1) O documento discute a noção de "risco" e como seu significado mudou ao longo do tempo, de um conceito originado no comércio marítimo para uma narrativa onipresente na modernidade.
2) A noção de risco estimula a criatividade mas também pode levar a comportamentos irracionais motivados por ganância ou medo.
3) É necessário repensar a qualidade dos riscos na sociedade moderna e os discursos que os enformam, para que o risco não se transforme em profecia de desastre, mas sim
1. OPINIÃO A doutrina do risco
Isabel Capeloa Gil
Professor da Universidade Católica Portuguesa
Vivemos à sombra do risco. Um meteorito ameaça semântica do risco a consciência dos limites e dos pe-
chocar com o planeta Terra. Em Itália um terramo- rigos que é justamente promotora da perigosa, mas
to reclama vidas e destrói bens. Na Califórnia, uma também fascinante, ação criadora. Ora a percepção
bactéria contamina vegetais e põe em perigo a saúde do risco como estimulante não deixa de ter algumas
pública. Na Europa, os mercados nervosos fazem su- marcas de irracionalismo, como justamente assina-
bir o risco das dívidas soberanas de países em crise. la o sociólogo Georg Simmel, no seu opus magnus,
O risco parece ter-se tornado doutrina neste nosso “A Filosofia do Dinheiro”. Porque é improvável que
mundo singular, uma ameaça e um discurso cultural os indivíduos, que naturalmente são pouco dados a
que, para o bem e para o mal, legitima comporta- arriscar, sejam levados a investir uma parte dos seus
mentos, vivências e percepções. rendimentos em projetos de elevado risco, Simmel
Se algo há em comum nos exemplos atrás aduzidos, é conclui que o ato de investir neste tipo de produtos
PÁG. justamente a diversidade com que o discurso do risco
se aplica a áreas tão diversas, da ecologia à astrofísi-
revela que a razoabilidade racional é posta em causa
e que por isso não é de descartar a influência de al-
04 ca, da saúde à economia. Mas nem sempre foi assim.
A noção de risco é originária da economia das viagens
marítimas, e estava associada ao seguro das cargas
transportadas pelos navios. Esta concepção renascen-
gum tipo de comportamento irracional.
Na sua oscilação dinâmica entre a avaliação racional
e o estímulo irracional, o discurso do risco tornou-se
uma narrativa seminal da modernidade, mostrando
tista, a início com expressão relevante nas práticas precisamente quão perto se encontram a grandeza
comerciais do norte da Europa e alargada depois ao inovadora do estímulo criativo, a miséria da ganância
continente, veio a sofrer uma mutação a partir do e o medo patológico do futuro. Todavia, nos nossos
século XIX, na sequência das transformações tecno- tempos difíceis, emancipada da ação subjetiva e da
lógicas e económicas trazidas pela dupla revolução. escolha individual, a doutrina do risco ameaça trans-
O conceito é assim deslocado do campo dos seguros, formar-se em profecia de desastre anunciado, com o
generalizando-se a áreas diversas e, mais importan- estímulo criativo a dar lugar à reação condicionada,
te, deixa de conceber apenas a avaliação dos perigos e o interesse a substituir-se à razão. Urge, por isso,
para um investimento e o seu impacto nos resultados. repensar a qualidade dos riscos que nos rodeiam e
Como escreve Nietzsche num texto dedicado a Cosima os discursos culturais que os enformam. Porque risco
Wagner no Natal de 1872, risco constitui um limite não é destino, urge libertarmo-nos da falácia deter-
à ação humana, mas igualmente um estimulante da minista desta doutrina secular e reaprender a nave-
vida. Generalizando o conceito, o filósofo observa na gar no mar de escolhos da modernidade.
a “bomba-relógio” escondida nestas parcerias, com
Pela confiança interna encargos futuros a subir em exponencial.
Um Estado que busca desesperadamente captar no- A troika não só impôs a sua revisão como ofereceu
vos investimentos nacionais e estrangeiros não pode apoio técnico estrangeiro para ajudar o Governo a
quebrar a relação de confiança contratual nem fazer face aos poderosos lobbies de advogados con-
transmitir a ideia de que dá o dito por não dito em tratados por privados. Neste quadro, mal se com-
função da mudança de Governo ou da alteração das preende que o Governo venha com um novo diploma
circunstâncias. estabelecer, ele próprio, novas regras para futuro,
Percebe-se, por isso, a delicadeza da renegociação ao mesmo tempo que torna ainda mais limitada a
de qualquer contrato que obrigue o Estado portu- margem de manobra própria na negociação do pas-
guês realizado por Governos anteriores, incluindo sado.
as célebres Parcerias Público Privadas. Os funcionários públicos também tinham direito
Há, contudo, uma questão de bom senso: um con- aos salários acordados e os pensionistas às respecti-
trato negociado de má fé por uma das partes e/ vas reformas. O Governo - que prometeu não subir
ou negligência danosa por outra, com cláusulas mais impostos e esta semana deu carta branca às
despropositadamente lesivas do interesse nacional autarquias endividadas para subir todo o tipo de
e que permite rendibilidades usurárias, tem, ob- impostos e taxas municipais - não pode continuar
viamente, ferida a respectiva legitimidade e não forte com os fracos e fraco com os fortes. Isso pode
pode arrogar-se os direitos de um outro qualquer preservar a confiança externa, mas destrói a con-
contrato. fiança interna. E sem ela não há coesão nacional
Ontem, na Assembleia da Republica, o professor que resista.
Avelino de Jesus veio, mais uma vez, alertar para
Graça Franco
r/com renascença comunicação multimédia, 2012