O documento discute as parcerias na música popular brasileira, dando exemplos de duplas que marcaram o gênero musical. Aponta que o segredo por trás de uma boa parceria está na sintonia entre compositor e letrista, onde a obra parece ter sido criada por um só artista. Também reflete sobre os mistérios por trás da criação conjunta e os processos criativos por trás das grandes parcerias musicais.
1. Campinas
DOMINGO 13 / 03 / 2011
CORREIO POPULAR
zuza homem
de mello
zuza.idt@terra.com.br
Editoria de Arte: Sena/AAN
Parcerias
Roberto e Erasmo Carlos, Tom Jobim e Vinicius de Moraes,
Ary Barroso e Luiz Peixoto, Bide e Marçal. Esses são apenas
alguns exemplos de parcerias que marcaram para sempre a
música popular brasileira. Mas qual o segredo que se
esconde por trás de uma alquimia perfeita, em que
compositor e letrista mostraram tamanha sintonia que a
obra parece ter sido criada por um só artista?
Qual o mistério por trás de
uma obra de arte que, embo-
ra concebida por duas pes-
soas diferentes, produz a sen-
sação de ter sido criada por
um só artista? Nesse campo,
a música é talvez a mais per-
missiva e democrática das ex-
pressões artísticas. Nela o
compositor e o letrista po-
dem atingir tamanha sinto-
nia que muitas vezes chega-
se a duvidar que algumas can-
ções tenham sido concebidas
por duas cabeças. Eis o misté-
rio da parceria, tão frequente
na música popular.
No Brasil, a dupla Roberto
e Erasmo Carlos é possivel-
mente a mais bem sucedida
parceria desde os anos 60, a
partir do “sobrenome” Car-
los, de batismo em Roberto e
adotado por Erasmo, como
se ambos fossem irmãos. Há
evidencias das sutis diferen-
ças entre ambos: Erasmo,
mais roqueiro, tem um talen-
to especial para conceber me-
lodias facilmente identificá-
veis pela sua marca registra-
da, traduzida pela condução
de encadeamentos harmôni-
cos e pelas modulações.
Roberto, mais romântico,
tem pontos de partida e cer-
tos achados sob a forma de
versos nunca antes navega-
dos por qualquer outro au-
tor. Ambos trafegam com tal
facilidade na criação de melo-
dias e letras de canções que
não se consegue identificar
com exatidão quem invadiu
o terreno de quem, quem pro-
pôs a primeira ideia nem ca parceria, de destaque nas dade dos dias hoje em que cujas obras consideráveis, cui- York e o score do musical Ca- de camaleão refere-se ao fe-
quem a completou. Em su- marchinhas carnavalescas. executivos se põem a falar dadosamente elaboradas, baret, para confirmar o perfei- cundo e original Paulo Cesar
ma, quem é o letrista e quem Procedentes de outro extrato bem alto no celular enquanto equivalem às dos consagra- to amálgama dessa união. Pinheiro, letrista que já supe-
é o músico. social, o dos morros cariocas, aguardam a decolagem nas dos compositores do Ameri- Em qualquer parte do ra as mil canções, um recor-
Erasmo confessa em seu li- Ismael Silva e Nilton Bastos salas de espera dos aeropor- can Song Book. mundo há também canções de expressivo. De fato Pauli-
vro Minha Fama de Mau so- formaram a curta mas valio- tos para depois, tão logo o Nos Estados Unidos, as co- com mais de dois parceiros, nho tem essa capacidade, a
bre a sensação de dois auto- sa parceria de sambas do Es- avião pouse, ligarem imedia- médias musicais da Broa- alguns deles incluídos ape- de não exigir certificado de
res no ato da criação: “Incon- tácio, contrastando em ter- tamente por grandes novida- dway e as trilhas para os fil- nas por terem dado um pita- serviço militar para se dar
táveis vezes os ‘Carlos’ chora- mos de duração com a longa des, como se o mundo tives- mes de Hollywood propicia- co numa obra praticamente bem com um compositor e
ram de contentamento ao ter- vida da dupla Bide e Marçal. se mudado nesse meio tem- ram a formação de parcerias pronta. Em certos casos essa retornar a melodia ao autor
minarem músicas. A alegria é Neste caso, seus nomes, po. Caymmi era pois a antíte- bem antes que no Brasil. Já interferência tão simples é acrescida de uma letra que
imensa e a emoção muito for- um ao lado do outro, tem o se dessas figuras. Suas can- nos anos 30, os irmãos Ira e contudo decisiva. Quando foi parece ter sido criada antes.
te. É a vitória da capacidade ritmo poético destinado a ções imortais não foram cria- George Gershwin são desta- gravar I’m a Fool to Want You Aliás qual vem primeiro?
de aconchegar conceitos, mé- uma parceria inevitável, o das nessa velocidade desespe- ques entre as numerosas du- pela primeira vez em 1951, Na cabeça de alguns autores
tricas e rimas na expectativa que aconteceu. Ismael tam- rada. Sem que se queira co- plas que criaram canções Frank Sinatra curtia uma dor solitários, vêm ao mesmo
de que o Brasil e o mundo se bém teve depois Noel Rosa meter uma leviandade de li- imorredouras. São deles So- de cotovelo tão imensa por tempo, algumas vezes sain-
apaixonem por uma canção”. como parceiro de fato e o berdade de expressão, pode- meone to Watch Over Me e Ava Gardner que, sem o con- do a jato. No caso de parce-
cantor Francisco Alves de mo- se descrever a construção de Our Love Is Here to Stay. No sentimento dos autores J. rias acontece de tudo. Algu-
Teatro de revista do impróprio. Chico Alves, sua obra, em termos do rendi- mesmo patamar, Richard Wolf e S. Herron, alterou a le- mas canções tiveram letras
Na música popular brasi- apelidado de “o rei da voz”, mento que os executivos ado- Rodgers e Lorenz Hart têm tra para dar um recado direto completadas no estúdio, mi-
leira, as parcerias não surgi- ampliava suas atividades co- ram, como a de melhor custo/ também uma obra monu- à causadora de seu sofrimen- nutos antes da gravação. Ou-
ram de imediato. Sinhô, La- mo marqueteiro, isto é, se en- benefício para traduzir na lin- mental. Deixaram Manhat- to. Ao ouvir a gravação am- tras vezes a letra fica meses
martine Babo, Noel Rosa até carregava de levar os sambas guagem de marketing a ex- tan e My Funny Valentine. As bos ficaram tão impressiona- aguardando por uma melo-
certo ponto, entre outros, para o disco além de divulgá- cepcional porcentagem de personalidades tão diferentes dos que não apenas concor- dia.
criavam sozinhos três dos los recebendo como recom- suas obras primas. desses parceiros em nada daram como também incluí- Quando recebi o CD de
quatro componentes de uma pensa o acréscimo de seu no- combinam com a harmonia ram Sinatra na parceria. canções de Renato Martins e
canção — ritmo, melodia e le- me aos dos autores verdadei- Song book de letra e música de suas can- Há canções com três e até Roberto Didio cantadas por
tra — deixando em certos ca- ros a fim de gozar das vanta- Voltando às parcerias. Nos ções continuamente canta- quatro parceiros sem que se Gabriel Cavalcante, passei a
sos a complementação da gens decorrentes. Não as fi- anos 50 Tom e Vinicius sur- das e gravadas desde o sécu- saiba quem contribui com o conhecer mais uma ótima
harmonia por conta de arran- nanceiras, que no Brasil per- gem como as maiores expres- lo passado. Tais diferenças quê, mas nenhuma delas che- parceria: os dois compõem
jadores. Efetivamente, as par- manecem entre as mais ridí- sões da década, a dupla cujas são parte do grande mistério ga ao exagero dos enredos como se fossem um só. Na
cerias começaram a nascer culas do mundo, mas as do canções rodaram o mundo que intriga quem decide ex- das escolas de samba que, área de samba, a que facilita
no Rio de Janeiro para abaste- prestígio. pela primeira vez na história plorar o que une um compo- sem o menor constrangimen- elogios precipitados a com-
cer de música as peças de tea- Contudo, as parcerias nes- levando o nome do Brasil à sitor a um letrista. to, ostentam um aglomerado positores não mais que sofrí-
tro de revista. Foi quando se período, a chamada Época categoria de grande criador e de autores que mais parece a veis, o CD é um dos melho-
compositores como Ary Bar- de Ouro, não eram tão fre- exportador da música popu- Amálgama escalação de um time de fute- res que tenho ouvido nesses
roso recorreram a outras pes- quentes como seriam depois. lar. Sua obra, para os que ain- Na fase do rock & roll e da bol. Eis porque esses sam- anos. De maneira geral, o
soas para desenvolver uma Assim Ataulfo Alves, Lupicí- da duvidam, é a que se man- pop music, a mais notável bas, que dominam a televi- bom samba é criado com ba-
técnica que não dominavam, nio Rodrigues, Herivelto Mar- tém no topo, bem ao contrá- parceria americana é de Jerry são no Carnaval, não duram se em inspirações melódicas
a de poder dar rumo à letra tins e Assis Valente estão en- rio das que abundam naque- Lieber e Mike Stoller, autores mais que algumas horas. Va- que fluem ao sabor da intui-
de uma canção para que se tre os mais destacados com- les programinhas sem vergo- de Hound Dog e Stand by Me, le ainda dizer, como se viu ção, adquirindo a categoria
encaixasse a uma determina- positores cuja obra foi prati- nha da televisão nacional e enquanto John Lennon e na semana que acabou, que de canções com a incorpora-
da situação no palco. Assim camente criada isoladamen- de boa parte das emissoras Paul McCartney formam a du- tal gênero bem poderia ser ção de letras que normalmen-
Ary teve no revistógrafo Luiz te, isto é, letra e música por de rádio. pla inglesa que revolucionou chamado de marcha enredo te surgem depois, mas no
Peixoto seu parceiro mais fre- conta de cada um. A geração que se seguiu te- a música pop do mundo to- tal a velocidade que assumiu fundo já estavam na inten-
quente, independente das le- ve — ao lado dos que cria- do. Os quatro atingiram em e que aumenta a cada ano. ção da melodia para serem
tras que ele mesmo criou, es- Antítese ram letra e música sozinhos cheio a cabeça da juventude descobertas.
poradicamente com um ou Um caso a parte nesse con- ou não, como Chico Buar- universal cansando-se de Camaleão Assim se consubstancia,
outro adjetivo pernóstico co- tingente de autores anterio- que, Gilberto Gil e Caetano criar hits, um atrás do outro. Entre os letristas america- com naturalidade, uma gran-
mo o discutível “inzoneiro” res à Bossa Nova é o de Dori- Veloso — outras parcerias sig- Mais recentemente John Kan- nos, o caso de Johnny Mer- de parceria. Renato, sob a be-
de Aquarela do Brasil. val Caymmi, também um nificativas, Milton Nascimen- der e Fred Ebb, a dupla desfei- cer merece um comentário à néfica influência da linha har-
sem parceiro, cuja produção to e Fernando Brant, Edu Lo- ta em 2004 com a morte des- parte pela sua facilidade em mônica de Baden Powell, e
Ritmo poético relativamente pequena, de bo e Chico Buarque, Ivan te último, representam mag- se adaptar a compositores va- Roberto com versos de um
Paralelamente, dois auto- cento e tantas canções, tem Lins e Vitor Martins, João Bos- nificamente essa tradição riados e inconstantes sem bom letrista atingem esse
res procedentes da classe me- nível excepcional. Canções co e Aldir Blanc, Paulinho da que se estende entre tantos perder a capacidade cama- ideal. Detalhe importante: o
dia carioca, João de Barro, o feitas com calma, com uma Viola e Elton Medeiros, Fran- parceiros criadores de obras leônica de produzir obras- CD de Gabriel Cavalcante, O
Braguinha, e o médico Alber- lentidão despreocupada, ab- cis Hime e Chico Buarque, primas em língua inglesa. primas com vários deles. No que Vai Ficar pelo Salão, foi
to Ribeiro, deixaram uma ri- solutamente opostas à ansie- Marcos e Paulo Sérgio Valle, Basta citar New York, New Brasil o mais reluzente caso gravado em Campinas.