica, concentrada e bem resolvida. Para concluir, também
é interessante a aproximação que Sarlo faz entre Saer e Musil, no que
diz respeito à construção de diálogos, que se passam entre a conside-
ração séria do irrelevante e a perspectiva irônica sobre o que se intui
verdadeiramente sério.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O resumo crítico que se acaba de ler tratou do problema crítico da
representação estética dos estados de exceção. Quando o artista, no
caso escritores, acerta o tom, passa longe da estetização da violência
e consegue, como que andando na corda bamba, narrar o inenarrá-
vel, representar o irrepresentável, dando forma sensível e inteligível
à matéria densa e difícil de que são feitos os estados de exceção. E o
faz partindo da vida cotidiana, dos detalhes significativos, dos parti-
culares sensíveis, mesmo quando combinados com os ângulos mais
amplos do processo histórico e social. Ao modo dialético, o olhar
atento para os particulares sensíveis traz à tona a verdade negativa
do todo, que é falso, assim como o tratamento mais amplo do pro-
cesso histórico e social não se desliga nem se desvincula dos mesmos
particulares sensíveis. É possível dizer que os escritores de que tratou
este pequeno estudo, em graus diferentes, acertaram o tom ético e
estético na abordagem dos estados de exceção. A diferença de grau,
é certo, importa, porque algumas narrativas, como as de Sebald e
Bolaño, atingem um nível complexo de configuração literária, en-
quanto outras narrativas, como as de Saramago, embora não desa-
finem, ficam num estágio de menor complexidade no processo de
configuração dos estados de exceção. Também pode haver diferen-
ças de grau na obra de um mesmo escritor. É o caso de Julio Cortázar,
romancista e contista, abordado nas páginas anteriores, dando notícia
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39. de uma controvérsia que tem peso e interessa. No extremo oposto,
ficam as narrativas que não acertam o tom, estetizam a violência,
banalizam o mal e tornam desfrutável o sofrimento humano que
acompanha todos os estados de exceção, todas as rupturas radicais
com a vida comum e cotidiana, todas as oscilações violentas entre
civilização e barbárie. É assunto para outro estudo.
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44. ESCUTA, ARTE E
SOCIEDADE A PARTIR DO
MÚSICO ENFURECIDO
Daniel Belquer
44 Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 44-81 | janeiro > abril 2011
45. Este artigo levanta alguns tópicos oriundos de campos distintos, mas que se
relacionam por trazerem como epicentro a questão da sonoridade, da escuta.
Com a premissa de que a escuta é muito desfavorecida em nossa cultura emi-
nentemente visual, busca-se “trazer à luz” uma série de estudos e pensamentos
que fazem parte de correntes que não só tratam do tema em si, mas que pos-
suem um tipo distinto de raciocínio mais conduzido pela auralidade.
Palavras-chave: auralidade, escuta, artes, visualidade, sociedade
This article raises some issues emerging from distinct fields but that relate to
each other by having the issue of sound/listening at the heart of the analysis.
Starting with the premise that listening is very much out of favor in our excee-
dingly visual culture, it seeks to “shed light” on a series of studies and lines of
thought that not only deal with the subject but have a distinct line of reasoning
guided more strongly by aurality.
Keywords: aurality, listening, arts, visuality, society
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 44-81 | janeiro > abril 2011 45
46. INTRODUÇÃO
A escuta está impregnada de ordenações sociais. O processo de
recepção do som, sua filtragem e decodificação, relaciona-se direta-
mente com os mecanismos construídos dentro de um contexto huma-
no onde o indivíduo se insere.
Mas o que é som? Pela física, som é o resultado de complexos pa-
drões de choque entre moléculas que são captados pelos ouvidos.
Essa definição, no entanto, não vai ser levada adiante aqui, uma vez
que não leva em conta a interação sonora humana, o processo de
recepção em sua fenomenologia. Pode-se entender o som como uma
conexão entre a vibração das moléculas e a percepção. Então, para
efeito deste estudo, som é o resultado da percepção auditiva, seja ela
feita exclusivamente pelo ouvido ou pelo corpo por meio da sensação
tátil (principalmente no caso das frequências graves).
Numa cultura em que se debate frequentemente a inundação de
imagens cada vez mais predominante, sentimo-nos atraídos a ques-
tionar o papel do som dentro desse universo imagético. Por que,
apesar de falarmos em cultura audiovisual, a primeira parte do ter-
mo é tão minoritariamente abordada? Essa questão encontra raízes
culturais e históricas complexas, que nos conduzem a uma pergunta
mais abrangente: quais as causas da predominância da visualidade
em nossa cultura?
Ihde (2007) aponta que o caráter de prevalência da visão com rela-
ção aos demais sentidos remonta à nossa herança da civilização grega.
Citando Heidegger, nos explica que “o pensamento grego emerge do
processo de se permitir que o Ser ‘se revele’ como o ‘brilho’ da physis,
da ‘manifestação’ do Ser como uma ‘clareza’, tudo evocando a visão
vibrante do Ser”. (HEIDEGGER apud IHDE, 2007, p. 6). Ou seja, as
metáforas linguísticas que aludem à própria existência nos remetem
ao universo visual. Ihde também apresenta o pensamento de Thass-
Thienemann que, pela análise da etimologia grega, mostra que o ver-
bo eidomai combina os sentidos de “ver” e “saber” com “aparecer” e
“reluzir”, portanto, o grego “sabe” o que “viu”. Até o verbo grego que
significa “viver” é sinônimo de “observar a luz”. Também Aristóteles
diz textualmente que “a visão é a principal fonte de conhecimento”
(ARISTÓTELES apud IHDE, 2007, p. 7).
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47. Mas não é preciso nos afastar tanto para notar as correspondências
entre a língua e a visualidade. “Esclarecer”, “olhar por outro ângulo”,
“veja bem”, “olha só”, “no meu ponto de vista”, “no meu modo de ver”,
“dar perspectiva”, “abrir o olho”, “visivelmente”, “dar foco”, “não per-
der de vista” e inúmeras outras expressões mostram, inequivocamente,
como o olhar está presente em nossa “visão de mundo”. É interessante
notar como esse sentido está ligado a metáforas que dizem respeito ao
conceito de verdade e ao próprio conhecimento. Pedir que uma pessoa
“esclareça” alguma coisa, quer dizer que se espera dela algo para dirimir
questões pendentes, aproximando mais o interlocutor do que seria uma
versão mais “real” do fato. Por outro lado “ouvir dizer” nos remete a
uma versão não muito confiável do fato. A expressão em português “dar
à luz”, significa entregar o indivíduo para onde a vida acontece, ou seja,
para a “claridade” do mundo. Além disso, a cultura da oralidade está
ligada a uma noção ancestral, “primitiva”, enquanto a noção de moder-
nidade está fortemente associada às imagens; pensamos o mundo atual
como um mundo da visão. McLuhan, ao discutir as novas mídias que, na
década de 1960 do século passado, estavam apenas surgindo, encontra
também metáforas que relacionam a visualidade à linguagem: “Nós em-
pregamos metáforas espaciais e visuais para inúmeras expressões cotidia-
nas. (...) Nós somos tão apoiados na visão que chamamos nossos homens
mais sábios de visionários ou videntes!1 (McLUHAN, 2003, p. 117).
Apesar de concordar com o entranhamento da visualidade na lin-
guagem, Jonathan Sterne contesta a concepção de Modernidade
associada ao deslocamento de uma cultura da audição, “primitiva” ou
originária, para uma cultura da visão, racionalista e tecnológica:
Não há dúvida de que a literatura filosófica do Iluminismo – assim
como a linguagem cotidiana de muitas pessoas – é amparada pela luz
e por metáforas visuais de verdade e entendimento. Mas, mesmo a
visão sendo de algumas maneiras o sentido privilegiado no discurso
filosófico europeu desde o Iluminismo, é falacioso pensar que a visão
sozinha ou em sua suposta diferença com a escuta explica a moderni-
dade2 (STERNE, 2003, p. 3).
1
Os grifos são do autor.
2
Todas as traduções são minhas.
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48. O Iluminismo pode ter sido um grande catalisador da visualidade
para o pensamento ocidental, o próprio nome do movimento apoian-
do-se em uma metáfora visual, mas, conforme expusemos, podemos
notar a força da cultura visual mesmo na Grécia Antiga e, provavel-
mente, isso influenciou os pensadores iluministas, interessados como
eram pela cultura clássica. De qualquer modo, a partir do Iluminismo,
o som começou a ser objeto de análise de forma mais sistematizada:
Durante o Iluminismo e depois, o sentido da audição tornou-se um
objeto de contemplação. Passou a ser medido, objetificado, isolado,
e simulado. (...) O som foi mercantilizado; tornou-se algo que pode
ser vendido e comprado. Esses fatos problematizam o clichê de que
a ciência moderna e a racionalidade foram frutos da cultura visual e
do pensamento visual. Eles nos obrigam a repensar exatamente o que
queremos dizer com “privilégio da visão e das imagens”. Tomar seria-
mente o papel do som e da audição na vida moderna é problematizar
a definição visualista de modernidade (STERNE, 2003, p. 3).
No entanto, mesmo uma vez reconhecida a importância da escuta
na formação da racionalidade e do conhecimento, é preciso também
apontar a grande desvantagem do sonoro com relação ao visual no
que tange a estudos nas chamadas Humanidades. A penetração do
pensamento visual se espraia por campos tão díspares como “o femi-
nismo, a teoria da crítica racial, a psicanálise e o pós-estruturalismo,
(...) a semiótica, estudos sobre cinema, várias escolas de interpretação
literária e de história da arte, arquitetura e comunicação” (STERNE,
2003, pp. 3-4). Com relação ao sonoro, embora haja vários trabalhos
acadêmicos espalhados por áreas específicas, “o som não é normal-
mente um problema teórico central nas principais escolas de teoria
cultural, excetuando-se o privilégio da voz na fenomenologia e na psi-
canálise” (p. 4). Essa disparidade se deve, por um lado, ao fato de os
teóricos culturais aceitarem muito facilmente os discursos quase auto-
matizados sobre a predominância da visão e, por outro, à tendência
tecnicista dos estudos sobre o som, que, em sua maioria, afastam-se
dos teóricos e pensadores culturais e sociais.
No que diz respeito à filosofia e à história da audição, ainda que a
bibliografia seja vasta, o problema é que esses estudos encontram-se
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49. conceitualmente fragmentados: “só raramente os autores das histó-
rias do som sugerem de que maneira seu trabalho se conecta com
outros, seja com trabalhos que se relacionam ou com domínios in-
telectuais mais amplos” (p. 5). Essa configuração das áreas de estudo
relega o som a um impasse conceitual: por normalmente estar associa-
do a áreas musicais ou técnicas, o estudo do som e da escuta parece
relacionar-se mais com a engenharia do que com a antropologia, por
exemplo. Esse enfoque, no entanto, é uma limitação para os encami-
nhamentos que o sonoro poderia assumir. O som pode perfeitamente
ser entendido em seus aspectos culturais, sociais e antropológicos.
Nas artes cênicas, a demanda de escuta ainda é bastante restritiva.
Ecoando Verstraete (2009), percebe-se que os estudos do som da cena
escorregam por entre os vãos que separam os Estudos Teatrais e a
Musicologia. O som não é percebido materialmente, ficando restrito
a suas qualidades comunicativas (fala e sonoplastia) e à música. Esse
entendimento do som por meio de tipos específicos de manifesta-
ções sonoras pode ser localizado em estudos anteriores ao advento
do conceito de frequência, no século XIX. Mais uma vez de acordo
com Sterne:
Antes do século XIX, os filósofos do som geralmente consideravam seu
objeto através de uma instância particular, idealizada, como a música
ou a fala. Estudos de gramática ou lógica diferenciavam sons signifi-
cantes de não-significantes, chamando a todos os sons significantes
vox – voz. (...) Em contraste, o conceito de frequência (...) introduziu
uma maneira de se pensar o som como uma forma de movimento ou
vibração. (...) Se até então a fala ou a música tinham sido as categorias
gerais por meio das quais o som era compreendido, agora elas eram
consideradas casos especiais do fenômeno geral do som (STERNE,
2003, p. 23).
Essa inversão de eixo proposta pelo autor é um dos movimentos que
gostaria de empreender para se pensar o som nas artes cênicas. Se
pensarmos na sonoridade como um conjunto que engloba as catego-
rias música, fala e ruído significante, e entendermos a totalidade dos
sons como material de criação e reflexão artísticas, estaremos expan-
dindo a palheta do material auditivo a ser trabalhado, virtualmente,
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50. ao infinito. Dessa maneira, pode-se começar a imaginar uma cena
que entenda o som como fator de múltiplas camadas. O pensamento
cênico-sonoro pode produzir uma escuta como tato e textura, como
forma e deformação, como volume e densidade, como espaço e tem-
po, como luz e sombra, pressão e despressurização, na qual o silêncio
atue como articulação e os ruídos se expandam para além de suas
implicações semânticas.
Estamos acostumados a fingir que não escutamos o sibilar da máqui-
na de fumaça, o ar condicionado da sala de espetáculos, o zumbido
dos refletores se acendendo... Para se traçar uma comparação com a
visualidade, é como se víssemos figurinos manchados, refletores que
se acendem só pela metade ou cenários com furos que revelam a
parede do teatro. A principal finalidade deste trabalho é trazer para a
luz do estudo, da análise e da contemplação, fragmentos de um uni-
verso paralelo que nos cerca desde o nascimento, mas que geralmente
acontece na sombra de nossas atenções, nos propondo outro olhar
para o que soa.
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