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09Projeto
"MEMÓRIA-Nona Ilha"
VIEIRA, ALBERTO
DA MADEIRA A CAPE TOWN, REPÚBLICA DA ÁFRICA DO SUL
FROM MADEIRA TO CAPE TOWN, SOUTH AFRICA
Cadernos de divulgação do CEHA.
Projeto “Memória-Nona Ilha”/SRTC/DRC, N.º 09.
VIEIRA, Alberto – Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul.
Funchal. Novembro de 2018.
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
DA MADEIRA A CAPE TOWN, REPÚBLICA DA ÁFRICA DO SUL
FROM MADEIRA TO CAPE TOWN, SOUTH AFRICA
ALBERTO VIEIRA*
CEHA-SRETC-MADEIRA
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
2
ALBERTO VIEIRA. N.1956. S. Vicente Madeira. Títulos Académi-
cos e Situação Profissional: desde 2016- Investigador-Coordena-
dor do CEHA e de projetos de investigação; 2013-2015: Diretor
de Serviços do CEHA; 2008- Presidente do CEHA, 1999 - Investi-
gador Coordenador do CEHA; 1991-Doutor em História (área de
História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa), na Univer-
sidade dos Açores; 1980. Licenciatura em História pela Universi-
dade de Lisboa. ATIVIDADE CIENTÍFICA. Pertence a várias aca-
demias da especialidade e intervém com consultor científico em
publicações periódicas especializadas. É Investigador-convidado
do CLEPUL-Lisboa. Membro da Cátedra Infante Dom Henrique.
Desenvolveu trabalhos de investigação nos domínios da História
do Meio Ambiente e Ecológica, História da Ciência e da Técnica,
O Mundo das Ilhas e as Ilhas do Mundo, História da Autonomia,
História da Ciência e da Tecnologia, História da Escravatura, His-
tória da Vinha e do Vinho, História das Instituições Financeiras,
História do Açúcar. Atualmente desenvolveu estudos e coordena
projetos sobre Historia Oral /Autobiográfica, com os projetos:
MEMORIAS das Gentes que fazem a História; NONA ILHA- as Mo-
bilidades Madeirenses; AUTONOMIA. Memórias e testemunhos.
PUBLICAÇÕES. Tem publicado diversos estudos, em livros e arti-
gos de revistas e atas de colóquios, sobre a História da Madeira,
dos espaços insulares atlânticos, da Nissologia/Nesologia e so-
bre os temas de investigação referidos acima. Informação curri-
cular desenvolvida em: https://app.box.com/s/248a0h637wi5ll-
m26o66o9bbw2kd182z .
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
“Uns emigram pelo espirito de novidade e aventura, que se desperta e desenvolve ain-
da nos mais rudes e ignorantes habitantes dos campos; outros—porque teem paren-
tes, amigos ou antigos vizinhos que, de longe, os tentam e seduzem com as descrições
de uma existência desafogada e em vésperas da conquista apetecida e ambicionada
fortuna; e ainda outros, são levados pelos exemplos eloquentes que se lhes impõem
nas terras da sua naturalidade, soba forma de belas casas de pedra e cal, cobertas
com a vistosa telha de Marselha avermelhada e de fecundos terrenos de viçosas cul-
turas, comprados com o dinheiro ganho exílio voluntario. (…) E o grande numero de
bonitas casas que ostentam galhardamente os seus telhados de Marselha em diversas
povoações do concelho de Calheta, e que mereceram a graça de ser mencionadas, na
imprensa da capital, como argumento de grande força a favor do regímen sacarino, (…)
o que significam, o que representam, na realidade, senão dinheiro enviado por aqueles
que daqui emigram para o Cabo da Boa Esperança e para as duas Américas? Ora aí está
uma das faces boas da emigração que, se por um lado, corresponde a um deficit de
braços, transforma-se por outro, numa fonte de receita.”
(Editorial do DN de 16 de outubro de 1915, p.1, subordinado ao título
“Interesses Gerais do Distrito- A Estatística e a Emigração”)
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
3
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
RESUMO
Nos séculos XIX e XX, a cidade do Cabo (Cape Town) marcou, de forma evidente, a mobilidade dos
madeirenses, abrindo mais uma oportunidade de sair e de ganhar a vida, graças às estratégias coloniais dos
impérios europeus. Na memória e história madeirenses, o dia da chegada dos chamados “Vapores do Cabo”
era conhecido como o dia de “São Vapor”, desencadeando o interesse sobre a África do Sul.
Entender a forma como se operou esta mobilidade madeirense e inglesa na rota do Cabo é o que motiva
a nossa atenção. Por força desta rota, que perdura no tempo, estabeleceu-se uma via aberta para o comércio
e mobilidade de madeirenses que se servem, muitas vezes, de rotas indiretas para entrar na África do Sul, a
partir da antiga colónia portuguesa de Moçambique ou, mesmo, recorrendo à mobilidade clandestina, muito
por causa das limitações impostas à escolaridade. A emigração clandestina é aqui um dado significativo da
mobilidade de muitos dos madeirenses para chegar à África do Sul.
ABSTRACT
Cape Town (South Africa) was during the 19th
and 20th
centuries a major target within Madeira emigra-
tion. Vessels (Vapores do Cabo) that stopped at Funchal harbour were part of a maritime route which attrac-
ted many Madeira born who seek for better living conditions and job opportunities that lacked on the island.
Very frequently, young boys, escaping from compulsory military service and undocumented, entered South
Africa through the Mozambique border. This illegal movement has to be taken into account when studying
mobility and in particular the flow of Madeirans to South Africa.
PALAVRAS-CHAVE:- Cape Town, chapas, emigração clandestina, ovos, vapores do Cabo.
Key-words: Cape Town, Vessels, maritime route, mobility, illegal emigration
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
4
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
A
Madeira firmou-se, a partir de meados do séc. XV, pela sua vocação atlântica, abraçando ambas as
margens do oceano e estabelecendo pontes com os diversos portos atlânticos, que a favoreceram
como porto de escala, comércio e mobilidade de homens e plantas. Foi um importante ponto de
partida para a expansão e afirmação colonial. Alguns dos mais destacados impérios europeus - Portugal e
Inglaterra- tiveram aqui esse pilar de apoio e refrescos, tão fundamental para a expansão até ao advento da
navegação aérea.
Sulcámos o oceano à busca do desconhecido e firmámos uma posição de relevo nas rotas oceânicas
que ajudámos a criar. Desta forma, desde muito cedo, o cabo da Boa Esperança esteve presente nas aspi-
rações dos ilhéus, na mira do Índico e do Pacífico e das suas riquezas, no mar e em terra. Foram-se, então,
estabelecendo laços entre a Cidade do Cabo e esse cabo que, das Tormentas passou a ser da Boa Esperança.
Construiu-se outro mundo e criou-se as rotas do Atlântico, apostando-se na importância destes dois pilares,
já no séc. XVI. Esta ancestral ligação madeirense permaneceu quase até ao séc. XX, na chamada rota do cabo
e na presença assídua dos vapores do cabo, no porto do Funchal1
.
O rumo de Cape Town começou a ser definido em finais do século XVII, mas foi nos séculos seguintes
que se consolidou. A Madeira abriu o Atlântico aos ingleses para que pudessem, a partir daí, desbravar os
mares, revelar e consolidar novos domínios tanto no mar como em terra; serviu de apoio e descanso, nas
rotas de ida e retorno, permitindo uma transição mais fácil entre as duas áreas climáticas2
e abrindo o oceano
à navegação marítima, ao comércio e domínio imperial europeu. Iniciou, na Madeira, uma mobilidade de ho-
1	 VIEIRA, A. (2012). Do lugar, da cidade e do porto do Funchal. Anuário n. º 5, 2013, 9-65.
2	 Em 11 de dezembro de 1912 (Diário de Notícias, p. 2) chegou ao Funchal Julius Meyer, proveniente do Cabo com destino à Alemanha, que aqui se deteve
oito dias.
Simon Fisher, ‘CASTLES AT THE CAPE’. CAPE TOWN CASTLE passes EDINBURGH CASTLE in Cape Town Harbour in the 50s
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
5
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
mens, animais e plantas em ambos os sentidos, abrindo caminhos aos jardins botânicos, a uma mesa rica de
frutos variados e ao turismo, gerador de constantes mibilidades e uma das indústrias fundamentais do século
XXI. Por outro lado, é a afirmação do Funchal, como porto de escala, nas rotas de ida e retorno de Cape Town,
que potenciou múltiplas atividades que trouxeram vida nova ao casco urbano3
. Isto evidencia a importância
que assumiu para o Funchal a passagem semanal dos vapores do Cabo que, no Funchal às quintas-feiras4
,
ficará como o dia de “São Vapor”.
Até 19005
, são os vapores da Union Line ou da Castle Line, ou popularmente designados como os “va-
pores do Cabo brancos” ou “vapores do Cabo pretos”, e que acabam por ser conhecidos como os vapores do
3	 Em 14 de julho de 1914 o Diário de Noticias (p.1) afirmava que “Estes transatlânticos. Como toda a gente sabe, trazem centenares de passageiros, que
geralmente durante dois dias se espalham pela cidade, comprando bordados, obras de vimes, servindo-se de carros (quer de bois, quer automóveis),
frequentando estabelecimentos de bebidas, etc, etc. Que de punhados de dinheiro não deixam estes forasteiros no Funchal?!”.
4	 Amélia Carreira (Um Funchal às pinceladas, Margem, 25, 2008, 33) nas suas recordações do Funchal refere a passagem dos vapores do Cabo às segun-
das-feiras, certamente no retorno: “…ia-se à segunda-feira ver as inglesas do Vapor do Cabo…”.
5	 Cf. Diário de Noticias, 23 de fevereiro de 1900, p.1. Sobre a História da companhia cf. Aldcroft, D. H. (1965). The Depression in British Shipping,
1901–1911. The Journal of Transport History, (1), 14-23; Harris, C. J., & Ingpen, B. D. (1994). Mailships of the Union-Castle Line. Fernwood Press. Com ati-
vidade importante na emigração: Evans, N. J. (2001). Work in progress: Indirect passage from Europe Transmigration via the UK, 1836 –1914. Journal
for Maritime Research, 3 (1), 70-84;Munro, J. F. (1990). African shipping: reflections on the maritime history of Africa south of the Sahara, 1800–1914.
International Journal of Maritime History, 2 (2), 163-182; Murray, M. (1933). Ships and South Africa: A Maritime Chronicle of the Cape, with Particular Reference to
Mail and Passenger Liners, from the Early Days of Steam Down to the Present. Oxford University Press, H. Milford; Knight, E. F. (1920). The Union-Castle and
the War, 1914-1919. Union-Castle Mail Steamship Company; Mackenzie, J. M. (2005). Empires of travel: British guide books and cultural imperialism in
the 19th and 20th centuries. Histories of tourism: representation, identity and conflict, 6, 19; Murray, M. (1933). Ships and South Africa: A Maritime Chronicle of the
Cape, with Particular Reference to Mail and Passenger Liners, from the Early Days of Steam Down to the Present. Oxford University Press, H. Milford.
DN. 12.I.1877, p.4 DN. 22.I.1893, p.4
DN. 6.1.1905, p.4 DN. 23.II.1900.p.2
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
6
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Cabo6
que, a partir de fevereiro daquele ano, aparecem como Union Castle S.S. Cº7
, juntando, nas chaminés,
as duas cores que os identificavam. Estes vapores faziam escala no Cabo, Alagoa Bay e Natal.
Em 1900, a R. P. Houston & Cº, uma companhia criada em Liverpool para as ligações com Argentina,
passou também a fazer a rota do Cabo. Os seus navios (Helines, Huanthes, Hesperides, Halzones) passam a
ter escala regular no Funchal8
, dando mais movimento ao porto. Além do Cabo, estes vapores chegavam a
6	 O Diário de Notícias, 14 de julho de 1914, p.1 refere “os vapores da Union Castle Line (vulgarmente conhecidos com os vapores do cabo )…”
7	 A 23 de fevereiro de 1900 o Diário de Notícias (p.2) informa da compra da Union Line pela Castle Line pelo valor de dois milhões de libras esterlinas.
8	 Cf. DN., 1904.janeiro.3, p.4.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
7
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Porth Elizabeth, East London, Natal, à Beira e Lourenço Marques, a exemplo do que fazem alguns da Union
Castle. Na rota do Cabo, aos vapores da Union Castle associam-se, a partir de 19079
, os navios África, Beira e
Infante D. Henrique da Empresa Nacional de Navegação/Companhia Colonial de Navegação10
ou os que fazem
a ligação à Austrália11
. Outros navios de companhias europeias, também sulcaram as mesmas rotas ou rotas
parecidas.
Consolida-se, em definitivo, a rota do Cabo. As escalas aumentam e tornam-se quase diárias, com a
pressão das companhias inglesas, alemã e portuguesa. A aposta portuguesa em Moçambique, com as obras
no porto de Lourenço Marques 12
, fazem com que os portos de Durban e Cabo tenham mais um concorrente
de peso, a Empresa Nacional de Navegação. Terá sido a partir daqui que se abriu esta rota secundária da
emigração madeirense para alcançar a África do Sul13
. Não nos podemos, ainda, esquecer que militares e
funcionários portugueses que se dirigiam a Moçambique se serviam dos vapores do Cabo, que partiam do
Funchal, que funcionava como eixo de ligação14
.
9	 Diário de Notícias, 14.12.1906, p.2.
10	 Cf. DN.29.2.1916, p.4; DN.1919.11.12, p.2; DN, 12.03.1931, p.5; Re-nhau-nhau, nº.1220 (20.fev.1967) p.3.
11	 DN, 24.01.1935, p.4 e 6; Heraldo da Madeira, 29.8.1912, p.4.
12	 Cf. DN., 21 de Setembro de 1904, p.1.
13	 Atente-se a que os vapores da Union Castle passam também a fazer escala na Beira e em Lourenço Marques. O vapor do Cabo Saxon, que a 6 de Se-
tembro de 1904 (CF. DN., 7.9.1904, p.2) aportou o Funchal, havia passado por Lourenço Marques.
14	 Em 1906 (Cf. DN., 4 de junho de 1906, p.1), o Major Affonso Chaves “veio esperar aqui paquete que o conduza ao Cabo de Boa Esperança” para
realizar estudos metereologicos e magnéticos., tendo embrcado no Kildonan Castle (cf. DN., 7 de junho de 1906, p.1).
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
8
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
A rota dos vapores do Cabo da Union Castle sofreu algumas mudanças. O Cabo deixa de ser o destino
final da viagem e os vapores passam a sulcar o Índico, fazendo escalas em alguns portos do Sul de África,
como Alagoa Bay, Natal e chegando à Beira e Lourenço Marques15
. No retorno, o porto de escala é Tenerife,
a partir de 191116
.
As rotas, as companhias e os portos entram em compasso de espera com a pirataria, o corso, a guerra e,
acima de tudo, com as doenças que obrigam à quarentena17
. Restringe-se o movimento de passageiros e car-
ga e, naturalmente, todo o movimento de bomboteiros, chapas, rapazes da mergulhança e demais atividades
em torno do quotidiano que marca a passagem dos vapores. No ano de 1904, alguns vapores do regresso de
Cape Town estão sujeitos a quarentena18
. Na lista que anunciava as chegadas, vinha sempre a indicação se
15	 Cf.DN., 16 de junho de 1912, p.1.
16	 Cf.DN., 1 de abril de 1911, p.3.
17	 Vieira, Alberto, (2013) Do lugar, da cidade e do porto do Funchal, Anuário 2013 Centro de Estudos de História do Atlântico, ISSN: 1647-3949, Funchal,
Madeira pp. 10 – 177. Sobre a quarentena, as doenças contagiosas e a História Cf. CETRON, M, Landwirth J. 2005, Public Health and ethical considera-
tions in planning for quarantine. Yale J Biol Med., 78 (5):329-34; BONASTRA, Quim. (2000). “Innovaciones y continuismo en las concepciones sobre el
contagio y las cuarentenas en la España del siglo XIX. Reflexiones acerca de un problema sanitario, económico y social. IN: Scripta Nova: Revista Electróni-
ca de Geografía y Ciencias Sociales. Universidade de Barcelona. n. 69(35); JEWELL, W., 1985, Historical Sketches of Quarantine. 2nd ed. Philadelphia: T.K. and
P.G. Collins; SEHDEV, O.S. 2002, The origin of quarantine. Arcanum, 35:1071-2; MAGLEN. K. 2002, “The first line of defense”: British quarantine and
the port sanitary authorities in the nineteenth century. Soc Hist Med., 15 (3):413-28. DOI: http://dx.doi.org/10.1093/shm/15.3.413.23. MCDONALD,
JC. 1951, The history of quarantine in Britain during the 19th century. Bull Hist Med., 25 (1):22-4; D’ALMEIDA, Domingos José Bernardino. (1891). As
quarentenas perante a sciencia ou a critica scientifica do Regulamento Geral de Sanidade Maritima. Lisboa: Typ. Do Comercio de Portugal.
18	 Cf. DN, 7 de Setembro de 1904, p.2; id., 28 de dezembro de 1904, p.2.
Bandeira de quarentena.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
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CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
estava ou não em quarentena19
e ostentava a bandeira respetiva20
, trazendo para cidade e para toda a vida
portuária grande consternação.
19	 Cf., DN., 3 de novembro de 1911, p.1.
20	 Cf. Heraldo da Madeira, 27 de abril de 1907, p. 2. Comenta-se o dano destas medidas para a Union Castle ou a Royal Mail. Na cidade do Cabo era a ilha
de Robben que servia de Lazareto. Cf. H.J. Deacon (ed.) 1996, The Island: A History of Robben Island, 1488-1992 (Cape Town,); Fish, J. W. (1924). Robben
Island: an account of thirty-four years’ gospel work amongst lepers of South Africa. J. Ritchie; De Villiers, S. A. (1971). Robben Island: Out of reach, out of mind: A his-
tory of Robben Island. C. Struik; Deacon, H. (1996). Racial segregation and medical discourse in nineteenth century Cape Town. Journal of Southern African
Studies, 22 (2), 287-308; Edmond, R. (2006). Leprosy and empire: a medical and cultural history (Vol. 8). Cambridge University Press.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
10
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Até a década de sessenta do século XX, quase todos os funchalenses são reféns desta situação. Em “Dia
de S. Vapor, a cidade altera-se, completamente. Há múltiplos serviços e produtos a oferecer aos visitantes21
e
a cidade rejubila e ganha um movimento e comércio inusitados22
”. Segundo o Diário de Notícias de 191423
, “a
ilha toda vive do movimento do seu porto”. Há uma economia familiar, alimentada pelos bomboteiros24
. Há,
ainda, o contrabando25
que estes protagonizam, que vai dando o necessário para a sobrevivência do núcleo
familiar. Há, por parte dos passageiros em trânsito, uma atenção especial às frutas da ilha26
, que são transpor-
tadas em cestas para bordo ou vendidas pelos bomboteiros. Morangos, nêsperas, laranjas e bananas, captam
a sua atenção e são o desenjoo para as ementas de bordo.
21	 Cf. O que diz Ricardo Jardim (2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 44): “Mas vapores mesmo a sério, eram os da Union Castle, na carreira entre
Southampton e Cape Town. Tão regulares como o relógio da Sé. E tão importantes que em dias de barco não havia horários nem folgas no comércio da
cidade. Quando os Vapores do Cabo trocaram a escala da Madeira por Canárias no retorno de África, choveram protestos, exposições, diligências diplo-
máticas, o Deputado da Nação Dr. Araújo compôs um inflamado discurso e todos nos sentimos atraiçoados. Mas, nessa altura, eu já tinha a percepção
exacta da importância dos Vapores do Cabo.”
22	 Em 30 de abril de 1896 (DN, p.1), refere-se a chegada no dia anterior do vapor do Cabo Moor com o seguinte comentário: “Desembarcaram quase todos
os passageiros, que foram vistos por essas ruas, uns a pé e outros em carro,”. O mesmo sucedia a 4 de novembro de 1897 (DN., p.1). E, segundo Ricardo
Jardim (2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 43) ”…Mas vapores mesmo a sério, eram os da Union Castle, na carreira entre Southampton e
Cape Town. Tão regulares como o relógio da Sé. E tão importantes que em dias de barco não havia horários nem folgas no comércio da cidade.”
23	 Diário de Notícias, 14 de junho de 1914, p.1.
24	 Por força da ação dos bomboteiros, com bordados, barretes, botas de vilão como refere SANTOS, Carmo, 2005, Memórias de uma Rua in Santa Maria
Maior.Com Palavras nascem Histórias, Funchal, Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, p.35.
25	 Ricardo França Jardim (2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 44) recorda o contrabando com os vapores do Cabo: “Aqui intervinha a laboriosa
classe dos bomboteiros, intrépidos comerciantes que desafiavam o mar e as autoridades em barcos a remos carregados, até aos paquetes fundeados ao
largo, para mercar bordados, bananas e vinho contra tabaco, whisky, cosméticos, meias de nylon sem costura e tudo o mais que atrás se viu. Mercadorias
posteriormente vendidas porta a porta por estes contrabandistas encartados. (…) Uma vez o Senhor Abelhinha, que fornecia os cigarros Chesterfield
sem filtro ao meu pai, passou seis meses no chilindró (…).”
26	 Cf. Diário de notícias, 1.5.1896, p.2.
DN. 1914.07.30, p.3
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
11
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
A ninguém passava despercebido o movimento destes vapores de casco cor-de-rosa, que projetavam no
céu as chaminés pintadas de preto e vermelho27
. Até as lanchas de serviço costeiro, Milhano e Machiqueira,
da empresa Blandy, são pintadas com estas cores28
. E, dentro de portas, poderíamos encontrar lembranças e
objectos com a sua marca29
.
Por outro lado, eles representam um sonho, pela insistente notícia de passagem nestes vapores de
barras de ouro das minas sul-africanas ou de penas de avestruz30
. Poucos terão visto o ouro e as penas, mas
27	 Atente-se que com a guerra estes passaram a ostentar a chaminé a cinzento, a cor dos navios de guerra ingleses. Cf. Diário de Notícias, 22 de agosto de
1914, p.3.
28	 Cf. FRANÇA, Ricardo, 2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 44, onde refere que “Não pretendo insinuar nada. Mas o próprio senhor Blandy,
agente da companhia, possuía duas lanchas de cabotagem, a Milhano e a Machiqueira, pintadas iguaizinhas aos Vapores do Cabo, casco castanho averme-
lhado e chaminé encarnada com um friso preto.”
29	 Cf. FRANÇA, Ricardo, 2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 44: “Na casa dos meus tios, havia uma toalha de mesa em excelente cambraia
inglesa, estampada a todo o comprimento: «Union Castle Une». E fartei-me de encontrar noutras famílias acima de qualquer suspeita talheres, copos,
pratos, guardanapos e até sabonetes de alfazema com a mesma marca.”
30	 O Diário de Noticias do Funchal, apresenta no período de 1911-1914 as caixas de barras de ouro e de penas de avestruz que escalavam o porto. É algo sur-
preendente para o qual não encontramos explicação, pois é a única mercadoria em circulação de Cape Town para Southampton que merece divulgação.
CF. Diário de Noticias, 1911 (10.janeiro, p.1; 17 e 31.maio, pp. 1, 2; 7.junho, p.1; 5.julho, p.1; 2, 9, 23, 30.agosto, pp.1, 1, 1, 1; 6, 2, 27.setembro, pp.2, 1; 4
e 18.outubro, pp.2, 2), 1912 (1, 14, 28.fevereiro, pp. 1, 1, 2; 27.março, p.2; 1, 8 e 29.maio, pp.2, 1,1; 17.julho, p.1; 15, 21.agosto, p.1, 1; 11 e 18.setembro,
pp.1, 1.), 1914 (3, 15, 22, 24, 31.janeiro, pp. 2, 2, 2, 1,2; 21 e 28.fevereiro, pp.3,2; 28.março, p.1; 4, 25.abril, pp.1,2; 23.maio, p. 1).
DN.1897.07.13, p.2 DN.17.10.1897, p.2
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
12
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
quantos não terão sonhado com eles, a partir da divulgação quase sempre em primeira página destes produ-
tos em trânsito que envolvia a cidfade numa certa magia31
?
As guerras mundiais32
e a saída das escalas para as Canárias33
lançam a cidade num grande torpor e
numa situação de crise. Morreu o movimento dos vapores e a cidade permaneceu em silêncio, de luto.
31	 Cf. Re-nhau-nhau, 570 (1947), p.5; id., 583 (1947), p.7; id., 610 (1948), p.4.
32	 Cf. Diário de Notícias, 16.10.1914, p.1; id., 27.6.1916, p.1.
33	 Cf. Re-nhau-nhau, 543 (1946), p.8; id., 707 (1951), p.4; id., 1185 (1966), p.2.
Lanchas de serviço costeiro, Milhano e Machiqueira, da empresa Blandy, são
pintadas com estas cores
Cartazes da Union-Castle Line, com referên-
cia às escalas insulares
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
13
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
ENTRE O FUNCHAL E CAPE TOWN
O relacionamento da Madeira com a África do Sul vem dos tempos do descobrimento da costa africana
até ao Cabo, que implicou um envolvimento direto da Ilha e dos madeirenses, servindo o Funchal, muitas ve-
zes, de base de apoio a essas viagens. Em 1488, Bartolomeu Dias abriu o caminho e, desde então, tornou-se
notada a presença portuguesa nestas paragens. Todavia, o primeiro português documentado como emigran-
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
14
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
te no Cabo surge apenas em 1722, não havendo, porém, qualquer referência à data da sua chegada. Apenas
podemos afirmar com segurança que, nos princípios do séc. XX, a comunidade portuguesa era significativa e
que, em 1904, os madeirenses assumiam uma posição maioritária.
O facto de os Ingleses ocuparem a Cidade do Cabo aos Holandeses, em 1795, abriu ainda mais as portas
a este novo destino para os madeirenses emigrantes e às ligações que se seguiram com o Funchal. Tenha-se
em atenção que, entre 1652 e 1784, se desencadeou uma guerra marítima entre Ingleses e Holandeses pela
posse dos mares e que esta incluiu a Cidade do Cabo, porto para a entrada no Índico e no Pacífico. Daí o Ato
de Navegação de Oliver Cromwell, de 1651, o primeiro testemunho dessa estratégia imperial inglesa, que
também amarrou a Madeira à Cidade do Cabo. Para os britânicos, a perda da América do Norte, em 1776,
levou a buscar alternativas no Índico e no Pacífico e, para que elas se concretizassem, era preciso controlar
a porta de acesso a esse mundo que estava em poder dos Holandeses. A conquista da Cidade do Cabo foi,
assim, o início da afirmação de uma nova rota comercial que marcou, durante muito tempo, a vida dos britâ-
nicos e da Ilha.
Os britânicos fizeram do porto madeirense uma peça estratégica na navegação atlântica e no domínio
da colónia. O Funchal era quase sempre escala obrigatória para as embarcações do Cabo, Índia e Antilhas,
relacionada com a disponibilidade do vinho para o abastecimento dos navios e do comércio nas praças de
destino. A rota do Cabo era, assim, um caminho do mar consolidado na História da Madeira que só a plena
aviação comercial destronou.
O estudo desta mobilidade manteve-se ignorada na ilha e só nos últimos anos começou a despertar a
atenção dos estudiosos, a partir do projeto Nona Ilha. Surge, então, o estudo de mestrado de Bruna Pereira
(2017) que destaca os problemas decorrentes da emigração clandestina por via de Moçambique. Na África
do Sul, os especialistas, alguns com origens madeirenses, também fizeram um trabalho de descoberta desta
importante comunidade insular, que marcou, de forma evidente, a vida das cidades do Cabo, Joanesburgo,
Pretória34
. O recurso à História Oral e Histórias de Vida acontece nos estudos realizados nos últimos anos e
esta informação foi preciosa para reconstituir percursos e vivências, como podemos ver no trabalho de Bruna
Pereira (2017), Glaser (2010: 66-67, 213-214, 2012: 97), Botha (1971) e Machado (1992: 67). Graças ao em-
penho da comunidade científica sul-africana, foi possível resgatar parte significativa da História da emigração
madeirense na África do Sul, sendo realçado o caráter clandestino em que a mesma acontecia, por via da
fronteira de Moçambique.
34	 Cf. bibliografia BARTOLO (1978), DONSKY (1989), MACHADO (1992), PEREIRA (2000), MCDUILING (1995), GLASER (2010, 2012, 2013).
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
15
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
DO CABO SUBMARINO À TSF
Para além desta rede de rotas oceânicas, que estabelecem um vértice importante na Madeira, com a
plena afirmação da máquina a vapor, outros vínculos importantes ligam a ilha à África do Sul e ao mundo
atlântico35
. Com o advento das comunicações por cabo submarino, a Madeira voltou a cumprir uma missão
importante nesta ponte atlântica. Assim, em 1901, o cabo submarino da Eastern Telegraph Company ligava
a Inglaterra ao Cabo, com pontos de amarração na Madeira e em Cabo Verde. Há um serviço de informação
diversa que apoia o movimento dos Vapores do Cabo, anunciando as partidas e chegadas, assim como as
anomalias no percurso. Era um serviço importante para a mprensa local e a população.
A conjuntura da primeira metade do séc. XX foi favorável ao rápido desenvolvimento da telegrafia sem
fios (TSF). A Primeira Guerra Mundial (1914-1919), os conflitos militares isolados, como os que aconteceram
com os boers na África do Sul, criaram a necessidade de um rápido e eficaz sistema de comunicações, só
possível com a TSF. A utilização, a partir de 1905, do rádio nas comunicações militares e a acuidade destes
conflitos, nos primeiros decénios do séc. XX, traçaram o caminho para a plena afirmação das comunicações
via rádio.
35	 Cf. ROLLO, MARIA FERNANDA e QUEIROZ, MARIA INÊS, 2007, Marconi em Lisboa. Portugal na rede mundial de T.S.F., Lisboa: Fundação Portugal
Telecom; SILVA, ANA PAULA, 2007, A Introdução das Telecomunicações Eléctricas em Portugal: 1855-1939, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, Disser-
tação de doutoramento, texto policopiado. SANTOS, R. (1999). História das telecomunicações em Portugal. Biblioteca Online de Ciências Da Comunicação,
1-11; VIEIRA, Alberto, 1995, A Companhia Portuguesa Rádio Marconi na Madeira. 1922-1995, Funchal, CPRM.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
16
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Foi Marconi quem, durante a guerra, divulgou, no seu país, o serviço de telegrafia e telefonia e, no que
diz respeito à Madeira, impulsionou a propagação dos serviços de TSF no espaço atlântico, prestando um
inestimável serviço às colónias inglesas e à África do Sul. Não obstante, o serviço do cabo submarino per-
sistiu até a atualidade. A 16 de outubro de 1927, a Western Telegraph Company encerrou o hotel e escola
que detinha em Santa Clara. O cabo submarino precisava, contudo, de ser substituído, dada a sua idade e os
constantes reparos a que fora sujeito em 1928, 1931, 1933, 1934, 1936. O seu desaparecimento foi protelado
em 1929, com o estabelecimento de um pacto de colaboração entre as duas companhias. Mas, aos poucos,
a companhia do cabo submarino foi perdendo o controlo da exploração no espaço português: em 1943, era
estabelecido um acordo telegráfico com o Brasil que dava uma posição privilegiada à Marconi, enquanto
no acordo celebrado entre o governo português, a The Western Telegraph Company e a Cable and Wireless
Limited, a 4 de abril de 1969, não lhe é concedido qualquer exclusivo. Portugal reservava-se o direito de esta-
belecer e explorar, diretamente ou mediante concessão, outro cabo submarino ou quaisquer outros sistemas
de telecomunicações. Vingou a última situação com a concessão daquele direito à Marconi, a 11 de agosto
de 1966, de que resultou a inauguração da estação de cabo submarino de Sesimbra, que estabelecia a ligação
entre Londres e a África do Sul.
A segunda fase de concessão, iniciada em 1956, é definida pelo recurso a novos e mais adequados meios
de comunicação. Este serviço (Sat-1), inaugurado a 18 de fevereiro de 1969, divergia para uma ligação de Lon-
dres a Portugal e à África do Sul, num comprimento total de 10.787 km e com capacidade para 360 circuitos,
atingido o limite da sua utilização em 1978. Ao longo do percurso, estabeleceram-se três amarrações (Tene-
rife, Sal e Ascensão). Seguiram-se outros que estabeleceram a ligação com a Madeira (1971), França (1979),
Portugal/Senegal/Brasil (1982), Marrocos (1982) e África do Sul (1992).
A 8 de março de 1990, foi assinado um acordo de intenção, subscrito pela Companhia Portuguesa Rá-
dio Marconi, Correios e Telecomunicações de África do Sul, France Telecom, Telefónica de Espanha, British
Telecom, Bundespost Telekom. O cabo de fibra ótica Sat-2, cuja inauguração teve lugar a 28 de abril de 1993,
surge em substituição do Sat-1. O Sat-2 vai ligar o continente à Madeira, Canárias e África do Sul, numa exten-
são de 9000 km e com capacidade para 15.000 circuitos bidirecionais e 30 canais de televisão, sendo avaliado
em 30.000 contos. Este meio veio propiciar, ainda, aos 20.000 assinantes da rede telefónica da Madeira o
DN. 1916.06.21, p.2
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
17
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
acesso telefónico direto à Europa e a alguns países da África e da América, uma maior aproximação entre
os madeirenses residentes na Ilha e aqueles que se encontram emigrados nos mais diversos destinos. Neste
contexto, merece referência um acontecimento prévio, a inauguração, a 20 de fevereiro de 1984, das ligações
telefónicas diretas com a Venezuela e África do Sul.
A ligação direta abrangeu mais de 70 países, graças ao Centro de Telecomunicações, capaz de correspon-
der a esta realidade. Aberto em 25 de setembro de 1992, o Centro passou a coordenar toda a atividade da
empresa em termos do tráfego dos cabos submarinos de fibra ótica e transmissão digital (Euráfrica, Sat-2, Co-
lumbus-2, Inland), rede móvel e satélites. Esta infraestrutura concentra todos os serviços que estavam disper-
sos pelo Porto Novo, Garajau e Funchal. Aí está instalada a nova estação de cabos submarinos dos sistemas
Euráfrica e Sat-2. A inauguração do Centro foi feita em simultâneo com a do cabo submarino internacional
Euráfrica, à qual se seguiria a do cabo Sat-2. Este último é o maior cabo submarino do Atlântico e o terceiro
no mundo. Deste modo, a Ilha continua a ser, por diversas formas, um pilar importante no mundo atlântico.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
18
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
DOS VAPORES DO CABO
A baía do Funchal e a memória da cidade guardam a imagem de muitos destes vapores de chaminé preta
e vermelha (Armadale, Balmoral, Braemar, Briton, Carisbrook, Carth, Dover, Druham, Dunottar, Dunvengan,
Durham, Edimburgh, Kenilworth, Kenya, Kildonan, Kilgonan. Kinfaus, Llandovery, Pendennis, Rodesia, Saxon,
Tantallon, Transval, Walmer, Windsor, Zaria, Norman), que passam a fazer parte do quotidiano da cidade, do
porto e dos madeirenses. As dificuldades surgem nesta rota durante as guerras mundiais do século XX. Entre
1914 e 1919, muitos vapores da companhia prestam serviços de apoio à guerra, no transporte de 4000 sol-
dados da África do Sul ou como navio hospital. A situação contribui para abrandar o movimento comercial e
de passageiros civis.
	 DN. 1915.10.07, p.1 				 DN. 1915.10.10, p.1
O Funchal ganhava outro brilho e movimento, o a cidade acordava da letargia e a população convergia
para a beira-mar. Há um movimento inusual de funchalenses e forasteiros, perto do porto. Os “Chapas”36
,
36	 Eram assim conhecidos porque tinham uma barreta com a chapa do número de autorização. Eram os cicerones de serviço que conduzem e aliciam os
passageiros para as lojas e serviços a que estão engajados. Este assédio aos passageiros do Cabo, em trânsito, de bomboteiros, rapazes da mergulhança,
chapas, carreiros e mendigos eram assiduamente criticados na imprensa local, nomeadamente no Diário de Noticias. CF. Diário de notícias, 5 de julho de
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
19
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
os carreiros do Monte, os bomboteiros37
, os rapazes da mergulhança38
não tinham mãos a medir nos seus
afazeres. Todos estes serviços e produtos impeliam os passageiros a usufruir da melhor forma os serviços
da escala, quebrando o tédio de uma viagem longa. Entre 1888 e 191039
, porém, a imprensa funchalense
manifesta-se, de forma violenta, contra os cicerones, considerando-os danosos para ao comércio do burgo.
A cidade é outra e ganha vida com estas situações. Dessa animação portuária e urbana, ficaram vários teste-
munhos presenciais, plasmados em escritas de alguns daqueles que se amontoavam no cais, que viam o mar
de alguma janela ou de alguma das torres avista-navios que existiam na cidade.
Bomboteiros
A 24 de agosto de 1924, Raul Brandão presencia este movimento da chegada dos vapores como um
momento de vida para a cidade:
“Agora conheço melhor a Madeira passado o primeiro entusiasmo, vejo tudo a frio. Esta ilha é
um cenário e pouco mais- cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e despre-
zo absoluto por tudo que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e udo
preparado e maquinado para inglês ver e abrir a bo1sa. Eles saem dos paquetes e logo o Funchal
se arma como um teatro -secos, graves, dominadores; elas saem do mar vestidas de noiva, de
bengala na mão e blusa de croché, passeando a sua importância e as suas libras esterlinas em
1888, p.1; id., 12, 22, 24 de novembro de 1894, p.1, 2, 1; id, 3 de janeiro de 1895, p.1; id.,14 de fevereiro de 1895, p.2; id., 1 de maio de 1896, p.2; id., 16
de dezembro de 1896, p.2; id., 13, 14 de julho de 1897, p.2, 2; id., 8, 17 de outubro de 1897, p.1, 2; id., 3 de novembro de 1897, p.2; id., 15 de dezembro
de 1897, p.2; id., 30 de dezembro de 1904, p.2; id., 29 de janeiro de 1910, p.1; id., 7 de novembro de 1914, p.2.
37	 Cf. ALVES, G. e FARIA, C. (2013). “Atividades socio-poéticas: o bombote, a mergulhança”, Anuário, n.º 5 2013, Centro de Estudos de História do
Atlântico. Funchal, Madeira (2013), pp. 261-282; FARIA, Cláudia e ALVES, Graça, “Atividades Sócio-Poéticas: o Bombote, a Mergulhança”, Anuário
2013, Centro de Estudos de História do Atlântico, Funchal, 2013, pp. 261-279; SILVA, Elisabete, “Bomboteirismo – A Arte de uma Profissão”, Xaraban-
da, n.º 4, 1993, pp. 13-14; VIEIRA, Alberto, 2016, bombote e bomboteiros, in Aprender Madeira, Funchal. Disponível Internet http://aprenderamadeira.
net/bombote-e-bomboteiros/ Consulta em 22.09.2018.
38	 Cf. ALVES, G. e FARIA, C. (2013), ibidem, pp. 261-282.
39	 Cf. Diário de notícias, 5.7.1888, p.1; id., 22.11.1894, p.1; id., 24.11.1894, p.1; id., 3.1.1895, p.1; id., 14.2.1895, p.2: id., 17.4.1895, p.1; id., 7.11.1895, p.1;
16.112.1896, p.2; id., 13 e 14. 7.1897, pp.2, 2; id., 8 e 17.10.1897, pp.1, 2; id., 3.11.1897, p.2; id., 28.8.1904, p.2; id., 30.12.1904, p.2; id., 29.1.1910, p.1.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
20
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
terreno conquistado. O inglês é talvez o povo mais nobre do mundo - mas não tem o sentimento
do grotesco. Sentado à porta do Golden Gate, ouço o apito do vapor, e já sei o que se vai passar:
muda a armação como um cenário de mágica. Surgem homens com grandes chapéus de palha
para vender bordados, colares falsos de coral, cestos de fruta; iluminam de repente as lojas, e
segue o desfile de tipos- pretas de Cabo Verde com foulards vermelhos na cabeça, mulheres
planturosas, alemães maciços, portugueses esverdeados e febris que regressam das colónias,
velhas inglesas horríveis que vêm não sei donde e partem não sei para onde, desaparecendo
para sempre no mistério insondável do mar; criaturas inverosímeis que rodam a toda a força
nos automóveis num frenesi que dura momentos e se passa na única rua onde há um café que
transborda de luz. Mas as máquinas de bordo dão o sinal e uma hora depois esta vida fictícia de-
sapareceu e tudo reentra no isolamento e no silêncio. Apagam-se as luzes, correm-se os taipais
e os vendedores mergulham na pacatez da vida quotidiana. O quadro está sempre a repetir-se
com a chegada e a partida dos grandes transatlânticos.”40
Ao longo do século XX, os cenários repetem-se, mas com outros olhares. Ricardo França Jardim traz-nos,
do seu caderno de memórias de criança, as vivências urbanas com estes vapores:
“Mesmo antes do meio-dia chegava o Vapor do Cabo. Subiam bandeiras no mastro da Casa Blan-
dy, apareciam carros de bois na Avenida do Mar e os senhores das lojas de artefactos expunham
toalhas bordadas e demais quinquilharia à porta da rua. Do calhau, mal se avistava o navio, larga-
vam dezenas de canoas com bomboteiros e mergulhanças. Era o Mundo ao encontro da Ilha. De
repente, a cidade ficava cheia de ingleses, em roupas exóticas, numa algaraviada de cor e negó-
40	 BRANDÃO, Raul, As Ilhas Desconhecidas, Lisboa, Perspectivas & Realidades, pp.90-9.
Rapazes da mergulhança
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
21
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
cios. Quem era aquela gente e para onde ia? E punha-me a pensar como seria o Mundo para lá
do Mar. Ao cair da tarde, depois de ter viajado por Roma, Veneza e Paris, com os bilhetes-postais
da minha madrinha embandeirando uma nave improvisada na cadeira de baloiço de pernas-pa-
ra-o-ar, ouvia três prolongados apitos. Era o Vapor do Cabo a despedir-se de nós. Lentamente,
desaparecia no mar. Com ele, toda a animação. E ficávamos mais tristes.”41
Noutra Memória de João Carlos Abreu, em Joana Rabo de Peixe, vemos igual importância dos vapores
do cabo:
“Os barcos faziam parte da nossa vida. Estabeleciam elos com países distantes e alimentavam
os nossos desejos de aventura, ao sabor da imaginação. § Quando fundeavam, nadávamos ve-
lozmente, como se fossemos alcançá-los. Quando partiam, fazíamos viagens irreais, através de
oceanos inexplorados. § Os mais imponentes eram os vapores do Cabo. Faziam as ligações entre
a Inglaterra e a África do Sul. Havia o “Cape Town Castle”, o “Pretoria Castle”, os passageiros
traziam mais dinheiro do que em sentido contrário. § Mal apontavam ao longe, os pequenos da
mergulhança gritavam de alegria. § - O vapor do Cabo está chegando! Vem de cima! § Entusias-
mados, corriam para as canoas e remavam com todas as forças. Quando chegavam ao pé dos
barcos, esticavam as cabeças e gritavam: § - Please, mony! § Surpresos, os passageiros atiravam-
-lhes moedas. Os pequenos desapareciam nas profundezas do mar e resssurgiam à superfície
com as moedas nas mãos. Apanhavam cinco ou seis ao mesmo tempo. Por vezes, disputavam
entre si o mesmo Penny. § Os espectadores rompiam em aplausos. Os “artistas” sentiam-se
orgulhosos e procuravam fazer números diferentes. Alguns deles, como o Búzio e o Zarolho,
41	 FRANÇA, Ricardo, 2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 43.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
22
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
subiam a bordo e lançavam-se das amuradas para o mar. § Quando o sol brilhava e as águas fica-
vam mais transparentes, assistia-se a magníficas espectáculos de acrobacia. Autênticos bailados
subaquáticos. Coisas de filmes! § Os pequenos eram verdadeiros herois, de formas atléticas e
movimentos elegantes, mergulhavam nas águas gélidas e exibiam as suas habilidades vezes
sem conta, para ganhar o pão de cada dia.”42
Tudo isto surgiu como resultado das alterações que foram acontecendo a partir do séc. XIX, a navegação
oceânica ganha um estatuto distinto, através da afirmação das companhias, que passaram a assegurar um
serviço regular de passageiros e carga entre diversos destinos europeus e o espaço colonial. Para garantir esta
regularidade dos serviços, surgiram os agentes que, nos diversos portos, funcionavam como intermediários e
prestavam todo o apoio necessário às embarcações. É por parte da Inglaterra que vamos ter o maior número
de companhias a navegar com regularidade entre os portos ingleses (Southampton43
, Bristol, Liverpool, Man-
chester, Edimburgo, Glasgow, Dublin) para o cabo da Boa Esperança, Natal, e África Oriental. A partir de 1943,
os vapores da Union Castle servem os portos de Southampton e Durban, com escalas em ambos os percursos
no Funchal. Quase todos os vapores provenientes destes portos faziam escala obrigatória na Madeira e, para
alguns, acontecia uma segunda nas Canárias44
. Com a Segunda Guerra, a companhia perdeu 6 dos 26 vapores,
mas, em 1953, aparece com 6 novos vapores, com uma tonelagem superior a 20.000 t. 45
O movimento destas embarcações entre a Madeira e o Cabo foi uma grande oportunidade para os
42	 ABREU. João Carlos, 1996, Dona Joana Rabo de Peixe, Lisboa, Éter, pp.80-81
43	 MCCUTCHEON, C. (2008). Port of Southampton. Amberley Publishing Limited.
44	 Cf. MINCHINTON, W. (1987). The Canaries as ports of call. Actas del VI Coloquio de Historia Canario-americano, 3, 273-300; HERNÁNDEZ, U. M.
(2004). Evolución del tráfico de buques en los puertos canarios 1880-1919. Tebeto: Anuario del Archivo Histórico Insular de Fuerteventura, (17), 457-482.
45	 ALDCROFT, D. H. (1965). The Depression in British Shipping, 1901–1911. The Journal of Transport History, (1), 14-23; KNIGHT, E. F. (1920). The
Union-Castle and the War, 1914-1919. Union-Castle Mail Steamship Company.; MILLER, W. H. (2001). Picture history of British ocean liners, 1900 to the present.
Courier Corporation; MALCOLM, I. M. (2013). Shipping Company Losses of the Second World War. The History Press.
DN. 30.12.1904, p.2
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
23
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
madeirenses saírem da ilha. A imprensa regozijava-se com esta presença, de forma que, a 4 de novembro
de 1897, o Diário de Noticias afirmava, com a passagem do Hawrden Castle, que “uns foram até ao Monte
e outros andaram em carros ou a pé visitando diversos pontos da cidade e fornecendo-se d’artigos da nossa
indústria”46
. Assim, para a Ilha e para os madeirenses, esta era uma nova via que se abria, da qual a Madeira
tirava grandes vantagens. Primeiro, com a abertura de mais um destino fácil de emigração, depois, pelas
oportunidades de negócio, nomeadamente com os passageiros em trânsito que adquiriam bordados e obras
de vimes (cf. Anexo quadro 5). Havia, inclusive, muitos passageiros em trânsito que permaneciam alguns dias
no Funchal. Alguns são referenciados na imprensa local47
. Ainda, no período da Primeira Guerra tivemos a
escala do contingente de militares sul-africanos que participou no conflito48
.
O bordado e o vinho tiveram entre os ingleses muitos divulgadores e apreciadores, daí a importância
natural que assume o “Madeira” na rota, até ao aparecimento do vinho sul-africano, a partir de princípios do
século XIX. O bordado aparece nas exportações em 190649
, mas foi na década de cinquenta e sessenta50
do sé-
culo XX que ganhou alguma dimensão nas exportações e no quotidiano das populações de maiores recursos.
O Funchal assumiu o papel de antecâmara das metrópoles e colónias europeias, acolhendo muitos dos
que circulavam nos dois sentidos. Dizia-se até que todos os que estavam de regresso à metrópole não dispen-
savam esta paragem de alguns dias para se habituarem ao clima europeu51
.
46	 DN, 4 nov. 1897, p.1.
47	 Em 1904 o Major General Stoford (Heraldo da Madeira de 31 de agosto, p.4), Styne ex-presidente do Orange (Heraldo da Madeira de 17 de setembro,
p.2); 1911 (DN, 8 de maio, p.1) Owen Philips gerente da Royal Mail/Union Castle Mail; 1912, P. Matews, redactor e proprietário do jornal South Africa
(DN.,25 de janeiro, p.1) e o pianista russo S. J. Paderenwski (DN, 22 de fevereiro, p.1).
48	 Cf. DN, 10 de outubro de 1915, p.1.
49	 Com 2 caixas de bordados (DN, 27 de setembro de 1906, p.3).
50	 Cf. Estatísticas publicadas no B. J. G. D.A. F.: 02(1964), p.14; 06(1964), p.14.
51	 Note-se que a 11 de dezembro de 1912 (Diário de Notícias, p.2) Julius Meyer, proveniente do Cabo com destino à Alemanha, permaneceu oito dias na
cidade.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
24
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Não devemos esquecer que o Funchal tinha uma função importante de apoio e abastecimento à nave-
gação com o fornecimento de água, víveres frescos, vinho e carvão, a partir de meados do séc. XIX. Segundo
Biddle, em 1896, o Funchal era “uma importante estação de abastecimento de carvão para a maior parte
das linhas dos navios de Inglaterra e do continente europeu para a África do Sul”52
. E, a Casa Blandy, como
consignatária e representante da companhia tratava na ilha todos os serviços de apoio à escala dos navios53
.
Sabemos, ainda, que alguns madeirenses foram assalariados da companhia, servindo como fogueiros a bordo
destes vapores. Em agosto de 191554
, regressaram à Ilha 14 fogueiros do vapor Walmer Castle, sendo rendi-
dos no Funchal por outros 14. Em 191655
, José Fernandes dos Santos trabalhava a bordo do Dovegan como
chegador, tendo falecido na viagem de Southampton.
	 DN, 1915.08.29, p.3 			 DN, 27.06.1916, p.2
A Madeira foi exímia na arte de bem receber, de forma especial, aristocratas e políticos. Em 190956
, o
Gen. Louis Botha; o príncipe Alberto Leopoldo da Bélgica, que depois foi rei, em viagem do vapor Amadale
Castle, ao cabo da Boa Esperança e ao Estado Livre do Congo. Recorde-se que o General Louis Botha (1862-
1919)57
é referenciado com frequência na imprensa madeirense, sendo relevada a sua missão. Daí o empe-
nho das autoridades com esta visita, na ida e no regresso, ao Funchal em 190758
e 190959
. Um outro Botha,
Pik Botha, antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros da África do Sul, em 1998, é recebido no Funchal pelas
autoridades regionais e emigrantes.
São inúmeros os casos dos britânicos que transitaram entre os dois portos e que aproveitaram o interva-
lo da paragem dos vapores para visitar o Funchal e serem mimoseados pela população e autoridades. Muitos
dos funcionários da colónia portuguesa de Moçambique também utilizavam, por vezes, estes vapores60
, antes
da abertura das rotas da companhia portuguesa em 1916.
Os primeiros navios a sulcarem os mares da Madeira com serviço regular organizado foram os da referi-
52	 BIDDLE, 1896, 101.
53	 Cf. Heraldo da Madeira, 15.09.1905, p.5.
54	 Diário de Notícias, 27 de junho de 1916, p.2.
55	 Diário de Notícias, 29 de agosto de 1916, p.3.
56	 Cf. DN, 4 de abril de 1907, p.1; id., 10.de abril de 1907, p.2; id., 16 de maio de 1907, p. 2.
57	 Cf. ENGELENBURG, F. V., 1928, General Louis Botha, J. L. Van Schaik BPK, Pretória;MEINTJES, Johannes, 1970, General Louis Botha A Biography,
Cassel, London; COETZER, Owen, 1996, The Anglo-Boer War: The road to Infamy, 1899-1900, Arms and Armour; FARWELL, Bryon, 1976, The Great
Boer War, Allen Lane, London.
58	 De acordo co o DN visitou o Monte e depois foi recebido pelo governador civil e comandante militar, que o acompanharam a bordo. Do Visconde
Cacongo recebeu uma “soberba corbeille de flores” (DN, 10.de abril de 1907, p.2.). Depois no DN de 21 de agosto de 1915 (p.1) temos um editorial
subordinado ao título “A Alemanha no Sudoeste Asiatico. O General Botha”.
59	 Cf. DN., 14 de julho de 1909, p.2; id., 25 de Setembro de 1909, p.2.
60	 Cf. DN, 10.5.1911, p.1.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
25
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
da Mala Real Inglesa, a Royal Mail Steam Packet Company61
, com destino às Índias Ocidentais, e os da Union
Castle Mail Steamship Company. O primeiro serviço de abastecimento de carvão no Funchal foi montado, em
1838, pelos Ingleses Jacob Ryffy e Diogo Taylor. A partir da déc. de 70 do séc. XIX, consolidou-se o predomínio
da navegação a vapor nas rotas transatlânticas, sendo imprescindível o serviço de abastecimento de carvão.
Assim, surgiram empresas apostadas neste serviço, primeiro, a firma Blandy Brothers, depois, em 1898, a
Cory Brothers Co. Limited e, em 1901, a firma Wilson Sons C. Limited. Mas, a partir de princípios do séc. XX,
os barcos da África do Sul passam a abastecer-se, no Natal, de carvão das minas sul-africanas, não precisando
escalar o Funchal no retorno, o que se refletiu, de forma negativa, na Madeira. Mesmo assim, isto não se
espelhou no movimento de passageiros em escala, tendo-se mesmo atingido, no período de 1902 a 1909, o
maior valor de escalas, com 126.000 passageiros contabilizados entre 1906 e 1909.
61	 Cf. Miller, W. H. (2017). Royal Mail Liners 1925-1971. Amberley Publishing Limited.
DN. 1915.09.05, p.2
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
26
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
A BORDO DOS VAPORES DO CABO
O movimento dos vapores do Cabo era uma presença constante para o quotidiano dos Funchalenses.
Poucos subiram a bordo, tirando os bomboteiros com permissão temporária ou os que seguiam viagem até
Cape Town ou Southampton.
A imprensa, nomeadamente o Diário de Noticias do Funchal, seguia atentamente o movimento destes
vapores, dando conta quase a diário do que sucedia a bordo e nas paragens na baía e porto do Funchal. Sa-
bemos das previsões de passagem no Funchal, dos atrasos por força de problemas com os temporais62
, na
origem do porto de partida63
, por greve dos operários portuários em Southampton64
, porque os vapores do
cabo eram tidos por pontuais65
, conhecemos as avarias e acidentes, que quebravam a rotina da rota66
e, acima
de tudo, sabemos notícias dos passageiros mais importantes.
Sabemos, ainda das mortes que ocorrem a bordo e que o destino do cadáver era o cemitério do mar67
.
Na verdade, eram necessárias medidas de precaução, sobretudo se a causa da morte fosse alguma doença
62	 Cf. Diário de Notícias, 31.10.1912, p.1.
63	 Cf. Diário de Notícias, 3.4.1906, p.2.
64	 Cf. Diário de Notícias, 14 e 27 de junho de 1911, pp.1.1.
65	 Ricardo Jardim (2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 44) recorda que “Mas vapores mesmo a sério, eram os da Union Castle, na carreira entre
Southampton e Cape Town. Tão regulares como o relógio da Sé.”
66	 Em 1905 (Cf. Diário de Notícias, 13 de julho, p. 1; Heraldo da Madeira, 13 de julho, p.1) uma explosão a bordo do Joanesburgh matou seis tripulantes. Em
1914 o Gloucester teve uma avaria nas máquinas no porto do Funchal, sendo substituído pelo Armadale (Cf. Diário de Notícias, 19 de janeiro de 1914, p.
2), depois em 1920 o Kinfaus foi impedido de encalhar junto ao arsenal de S. Tiago mas acabou por embater na galera Marga (Cf. Diário de Notícias, 13
de março de 1916, p.2).
67	 Em 1912 uma criança que faleceu no percurso do Cabo para o Funchal (Cf. Diário de Notícias, 24 de abril de 1912, p.1).Em 1916 (Cf. Diário de Notícias,
27 de junho, p. 2) Manuel Fernandes dos Santos, madeirense que trabalhava a bordo como chegador, morreu no percurso de Londres para o Funchal,
sendo lançado ao mar.
SAXON (1899-). Union Castle Line
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
27
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
contagiosa68
. Neste caso, havia que tomar especiais cuidados, provocando, naturalmente grandes transtornos
para os passageiros69
. Ou eram algumas situações anormais que quebravam a rotina a bordo, havendo registos
de prisões de madeirenses que viajavam em terceira-classe: em 191170
, Manuel da Nóbrega do Caniço e An-
tónio da Silva da Fajã da Ovelha são chamados a depor na polícia sobre um roubo em dinheiro. Noutro furto
sucedido em 1915,71
a bordo do Saxon, avisou-se o comércio local sobre o uso de papel-moeda nas compras.
As escalas dos vapores provocavam sempre algumas cenas hilariantes ou desestabilizadores da calma
que reinava no burgo. Em 190472
, chegou de Southampton, a bordo do vapor Kildonan, um casal desavindo.
O cavalheiro Robert Saxton desembarcou com as malas e a senhora, Alice Stephen, foi reclamar à polícia, aca-
bando depois por desembarcar e retornar a Londres. Em 1911, dois cidadãos ingleses, os irmãos Gastrede de
Manchester, sendo um delegado do Ministério Publico em Manchester e o outro pugilista, sobem ao Monte
e descem em carros de cestos, bebem vinho em demasia e acabaram por ser conduzidos à cadeia da cidade.
DO COMÉRCIO: ENTRE O BOMBOTE E AS EXPORTAÇÕES
Múltiplas razões fizeram com que o Funchal se afirmasse, a partir do séc. XVIII, como centro das trans-
formações sociopolíticas operadas de ambos os lados do oceano. O arquipélago da Madeira não podia alhear-
-se das mudanças políticas geradas pela difusão de novas ideias, na segunda metade de Setecentos. O seu
protagonismo deve-se a vários fatores: a vinculação ao império britânico, que é evidente no quotidiano e
devir histórico madeirenses dos sécs. XVIII e XIX, o fogo cruzado que se ateou entre o velho e novo mundo e
o papel ativo da Madeira no relacionamento com a comunidade inglesa.
No decurso do séc. XVII, o arquipélago firmou a vocação atlântica, contribuindo para isso o facto de os
Ingleses não dispensarem os portos e os vinhos insulares na sua estratégia colonial. Os atos de navegação de
1660 e 1665, corroborados por tratados de amizade como o de Methuen (1703), abriram caminho para que
as ilhas entrassem na órbita da influência inglesa. Aos poucos, a comunidade ganhou uma posição, por vezes
incómoda, na sociedade madeirense. A feitoria inglesa é uma realidade insofismável no séc. XVIII e contribui-
rá para firmar a vocação e protagonismo atlântico do porto do Funchal.
A partir da década de 70 do séc. XVIII e até aos princípios do século seguinte, os conflitos que tiveram
como palco os continentes europeu e americano alargaram-se ao Atlântico. Aliás, o oceano é um ativo pro-
tagonista das disputas entre os três principais beligerantes: Espanha, França e Inglaterra. Era permanente a
preocupação com a organização militar e a defesa da costa, porque o perigo espreitava no mar a qualquer
momento. A conjuntura de afrontamento levou à presença dos corsários, com forte incidência em dois mo-
mentos: o período que decorre entre 1744 a 1736, marcado pelo afrontamento de Inglaterra com a França e
Espanha; a época das grandes transformações do século, com a proclamação da independência das colónias
inglesas da América do Norte (e a consequente Guerra de Independência, até 1783) e a Revolução Francesa
em 1779, com as convulsões que se seguiram até 1815. A dimensão assumida pela guerra de represália está
bem patente nas presas. Perante o perigo da investida francesa, os Ingleses ocuparam a Madeira por duas
vezes, sendo esta atitude entendida como uma forma de preservar os interesses dos “súbditos de sua majes-
68	 Enquadra-se nesta situação a morte em 1916 de um passageiro da primeira classe por febre tifoide (Cf. Diário de Notícias,15 de janeiro de 1916, p.2).
69	 Em 1910 a epidemia colérica no Funchal, vedou a escala dos vapores, que volta a acontecer a partir de 27 de fevereiro de 1911 (Cf. Diário de Notícias, 27
de fevereiro, p.1). Em 1912 procedeu-se à desinfeção da bagagem de dois passageiros (Cf. Diário de Notícias, 3 de julho de 1912, p.2).
70	 Cf. Diário de Notícias, 2 de dezembro, p. 2.
71	 Cf. Diário de Notícias, 5 de setembro, p. 2.
72	 Cf. Diário de Notícias, 19 de novembro, p.3.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
28
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
tade” e de estabelecer uma barreira ao avanço francês além oceano. O corso, que incidia preferencialmente
sobre as embarcações espanholas e francesas, motivou uma resposta violenta das partes molestadas, como
sucedeu com a investida francesa contra os Ingleses em 1793, 1797, 1814.
A afirmação e controlo vital da vida económica e das relações externas levaram à conquista de novas
regalias e a afirmação no plano político, por meio de tratados ou de uma interessada ligação, às autoridades
da Ilha e do país. A feitoria, ao nível local, as autoridades consulares, no reino e na ilha, conjugavam-se para o
mesmo objetivo. A situação dos Ingleses era especial. Desde o séc. XVII, a feitoria inglesa definiu um estatuto à
parte para a comunidade, que lhe permitia ter conservatória e juiz privativo. O espírito de união da feitoria, que
persistiu até 1842, favoreceu a posição na sociedade madeirense e demarcou o fosso com os naturais da Ilha.
Com o tratado de 1661, abriram-se, de novo, as portas para o domínio inglês do mercado insular, mercê
de medidas de privilégio e da isenção dos direitos de exportação do vinho. Em 1689, foi-lhes concedida a
faculdade de se fixarem com casas comerciais de vinho, comestíveis e manufaturas, fazendo entrar na Ilha
os artigos de luxo. Com o Tratado de Methuen, em 1703, pôs-se cobro à situação criada em 1684, ao mesmo
tempo que se afirmou a dependência do mercado local ao mercado inglês. Os portugueses tornaram-se con-
sumidores dos panos ingleses e fornecedores de vinho ao mercado inglês. Segundo A. Rodrigues de Azevedo,
o Tratado trouxe para a Madeira a mais apertada vassalagem ao mercantilismo britânico. Daí que a entrada
da África do Sul na órbita colonial inglesa se assuma como algo importante para a Madeira.
Desde as últimas décadas do séc. XVIII que temos notícia da exportação do vinho para o Cabo da Boa
Esperança: em 1792, são 6 pipas e, em 1796, tivemos 18 pipas. Depois, entre 1823 e 1847, apenas 41 pipas de
vinho foram carregadas por João Cairns, Diogo Bean, João Caetano Jardim, Scott Pringle With & Ca., Richard
Dover, Newton Gordon Murdoch & Scott, Grouth & Holway73
. Outra informação avulsa aparece no séc. XX
(nos anos de 1904, 1905, 1907 e 1912), destacando a solicitação de vinho para Durban, entre 1904 e 1907,
num total de 1 quartola, 32 quartos e 36 caixas de vinho Madeira. (Ver anexo: quadro 1) Como se pode verifi-
car, não se tratava de um mercado muito significativo, em termos do consumo do vinho Madeira, tanto mais
que, a partir do séc. XVII, com os huguenotes franceses, esta cultura chegou ao cabo da Boa Esperança, sur-
gindo no século XIX como concorrencial do Madeira.74
O vinho do Cabo tornou-se concorrente do Madeira no
mercado inglês desde 1815, retirando-lhe lugar, a partir de 182575
. Mesmo assim, o vinho Madeira continua
a aparecer no mercado da África do Sul, mantendo um grupo de apreciadores ingleses.
Entre finais do séc. XIX e princípios da centúria seguinte, a economia foi muito valorizada com esta
nova demanda de produtos pelos forasteiros, mercadoria muitas vezes oferecida a bordo, pelos chamados
bomboteiros, que tiveram um papel muito importante junto deles. Pelas suas mãos, saíram todo o tipo de
bordados e obras de vimes, produtos que acabaram por estar limitados pelas barreiras alfandegárias nos por-
tos de destino. Em 1928, passou a existir uma taxa portuária, no valor de 3 a 7 xelins, para produtos saídos,
como cadeiras ou sofás de vime, provocando uma reação veemente da Câmara de Comércio e Indústria da
Madeira, 23 de janeiro. Este comércio de obras de vime era frequente com a África do Sul desde finais do séc.
XX, registando-se a saída de 96 t, no ano 1896. Depois disso, entre 1904 e 1912, aparecem registos sobre a
exportação de vime e obras de vime. Assim, temos 111 molhos de vime, em 1411 atados de obras de vime
e 3050 volumes em obra de vime. Este movimento, nomeadamente com a Cidade do Cabo, transformava a
vida do Funchal, que vivia quase exclusivamente para o porto. Os jornais anunciavam diariamente tudo o que
deveria acontecer, relativamente ao movimento de navios na baía e todos os madeirenses estavam avisados
do movimento dos vapores do cabo.
73	 Cf. VIEIRA, Alberto, 2003, A vinha e o vinho na história da Madeira, séculos XV-XX, Funchal, CEHA, pp. 266, 394, 524.
74	 Cf. VIEIRA, 2003, pp. 250, 380, 394, 452; P. P. Câmara, Breve Notícia Sobre a Ilha da Madeira, Lisboa, 1841, in Alberto VIEIRA, História do Vinho da Ma-
deira. Documentos e Textos, Funchal, 1993, p. 378.
75	 Cf. DN., 15 de Setembro de 1905, p.1; Vieira, Alberto, 2003, A Vinha e o Vinho na História da Madeira, Funchal, CEHA, p.394
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
29
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
À passagem dos vapores do Cabo, a economia revigora. O período de paragem dos vapores para refresco
da embarcação pelos empregados da Casa Blandy76
, tomada e desembarque de passageiros é aproveitado
pelos que estão em trânsito para visitar alguns locais da cidade e arredores e adquirir algum dos produtos aos
vendedores, no mar e em terra. A imprensa dá conta das necessidades diárias de um destes vapores, que im-
plicavam estes refrescos em diversos portos. O Funchal era um deles, que manteve esta vocação até à década
de sessenta do século XX. A falta de embarcações e de movimento de passageiros no porto causa apreensão,
porque a economia fica parada e não se vendem produtos77
. Mas o aparecimento súbito de uma esquadra
pode ser motivo de apreensão e de dificuldades, com o açabarcamento dos produtos pelos vendedores para
aproveitar a oportunidade78
.
76	 Cf. DN, 15 de setembro de 1905, p.5. Em 1906 (Cf. DN, 23 de maio de 1906, p.2) este serviço de refresco às embarcações comerciais como as esquadras
militares, é questionado pelo fato de provocar a carestia de vida na cidade.
77	 DN., 21 de dezembro de 1894, p.1. A imprensa refere as necessidades de provimento de um paquete: navios da Deutschland (DN, 9.de novembro de
1904, p.2; id., 7 de setembro de 1906, p.2), ou do Normandie (DN., 30 de novembro de 1934, p.1).
78	 DN., 16 de novembro de 1895, p.2; id., 23 de maio de 1906, p.2.
DN, 22.7.1904, p.2
DN.31.12.1903, p.2
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
30
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
A atividade comercial com o cabo da Boa Esperança não se limita ao vinho e alarga-se a uma diversidade
de produtos, alguns apenas com destino a este porto. Disto nos fala Michael Comport Grabham (1840-1935),
casado com Mary Anne Blandy (1834-1914): “Exportam hortaliças verdes em grande quantidade, as bananas
formam um negócio importante; e é tal procura de ovos para o cabo de Boa Esperança, que esta pequena
mas admiravelmente fértil Ilha, chega a produzir e empacar, em cesto indígenas, muito bem-feitos, e exportar
mais de 200.000 ovos por semana, para povos distantes inúmeras léguas”79
. Sobre os ovos, situação exce-
cional nas exportações madeirenses, temos testemunho na imprensa nas exportações da Alfândega apenas
entre 1900 e 1907, com a saída de 38658 cestos com ovos. (ver anexo 2). O Cabo da Boa Esperança parece ter
sido o mais importante destino nesta exportação de ovos madeirenses, podendo-se juntar ainda o caso da
cidade de Swakopmond na Namíbia, com uma colónia alemã desde 1892 e um importante eixo de afirmação
deste império na costa ocidental africana80
. Todo este movimento de mercadorias e passageiros acaba por ser
perturbado com as guerras mundiais (1914-1919 e 1939-45) com consequências evidentes para a economia
funchalense, tão dependente deste movimento dos vapores. Há restrições na saída de qualquer produto
alimentar, refletindo-se no serviço de apoio à navegação oceânica e exportações81
. Esta medida atinge a ex-
portação dos ovos que é proibida em 191582
. A última informação que a imprensa regista da exportação de
ovos para a África do Sul reporta-se a 14 de dezembro de 190783
.
O mercado da África do Sul foi ainda abastecido com diversas frutas, nomeadamente figos, peros e
banana. Dos primeiros, temos a saída, em 6 de janeiro de 190584
, de seis caixas de figos, que, nesta altura,
só podem ser secos. Surge, ainda, a fruta madura da Ilha, fundamentalmente peros – tivemos a quantia de
160 cestos e 1006 caixas de peros, a que se juntam caixas com a identificação de frutas, em 7339 caixas e
em 4051 cestos (ver anexo quadro:1). Temos, ainda,em 1904, a saída de 645 caixas e 110 grades de cebola e
12 caixas e 6 cestos de alhos, que, pela informação que temos de Demerara, deveria ser para a alimentação
dos madeirenses, que atribuíam grande valor a estes ingredientes na sua dieta alimentar nesta época. Por
outro lado, sabemos que, em 1906, seguiram duas grades de bananeiras para o Natal. O mesmo poderia ter
sucedido com as parreiras madeirenses. Mas a grande força das exportações estava nos artefactos de obra
de vimes, que surgem como 7713 atados, 5236 volumes de obra e 46 molhos de vimes (ver anexo quadro 1).
79	 GRABHAM:1901, 29.
80	 A informação deste comércio está documentada entre abril de 1905 e março de 1907. Cf. DN, 14 de abril de 1905, p. 2; id., 7 de junho de 1905, p. 3; id.,
8 de setembro de 1905, p. 2; id., 1 de outubro de 1905, p. 3; id., 10 de fevereiro de 1906, p. 3; id., 8 de abril de 1906, p. 2; id., 9 e 31 de maio de 1906, pp.
3, 3; id., 11 e 24 de julho de 1906, pp. 3, 3; id., 8 e 24 de agosto de 1906, pp. 3, 3; id., 11 e 26 de setembro de 1906, pp. 3, 3; id., 11 e 25 de outubro de
1906, pp. 3, 3; id., 10 de novembro de 1906, p.3; id., 13 de dezembro de 1906, p.3; id., 7 de março de 1907, p. 3.
81	 A carestia de vida com a guerra atinge a cidade (Cf. DN, 22 de agosto de 1914, p.1; id., 19 de agosto de 1914, p.3) e obriga a várias medidas pelas auto-
ridades (cf. DN, 21 de outubro de 1915, p. 2 e 3; id., 12 de julho de 1917, p. 2).
82	 Cf. DN, 15 de junho de 1915, p.1; id., 15 de setembro de 1915, p.2; id., 19 e 21 de outubro de 1915, p. 2 e 3; id., 3 e 13 de dezembro de 1919, p.3, 3;
83	 Cf. DN, 14 de dezembro de 1907, p.3.
84	 DN, 6 de janeiro de 1905, p.2.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
31
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
DA MIRAGEM DAS BARRAS DE OURO E PENAS DE AVESTRUZ
Certamente que a presença destes produtos nos vapores que vinham do Cabo, rumo a Inglaterra não
eram visíveis aos passageiros e tão pouco aos funchalenses, mas a notícia da sua passagem nas colunas do
Diário de Noticias fazia alimentar a cobiça e sonhos de uma riqueza fácil. Para o período de 1911 a 1914, foi
noticiada a passagem de 24834 barras de ouro e 2869 caixas de penas de avestruz (ver anexo 3 e 4)
Fotografia de uma fazenda de avestruzes na África do Sul é parte da Coleção de Frank e Frances Carpenter da Biblioteca
do Congresso. Frank G. Carpenter (1855-1924)
DN. 1911.08.30, p.2
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
32
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
MOBILIDADES: ENTRE A LEGALIDADE E CLANDESTINIDADE
A emigração foi uma constante da sociedade madeirense, na segunda metade do século XIX, sendo
alimentada pelas incessantes solicitações do mercado internacional da mão-de-obra, assim como pelas difí-
ceis condições de vida dos madeirenses provocadas pela crise económica, ou pela forma opressiva como se
definiu o sistema de propriedade da terra, através do contrato de colonia. A emigração era assim considerada
a única fuga possível à fome como a esta servidão. No século XIX as condições não foram favoráveis ao madei-
rense. A crise do comércio e produção do vinho pautou a conjuntura económica, provocando crises de fome.
A escalada da emigração continuou, na última década do século XIX e princípios do XX mantendo-se os países
de destino, com especial destaque o Brasil e Estados Unidos. A grande depressão dos anos trinta levou ao encerra-
mento das portas de alguns países, enquanto se abriram outros novos, como a África do Sul, e reabriu-se, em 1939,
o Brasil. As duas guerras mundiais (1914-18, 1939-45) provocaram nova leva de emigrantes. O Brasil continuou a
ser um dos destinos preferenciais da maioria dos madeirenses, mas as opções alargaram-se a outros mercados
recetivos de mão-de-obra. Nos anos de 1936 e 1948, tivemos a emigração orientada pela companhia Shell para o
Curaçau que permitiu a saída de muitos madeirenses. De acordo com José Fernandes Moreira da Cunha, a Madeira
teria enviado para aquele destino 7734 emigrantes, entre 1937 e 1940.
			 DN.-14.10.1902, p.2
DN.- 29.1.1897, p.2
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
33
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Muitos destes homens deram o salto para a Venezuela que, conjuntamente com o Canadá, Austrália,
América do Sul e as colónias portuguesas de Angola e Moçambique foram os novos destinos. As sequelas
económicas da segunda guerra mundial fizeram-se sentir em toda a ilha, mas de modo especial no norte.
Deste modo, quando se abriram as portas da emigração na América, nomeadamente no Brasil, Venezuela
e África do Sul, a saída foi geral. O recrutamento de emigrantes contou com o apoio do Governo Civil e dos
consulados no Funchal, que atuavam como angariadores de potenciais emigrantes. A Venezuela manteve,
desde princípios do século XX até 1958, uma política de portas abertas o que permitiu a emigração de muitos
europeus e, no caso português, de um grupo importante de madeirenses. Em 1960, a população portuguesa
na Venezuela era superior a 40.000, sendo constituída na sua maioria por madeirenses. Nos anos cinquenta,
este foi o principal destino da emigração madeirense, tendo acolhido 14.424 emigrantes da ilha. A presença
madeirense alargou-se também a outros quadrantes, sendo de salientar a África do Sul e Austrália. No século
XIX, a rota regular dos vapores do cabo que escalavam o Funchal permitiu a definição de um novo rumo para
a emigração madeirense. Mas esta presença torna-se mais notada a partir de 1904 no sector da pesca, mas
foi nos anos cinquenta que este destino ganhou dimensão, tendo saído 5118 madeirenses com esse destino.
As décadas de cinquenta e sessenta foram momentos de forte imigração tendo como principais destinos
a Venezuela, Brasil, África do Sul, Estados Unidos, Canadá e Austrália. A crise que envolveu a ilha lançando a
mão-de-obra para o desemprego, as dificuldades de recrutamento de imigrantes no velho continente, onde
eram necessários na frente de batalha, transformou a Madeira num centro importante de recrutamento de
homens para as atividades da Shell no Curaçau, ou para o incremento da indústria brasileira, venezuelana e
sul-africana. Os dados oficiais disponíveis atestam da evolução destes rumos da emigração madeirense após
a Segunda Guerra Mundial e evidenciam que os destinos da emigração madeirense se diversificaram de acor-
do com a demanda de mão-de-obra e as oportunidades oferecidas pelos principais mercados de trabalho.
DN, 8.9.1904, p.2
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
34
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
O Brasil manter-se-á como um destino preferencial, associando-se, depois, Demerara e, no século XX,
a África do Sul, o Curaçau e a Venezuela. No ano de 1904, a África do Sul é considerada a “preferência dos
nossos emigrantes.”85
Daí um movimento forte de emigrantes e a pressão dos clandestinos, que esbarram
com as limitações impostas pelas autoridades e aumentam as exigências e fiscalização das autoridades sul-
-africanas, gerando alguma tensão na rota e uma grande preocupação para os madeirenses. E, numa altura
em que fechara o mercado de Demerara, ao aumentar a pressão do movimento migratório sobre a África do
Sul, estas dificuldades em Durban e Cabo não vinham a calhar para os insulares. Daí a apreensão na rota e as
notícias de algumas situações86
. É nesta altura que a rota secundária pela Beira e Lourenço Marques ganha
mais importância., assumindo-se como a rota mais importante dos clandestinos madeirenses.
EMIGRAÇÃO MADEIRENSE. 1945-1979
Destino 1945-49 1950-59 1960-69 1970-79
Brasil 3.279 22.233 4.534 497
EUA 726 290 326 1.202
Canadá 249 412 763
Venezuela 2.150 15.904 22.833 15.758
África do Sul 2.526 5.118 579 683
França 31 1.017
Alemanha 2 51
Antilhas Holandesas 2.115 129
Outros 823 519
Total 11.619 44.442 28.717 5.788
85	 Cf. DN., 6 de abril de 1904, p.1. Atente-se que entre Janeiro e Fevereiro de 1903 tivemos 47 passaportes para o Cabo e 26 para Moçambique. (DN., 1
de junho de 1904, p.1). Há que ter em conta que o passaporte para Moçambique tinha um custo mais baixo, daí que “muitos destes pedem passaporte
para Lourenço Marques por lhes sahir mais barato, e ficam no Cabo”, mas acabam por concluir a viagem nesta primeira paragem no Cabo. (id., p.1)
86	 Cf. DN., 17 de março de 1904, p.2; id., 6 de abril de 1904, p.1;id., 25 de maio de 1904, p. 1; id., 1 de junho de 1904, p.1; id., 23 de junho de 1904, p.2; id.,
17 de agosto de 1904, p.2.
DN. 1914.07.09, p.1
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
35
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
ÁFRICA DO SUL
H M TOTAL
1945 139 63 202
1946 70 21 91
1947 21 7 28
1948 177 78 255
1949 88 75 163
1950 128 91 219
1951 222 100 322
1952 192 114 306
1953 174 95 269
1954 373 125 498
1955 602 243 845
1956 699 330 1029
1957 307 247 554
1958 308 201 509
1959 215 352 567
1960 317 181 498
1961 699 217 916
1962 383 179 562
1963 96 128 224
1964 275 332 607
1965 160 206 366
1966 116 124 240
1967 142
1973 148
1974 207
1975 76
1976 73
1977 34
1978 33
1979 79
1980 33
1982 9
FONTE: Recolha nossa das fontes estatísticas, BESSA, 2009.
DN. 1951.06.21, p.3 DN.1951.06.10, p.4DN.1914.06.11, p.1
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
36
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Que importância devemos atribuir a estes valores, quando esta emigração na segunda metade do século
XX foi marcada por fugas e chegadas clandestinas? A emigração madeirense para a África do Sul, por força
de contingências específicas, que vedavam muitas vezes aos madeirenses uma entrada legal no país, optou,
em muitos casos, pela clandestinidade. Daí que os números oficiais estejam muito aquém da realidade desta
mobilidade madeirense para aquele país.87
A título de exemplo registe-se que, em 1950,88
são dados como
ilegais 900 madeirenses e destes apenas 265 se haviam registado para receberem os papéis do governo que
davam abertura à sua legalização.
DN.-29.1.1897, p.2
Em janeiro de 189789
, foram detidos, no vapor Trojan, seis madeirenses, todos naturais do Estreito da
Calheta. Em setembro de 190390
, um rapaz, João Gonçalves Serrão da Ponta do Pargo e dois da Calheta foram
repatriados pelo vapor Norman por ter embarcado de forma clandestina. Por ser praça da segunda reserva,
foi entregue à autoridade militar. Depois, em julho de 190491
, há notícia de que o madeirense, Manuel de
Abreu, da Tabua, que fora cabo de polícia e intérprete na administração do concelho de Lourenço Marques,
arranjava, por 5 a 30 libras, passaportes falsos para a saída de madeirenses para o Transval, tendo-se desco-
berto a situação. Em julho de 1911, um outro madeirense, com 12 anos de emigrante, foi expulso do Cabo
por aí estar estabelecido com “casa suspeita”.
Em meados do século XX, a rota da emigração clandestina para a África do Sul tinha em Lourenço Mar-
ques e na Beira um eixo fundamental. Poderia navegar-se nos vapores do Cabo, mas a viagem prolongava-se
até à colónia portuguesa de Moçambique, donde se alcançava clandestinamente a África do Sul. Desta forma,
Moçambique era, para muitos madeirenses, a terra do “salto para a África do Sul”92
. Normalmente, esta rede
cobrava oito contos de reis, mas este serviço clandestino poderia chegar aos 30 contos. Nas décadas de cin-
quenta e sessenta, esta situação dos emigrantes clandestinos era um problema e surgia, frequentemente, na
imprensa madeirense, fazendo eco da de Lourenço Marques. Em 1950, foram 900 ilegais, em 196293
,foram
outros 25 e, em 1968, tivemos outros 300 madeirenses nessa situação94
. Em 196095
, dá-se conta da prisão de
87	 Atente-se à informação da imprensa local e a alguns estudos com Glaser (2010, 2012, 2013).
88	 DN., 6.VII.1950, p..6.
89	 DN., 29 de janeiro de 1897, p. 2. São eles: Manuel Pereira Serrão, solteiro, António Gonçalves Salgado, casado, Manuel Lourenço, Solteiro, Domingos
Lourenço, solteiro, João Luís, casado.
90	 DN., 17 de setembro de 1903, p. 2.
91	 DN., 8 de julho de 1914, p.1.
92	 DN, 18.XII.1960, p. 4
93	 DN., 3. X.1962, p.1.
94	 DN. 20.VII.1967, pp.1-3.
95	 DN., 20.IX.1960.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
37
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
300 madeirenses que vieram a salto para a África do Sul. A isto junta-se um grupo de 31 que foram capturados
na fronteira de Ressano Garcia, num camião onde se incluíam 9 menores. Todos foram condenados a três
meses de prisão e depois expulsos a Moçambique. Todavia, da parte do governo sul-africano, em diversos
momentos, nota-se alguma tolerância, dando-se, em 1948 e 1960, licença temporária de três meses para a
sua legalização96
.
96	 Idem.
DN. 1914.07.09, p.1
DN. 5.12.1894, p.1 DN. 1951.01.18, p.4 DN. 13.VIII.1905, p.2
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
38
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
A pressão da emigração na segunda metade do século XX e o interesse manifestado pela República
Centro Africana levou a que o Governo Civil interviesse, coordenando e apoiando a saída de alguns grupos
de madeirenses para a agricultura e a pesca, ficando. os madeirenses conhecidos por estas duas atividades.
Em 196797
, a agricultura parecia ser a marca identitária do madeirense que adquire um lugar de destaque
no mercado das hortaliças e da fruta. Os primeiros 25 pescadores foram contratados em 195198
, preparan-
do-se as mesmas empresa para contratar mais 2499
. Em 1959100
, tivemos mais um grupo recrutado entre os
pescadores de C. Lobos, Caniçal, Machico, Madalena do Mar, Paul do Mar, Ribeira Brava e Funchal. Depois,
em 1962101
, seguiu outro grupo, recrutado nas mesmas localidades. No caso destes pescadores, as condições
eram muito favoráveis, pois não tinham quaisquer despesas com a documentação e transporte. Entretanto,
de janeiro a junho de 1977, temos a informação de um pedido de pescadores madeirenses para a safra do
atum.
Os livros de passaporte, de que temos registo desde 1872 até 1915102
, testemunham os pedidos de
passaporte por parte de 962 madeirenses (362 entre 1872 e 1900 e de 600 entre 1901 e 1915), o que revela
ter havido uma forte incidência de pedidos nos primeiros anos do séc. XX. As solicitações são feitas a partir
do Estreito da Calheta, Calheta, Prazeres, Fajã da Ovelha, Jardim do Mar, Canhas, Paul do Mar, Ponta do Sol,
Ponta do Pargo, R. Janela, Porto Moniz, Machico, Gaula, Estreito de Câmara de Lobos, Caniço, Boaventura,
Camacha e das diversas freguesias do Funchal (Monte, São Gonçalo, São Pedro, Santa Maria Maior).
A partir de 1878, houve diversos cidadãos sul-africanos que pediram o passaporte, por razão da sua
estância temporária, em escala, na Ilha. O primeiro que temos registado é “Mrs. Duncan”103
. No séc. XIX, a
maioria dos registos é para o Cabo da Boa Esperança; apenas em 1896, há registos de outros locais, em con-
creto, Natal e, em 1900, Durban. A partir de 1901, passa a definir-se o destino como África do Sul, surgindo
ainda outros: Transval (1910-1916), novamente Natal (1902-1915) e Durban (1900, 1912).
Em 1901, manifestaram o interesse de sair Agostinho de Agrela Helena, Francisco Gomes, Agostinho
Ferreira Neto, Domingos Teixeira, Francisco Gonçalves Cabeleira, João da Câmara, João Rodrigues Faias, João
de Sousa Júnior, João Sardinha Branquinho, Manuel Afonso Jardim, João Fernandes Camacho, António de
Agrela, João Rodrigues Faias, Agostinho Ponte Santo António, João Rodrigues Jardim, João Nunes e outro
com o mesmo nome, também do Paul do Mar, Manuel de Agrela, Manuel Ferreira Gomes, Manuel de Agrela
Rei Júnior, Manuel Correia e sua mulher Philley Correia, Manuel Ferreira Ferro, Manuel Gonçalves Borragei-
ro, Manuel Gonçalves da Costa, Manuel Gonçalves Guerra, Manuel Rodrigues Sequeira, Manuel de Sousa
Alegria, António de Abreu Pestana, Maria Elisa Figueiroa Silvado, Ilda, sobrinha de D. Maria Elisa Rodrigues,
Tomé António de Abreu, Maria da Conceição de Sousa, Olímpia Fernandes, Manuel dos Santos da Câmara,
Agostinho Joaquim com sua mulher Narcisa Joaquina, António de Abreu Pestana, António de Agrela, António
Fernandes Pateta.
A maioria é proveniente da Calheta e Estreito da Calheta, o que parece indiciar uma emigração em gru-
po, que poderá ter, na origem, algum angariador. Temos informações de que o mesmo nome Agostinho de
Agrela Helena, denominação pouco vulgar, surge, em 1903, a pedir autorização para embarcar, de novo, com
97	 id., 21.VIII.1967, p. 1-3.
98	 id., 28.I.1951, p.1.
99	 id., 26.X.1951, p. 1.
100	 id., 31.V.1959, p. 1.
101	 ID., 14.3.1962, pp.1-4.
102	 Cf. Arquivo Histórico da Madeira, 2000, Índice de Passaportes, 1872-1900. Boletim do Arquivo Regional da Madeira. Série de Índices de Passaportes-1, Funchal, Arquivo
Regional da Madeira; Arquivo Histórico da Madeira, 2005, Índice de Passaportes, 1901-1915. Boletim do Arquivo Regional da Madeira. Série de Índices de Passaportes-2,
Funchal, Arquivo Regional da Madeira.
103	 Arquivo Histórico da Madeira, 2000, Índice de Passaportes, 1872-1900. Boletim do Arquivo Regional da Madeira. Série de Índices de Passaportes-1, Funchal, Arquivo
Regional da Madeira; p.19.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
39
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
destino ao Cabo da Boa Esperança, em 1907, em 1912, para os EUA e, em 1909, para o Brasil. Por outro lado,
assinala-se o número dos oriundos do Jardim do Mar e Paul do Mar, o que poderá indiciar o facto de se terem
dedicado à atividade piscatória, contribuindo para a importância dos madeirenses neste sector. Surgem ainda
informações de que, neste grupo, se inclui gente da Ponta do Sol, Ponta do Pargo, Prazeres, Caniço e Fajã da
Ovelha.
Para o período de 1872 a 1915, temos uma emigração madeirense de origem diversificada, não obstante
com forte incidência no Estreito da Calheta, com 178 pedidos, seguido de Prazeres, com 79 e Fajã da Ovelha,
com 74. Para o período de 1872 a 1900, este movimento parece ter apenas como destino o cabo da Boa Es-
perança, pois, dos 260 pedidos de passaportes, só 2 foram para Durban, em 1900104
. Já no novo século, foram
pedidos passaporte para a República Sul-Africana: o destino do Cabo continua a ser maioritário, mas temos
27 pedidos para Natal (1902, 1906, 1911, 1913, 1914 e 1915), 4 para Joanesburgo/Transval (1911 e 1913), 29
para Transval (1906, 1911, 1912, 1913 e 1914) e 1 para Durban (1912105
).
Alguns episódios marcaram de forma estranha esta mobilidade madeirense para a África do Sul, entre fi-
nais do séc. XIX e princípios do seguinte. A 17 de outubro de 1894106
, saiu do Funchal, a bordo do vapor Scott,
Maria Júlia Rodrigues, para se juntar ao marido no Cabo, mas, um dia antes da chegada, atirou-se ao mar e
morreu. No mesmo sentido, a 27 de dezembro de 1905107
, António Baptista, após sete anos na África do Sul,
decidiu fazer uma surpresa à família, mas, ao chegar a casa, na Camacha, encontrou a esposa morta, tendo o
falecimento ocorrido momentos antes da sua chegada.
Em princípios do século XX, a África do Sul estabelece mecanismos de entrada de qualquer emigrante.
Assim, a entrada no Cabo obrigava a alguns requisitos: “não ser analphabeto, possuir umas certas habilita-
ções literárias e meios pecuniários para a sua subsistência…”108
. Ora a maioria dos madeirenses não preenchia
estas condições, obrigando-se a tentar uma viagem como clandestino a bordo dos navios que escalavam a
Madeira, ou então a viagem até Lourenço Marques, entrando, clandestinamente, por terra. Recorde-se que,
em 1909109
, dos 8436 emigrantes com origem nas ilhas, apenas 1972 sabiam ler, dado revelador de que a
maioria era analfabeta, não tendo possibilidade legal de acolhimento na África do Sul110
. Atente-se ao facto
de que a Union Castle aparece, desde 1904111
com escalas na Beira e em Lourenço Marques, o mesmo suce-
dendo com a Companhia Nacional de Navegação que, a partir de 1906112
tinha escala no Cabo, na viagem de
destino à Beira. Esta situação favoreceu essa rede de emigração clandestina, que tinha no Funchal e em Mo-
çambique protagonistas que asseguravam o serviço aos madeirenses analfabetos. Consideramos, também,
que os clandestinos deveriam contar com alguma organização de apoio nas embarcações inglesas, em ligação
com engajadores funchalenses. Com vinte libras, estava garantido o acesso a bordo dos clandestinos113
. De-
pois, ficavam entregues à sorte, mas o processo acabava sempre à chegada com a prisão e o repatriamento.
104	 Id., p. 95 e 464. Refere-se a Carolina de Abreu, criada de Cândida Rodrigues, do Estreito de Câmara de Lobos.
105	 Id., p. 127. Refere-se a João de Gouveia da Fajã da Ovelha.
106	 DN, 5 de dezembro de 1894, p.1.
107	 DN., 4 de janeiro de 1905, p.1
108	 DN., 19 de novembro de 1903, p.1. Referem-se 22 madeirenses que havia tentado entrar no Cabo, mas por falta destes requisitos a companhia Union
Castle teve de pagar ao Governo do Cabo 1.200 libras. Depois foi o caso de cinco rapazes, que tiveram de retornar à ilha, assumindo a Companhia os
custos da situação. (Cf. 21 de novembro de 1903, p. 1).
109	 Cf. DN., 2 de março de 1912, p. 2. Aqui, ainda se comenta que “A miséria intelectual do emigrante português é, pelo menos, igual à sua miséria material.”
110	 A forma como se processava o movimento de venda de produtos regionais aos passageiros em trânsito, através dos bomboteiros, das suas canoas no
mar, propiciava esta possibilidade. Cf. VIEIRA, Alberto, 2016, Bombote e Bomboteiros, in Aprender Madeira, (on line), Disponível na Internet em:
http://aprenderamadeira.net/bombote-e-bomboteiros/. Consulta a 13.10.2018; FARIA, Cláudia e ALVES, Graça, “Atividades Sócio-Poéticas: o Bom-
bote, a Mergulhança”, Anuário 2013, Centro de Estudos de História do Atlântico, Funchal, 2013, pp. 261-279.
111	 Cf. DN., 7 de abril de 1904, p.1; id., 22 de julho de 1904, p.2; id., 26 de agosto de 1904, p.2.
112	 Cf. DN, 14 de dezembro de 1906, p. 2, por ordem ministerial. As informações da imprensa referem esta escala. Cf., id., 24 de fevereiro de 1916, p.4; id.,
12 de março de 1931, p. 5.
113	 Cf. DN., de 26 de Novembro de 1889, p. 2. Sabemos disto pelo processo não concretizado da fuga de João Mendes da Madalena.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
40
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
O julgamento por esta situação poderia conduzir a uma multa de 20 libras ou três meses de prisão, como
sucedeu em 1897114
a João Vieira.
Para obstar esta onda de emigração clandestina, surgiu a polícia de emigração distrital que, a partir de
julho de 1904115
, passou a fiscalizar a bordo116
, os navios em escala. A imprensa assinala diversos aconteci-
mentos relacionados com tentativas frustradas de saída para diversos destinos, incluindo a intrusão ilegal a
bordo dos vapores do Cabo: em 1897117
, foi apanhado José Vieira que, por esta via, tentava seguir “à procura
de fortuna”, mas não teve sorte acabando descoberto e julgado a pagar multa de 20 libras ou três meses
de prisão, gorando-se a intenção. A 20 de agosto de 1902118
, a bordo do vapor Carisbrook Castle, de quatro
rapazes que pretendiam viajar para a África do Sul, apenas um, José Fernandes de S. Martinho foi preso,
“porque os outros se evadiram a tempo, saltando para as barcaças onde conseguiram pôr-se fora do alcance
da polícia.” Depois, em outubro do mesmo ano, outros dois rapazes foram encontrados a bordo de um va-
por do Cabo119
. Em 1904, António de Freitas Ponte, da Calheta “foi detido por haver desconfiança de querer
embarcar clandestinamente para o Cabo da Boa Esperança andando fugido ao recenseamento militar”120
. No
verão, um rapaz sem passaporte veio preso de regresso ao Funchal, mas, ao chegar à baía, atirou-se ao mar
e fugiu121
. A questão do recenseamento e serviço militar eram uma importante condicionante para os jovens
que queriam emigrar. Em 1914122
, Constantino de Castro para poder sair com destino ao Cabo, teve de entre-
gar fiança na Administração do Concelho, uma vez que era soldado reservista. Já em 1918123
, José Coelho de
Santa Cruz foi apanhado indocumentado a bordo do vapor Kenilworth Castle com destino ao Cabo.
Desta forma, refratários e clandestinos são uma preocupação para as autoridades e a Union Castle. O
princípio do século XX foi difícil para os madeirenses na África do Sul. Este destino, que parecia promissor, en-
frenta a dificuldade da fiscalização das autoridades às medidas que obrigavam os emigrantes que chegavam
114	 DN,11de dezembro de1897, p. 2.
115	 Cf. DN., 19, 21, 24 de novembro de 1903; pp.1, 1,1; id., 6 e 26 de abril de 1904, pp. 1, 1; id, 4 de maio de 1904, p.1: id., 21 de julho de 1904, p.1.
116	 Cf. DN., 21 de julho de 1904, p.1; id., 9 de agosto de 1904, p.1.
117	 DN, 11 de dezembro de 1897, p.2.
118	 DN, 21 de agosto de 1902, p.1.
119	 DN, 22 de outubro de 1902, p.1.
120	 DN., 7 de outubro de 1904, p.2.
121	 Cf. DN, 17 de agosto de 1904, p.2.
122	 DN., 8 de janeiro de 1914, p.2.
123	 CF. DN, 21 de fevereiro de 1918, p.1.
DN. 23.9.1903, p2.DN. 29.1.1897, p.2
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
41
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
a Capetown a “Saber ler e escrever e ir provido, no acto da chegada, com uma importância em dinheiro não
inferior a vinte libras.”124
. Estas exigências eram mais valorizadas que o passaporte. Em 1902, dos 45 madei-
renses chegados ao Cabo temos 37 detidos por serem pobres e analfabetos125
. Em maio de 1904, foram repa-
triados vários indivíduos da Calheta, “por não terem apresentado 50 libras de harmonia com as disposições
legaes que ali estão em vigor em respeito à emigração.”126
Quando descoberto, o clandestino era condenado a pagar a multa de 15 libras ou prisão. A 23 de junho
de 1904, Manuel Nunes e Feliciano Abreu foram denunciados condenados em Southampton e repatriados
para a Madeira, Desagradados com a situação, estes condenados madeirenses, acabaram fazendo alguns
estragos a bordo. Eram a expressão da revolta de um sonho desfeito.
124	 Cf. DN, 6 de abril de 1904, p.1. Mas em 17 de agosto de 1904 ( Cf. DN., p.2) um rapaz sem passaporte foi preso e recambiado para a Madeira. Este valor
de 20 libras era considerado um fator de travagem desta emigração, pois antes eram apenas 5 libras. (Cf. DN., 17 de março de 1904, p.2)
125	 Cf. DN, 11 de junho de 1904, p.1.
126	 Cf.DN., 25 de maio de 1904, p.1.
DN. 1916.04.20, p.1
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
42
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
O “POIO MADEIRENSE” NA ÁFRICA DO SUL
Desde princípios do séc. XX que se tornou notória a presença da comunidade madeirense na África do
Sul, nomeadamente em Pretória e Joanesburgo. Os madeirenses tiveram uma função importante na pesca
e na agricultura. No primeiro caso, dominaram o mercado de tunídeos e de lagosta, enquanto, no segundo,
detiveram o controlo dos produtos hortícolas. Sempre foram a comunidade mais representativa dos portu-
gueses, constituindo mais de metade dos emigrantes, o que lhes permitiu antes e ainda no começo do séc.
XXI uma posição importante na sociedade.
15.1.1905, p.1
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
43
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
O P.e Mário José Lobo de Matos, natural da Contenda e falecido em 1988, foi secretário de D. Teodósio
Clemente de Gouveia, arcebispo-bispo da Arquidiocese de Lourenço Marques, teve um papel importante
no apoio aos gauleses que pretendiam emigrar para a África do Sul, conseguindo os vistos e os contratos de
trabalho necessários. Foi ainda administrador da igreja de S.to António dos Portugueses em Benoni, Joanes-
burgo.
Teodósio Clemente de Gouveia GCC • GCIH (São Jorge,
Santana, Ilha da Madeira, 13 de Maio de 1889 — Lourenço
Marques, 6 de Fevereiro de 1962) foi arcebispo de Lourenço
Marques (desde 1941). Eexerceu as funções de bispo de Leuce
e Prelado de Moçambique (1936).
Os dados oficiais disponíveis atestam a evolução destes rumos da emigração madeirense após a Segun-
da Guerra Mundial e evidenciam que os destinos se diversificaram, de acordo com a demanda de mão-de-o-
bra e as oportunidades oferecidas pelos principais mercados de trabalho. No caso da África do Sul, tivemos
2526 saídas entre 1945 e 1949; 5118, entre 1950 e 1959; 579, entre 1960 e 1969; 683, entre 1970 e 1979.
(ver anexo 5)
DN. 1911.07.222, p.1
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
44
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
OUTRAS MOBILIDADES
A rota marítima que ligava a Madeira à África do Sul foi muito importante para estabelecer uma apro-
ximação entre as duas regiões e permitir o transplante de inúmeras flores, muitas delas por iniciativa da co-
munidade inglesa. Em sentido contrário, tivemos o envio, em 1906, de bananeiras para o Natal e certamente
algumas das vinhas do Cabo não são alheias à Madeira. Na passagem para o séc. XXI, a riqueza das flores da
Ilha deve muito a essa situação. Segundo o inventário de Rui Vieira, temos as seguintes: agapanthus praecox e
agapanthus africanus (L.) Hoffmgg. ou agapanthus umbellatus L´Hérit. (agapantos, coroas de henrique); aloe
arborescens, aloe ciliaris, aloe plicatilis, aloe arborescens Mill. (aloés, babosa, foguete-de-natal); amaryllis
belladonna L.; antholyza aethiopica L. ou chasmanthe aethiopica (L.) N.E.Br.; arctotis stoechadifolia Berg.;
DN.29.V.1920, p.4
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
45
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
asystasia bella; banksia integrifolia; bolus hy br.; calodendrum capense Thunb. (castanheiro do Cabo); carissa
grandiflora A.DC.; gerbera jamesonii; clivia miniata e clivia nobilis (clívias); dombeia nyuica; encephalartos
trispinosus e encephalartos transvenosus; eriocephalus africanus (alecrim da virgem); erythrina lysistemon
(coralina cafra); euphorbia cooperi (eufórbia) e euphorbia ingens (eufórbia gigante); iboza riparia; kniphofia
uvaria (L.) Hook. (foguetes); leonotis leonurus (L.) R.Br. (rabos de leão);leucospermum conocarpodendron
(protea); melianthus major (arbusto do mel); ochna serrulata; oxalis purpurea L.; pandorea ricasoliana Tanf.
ou podranea ricasoliana Sprague (trepadeira); phoenix reclinata(palmeira do Senegal); plumbago auriculata
e plumbago capensis Thunb.; polygala mynifolia (pera doce); protea cynaroides (protea real); strelitzia alba,
sterlitzia nicolai (estrelícia gigante) e strelitzia reginae Banks (estrelícias ou aves do Paraíso); scholia brachype-
tala; senecio macroglossus DC. (trepadeira); tecomaria capensis Thunb. Spach (camarões); tibouchina semi-
decandra (Schrank et Mart.) Cogn. (aranha); tritonia crocata (L.) Ker Gawl. (manuelas); Watsonia ardernei
hort. (hastes de S. José); yucca gloriosa L. (iúca); zantedeschia aethiopica (jarros).
No começo do novo milénio, na África do Sul, as culturas da cana e da vinha passaram a ter um papel
relevante na economia do país. As relações favoráveis levam a que, durante algum tempo, a Madeira impor-
tasse melaço daqui para suprir carências da Ilha. Tivemos, ainda, a permuta de variedades da agricultura
industrial; ao nível da produção açucareira, com as variedades de cana elefante e bambu, Porto Mackay,
rajada e yuba do Natal (1897)127
. Esta situação resultou do facto de a espécie existente na Ilha ter sido, em
1881-1882, alvo de um ataque pelo fungo conyothyrium melasporum.
127	Cf. VIEIRA, A. (2004). Canaviais, Engenhos, Açúcar e Aguardente na Madeira. Séculos XV-XX. Funchal. CEHA, p.135.
Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul
46
Da Madeira a Cape Town: a rota da mobilidade madeirense
Da Madeira a Cape Town: a rota da mobilidade madeirense
Da Madeira a Cape Town: a rota da mobilidade madeirense
Da Madeira a Cape Town: a rota da mobilidade madeirense
Da Madeira a Cape Town: a rota da mobilidade madeirense
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Da Madeira a Cape Town: a rota da mobilidade madeirense

  • 1. 09Projeto "MEMÓRIA-Nona Ilha" VIEIRA, ALBERTO DA MADEIRA A CAPE TOWN, REPÚBLICA DA ÁFRICA DO SUL FROM MADEIRA TO CAPE TOWN, SOUTH AFRICA Cadernos de divulgação do CEHA. Projeto “Memória-Nona Ilha”/SRTC/DRC, N.º 09. VIEIRA, Alberto – Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul. Funchal. Novembro de 2018.
  • 2. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA DA MADEIRA A CAPE TOWN, REPÚBLICA DA ÁFRICA DO SUL FROM MADEIRA TO CAPE TOWN, SOUTH AFRICA ALBERTO VIEIRA* CEHA-SRETC-MADEIRA Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 2 ALBERTO VIEIRA. N.1956. S. Vicente Madeira. Títulos Académi- cos e Situação Profissional: desde 2016- Investigador-Coordena- dor do CEHA e de projetos de investigação; 2013-2015: Diretor de Serviços do CEHA; 2008- Presidente do CEHA, 1999 - Investi- gador Coordenador do CEHA; 1991-Doutor em História (área de História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa), na Univer- sidade dos Açores; 1980. Licenciatura em História pela Universi- dade de Lisboa. ATIVIDADE CIENTÍFICA. Pertence a várias aca- demias da especialidade e intervém com consultor científico em publicações periódicas especializadas. É Investigador-convidado do CLEPUL-Lisboa. Membro da Cátedra Infante Dom Henrique. Desenvolveu trabalhos de investigação nos domínios da História do Meio Ambiente e Ecológica, História da Ciência e da Técnica, O Mundo das Ilhas e as Ilhas do Mundo, História da Autonomia, História da Ciência e da Tecnologia, História da Escravatura, His- tória da Vinha e do Vinho, História das Instituições Financeiras, História do Açúcar. Atualmente desenvolveu estudos e coordena projetos sobre Historia Oral /Autobiográfica, com os projetos: MEMORIAS das Gentes que fazem a História; NONA ILHA- as Mo- bilidades Madeirenses; AUTONOMIA. Memórias e testemunhos. PUBLICAÇÕES. Tem publicado diversos estudos, em livros e arti- gos de revistas e atas de colóquios, sobre a História da Madeira, dos espaços insulares atlânticos, da Nissologia/Nesologia e so- bre os temas de investigação referidos acima. Informação curri- cular desenvolvida em: https://app.box.com/s/248a0h637wi5ll- m26o66o9bbw2kd182z .
  • 3. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA “Uns emigram pelo espirito de novidade e aventura, que se desperta e desenvolve ain- da nos mais rudes e ignorantes habitantes dos campos; outros—porque teem paren- tes, amigos ou antigos vizinhos que, de longe, os tentam e seduzem com as descrições de uma existência desafogada e em vésperas da conquista apetecida e ambicionada fortuna; e ainda outros, são levados pelos exemplos eloquentes que se lhes impõem nas terras da sua naturalidade, soba forma de belas casas de pedra e cal, cobertas com a vistosa telha de Marselha avermelhada e de fecundos terrenos de viçosas cul- turas, comprados com o dinheiro ganho exílio voluntario. (…) E o grande numero de bonitas casas que ostentam galhardamente os seus telhados de Marselha em diversas povoações do concelho de Calheta, e que mereceram a graça de ser mencionadas, na imprensa da capital, como argumento de grande força a favor do regímen sacarino, (…) o que significam, o que representam, na realidade, senão dinheiro enviado por aqueles que daqui emigram para o Cabo da Boa Esperança e para as duas Américas? Ora aí está uma das faces boas da emigração que, se por um lado, corresponde a um deficit de braços, transforma-se por outro, numa fonte de receita.” (Editorial do DN de 16 de outubro de 1915, p.1, subordinado ao título “Interesses Gerais do Distrito- A Estatística e a Emigração”) Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 3
  • 4. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA RESUMO Nos séculos XIX e XX, a cidade do Cabo (Cape Town) marcou, de forma evidente, a mobilidade dos madeirenses, abrindo mais uma oportunidade de sair e de ganhar a vida, graças às estratégias coloniais dos impérios europeus. Na memória e história madeirenses, o dia da chegada dos chamados “Vapores do Cabo” era conhecido como o dia de “São Vapor”, desencadeando o interesse sobre a África do Sul. Entender a forma como se operou esta mobilidade madeirense e inglesa na rota do Cabo é o que motiva a nossa atenção. Por força desta rota, que perdura no tempo, estabeleceu-se uma via aberta para o comércio e mobilidade de madeirenses que se servem, muitas vezes, de rotas indiretas para entrar na África do Sul, a partir da antiga colónia portuguesa de Moçambique ou, mesmo, recorrendo à mobilidade clandestina, muito por causa das limitações impostas à escolaridade. A emigração clandestina é aqui um dado significativo da mobilidade de muitos dos madeirenses para chegar à África do Sul. ABSTRACT Cape Town (South Africa) was during the 19th and 20th centuries a major target within Madeira emigra- tion. Vessels (Vapores do Cabo) that stopped at Funchal harbour were part of a maritime route which attrac- ted many Madeira born who seek for better living conditions and job opportunities that lacked on the island. Very frequently, young boys, escaping from compulsory military service and undocumented, entered South Africa through the Mozambique border. This illegal movement has to be taken into account when studying mobility and in particular the flow of Madeirans to South Africa. PALAVRAS-CHAVE:- Cape Town, chapas, emigração clandestina, ovos, vapores do Cabo. Key-words: Cape Town, Vessels, maritime route, mobility, illegal emigration Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 4
  • 5. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA A Madeira firmou-se, a partir de meados do séc. XV, pela sua vocação atlântica, abraçando ambas as margens do oceano e estabelecendo pontes com os diversos portos atlânticos, que a favoreceram como porto de escala, comércio e mobilidade de homens e plantas. Foi um importante ponto de partida para a expansão e afirmação colonial. Alguns dos mais destacados impérios europeus - Portugal e Inglaterra- tiveram aqui esse pilar de apoio e refrescos, tão fundamental para a expansão até ao advento da navegação aérea. Sulcámos o oceano à busca do desconhecido e firmámos uma posição de relevo nas rotas oceânicas que ajudámos a criar. Desta forma, desde muito cedo, o cabo da Boa Esperança esteve presente nas aspi- rações dos ilhéus, na mira do Índico e do Pacífico e das suas riquezas, no mar e em terra. Foram-se, então, estabelecendo laços entre a Cidade do Cabo e esse cabo que, das Tormentas passou a ser da Boa Esperança. Construiu-se outro mundo e criou-se as rotas do Atlântico, apostando-se na importância destes dois pilares, já no séc. XVI. Esta ancestral ligação madeirense permaneceu quase até ao séc. XX, na chamada rota do cabo e na presença assídua dos vapores do cabo, no porto do Funchal1 . O rumo de Cape Town começou a ser definido em finais do século XVII, mas foi nos séculos seguintes que se consolidou. A Madeira abriu o Atlântico aos ingleses para que pudessem, a partir daí, desbravar os mares, revelar e consolidar novos domínios tanto no mar como em terra; serviu de apoio e descanso, nas rotas de ida e retorno, permitindo uma transição mais fácil entre as duas áreas climáticas2 e abrindo o oceano à navegação marítima, ao comércio e domínio imperial europeu. Iniciou, na Madeira, uma mobilidade de ho- 1 VIEIRA, A. (2012). Do lugar, da cidade e do porto do Funchal. Anuário n. º 5, 2013, 9-65. 2 Em 11 de dezembro de 1912 (Diário de Notícias, p. 2) chegou ao Funchal Julius Meyer, proveniente do Cabo com destino à Alemanha, que aqui se deteve oito dias. Simon Fisher, ‘CASTLES AT THE CAPE’. CAPE TOWN CASTLE passes EDINBURGH CASTLE in Cape Town Harbour in the 50s Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 5
  • 6. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA mens, animais e plantas em ambos os sentidos, abrindo caminhos aos jardins botânicos, a uma mesa rica de frutos variados e ao turismo, gerador de constantes mibilidades e uma das indústrias fundamentais do século XXI. Por outro lado, é a afirmação do Funchal, como porto de escala, nas rotas de ida e retorno de Cape Town, que potenciou múltiplas atividades que trouxeram vida nova ao casco urbano3 . Isto evidencia a importância que assumiu para o Funchal a passagem semanal dos vapores do Cabo que, no Funchal às quintas-feiras4 , ficará como o dia de “São Vapor”. Até 19005 , são os vapores da Union Line ou da Castle Line, ou popularmente designados como os “va- pores do Cabo brancos” ou “vapores do Cabo pretos”, e que acabam por ser conhecidos como os vapores do 3 Em 14 de julho de 1914 o Diário de Noticias (p.1) afirmava que “Estes transatlânticos. Como toda a gente sabe, trazem centenares de passageiros, que geralmente durante dois dias se espalham pela cidade, comprando bordados, obras de vimes, servindo-se de carros (quer de bois, quer automóveis), frequentando estabelecimentos de bebidas, etc, etc. Que de punhados de dinheiro não deixam estes forasteiros no Funchal?!”. 4 Amélia Carreira (Um Funchal às pinceladas, Margem, 25, 2008, 33) nas suas recordações do Funchal refere a passagem dos vapores do Cabo às segun- das-feiras, certamente no retorno: “…ia-se à segunda-feira ver as inglesas do Vapor do Cabo…”. 5 Cf. Diário de Noticias, 23 de fevereiro de 1900, p.1. Sobre a História da companhia cf. Aldcroft, D. H. (1965). The Depression in British Shipping, 1901–1911. The Journal of Transport History, (1), 14-23; Harris, C. J., & Ingpen, B. D. (1994). Mailships of the Union-Castle Line. Fernwood Press. Com ati- vidade importante na emigração: Evans, N. J. (2001). Work in progress: Indirect passage from Europe Transmigration via the UK, 1836 –1914. Journal for Maritime Research, 3 (1), 70-84;Munro, J. F. (1990). African shipping: reflections on the maritime history of Africa south of the Sahara, 1800–1914. International Journal of Maritime History, 2 (2), 163-182; Murray, M. (1933). Ships and South Africa: A Maritime Chronicle of the Cape, with Particular Reference to Mail and Passenger Liners, from the Early Days of Steam Down to the Present. Oxford University Press, H. Milford; Knight, E. F. (1920). The Union-Castle and the War, 1914-1919. Union-Castle Mail Steamship Company; Mackenzie, J. M. (2005). Empires of travel: British guide books and cultural imperialism in the 19th and 20th centuries. Histories of tourism: representation, identity and conflict, 6, 19; Murray, M. (1933). Ships and South Africa: A Maritime Chronicle of the Cape, with Particular Reference to Mail and Passenger Liners, from the Early Days of Steam Down to the Present. Oxford University Press, H. Milford. DN. 12.I.1877, p.4 DN. 22.I.1893, p.4 DN. 6.1.1905, p.4 DN. 23.II.1900.p.2 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 6
  • 7. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Cabo6 que, a partir de fevereiro daquele ano, aparecem como Union Castle S.S. Cº7 , juntando, nas chaminés, as duas cores que os identificavam. Estes vapores faziam escala no Cabo, Alagoa Bay e Natal. Em 1900, a R. P. Houston & Cº, uma companhia criada em Liverpool para as ligações com Argentina, passou também a fazer a rota do Cabo. Os seus navios (Helines, Huanthes, Hesperides, Halzones) passam a ter escala regular no Funchal8 , dando mais movimento ao porto. Além do Cabo, estes vapores chegavam a 6 O Diário de Notícias, 14 de julho de 1914, p.1 refere “os vapores da Union Castle Line (vulgarmente conhecidos com os vapores do cabo )…” 7 A 23 de fevereiro de 1900 o Diário de Notícias (p.2) informa da compra da Union Line pela Castle Line pelo valor de dois milhões de libras esterlinas. 8 Cf. DN., 1904.janeiro.3, p.4. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 7
  • 8. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Porth Elizabeth, East London, Natal, à Beira e Lourenço Marques, a exemplo do que fazem alguns da Union Castle. Na rota do Cabo, aos vapores da Union Castle associam-se, a partir de 19079 , os navios África, Beira e Infante D. Henrique da Empresa Nacional de Navegação/Companhia Colonial de Navegação10 ou os que fazem a ligação à Austrália11 . Outros navios de companhias europeias, também sulcaram as mesmas rotas ou rotas parecidas. Consolida-se, em definitivo, a rota do Cabo. As escalas aumentam e tornam-se quase diárias, com a pressão das companhias inglesas, alemã e portuguesa. A aposta portuguesa em Moçambique, com as obras no porto de Lourenço Marques 12 , fazem com que os portos de Durban e Cabo tenham mais um concorrente de peso, a Empresa Nacional de Navegação. Terá sido a partir daqui que se abriu esta rota secundária da emigração madeirense para alcançar a África do Sul13 . Não nos podemos, ainda, esquecer que militares e funcionários portugueses que se dirigiam a Moçambique se serviam dos vapores do Cabo, que partiam do Funchal, que funcionava como eixo de ligação14 . 9 Diário de Notícias, 14.12.1906, p.2. 10 Cf. DN.29.2.1916, p.4; DN.1919.11.12, p.2; DN, 12.03.1931, p.5; Re-nhau-nhau, nº.1220 (20.fev.1967) p.3. 11 DN, 24.01.1935, p.4 e 6; Heraldo da Madeira, 29.8.1912, p.4. 12 Cf. DN., 21 de Setembro de 1904, p.1. 13 Atente-se a que os vapores da Union Castle passam também a fazer escala na Beira e em Lourenço Marques. O vapor do Cabo Saxon, que a 6 de Se- tembro de 1904 (CF. DN., 7.9.1904, p.2) aportou o Funchal, havia passado por Lourenço Marques. 14 Em 1906 (Cf. DN., 4 de junho de 1906, p.1), o Major Affonso Chaves “veio esperar aqui paquete que o conduza ao Cabo de Boa Esperança” para realizar estudos metereologicos e magnéticos., tendo embrcado no Kildonan Castle (cf. DN., 7 de junho de 1906, p.1). Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 8
  • 9. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA A rota dos vapores do Cabo da Union Castle sofreu algumas mudanças. O Cabo deixa de ser o destino final da viagem e os vapores passam a sulcar o Índico, fazendo escalas em alguns portos do Sul de África, como Alagoa Bay, Natal e chegando à Beira e Lourenço Marques15 . No retorno, o porto de escala é Tenerife, a partir de 191116 . As rotas, as companhias e os portos entram em compasso de espera com a pirataria, o corso, a guerra e, acima de tudo, com as doenças que obrigam à quarentena17 . Restringe-se o movimento de passageiros e car- ga e, naturalmente, todo o movimento de bomboteiros, chapas, rapazes da mergulhança e demais atividades em torno do quotidiano que marca a passagem dos vapores. No ano de 1904, alguns vapores do regresso de Cape Town estão sujeitos a quarentena18 . Na lista que anunciava as chegadas, vinha sempre a indicação se 15 Cf.DN., 16 de junho de 1912, p.1. 16 Cf.DN., 1 de abril de 1911, p.3. 17 Vieira, Alberto, (2013) Do lugar, da cidade e do porto do Funchal, Anuário 2013 Centro de Estudos de História do Atlântico, ISSN: 1647-3949, Funchal, Madeira pp. 10 – 177. Sobre a quarentena, as doenças contagiosas e a História Cf. CETRON, M, Landwirth J. 2005, Public Health and ethical considera- tions in planning for quarantine. Yale J Biol Med., 78 (5):329-34; BONASTRA, Quim. (2000). “Innovaciones y continuismo en las concepciones sobre el contagio y las cuarentenas en la España del siglo XIX. Reflexiones acerca de un problema sanitario, económico y social. IN: Scripta Nova: Revista Electróni- ca de Geografía y Ciencias Sociales. Universidade de Barcelona. n. 69(35); JEWELL, W., 1985, Historical Sketches of Quarantine. 2nd ed. Philadelphia: T.K. and P.G. Collins; SEHDEV, O.S. 2002, The origin of quarantine. Arcanum, 35:1071-2; MAGLEN. K. 2002, “The first line of defense”: British quarantine and the port sanitary authorities in the nineteenth century. Soc Hist Med., 15 (3):413-28. DOI: http://dx.doi.org/10.1093/shm/15.3.413.23. MCDONALD, JC. 1951, The history of quarantine in Britain during the 19th century. Bull Hist Med., 25 (1):22-4; D’ALMEIDA, Domingos José Bernardino. (1891). As quarentenas perante a sciencia ou a critica scientifica do Regulamento Geral de Sanidade Maritima. Lisboa: Typ. Do Comercio de Portugal. 18 Cf. DN, 7 de Setembro de 1904, p.2; id., 28 de dezembro de 1904, p.2. Bandeira de quarentena. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 9
  • 10. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA estava ou não em quarentena19 e ostentava a bandeira respetiva20 , trazendo para cidade e para toda a vida portuária grande consternação. 19 Cf., DN., 3 de novembro de 1911, p.1. 20 Cf. Heraldo da Madeira, 27 de abril de 1907, p. 2. Comenta-se o dano destas medidas para a Union Castle ou a Royal Mail. Na cidade do Cabo era a ilha de Robben que servia de Lazareto. Cf. H.J. Deacon (ed.) 1996, The Island: A History of Robben Island, 1488-1992 (Cape Town,); Fish, J. W. (1924). Robben Island: an account of thirty-four years’ gospel work amongst lepers of South Africa. J. Ritchie; De Villiers, S. A. (1971). Robben Island: Out of reach, out of mind: A his- tory of Robben Island. C. Struik; Deacon, H. (1996). Racial segregation and medical discourse in nineteenth century Cape Town. Journal of Southern African Studies, 22 (2), 287-308; Edmond, R. (2006). Leprosy and empire: a medical and cultural history (Vol. 8). Cambridge University Press. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 10
  • 11. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Até a década de sessenta do século XX, quase todos os funchalenses são reféns desta situação. Em “Dia de S. Vapor, a cidade altera-se, completamente. Há múltiplos serviços e produtos a oferecer aos visitantes21 e a cidade rejubila e ganha um movimento e comércio inusitados22 ”. Segundo o Diário de Notícias de 191423 , “a ilha toda vive do movimento do seu porto”. Há uma economia familiar, alimentada pelos bomboteiros24 . Há, ainda, o contrabando25 que estes protagonizam, que vai dando o necessário para a sobrevivência do núcleo familiar. Há, por parte dos passageiros em trânsito, uma atenção especial às frutas da ilha26 , que são transpor- tadas em cestas para bordo ou vendidas pelos bomboteiros. Morangos, nêsperas, laranjas e bananas, captam a sua atenção e são o desenjoo para as ementas de bordo. 21 Cf. O que diz Ricardo Jardim (2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 44): “Mas vapores mesmo a sério, eram os da Union Castle, na carreira entre Southampton e Cape Town. Tão regulares como o relógio da Sé. E tão importantes que em dias de barco não havia horários nem folgas no comércio da cidade. Quando os Vapores do Cabo trocaram a escala da Madeira por Canárias no retorno de África, choveram protestos, exposições, diligências diplo- máticas, o Deputado da Nação Dr. Araújo compôs um inflamado discurso e todos nos sentimos atraiçoados. Mas, nessa altura, eu já tinha a percepção exacta da importância dos Vapores do Cabo.” 22 Em 30 de abril de 1896 (DN, p.1), refere-se a chegada no dia anterior do vapor do Cabo Moor com o seguinte comentário: “Desembarcaram quase todos os passageiros, que foram vistos por essas ruas, uns a pé e outros em carro,”. O mesmo sucedia a 4 de novembro de 1897 (DN., p.1). E, segundo Ricardo Jardim (2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 43) ”…Mas vapores mesmo a sério, eram os da Union Castle, na carreira entre Southampton e Cape Town. Tão regulares como o relógio da Sé. E tão importantes que em dias de barco não havia horários nem folgas no comércio da cidade.” 23 Diário de Notícias, 14 de junho de 1914, p.1. 24 Por força da ação dos bomboteiros, com bordados, barretes, botas de vilão como refere SANTOS, Carmo, 2005, Memórias de uma Rua in Santa Maria Maior.Com Palavras nascem Histórias, Funchal, Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, p.35. 25 Ricardo França Jardim (2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 44) recorda o contrabando com os vapores do Cabo: “Aqui intervinha a laboriosa classe dos bomboteiros, intrépidos comerciantes que desafiavam o mar e as autoridades em barcos a remos carregados, até aos paquetes fundeados ao largo, para mercar bordados, bananas e vinho contra tabaco, whisky, cosméticos, meias de nylon sem costura e tudo o mais que atrás se viu. Mercadorias posteriormente vendidas porta a porta por estes contrabandistas encartados. (…) Uma vez o Senhor Abelhinha, que fornecia os cigarros Chesterfield sem filtro ao meu pai, passou seis meses no chilindró (…).” 26 Cf. Diário de notícias, 1.5.1896, p.2. DN. 1914.07.30, p.3 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 11
  • 12. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA A ninguém passava despercebido o movimento destes vapores de casco cor-de-rosa, que projetavam no céu as chaminés pintadas de preto e vermelho27 . Até as lanchas de serviço costeiro, Milhano e Machiqueira, da empresa Blandy, são pintadas com estas cores28 . E, dentro de portas, poderíamos encontrar lembranças e objectos com a sua marca29 . Por outro lado, eles representam um sonho, pela insistente notícia de passagem nestes vapores de barras de ouro das minas sul-africanas ou de penas de avestruz30 . Poucos terão visto o ouro e as penas, mas 27 Atente-se que com a guerra estes passaram a ostentar a chaminé a cinzento, a cor dos navios de guerra ingleses. Cf. Diário de Notícias, 22 de agosto de 1914, p.3. 28 Cf. FRANÇA, Ricardo, 2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 44, onde refere que “Não pretendo insinuar nada. Mas o próprio senhor Blandy, agente da companhia, possuía duas lanchas de cabotagem, a Milhano e a Machiqueira, pintadas iguaizinhas aos Vapores do Cabo, casco castanho averme- lhado e chaminé encarnada com um friso preto.” 29 Cf. FRANÇA, Ricardo, 2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 44: “Na casa dos meus tios, havia uma toalha de mesa em excelente cambraia inglesa, estampada a todo o comprimento: «Union Castle Une». E fartei-me de encontrar noutras famílias acima de qualquer suspeita talheres, copos, pratos, guardanapos e até sabonetes de alfazema com a mesma marca.” 30 O Diário de Noticias do Funchal, apresenta no período de 1911-1914 as caixas de barras de ouro e de penas de avestruz que escalavam o porto. É algo sur- preendente para o qual não encontramos explicação, pois é a única mercadoria em circulação de Cape Town para Southampton que merece divulgação. CF. Diário de Noticias, 1911 (10.janeiro, p.1; 17 e 31.maio, pp. 1, 2; 7.junho, p.1; 5.julho, p.1; 2, 9, 23, 30.agosto, pp.1, 1, 1, 1; 6, 2, 27.setembro, pp.2, 1; 4 e 18.outubro, pp.2, 2), 1912 (1, 14, 28.fevereiro, pp. 1, 1, 2; 27.março, p.2; 1, 8 e 29.maio, pp.2, 1,1; 17.julho, p.1; 15, 21.agosto, p.1, 1; 11 e 18.setembro, pp.1, 1.), 1914 (3, 15, 22, 24, 31.janeiro, pp. 2, 2, 2, 1,2; 21 e 28.fevereiro, pp.3,2; 28.março, p.1; 4, 25.abril, pp.1,2; 23.maio, p. 1). DN.1897.07.13, p.2 DN.17.10.1897, p.2 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 12
  • 13. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA quantos não terão sonhado com eles, a partir da divulgação quase sempre em primeira página destes produ- tos em trânsito que envolvia a cidfade numa certa magia31 ? As guerras mundiais32 e a saída das escalas para as Canárias33 lançam a cidade num grande torpor e numa situação de crise. Morreu o movimento dos vapores e a cidade permaneceu em silêncio, de luto. 31 Cf. Re-nhau-nhau, 570 (1947), p.5; id., 583 (1947), p.7; id., 610 (1948), p.4. 32 Cf. Diário de Notícias, 16.10.1914, p.1; id., 27.6.1916, p.1. 33 Cf. Re-nhau-nhau, 543 (1946), p.8; id., 707 (1951), p.4; id., 1185 (1966), p.2. Lanchas de serviço costeiro, Milhano e Machiqueira, da empresa Blandy, são pintadas com estas cores Cartazes da Union-Castle Line, com referên- cia às escalas insulares Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 13
  • 14. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA ENTRE O FUNCHAL E CAPE TOWN O relacionamento da Madeira com a África do Sul vem dos tempos do descobrimento da costa africana até ao Cabo, que implicou um envolvimento direto da Ilha e dos madeirenses, servindo o Funchal, muitas ve- zes, de base de apoio a essas viagens. Em 1488, Bartolomeu Dias abriu o caminho e, desde então, tornou-se notada a presença portuguesa nestas paragens. Todavia, o primeiro português documentado como emigran- Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 14
  • 15. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA te no Cabo surge apenas em 1722, não havendo, porém, qualquer referência à data da sua chegada. Apenas podemos afirmar com segurança que, nos princípios do séc. XX, a comunidade portuguesa era significativa e que, em 1904, os madeirenses assumiam uma posição maioritária. O facto de os Ingleses ocuparem a Cidade do Cabo aos Holandeses, em 1795, abriu ainda mais as portas a este novo destino para os madeirenses emigrantes e às ligações que se seguiram com o Funchal. Tenha-se em atenção que, entre 1652 e 1784, se desencadeou uma guerra marítima entre Ingleses e Holandeses pela posse dos mares e que esta incluiu a Cidade do Cabo, porto para a entrada no Índico e no Pacífico. Daí o Ato de Navegação de Oliver Cromwell, de 1651, o primeiro testemunho dessa estratégia imperial inglesa, que também amarrou a Madeira à Cidade do Cabo. Para os britânicos, a perda da América do Norte, em 1776, levou a buscar alternativas no Índico e no Pacífico e, para que elas se concretizassem, era preciso controlar a porta de acesso a esse mundo que estava em poder dos Holandeses. A conquista da Cidade do Cabo foi, assim, o início da afirmação de uma nova rota comercial que marcou, durante muito tempo, a vida dos britâ- nicos e da Ilha. Os britânicos fizeram do porto madeirense uma peça estratégica na navegação atlântica e no domínio da colónia. O Funchal era quase sempre escala obrigatória para as embarcações do Cabo, Índia e Antilhas, relacionada com a disponibilidade do vinho para o abastecimento dos navios e do comércio nas praças de destino. A rota do Cabo era, assim, um caminho do mar consolidado na História da Madeira que só a plena aviação comercial destronou. O estudo desta mobilidade manteve-se ignorada na ilha e só nos últimos anos começou a despertar a atenção dos estudiosos, a partir do projeto Nona Ilha. Surge, então, o estudo de mestrado de Bruna Pereira (2017) que destaca os problemas decorrentes da emigração clandestina por via de Moçambique. Na África do Sul, os especialistas, alguns com origens madeirenses, também fizeram um trabalho de descoberta desta importante comunidade insular, que marcou, de forma evidente, a vida das cidades do Cabo, Joanesburgo, Pretória34 . O recurso à História Oral e Histórias de Vida acontece nos estudos realizados nos últimos anos e esta informação foi preciosa para reconstituir percursos e vivências, como podemos ver no trabalho de Bruna Pereira (2017), Glaser (2010: 66-67, 213-214, 2012: 97), Botha (1971) e Machado (1992: 67). Graças ao em- penho da comunidade científica sul-africana, foi possível resgatar parte significativa da História da emigração madeirense na África do Sul, sendo realçado o caráter clandestino em que a mesma acontecia, por via da fronteira de Moçambique. 34 Cf. bibliografia BARTOLO (1978), DONSKY (1989), MACHADO (1992), PEREIRA (2000), MCDUILING (1995), GLASER (2010, 2012, 2013). Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 15
  • 16. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA DO CABO SUBMARINO À TSF Para além desta rede de rotas oceânicas, que estabelecem um vértice importante na Madeira, com a plena afirmação da máquina a vapor, outros vínculos importantes ligam a ilha à África do Sul e ao mundo atlântico35 . Com o advento das comunicações por cabo submarino, a Madeira voltou a cumprir uma missão importante nesta ponte atlântica. Assim, em 1901, o cabo submarino da Eastern Telegraph Company ligava a Inglaterra ao Cabo, com pontos de amarração na Madeira e em Cabo Verde. Há um serviço de informação diversa que apoia o movimento dos Vapores do Cabo, anunciando as partidas e chegadas, assim como as anomalias no percurso. Era um serviço importante para a mprensa local e a população. A conjuntura da primeira metade do séc. XX foi favorável ao rápido desenvolvimento da telegrafia sem fios (TSF). A Primeira Guerra Mundial (1914-1919), os conflitos militares isolados, como os que aconteceram com os boers na África do Sul, criaram a necessidade de um rápido e eficaz sistema de comunicações, só possível com a TSF. A utilização, a partir de 1905, do rádio nas comunicações militares e a acuidade destes conflitos, nos primeiros decénios do séc. XX, traçaram o caminho para a plena afirmação das comunicações via rádio. 35 Cf. ROLLO, MARIA FERNANDA e QUEIROZ, MARIA INÊS, 2007, Marconi em Lisboa. Portugal na rede mundial de T.S.F., Lisboa: Fundação Portugal Telecom; SILVA, ANA PAULA, 2007, A Introdução das Telecomunicações Eléctricas em Portugal: 1855-1939, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, Disser- tação de doutoramento, texto policopiado. SANTOS, R. (1999). História das telecomunicações em Portugal. Biblioteca Online de Ciências Da Comunicação, 1-11; VIEIRA, Alberto, 1995, A Companhia Portuguesa Rádio Marconi na Madeira. 1922-1995, Funchal, CPRM. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 16
  • 17. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Foi Marconi quem, durante a guerra, divulgou, no seu país, o serviço de telegrafia e telefonia e, no que diz respeito à Madeira, impulsionou a propagação dos serviços de TSF no espaço atlântico, prestando um inestimável serviço às colónias inglesas e à África do Sul. Não obstante, o serviço do cabo submarino per- sistiu até a atualidade. A 16 de outubro de 1927, a Western Telegraph Company encerrou o hotel e escola que detinha em Santa Clara. O cabo submarino precisava, contudo, de ser substituído, dada a sua idade e os constantes reparos a que fora sujeito em 1928, 1931, 1933, 1934, 1936. O seu desaparecimento foi protelado em 1929, com o estabelecimento de um pacto de colaboração entre as duas companhias. Mas, aos poucos, a companhia do cabo submarino foi perdendo o controlo da exploração no espaço português: em 1943, era estabelecido um acordo telegráfico com o Brasil que dava uma posição privilegiada à Marconi, enquanto no acordo celebrado entre o governo português, a The Western Telegraph Company e a Cable and Wireless Limited, a 4 de abril de 1969, não lhe é concedido qualquer exclusivo. Portugal reservava-se o direito de esta- belecer e explorar, diretamente ou mediante concessão, outro cabo submarino ou quaisquer outros sistemas de telecomunicações. Vingou a última situação com a concessão daquele direito à Marconi, a 11 de agosto de 1966, de que resultou a inauguração da estação de cabo submarino de Sesimbra, que estabelecia a ligação entre Londres e a África do Sul. A segunda fase de concessão, iniciada em 1956, é definida pelo recurso a novos e mais adequados meios de comunicação. Este serviço (Sat-1), inaugurado a 18 de fevereiro de 1969, divergia para uma ligação de Lon- dres a Portugal e à África do Sul, num comprimento total de 10.787 km e com capacidade para 360 circuitos, atingido o limite da sua utilização em 1978. Ao longo do percurso, estabeleceram-se três amarrações (Tene- rife, Sal e Ascensão). Seguiram-se outros que estabeleceram a ligação com a Madeira (1971), França (1979), Portugal/Senegal/Brasil (1982), Marrocos (1982) e África do Sul (1992). A 8 de março de 1990, foi assinado um acordo de intenção, subscrito pela Companhia Portuguesa Rá- dio Marconi, Correios e Telecomunicações de África do Sul, France Telecom, Telefónica de Espanha, British Telecom, Bundespost Telekom. O cabo de fibra ótica Sat-2, cuja inauguração teve lugar a 28 de abril de 1993, surge em substituição do Sat-1. O Sat-2 vai ligar o continente à Madeira, Canárias e África do Sul, numa exten- são de 9000 km e com capacidade para 15.000 circuitos bidirecionais e 30 canais de televisão, sendo avaliado em 30.000 contos. Este meio veio propiciar, ainda, aos 20.000 assinantes da rede telefónica da Madeira o DN. 1916.06.21, p.2 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 17
  • 18. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA acesso telefónico direto à Europa e a alguns países da África e da América, uma maior aproximação entre os madeirenses residentes na Ilha e aqueles que se encontram emigrados nos mais diversos destinos. Neste contexto, merece referência um acontecimento prévio, a inauguração, a 20 de fevereiro de 1984, das ligações telefónicas diretas com a Venezuela e África do Sul. A ligação direta abrangeu mais de 70 países, graças ao Centro de Telecomunicações, capaz de correspon- der a esta realidade. Aberto em 25 de setembro de 1992, o Centro passou a coordenar toda a atividade da empresa em termos do tráfego dos cabos submarinos de fibra ótica e transmissão digital (Euráfrica, Sat-2, Co- lumbus-2, Inland), rede móvel e satélites. Esta infraestrutura concentra todos os serviços que estavam disper- sos pelo Porto Novo, Garajau e Funchal. Aí está instalada a nova estação de cabos submarinos dos sistemas Euráfrica e Sat-2. A inauguração do Centro foi feita em simultâneo com a do cabo submarino internacional Euráfrica, à qual se seguiria a do cabo Sat-2. Este último é o maior cabo submarino do Atlântico e o terceiro no mundo. Deste modo, a Ilha continua a ser, por diversas formas, um pilar importante no mundo atlântico. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 18
  • 19. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA DOS VAPORES DO CABO A baía do Funchal e a memória da cidade guardam a imagem de muitos destes vapores de chaminé preta e vermelha (Armadale, Balmoral, Braemar, Briton, Carisbrook, Carth, Dover, Druham, Dunottar, Dunvengan, Durham, Edimburgh, Kenilworth, Kenya, Kildonan, Kilgonan. Kinfaus, Llandovery, Pendennis, Rodesia, Saxon, Tantallon, Transval, Walmer, Windsor, Zaria, Norman), que passam a fazer parte do quotidiano da cidade, do porto e dos madeirenses. As dificuldades surgem nesta rota durante as guerras mundiais do século XX. Entre 1914 e 1919, muitos vapores da companhia prestam serviços de apoio à guerra, no transporte de 4000 sol- dados da África do Sul ou como navio hospital. A situação contribui para abrandar o movimento comercial e de passageiros civis. DN. 1915.10.07, p.1 DN. 1915.10.10, p.1 O Funchal ganhava outro brilho e movimento, o a cidade acordava da letargia e a população convergia para a beira-mar. Há um movimento inusual de funchalenses e forasteiros, perto do porto. Os “Chapas”36 , 36 Eram assim conhecidos porque tinham uma barreta com a chapa do número de autorização. Eram os cicerones de serviço que conduzem e aliciam os passageiros para as lojas e serviços a que estão engajados. Este assédio aos passageiros do Cabo, em trânsito, de bomboteiros, rapazes da mergulhança, chapas, carreiros e mendigos eram assiduamente criticados na imprensa local, nomeadamente no Diário de Noticias. CF. Diário de notícias, 5 de julho de Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 19
  • 20. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA os carreiros do Monte, os bomboteiros37 , os rapazes da mergulhança38 não tinham mãos a medir nos seus afazeres. Todos estes serviços e produtos impeliam os passageiros a usufruir da melhor forma os serviços da escala, quebrando o tédio de uma viagem longa. Entre 1888 e 191039 , porém, a imprensa funchalense manifesta-se, de forma violenta, contra os cicerones, considerando-os danosos para ao comércio do burgo. A cidade é outra e ganha vida com estas situações. Dessa animação portuária e urbana, ficaram vários teste- munhos presenciais, plasmados em escritas de alguns daqueles que se amontoavam no cais, que viam o mar de alguma janela ou de alguma das torres avista-navios que existiam na cidade. Bomboteiros A 24 de agosto de 1924, Raul Brandão presencia este movimento da chegada dos vapores como um momento de vida para a cidade: “Agora conheço melhor a Madeira passado o primeiro entusiasmo, vejo tudo a frio. Esta ilha é um cenário e pouco mais- cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e despre- zo absoluto por tudo que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e udo preparado e maquinado para inglês ver e abrir a bo1sa. Eles saem dos paquetes e logo o Funchal se arma como um teatro -secos, graves, dominadores; elas saem do mar vestidas de noiva, de bengala na mão e blusa de croché, passeando a sua importância e as suas libras esterlinas em 1888, p.1; id., 12, 22, 24 de novembro de 1894, p.1, 2, 1; id, 3 de janeiro de 1895, p.1; id.,14 de fevereiro de 1895, p.2; id., 1 de maio de 1896, p.2; id., 16 de dezembro de 1896, p.2; id., 13, 14 de julho de 1897, p.2, 2; id., 8, 17 de outubro de 1897, p.1, 2; id., 3 de novembro de 1897, p.2; id., 15 de dezembro de 1897, p.2; id., 30 de dezembro de 1904, p.2; id., 29 de janeiro de 1910, p.1; id., 7 de novembro de 1914, p.2. 37 Cf. ALVES, G. e FARIA, C. (2013). “Atividades socio-poéticas: o bombote, a mergulhança”, Anuário, n.º 5 2013, Centro de Estudos de História do Atlântico. Funchal, Madeira (2013), pp. 261-282; FARIA, Cláudia e ALVES, Graça, “Atividades Sócio-Poéticas: o Bombote, a Mergulhança”, Anuário 2013, Centro de Estudos de História do Atlântico, Funchal, 2013, pp. 261-279; SILVA, Elisabete, “Bomboteirismo – A Arte de uma Profissão”, Xaraban- da, n.º 4, 1993, pp. 13-14; VIEIRA, Alberto, 2016, bombote e bomboteiros, in Aprender Madeira, Funchal. Disponível Internet http://aprenderamadeira. net/bombote-e-bomboteiros/ Consulta em 22.09.2018. 38 Cf. ALVES, G. e FARIA, C. (2013), ibidem, pp. 261-282. 39 Cf. Diário de notícias, 5.7.1888, p.1; id., 22.11.1894, p.1; id., 24.11.1894, p.1; id., 3.1.1895, p.1; id., 14.2.1895, p.2: id., 17.4.1895, p.1; id., 7.11.1895, p.1; 16.112.1896, p.2; id., 13 e 14. 7.1897, pp.2, 2; id., 8 e 17.10.1897, pp.1, 2; id., 3.11.1897, p.2; id., 28.8.1904, p.2; id., 30.12.1904, p.2; id., 29.1.1910, p.1. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 20
  • 21. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA terreno conquistado. O inglês é talvez o povo mais nobre do mundo - mas não tem o sentimento do grotesco. Sentado à porta do Golden Gate, ouço o apito do vapor, e já sei o que se vai passar: muda a armação como um cenário de mágica. Surgem homens com grandes chapéus de palha para vender bordados, colares falsos de coral, cestos de fruta; iluminam de repente as lojas, e segue o desfile de tipos- pretas de Cabo Verde com foulards vermelhos na cabeça, mulheres planturosas, alemães maciços, portugueses esverdeados e febris que regressam das colónias, velhas inglesas horríveis que vêm não sei donde e partem não sei para onde, desaparecendo para sempre no mistério insondável do mar; criaturas inverosímeis que rodam a toda a força nos automóveis num frenesi que dura momentos e se passa na única rua onde há um café que transborda de luz. Mas as máquinas de bordo dão o sinal e uma hora depois esta vida fictícia de- sapareceu e tudo reentra no isolamento e no silêncio. Apagam-se as luzes, correm-se os taipais e os vendedores mergulham na pacatez da vida quotidiana. O quadro está sempre a repetir-se com a chegada e a partida dos grandes transatlânticos.”40 Ao longo do século XX, os cenários repetem-se, mas com outros olhares. Ricardo França Jardim traz-nos, do seu caderno de memórias de criança, as vivências urbanas com estes vapores: “Mesmo antes do meio-dia chegava o Vapor do Cabo. Subiam bandeiras no mastro da Casa Blan- dy, apareciam carros de bois na Avenida do Mar e os senhores das lojas de artefactos expunham toalhas bordadas e demais quinquilharia à porta da rua. Do calhau, mal se avistava o navio, larga- vam dezenas de canoas com bomboteiros e mergulhanças. Era o Mundo ao encontro da Ilha. De repente, a cidade ficava cheia de ingleses, em roupas exóticas, numa algaraviada de cor e negó- 40 BRANDÃO, Raul, As Ilhas Desconhecidas, Lisboa, Perspectivas & Realidades, pp.90-9. Rapazes da mergulhança Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 21
  • 22. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA cios. Quem era aquela gente e para onde ia? E punha-me a pensar como seria o Mundo para lá do Mar. Ao cair da tarde, depois de ter viajado por Roma, Veneza e Paris, com os bilhetes-postais da minha madrinha embandeirando uma nave improvisada na cadeira de baloiço de pernas-pa- ra-o-ar, ouvia três prolongados apitos. Era o Vapor do Cabo a despedir-se de nós. Lentamente, desaparecia no mar. Com ele, toda a animação. E ficávamos mais tristes.”41 Noutra Memória de João Carlos Abreu, em Joana Rabo de Peixe, vemos igual importância dos vapores do cabo: “Os barcos faziam parte da nossa vida. Estabeleciam elos com países distantes e alimentavam os nossos desejos de aventura, ao sabor da imaginação. § Quando fundeavam, nadávamos ve- lozmente, como se fossemos alcançá-los. Quando partiam, fazíamos viagens irreais, através de oceanos inexplorados. § Os mais imponentes eram os vapores do Cabo. Faziam as ligações entre a Inglaterra e a África do Sul. Havia o “Cape Town Castle”, o “Pretoria Castle”, os passageiros traziam mais dinheiro do que em sentido contrário. § Mal apontavam ao longe, os pequenos da mergulhança gritavam de alegria. § - O vapor do Cabo está chegando! Vem de cima! § Entusias- mados, corriam para as canoas e remavam com todas as forças. Quando chegavam ao pé dos barcos, esticavam as cabeças e gritavam: § - Please, mony! § Surpresos, os passageiros atiravam- -lhes moedas. Os pequenos desapareciam nas profundezas do mar e resssurgiam à superfície com as moedas nas mãos. Apanhavam cinco ou seis ao mesmo tempo. Por vezes, disputavam entre si o mesmo Penny. § Os espectadores rompiam em aplausos. Os “artistas” sentiam-se orgulhosos e procuravam fazer números diferentes. Alguns deles, como o Búzio e o Zarolho, 41 FRANÇA, Ricardo, 2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 43. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 22
  • 23. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA subiam a bordo e lançavam-se das amuradas para o mar. § Quando o sol brilhava e as águas fica- vam mais transparentes, assistia-se a magníficas espectáculos de acrobacia. Autênticos bailados subaquáticos. Coisas de filmes! § Os pequenos eram verdadeiros herois, de formas atléticas e movimentos elegantes, mergulhavam nas águas gélidas e exibiam as suas habilidades vezes sem conta, para ganhar o pão de cada dia.”42 Tudo isto surgiu como resultado das alterações que foram acontecendo a partir do séc. XIX, a navegação oceânica ganha um estatuto distinto, através da afirmação das companhias, que passaram a assegurar um serviço regular de passageiros e carga entre diversos destinos europeus e o espaço colonial. Para garantir esta regularidade dos serviços, surgiram os agentes que, nos diversos portos, funcionavam como intermediários e prestavam todo o apoio necessário às embarcações. É por parte da Inglaterra que vamos ter o maior número de companhias a navegar com regularidade entre os portos ingleses (Southampton43 , Bristol, Liverpool, Man- chester, Edimburgo, Glasgow, Dublin) para o cabo da Boa Esperança, Natal, e África Oriental. A partir de 1943, os vapores da Union Castle servem os portos de Southampton e Durban, com escalas em ambos os percursos no Funchal. Quase todos os vapores provenientes destes portos faziam escala obrigatória na Madeira e, para alguns, acontecia uma segunda nas Canárias44 . Com a Segunda Guerra, a companhia perdeu 6 dos 26 vapores, mas, em 1953, aparece com 6 novos vapores, com uma tonelagem superior a 20.000 t. 45 O movimento destas embarcações entre a Madeira e o Cabo foi uma grande oportunidade para os 42 ABREU. João Carlos, 1996, Dona Joana Rabo de Peixe, Lisboa, Éter, pp.80-81 43 MCCUTCHEON, C. (2008). Port of Southampton. Amberley Publishing Limited. 44 Cf. MINCHINTON, W. (1987). The Canaries as ports of call. Actas del VI Coloquio de Historia Canario-americano, 3, 273-300; HERNÁNDEZ, U. M. (2004). Evolución del tráfico de buques en los puertos canarios 1880-1919. Tebeto: Anuario del Archivo Histórico Insular de Fuerteventura, (17), 457-482. 45 ALDCROFT, D. H. (1965). The Depression in British Shipping, 1901–1911. The Journal of Transport History, (1), 14-23; KNIGHT, E. F. (1920). The Union-Castle and the War, 1914-1919. Union-Castle Mail Steamship Company.; MILLER, W. H. (2001). Picture history of British ocean liners, 1900 to the present. Courier Corporation; MALCOLM, I. M. (2013). Shipping Company Losses of the Second World War. The History Press. DN. 30.12.1904, p.2 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 23
  • 24. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA madeirenses saírem da ilha. A imprensa regozijava-se com esta presença, de forma que, a 4 de novembro de 1897, o Diário de Noticias afirmava, com a passagem do Hawrden Castle, que “uns foram até ao Monte e outros andaram em carros ou a pé visitando diversos pontos da cidade e fornecendo-se d’artigos da nossa indústria”46 . Assim, para a Ilha e para os madeirenses, esta era uma nova via que se abria, da qual a Madeira tirava grandes vantagens. Primeiro, com a abertura de mais um destino fácil de emigração, depois, pelas oportunidades de negócio, nomeadamente com os passageiros em trânsito que adquiriam bordados e obras de vimes (cf. Anexo quadro 5). Havia, inclusive, muitos passageiros em trânsito que permaneciam alguns dias no Funchal. Alguns são referenciados na imprensa local47 . Ainda, no período da Primeira Guerra tivemos a escala do contingente de militares sul-africanos que participou no conflito48 . O bordado e o vinho tiveram entre os ingleses muitos divulgadores e apreciadores, daí a importância natural que assume o “Madeira” na rota, até ao aparecimento do vinho sul-africano, a partir de princípios do século XIX. O bordado aparece nas exportações em 190649 , mas foi na década de cinquenta e sessenta50 do sé- culo XX que ganhou alguma dimensão nas exportações e no quotidiano das populações de maiores recursos. O Funchal assumiu o papel de antecâmara das metrópoles e colónias europeias, acolhendo muitos dos que circulavam nos dois sentidos. Dizia-se até que todos os que estavam de regresso à metrópole não dispen- savam esta paragem de alguns dias para se habituarem ao clima europeu51 . 46 DN, 4 nov. 1897, p.1. 47 Em 1904 o Major General Stoford (Heraldo da Madeira de 31 de agosto, p.4), Styne ex-presidente do Orange (Heraldo da Madeira de 17 de setembro, p.2); 1911 (DN, 8 de maio, p.1) Owen Philips gerente da Royal Mail/Union Castle Mail; 1912, P. Matews, redactor e proprietário do jornal South Africa (DN.,25 de janeiro, p.1) e o pianista russo S. J. Paderenwski (DN, 22 de fevereiro, p.1). 48 Cf. DN, 10 de outubro de 1915, p.1. 49 Com 2 caixas de bordados (DN, 27 de setembro de 1906, p.3). 50 Cf. Estatísticas publicadas no B. J. G. D.A. F.: 02(1964), p.14; 06(1964), p.14. 51 Note-se que a 11 de dezembro de 1912 (Diário de Notícias, p.2) Julius Meyer, proveniente do Cabo com destino à Alemanha, permaneceu oito dias na cidade. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 24
  • 25. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Não devemos esquecer que o Funchal tinha uma função importante de apoio e abastecimento à nave- gação com o fornecimento de água, víveres frescos, vinho e carvão, a partir de meados do séc. XIX. Segundo Biddle, em 1896, o Funchal era “uma importante estação de abastecimento de carvão para a maior parte das linhas dos navios de Inglaterra e do continente europeu para a África do Sul”52 . E, a Casa Blandy, como consignatária e representante da companhia tratava na ilha todos os serviços de apoio à escala dos navios53 . Sabemos, ainda, que alguns madeirenses foram assalariados da companhia, servindo como fogueiros a bordo destes vapores. Em agosto de 191554 , regressaram à Ilha 14 fogueiros do vapor Walmer Castle, sendo rendi- dos no Funchal por outros 14. Em 191655 , José Fernandes dos Santos trabalhava a bordo do Dovegan como chegador, tendo falecido na viagem de Southampton. DN, 1915.08.29, p.3 DN, 27.06.1916, p.2 A Madeira foi exímia na arte de bem receber, de forma especial, aristocratas e políticos. Em 190956 , o Gen. Louis Botha; o príncipe Alberto Leopoldo da Bélgica, que depois foi rei, em viagem do vapor Amadale Castle, ao cabo da Boa Esperança e ao Estado Livre do Congo. Recorde-se que o General Louis Botha (1862- 1919)57 é referenciado com frequência na imprensa madeirense, sendo relevada a sua missão. Daí o empe- nho das autoridades com esta visita, na ida e no regresso, ao Funchal em 190758 e 190959 . Um outro Botha, Pik Botha, antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros da África do Sul, em 1998, é recebido no Funchal pelas autoridades regionais e emigrantes. São inúmeros os casos dos britânicos que transitaram entre os dois portos e que aproveitaram o interva- lo da paragem dos vapores para visitar o Funchal e serem mimoseados pela população e autoridades. Muitos dos funcionários da colónia portuguesa de Moçambique também utilizavam, por vezes, estes vapores60 , antes da abertura das rotas da companhia portuguesa em 1916. Os primeiros navios a sulcarem os mares da Madeira com serviço regular organizado foram os da referi- 52 BIDDLE, 1896, 101. 53 Cf. Heraldo da Madeira, 15.09.1905, p.5. 54 Diário de Notícias, 27 de junho de 1916, p.2. 55 Diário de Notícias, 29 de agosto de 1916, p.3. 56 Cf. DN, 4 de abril de 1907, p.1; id., 10.de abril de 1907, p.2; id., 16 de maio de 1907, p. 2. 57 Cf. ENGELENBURG, F. V., 1928, General Louis Botha, J. L. Van Schaik BPK, Pretória;MEINTJES, Johannes, 1970, General Louis Botha A Biography, Cassel, London; COETZER, Owen, 1996, The Anglo-Boer War: The road to Infamy, 1899-1900, Arms and Armour; FARWELL, Bryon, 1976, The Great Boer War, Allen Lane, London. 58 De acordo co o DN visitou o Monte e depois foi recebido pelo governador civil e comandante militar, que o acompanharam a bordo. Do Visconde Cacongo recebeu uma “soberba corbeille de flores” (DN, 10.de abril de 1907, p.2.). Depois no DN de 21 de agosto de 1915 (p.1) temos um editorial subordinado ao título “A Alemanha no Sudoeste Asiatico. O General Botha”. 59 Cf. DN., 14 de julho de 1909, p.2; id., 25 de Setembro de 1909, p.2. 60 Cf. DN, 10.5.1911, p.1. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 25
  • 26. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA da Mala Real Inglesa, a Royal Mail Steam Packet Company61 , com destino às Índias Ocidentais, e os da Union Castle Mail Steamship Company. O primeiro serviço de abastecimento de carvão no Funchal foi montado, em 1838, pelos Ingleses Jacob Ryffy e Diogo Taylor. A partir da déc. de 70 do séc. XIX, consolidou-se o predomínio da navegação a vapor nas rotas transatlânticas, sendo imprescindível o serviço de abastecimento de carvão. Assim, surgiram empresas apostadas neste serviço, primeiro, a firma Blandy Brothers, depois, em 1898, a Cory Brothers Co. Limited e, em 1901, a firma Wilson Sons C. Limited. Mas, a partir de princípios do séc. XX, os barcos da África do Sul passam a abastecer-se, no Natal, de carvão das minas sul-africanas, não precisando escalar o Funchal no retorno, o que se refletiu, de forma negativa, na Madeira. Mesmo assim, isto não se espelhou no movimento de passageiros em escala, tendo-se mesmo atingido, no período de 1902 a 1909, o maior valor de escalas, com 126.000 passageiros contabilizados entre 1906 e 1909. 61 Cf. Miller, W. H. (2017). Royal Mail Liners 1925-1971. Amberley Publishing Limited. DN. 1915.09.05, p.2 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 26
  • 27. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA A BORDO DOS VAPORES DO CABO O movimento dos vapores do Cabo era uma presença constante para o quotidiano dos Funchalenses. Poucos subiram a bordo, tirando os bomboteiros com permissão temporária ou os que seguiam viagem até Cape Town ou Southampton. A imprensa, nomeadamente o Diário de Noticias do Funchal, seguia atentamente o movimento destes vapores, dando conta quase a diário do que sucedia a bordo e nas paragens na baía e porto do Funchal. Sa- bemos das previsões de passagem no Funchal, dos atrasos por força de problemas com os temporais62 , na origem do porto de partida63 , por greve dos operários portuários em Southampton64 , porque os vapores do cabo eram tidos por pontuais65 , conhecemos as avarias e acidentes, que quebravam a rotina da rota66 e, acima de tudo, sabemos notícias dos passageiros mais importantes. Sabemos, ainda das mortes que ocorrem a bordo e que o destino do cadáver era o cemitério do mar67 . Na verdade, eram necessárias medidas de precaução, sobretudo se a causa da morte fosse alguma doença 62 Cf. Diário de Notícias, 31.10.1912, p.1. 63 Cf. Diário de Notícias, 3.4.1906, p.2. 64 Cf. Diário de Notícias, 14 e 27 de junho de 1911, pp.1.1. 65 Ricardo Jardim (2008, Uma Janela sobre o Mar, in Margem, 25, 44) recorda que “Mas vapores mesmo a sério, eram os da Union Castle, na carreira entre Southampton e Cape Town. Tão regulares como o relógio da Sé.” 66 Em 1905 (Cf. Diário de Notícias, 13 de julho, p. 1; Heraldo da Madeira, 13 de julho, p.1) uma explosão a bordo do Joanesburgh matou seis tripulantes. Em 1914 o Gloucester teve uma avaria nas máquinas no porto do Funchal, sendo substituído pelo Armadale (Cf. Diário de Notícias, 19 de janeiro de 1914, p. 2), depois em 1920 o Kinfaus foi impedido de encalhar junto ao arsenal de S. Tiago mas acabou por embater na galera Marga (Cf. Diário de Notícias, 13 de março de 1916, p.2). 67 Em 1912 uma criança que faleceu no percurso do Cabo para o Funchal (Cf. Diário de Notícias, 24 de abril de 1912, p.1).Em 1916 (Cf. Diário de Notícias, 27 de junho, p. 2) Manuel Fernandes dos Santos, madeirense que trabalhava a bordo como chegador, morreu no percurso de Londres para o Funchal, sendo lançado ao mar. SAXON (1899-). Union Castle Line Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 27
  • 28. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA contagiosa68 . Neste caso, havia que tomar especiais cuidados, provocando, naturalmente grandes transtornos para os passageiros69 . Ou eram algumas situações anormais que quebravam a rotina a bordo, havendo registos de prisões de madeirenses que viajavam em terceira-classe: em 191170 , Manuel da Nóbrega do Caniço e An- tónio da Silva da Fajã da Ovelha são chamados a depor na polícia sobre um roubo em dinheiro. Noutro furto sucedido em 1915,71 a bordo do Saxon, avisou-se o comércio local sobre o uso de papel-moeda nas compras. As escalas dos vapores provocavam sempre algumas cenas hilariantes ou desestabilizadores da calma que reinava no burgo. Em 190472 , chegou de Southampton, a bordo do vapor Kildonan, um casal desavindo. O cavalheiro Robert Saxton desembarcou com as malas e a senhora, Alice Stephen, foi reclamar à polícia, aca- bando depois por desembarcar e retornar a Londres. Em 1911, dois cidadãos ingleses, os irmãos Gastrede de Manchester, sendo um delegado do Ministério Publico em Manchester e o outro pugilista, sobem ao Monte e descem em carros de cestos, bebem vinho em demasia e acabaram por ser conduzidos à cadeia da cidade. DO COMÉRCIO: ENTRE O BOMBOTE E AS EXPORTAÇÕES Múltiplas razões fizeram com que o Funchal se afirmasse, a partir do séc. XVIII, como centro das trans- formações sociopolíticas operadas de ambos os lados do oceano. O arquipélago da Madeira não podia alhear- -se das mudanças políticas geradas pela difusão de novas ideias, na segunda metade de Setecentos. O seu protagonismo deve-se a vários fatores: a vinculação ao império britânico, que é evidente no quotidiano e devir histórico madeirenses dos sécs. XVIII e XIX, o fogo cruzado que se ateou entre o velho e novo mundo e o papel ativo da Madeira no relacionamento com a comunidade inglesa. No decurso do séc. XVII, o arquipélago firmou a vocação atlântica, contribuindo para isso o facto de os Ingleses não dispensarem os portos e os vinhos insulares na sua estratégia colonial. Os atos de navegação de 1660 e 1665, corroborados por tratados de amizade como o de Methuen (1703), abriram caminho para que as ilhas entrassem na órbita da influência inglesa. Aos poucos, a comunidade ganhou uma posição, por vezes incómoda, na sociedade madeirense. A feitoria inglesa é uma realidade insofismável no séc. XVIII e contribui- rá para firmar a vocação e protagonismo atlântico do porto do Funchal. A partir da década de 70 do séc. XVIII e até aos princípios do século seguinte, os conflitos que tiveram como palco os continentes europeu e americano alargaram-se ao Atlântico. Aliás, o oceano é um ativo pro- tagonista das disputas entre os três principais beligerantes: Espanha, França e Inglaterra. Era permanente a preocupação com a organização militar e a defesa da costa, porque o perigo espreitava no mar a qualquer momento. A conjuntura de afrontamento levou à presença dos corsários, com forte incidência em dois mo- mentos: o período que decorre entre 1744 a 1736, marcado pelo afrontamento de Inglaterra com a França e Espanha; a época das grandes transformações do século, com a proclamação da independência das colónias inglesas da América do Norte (e a consequente Guerra de Independência, até 1783) e a Revolução Francesa em 1779, com as convulsões que se seguiram até 1815. A dimensão assumida pela guerra de represália está bem patente nas presas. Perante o perigo da investida francesa, os Ingleses ocuparam a Madeira por duas vezes, sendo esta atitude entendida como uma forma de preservar os interesses dos “súbditos de sua majes- 68 Enquadra-se nesta situação a morte em 1916 de um passageiro da primeira classe por febre tifoide (Cf. Diário de Notícias,15 de janeiro de 1916, p.2). 69 Em 1910 a epidemia colérica no Funchal, vedou a escala dos vapores, que volta a acontecer a partir de 27 de fevereiro de 1911 (Cf. Diário de Notícias, 27 de fevereiro, p.1). Em 1912 procedeu-se à desinfeção da bagagem de dois passageiros (Cf. Diário de Notícias, 3 de julho de 1912, p.2). 70 Cf. Diário de Notícias, 2 de dezembro, p. 2. 71 Cf. Diário de Notícias, 5 de setembro, p. 2. 72 Cf. Diário de Notícias, 19 de novembro, p.3. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 28
  • 29. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA tade” e de estabelecer uma barreira ao avanço francês além oceano. O corso, que incidia preferencialmente sobre as embarcações espanholas e francesas, motivou uma resposta violenta das partes molestadas, como sucedeu com a investida francesa contra os Ingleses em 1793, 1797, 1814. A afirmação e controlo vital da vida económica e das relações externas levaram à conquista de novas regalias e a afirmação no plano político, por meio de tratados ou de uma interessada ligação, às autoridades da Ilha e do país. A feitoria, ao nível local, as autoridades consulares, no reino e na ilha, conjugavam-se para o mesmo objetivo. A situação dos Ingleses era especial. Desde o séc. XVII, a feitoria inglesa definiu um estatuto à parte para a comunidade, que lhe permitia ter conservatória e juiz privativo. O espírito de união da feitoria, que persistiu até 1842, favoreceu a posição na sociedade madeirense e demarcou o fosso com os naturais da Ilha. Com o tratado de 1661, abriram-se, de novo, as portas para o domínio inglês do mercado insular, mercê de medidas de privilégio e da isenção dos direitos de exportação do vinho. Em 1689, foi-lhes concedida a faculdade de se fixarem com casas comerciais de vinho, comestíveis e manufaturas, fazendo entrar na Ilha os artigos de luxo. Com o Tratado de Methuen, em 1703, pôs-se cobro à situação criada em 1684, ao mesmo tempo que se afirmou a dependência do mercado local ao mercado inglês. Os portugueses tornaram-se con- sumidores dos panos ingleses e fornecedores de vinho ao mercado inglês. Segundo A. Rodrigues de Azevedo, o Tratado trouxe para a Madeira a mais apertada vassalagem ao mercantilismo britânico. Daí que a entrada da África do Sul na órbita colonial inglesa se assuma como algo importante para a Madeira. Desde as últimas décadas do séc. XVIII que temos notícia da exportação do vinho para o Cabo da Boa Esperança: em 1792, são 6 pipas e, em 1796, tivemos 18 pipas. Depois, entre 1823 e 1847, apenas 41 pipas de vinho foram carregadas por João Cairns, Diogo Bean, João Caetano Jardim, Scott Pringle With & Ca., Richard Dover, Newton Gordon Murdoch & Scott, Grouth & Holway73 . Outra informação avulsa aparece no séc. XX (nos anos de 1904, 1905, 1907 e 1912), destacando a solicitação de vinho para Durban, entre 1904 e 1907, num total de 1 quartola, 32 quartos e 36 caixas de vinho Madeira. (Ver anexo: quadro 1) Como se pode verifi- car, não se tratava de um mercado muito significativo, em termos do consumo do vinho Madeira, tanto mais que, a partir do séc. XVII, com os huguenotes franceses, esta cultura chegou ao cabo da Boa Esperança, sur- gindo no século XIX como concorrencial do Madeira.74 O vinho do Cabo tornou-se concorrente do Madeira no mercado inglês desde 1815, retirando-lhe lugar, a partir de 182575 . Mesmo assim, o vinho Madeira continua a aparecer no mercado da África do Sul, mantendo um grupo de apreciadores ingleses. Entre finais do séc. XIX e princípios da centúria seguinte, a economia foi muito valorizada com esta nova demanda de produtos pelos forasteiros, mercadoria muitas vezes oferecida a bordo, pelos chamados bomboteiros, que tiveram um papel muito importante junto deles. Pelas suas mãos, saíram todo o tipo de bordados e obras de vimes, produtos que acabaram por estar limitados pelas barreiras alfandegárias nos por- tos de destino. Em 1928, passou a existir uma taxa portuária, no valor de 3 a 7 xelins, para produtos saídos, como cadeiras ou sofás de vime, provocando uma reação veemente da Câmara de Comércio e Indústria da Madeira, 23 de janeiro. Este comércio de obras de vime era frequente com a África do Sul desde finais do séc. XX, registando-se a saída de 96 t, no ano 1896. Depois disso, entre 1904 e 1912, aparecem registos sobre a exportação de vime e obras de vime. Assim, temos 111 molhos de vime, em 1411 atados de obras de vime e 3050 volumes em obra de vime. Este movimento, nomeadamente com a Cidade do Cabo, transformava a vida do Funchal, que vivia quase exclusivamente para o porto. Os jornais anunciavam diariamente tudo o que deveria acontecer, relativamente ao movimento de navios na baía e todos os madeirenses estavam avisados do movimento dos vapores do cabo. 73 Cf. VIEIRA, Alberto, 2003, A vinha e o vinho na história da Madeira, séculos XV-XX, Funchal, CEHA, pp. 266, 394, 524. 74 Cf. VIEIRA, 2003, pp. 250, 380, 394, 452; P. P. Câmara, Breve Notícia Sobre a Ilha da Madeira, Lisboa, 1841, in Alberto VIEIRA, História do Vinho da Ma- deira. Documentos e Textos, Funchal, 1993, p. 378. 75 Cf. DN., 15 de Setembro de 1905, p.1; Vieira, Alberto, 2003, A Vinha e o Vinho na História da Madeira, Funchal, CEHA, p.394 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 29
  • 30. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA À passagem dos vapores do Cabo, a economia revigora. O período de paragem dos vapores para refresco da embarcação pelos empregados da Casa Blandy76 , tomada e desembarque de passageiros é aproveitado pelos que estão em trânsito para visitar alguns locais da cidade e arredores e adquirir algum dos produtos aos vendedores, no mar e em terra. A imprensa dá conta das necessidades diárias de um destes vapores, que im- plicavam estes refrescos em diversos portos. O Funchal era um deles, que manteve esta vocação até à década de sessenta do século XX. A falta de embarcações e de movimento de passageiros no porto causa apreensão, porque a economia fica parada e não se vendem produtos77 . Mas o aparecimento súbito de uma esquadra pode ser motivo de apreensão e de dificuldades, com o açabarcamento dos produtos pelos vendedores para aproveitar a oportunidade78 . 76 Cf. DN, 15 de setembro de 1905, p.5. Em 1906 (Cf. DN, 23 de maio de 1906, p.2) este serviço de refresco às embarcações comerciais como as esquadras militares, é questionado pelo fato de provocar a carestia de vida na cidade. 77 DN., 21 de dezembro de 1894, p.1. A imprensa refere as necessidades de provimento de um paquete: navios da Deutschland (DN, 9.de novembro de 1904, p.2; id., 7 de setembro de 1906, p.2), ou do Normandie (DN., 30 de novembro de 1934, p.1). 78 DN., 16 de novembro de 1895, p.2; id., 23 de maio de 1906, p.2. DN, 22.7.1904, p.2 DN.31.12.1903, p.2 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 30
  • 31. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA A atividade comercial com o cabo da Boa Esperança não se limita ao vinho e alarga-se a uma diversidade de produtos, alguns apenas com destino a este porto. Disto nos fala Michael Comport Grabham (1840-1935), casado com Mary Anne Blandy (1834-1914): “Exportam hortaliças verdes em grande quantidade, as bananas formam um negócio importante; e é tal procura de ovos para o cabo de Boa Esperança, que esta pequena mas admiravelmente fértil Ilha, chega a produzir e empacar, em cesto indígenas, muito bem-feitos, e exportar mais de 200.000 ovos por semana, para povos distantes inúmeras léguas”79 . Sobre os ovos, situação exce- cional nas exportações madeirenses, temos testemunho na imprensa nas exportações da Alfândega apenas entre 1900 e 1907, com a saída de 38658 cestos com ovos. (ver anexo 2). O Cabo da Boa Esperança parece ter sido o mais importante destino nesta exportação de ovos madeirenses, podendo-se juntar ainda o caso da cidade de Swakopmond na Namíbia, com uma colónia alemã desde 1892 e um importante eixo de afirmação deste império na costa ocidental africana80 . Todo este movimento de mercadorias e passageiros acaba por ser perturbado com as guerras mundiais (1914-1919 e 1939-45) com consequências evidentes para a economia funchalense, tão dependente deste movimento dos vapores. Há restrições na saída de qualquer produto alimentar, refletindo-se no serviço de apoio à navegação oceânica e exportações81 . Esta medida atinge a ex- portação dos ovos que é proibida em 191582 . A última informação que a imprensa regista da exportação de ovos para a África do Sul reporta-se a 14 de dezembro de 190783 . O mercado da África do Sul foi ainda abastecido com diversas frutas, nomeadamente figos, peros e banana. Dos primeiros, temos a saída, em 6 de janeiro de 190584 , de seis caixas de figos, que, nesta altura, só podem ser secos. Surge, ainda, a fruta madura da Ilha, fundamentalmente peros – tivemos a quantia de 160 cestos e 1006 caixas de peros, a que se juntam caixas com a identificação de frutas, em 7339 caixas e em 4051 cestos (ver anexo quadro:1). Temos, ainda,em 1904, a saída de 645 caixas e 110 grades de cebola e 12 caixas e 6 cestos de alhos, que, pela informação que temos de Demerara, deveria ser para a alimentação dos madeirenses, que atribuíam grande valor a estes ingredientes na sua dieta alimentar nesta época. Por outro lado, sabemos que, em 1906, seguiram duas grades de bananeiras para o Natal. O mesmo poderia ter sucedido com as parreiras madeirenses. Mas a grande força das exportações estava nos artefactos de obra de vimes, que surgem como 7713 atados, 5236 volumes de obra e 46 molhos de vimes (ver anexo quadro 1). 79 GRABHAM:1901, 29. 80 A informação deste comércio está documentada entre abril de 1905 e março de 1907. Cf. DN, 14 de abril de 1905, p. 2; id., 7 de junho de 1905, p. 3; id., 8 de setembro de 1905, p. 2; id., 1 de outubro de 1905, p. 3; id., 10 de fevereiro de 1906, p. 3; id., 8 de abril de 1906, p. 2; id., 9 e 31 de maio de 1906, pp. 3, 3; id., 11 e 24 de julho de 1906, pp. 3, 3; id., 8 e 24 de agosto de 1906, pp. 3, 3; id., 11 e 26 de setembro de 1906, pp. 3, 3; id., 11 e 25 de outubro de 1906, pp. 3, 3; id., 10 de novembro de 1906, p.3; id., 13 de dezembro de 1906, p.3; id., 7 de março de 1907, p. 3. 81 A carestia de vida com a guerra atinge a cidade (Cf. DN, 22 de agosto de 1914, p.1; id., 19 de agosto de 1914, p.3) e obriga a várias medidas pelas auto- ridades (cf. DN, 21 de outubro de 1915, p. 2 e 3; id., 12 de julho de 1917, p. 2). 82 Cf. DN, 15 de junho de 1915, p.1; id., 15 de setembro de 1915, p.2; id., 19 e 21 de outubro de 1915, p. 2 e 3; id., 3 e 13 de dezembro de 1919, p.3, 3; 83 Cf. DN, 14 de dezembro de 1907, p.3. 84 DN, 6 de janeiro de 1905, p.2. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 31
  • 32. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA DA MIRAGEM DAS BARRAS DE OURO E PENAS DE AVESTRUZ Certamente que a presença destes produtos nos vapores que vinham do Cabo, rumo a Inglaterra não eram visíveis aos passageiros e tão pouco aos funchalenses, mas a notícia da sua passagem nas colunas do Diário de Noticias fazia alimentar a cobiça e sonhos de uma riqueza fácil. Para o período de 1911 a 1914, foi noticiada a passagem de 24834 barras de ouro e 2869 caixas de penas de avestruz (ver anexo 3 e 4) Fotografia de uma fazenda de avestruzes na África do Sul é parte da Coleção de Frank e Frances Carpenter da Biblioteca do Congresso. Frank G. Carpenter (1855-1924) DN. 1911.08.30, p.2 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 32
  • 33. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA MOBILIDADES: ENTRE A LEGALIDADE E CLANDESTINIDADE A emigração foi uma constante da sociedade madeirense, na segunda metade do século XIX, sendo alimentada pelas incessantes solicitações do mercado internacional da mão-de-obra, assim como pelas difí- ceis condições de vida dos madeirenses provocadas pela crise económica, ou pela forma opressiva como se definiu o sistema de propriedade da terra, através do contrato de colonia. A emigração era assim considerada a única fuga possível à fome como a esta servidão. No século XIX as condições não foram favoráveis ao madei- rense. A crise do comércio e produção do vinho pautou a conjuntura económica, provocando crises de fome. A escalada da emigração continuou, na última década do século XIX e princípios do XX mantendo-se os países de destino, com especial destaque o Brasil e Estados Unidos. A grande depressão dos anos trinta levou ao encerra- mento das portas de alguns países, enquanto se abriram outros novos, como a África do Sul, e reabriu-se, em 1939, o Brasil. As duas guerras mundiais (1914-18, 1939-45) provocaram nova leva de emigrantes. O Brasil continuou a ser um dos destinos preferenciais da maioria dos madeirenses, mas as opções alargaram-se a outros mercados recetivos de mão-de-obra. Nos anos de 1936 e 1948, tivemos a emigração orientada pela companhia Shell para o Curaçau que permitiu a saída de muitos madeirenses. De acordo com José Fernandes Moreira da Cunha, a Madeira teria enviado para aquele destino 7734 emigrantes, entre 1937 e 1940. DN.-14.10.1902, p.2 DN.- 29.1.1897, p.2 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 33
  • 34. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Muitos destes homens deram o salto para a Venezuela que, conjuntamente com o Canadá, Austrália, América do Sul e as colónias portuguesas de Angola e Moçambique foram os novos destinos. As sequelas económicas da segunda guerra mundial fizeram-se sentir em toda a ilha, mas de modo especial no norte. Deste modo, quando se abriram as portas da emigração na América, nomeadamente no Brasil, Venezuela e África do Sul, a saída foi geral. O recrutamento de emigrantes contou com o apoio do Governo Civil e dos consulados no Funchal, que atuavam como angariadores de potenciais emigrantes. A Venezuela manteve, desde princípios do século XX até 1958, uma política de portas abertas o que permitiu a emigração de muitos europeus e, no caso português, de um grupo importante de madeirenses. Em 1960, a população portuguesa na Venezuela era superior a 40.000, sendo constituída na sua maioria por madeirenses. Nos anos cinquenta, este foi o principal destino da emigração madeirense, tendo acolhido 14.424 emigrantes da ilha. A presença madeirense alargou-se também a outros quadrantes, sendo de salientar a África do Sul e Austrália. No século XIX, a rota regular dos vapores do cabo que escalavam o Funchal permitiu a definição de um novo rumo para a emigração madeirense. Mas esta presença torna-se mais notada a partir de 1904 no sector da pesca, mas foi nos anos cinquenta que este destino ganhou dimensão, tendo saído 5118 madeirenses com esse destino. As décadas de cinquenta e sessenta foram momentos de forte imigração tendo como principais destinos a Venezuela, Brasil, África do Sul, Estados Unidos, Canadá e Austrália. A crise que envolveu a ilha lançando a mão-de-obra para o desemprego, as dificuldades de recrutamento de imigrantes no velho continente, onde eram necessários na frente de batalha, transformou a Madeira num centro importante de recrutamento de homens para as atividades da Shell no Curaçau, ou para o incremento da indústria brasileira, venezuelana e sul-africana. Os dados oficiais disponíveis atestam da evolução destes rumos da emigração madeirense após a Segunda Guerra Mundial e evidenciam que os destinos da emigração madeirense se diversificaram de acor- do com a demanda de mão-de-obra e as oportunidades oferecidas pelos principais mercados de trabalho. DN, 8.9.1904, p.2 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 34
  • 35. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA O Brasil manter-se-á como um destino preferencial, associando-se, depois, Demerara e, no século XX, a África do Sul, o Curaçau e a Venezuela. No ano de 1904, a África do Sul é considerada a “preferência dos nossos emigrantes.”85 Daí um movimento forte de emigrantes e a pressão dos clandestinos, que esbarram com as limitações impostas pelas autoridades e aumentam as exigências e fiscalização das autoridades sul- -africanas, gerando alguma tensão na rota e uma grande preocupação para os madeirenses. E, numa altura em que fechara o mercado de Demerara, ao aumentar a pressão do movimento migratório sobre a África do Sul, estas dificuldades em Durban e Cabo não vinham a calhar para os insulares. Daí a apreensão na rota e as notícias de algumas situações86 . É nesta altura que a rota secundária pela Beira e Lourenço Marques ganha mais importância., assumindo-se como a rota mais importante dos clandestinos madeirenses. EMIGRAÇÃO MADEIRENSE. 1945-1979 Destino 1945-49 1950-59 1960-69 1970-79 Brasil 3.279 22.233 4.534 497 EUA 726 290 326 1.202 Canadá 249 412 763 Venezuela 2.150 15.904 22.833 15.758 África do Sul 2.526 5.118 579 683 França 31 1.017 Alemanha 2 51 Antilhas Holandesas 2.115 129 Outros 823 519 Total 11.619 44.442 28.717 5.788 85 Cf. DN., 6 de abril de 1904, p.1. Atente-se que entre Janeiro e Fevereiro de 1903 tivemos 47 passaportes para o Cabo e 26 para Moçambique. (DN., 1 de junho de 1904, p.1). Há que ter em conta que o passaporte para Moçambique tinha um custo mais baixo, daí que “muitos destes pedem passaporte para Lourenço Marques por lhes sahir mais barato, e ficam no Cabo”, mas acabam por concluir a viagem nesta primeira paragem no Cabo. (id., p.1) 86 Cf. DN., 17 de março de 1904, p.2; id., 6 de abril de 1904, p.1;id., 25 de maio de 1904, p. 1; id., 1 de junho de 1904, p.1; id., 23 de junho de 1904, p.2; id., 17 de agosto de 1904, p.2. DN. 1914.07.09, p.1 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 35
  • 36. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA ÁFRICA DO SUL H M TOTAL 1945 139 63 202 1946 70 21 91 1947 21 7 28 1948 177 78 255 1949 88 75 163 1950 128 91 219 1951 222 100 322 1952 192 114 306 1953 174 95 269 1954 373 125 498 1955 602 243 845 1956 699 330 1029 1957 307 247 554 1958 308 201 509 1959 215 352 567 1960 317 181 498 1961 699 217 916 1962 383 179 562 1963 96 128 224 1964 275 332 607 1965 160 206 366 1966 116 124 240 1967 142 1973 148 1974 207 1975 76 1976 73 1977 34 1978 33 1979 79 1980 33 1982 9 FONTE: Recolha nossa das fontes estatísticas, BESSA, 2009. DN. 1951.06.21, p.3 DN.1951.06.10, p.4DN.1914.06.11, p.1 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 36
  • 37. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Que importância devemos atribuir a estes valores, quando esta emigração na segunda metade do século XX foi marcada por fugas e chegadas clandestinas? A emigração madeirense para a África do Sul, por força de contingências específicas, que vedavam muitas vezes aos madeirenses uma entrada legal no país, optou, em muitos casos, pela clandestinidade. Daí que os números oficiais estejam muito aquém da realidade desta mobilidade madeirense para aquele país.87 A título de exemplo registe-se que, em 1950,88 são dados como ilegais 900 madeirenses e destes apenas 265 se haviam registado para receberem os papéis do governo que davam abertura à sua legalização. DN.-29.1.1897, p.2 Em janeiro de 189789 , foram detidos, no vapor Trojan, seis madeirenses, todos naturais do Estreito da Calheta. Em setembro de 190390 , um rapaz, João Gonçalves Serrão da Ponta do Pargo e dois da Calheta foram repatriados pelo vapor Norman por ter embarcado de forma clandestina. Por ser praça da segunda reserva, foi entregue à autoridade militar. Depois, em julho de 190491 , há notícia de que o madeirense, Manuel de Abreu, da Tabua, que fora cabo de polícia e intérprete na administração do concelho de Lourenço Marques, arranjava, por 5 a 30 libras, passaportes falsos para a saída de madeirenses para o Transval, tendo-se desco- berto a situação. Em julho de 1911, um outro madeirense, com 12 anos de emigrante, foi expulso do Cabo por aí estar estabelecido com “casa suspeita”. Em meados do século XX, a rota da emigração clandestina para a África do Sul tinha em Lourenço Mar- ques e na Beira um eixo fundamental. Poderia navegar-se nos vapores do Cabo, mas a viagem prolongava-se até à colónia portuguesa de Moçambique, donde se alcançava clandestinamente a África do Sul. Desta forma, Moçambique era, para muitos madeirenses, a terra do “salto para a África do Sul”92 . Normalmente, esta rede cobrava oito contos de reis, mas este serviço clandestino poderia chegar aos 30 contos. Nas décadas de cin- quenta e sessenta, esta situação dos emigrantes clandestinos era um problema e surgia, frequentemente, na imprensa madeirense, fazendo eco da de Lourenço Marques. Em 1950, foram 900 ilegais, em 196293 ,foram outros 25 e, em 1968, tivemos outros 300 madeirenses nessa situação94 . Em 196095 , dá-se conta da prisão de 87 Atente-se à informação da imprensa local e a alguns estudos com Glaser (2010, 2012, 2013). 88 DN., 6.VII.1950, p..6. 89 DN., 29 de janeiro de 1897, p. 2. São eles: Manuel Pereira Serrão, solteiro, António Gonçalves Salgado, casado, Manuel Lourenço, Solteiro, Domingos Lourenço, solteiro, João Luís, casado. 90 DN., 17 de setembro de 1903, p. 2. 91 DN., 8 de julho de 1914, p.1. 92 DN, 18.XII.1960, p. 4 93 DN., 3. X.1962, p.1. 94 DN. 20.VII.1967, pp.1-3. 95 DN., 20.IX.1960. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 37
  • 38. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 300 madeirenses que vieram a salto para a África do Sul. A isto junta-se um grupo de 31 que foram capturados na fronteira de Ressano Garcia, num camião onde se incluíam 9 menores. Todos foram condenados a três meses de prisão e depois expulsos a Moçambique. Todavia, da parte do governo sul-africano, em diversos momentos, nota-se alguma tolerância, dando-se, em 1948 e 1960, licença temporária de três meses para a sua legalização96 . 96 Idem. DN. 1914.07.09, p.1 DN. 5.12.1894, p.1 DN. 1951.01.18, p.4 DN. 13.VIII.1905, p.2 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 38
  • 39. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA A pressão da emigração na segunda metade do século XX e o interesse manifestado pela República Centro Africana levou a que o Governo Civil interviesse, coordenando e apoiando a saída de alguns grupos de madeirenses para a agricultura e a pesca, ficando. os madeirenses conhecidos por estas duas atividades. Em 196797 , a agricultura parecia ser a marca identitária do madeirense que adquire um lugar de destaque no mercado das hortaliças e da fruta. Os primeiros 25 pescadores foram contratados em 195198 , preparan- do-se as mesmas empresa para contratar mais 2499 . Em 1959100 , tivemos mais um grupo recrutado entre os pescadores de C. Lobos, Caniçal, Machico, Madalena do Mar, Paul do Mar, Ribeira Brava e Funchal. Depois, em 1962101 , seguiu outro grupo, recrutado nas mesmas localidades. No caso destes pescadores, as condições eram muito favoráveis, pois não tinham quaisquer despesas com a documentação e transporte. Entretanto, de janeiro a junho de 1977, temos a informação de um pedido de pescadores madeirenses para a safra do atum. Os livros de passaporte, de que temos registo desde 1872 até 1915102 , testemunham os pedidos de passaporte por parte de 962 madeirenses (362 entre 1872 e 1900 e de 600 entre 1901 e 1915), o que revela ter havido uma forte incidência de pedidos nos primeiros anos do séc. XX. As solicitações são feitas a partir do Estreito da Calheta, Calheta, Prazeres, Fajã da Ovelha, Jardim do Mar, Canhas, Paul do Mar, Ponta do Sol, Ponta do Pargo, R. Janela, Porto Moniz, Machico, Gaula, Estreito de Câmara de Lobos, Caniço, Boaventura, Camacha e das diversas freguesias do Funchal (Monte, São Gonçalo, São Pedro, Santa Maria Maior). A partir de 1878, houve diversos cidadãos sul-africanos que pediram o passaporte, por razão da sua estância temporária, em escala, na Ilha. O primeiro que temos registado é “Mrs. Duncan”103 . No séc. XIX, a maioria dos registos é para o Cabo da Boa Esperança; apenas em 1896, há registos de outros locais, em con- creto, Natal e, em 1900, Durban. A partir de 1901, passa a definir-se o destino como África do Sul, surgindo ainda outros: Transval (1910-1916), novamente Natal (1902-1915) e Durban (1900, 1912). Em 1901, manifestaram o interesse de sair Agostinho de Agrela Helena, Francisco Gomes, Agostinho Ferreira Neto, Domingos Teixeira, Francisco Gonçalves Cabeleira, João da Câmara, João Rodrigues Faias, João de Sousa Júnior, João Sardinha Branquinho, Manuel Afonso Jardim, João Fernandes Camacho, António de Agrela, João Rodrigues Faias, Agostinho Ponte Santo António, João Rodrigues Jardim, João Nunes e outro com o mesmo nome, também do Paul do Mar, Manuel de Agrela, Manuel Ferreira Gomes, Manuel de Agrela Rei Júnior, Manuel Correia e sua mulher Philley Correia, Manuel Ferreira Ferro, Manuel Gonçalves Borragei- ro, Manuel Gonçalves da Costa, Manuel Gonçalves Guerra, Manuel Rodrigues Sequeira, Manuel de Sousa Alegria, António de Abreu Pestana, Maria Elisa Figueiroa Silvado, Ilda, sobrinha de D. Maria Elisa Rodrigues, Tomé António de Abreu, Maria da Conceição de Sousa, Olímpia Fernandes, Manuel dos Santos da Câmara, Agostinho Joaquim com sua mulher Narcisa Joaquina, António de Abreu Pestana, António de Agrela, António Fernandes Pateta. A maioria é proveniente da Calheta e Estreito da Calheta, o que parece indiciar uma emigração em gru- po, que poderá ter, na origem, algum angariador. Temos informações de que o mesmo nome Agostinho de Agrela Helena, denominação pouco vulgar, surge, em 1903, a pedir autorização para embarcar, de novo, com 97 id., 21.VIII.1967, p. 1-3. 98 id., 28.I.1951, p.1. 99 id., 26.X.1951, p. 1. 100 id., 31.V.1959, p. 1. 101 ID., 14.3.1962, pp.1-4. 102 Cf. Arquivo Histórico da Madeira, 2000, Índice de Passaportes, 1872-1900. Boletim do Arquivo Regional da Madeira. Série de Índices de Passaportes-1, Funchal, Arquivo Regional da Madeira; Arquivo Histórico da Madeira, 2005, Índice de Passaportes, 1901-1915. Boletim do Arquivo Regional da Madeira. Série de Índices de Passaportes-2, Funchal, Arquivo Regional da Madeira. 103 Arquivo Histórico da Madeira, 2000, Índice de Passaportes, 1872-1900. Boletim do Arquivo Regional da Madeira. Série de Índices de Passaportes-1, Funchal, Arquivo Regional da Madeira; p.19. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 39
  • 40. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA destino ao Cabo da Boa Esperança, em 1907, em 1912, para os EUA e, em 1909, para o Brasil. Por outro lado, assinala-se o número dos oriundos do Jardim do Mar e Paul do Mar, o que poderá indiciar o facto de se terem dedicado à atividade piscatória, contribuindo para a importância dos madeirenses neste sector. Surgem ainda informações de que, neste grupo, se inclui gente da Ponta do Sol, Ponta do Pargo, Prazeres, Caniço e Fajã da Ovelha. Para o período de 1872 a 1915, temos uma emigração madeirense de origem diversificada, não obstante com forte incidência no Estreito da Calheta, com 178 pedidos, seguido de Prazeres, com 79 e Fajã da Ovelha, com 74. Para o período de 1872 a 1900, este movimento parece ter apenas como destino o cabo da Boa Es- perança, pois, dos 260 pedidos de passaportes, só 2 foram para Durban, em 1900104 . Já no novo século, foram pedidos passaporte para a República Sul-Africana: o destino do Cabo continua a ser maioritário, mas temos 27 pedidos para Natal (1902, 1906, 1911, 1913, 1914 e 1915), 4 para Joanesburgo/Transval (1911 e 1913), 29 para Transval (1906, 1911, 1912, 1913 e 1914) e 1 para Durban (1912105 ). Alguns episódios marcaram de forma estranha esta mobilidade madeirense para a África do Sul, entre fi- nais do séc. XIX e princípios do seguinte. A 17 de outubro de 1894106 , saiu do Funchal, a bordo do vapor Scott, Maria Júlia Rodrigues, para se juntar ao marido no Cabo, mas, um dia antes da chegada, atirou-se ao mar e morreu. No mesmo sentido, a 27 de dezembro de 1905107 , António Baptista, após sete anos na África do Sul, decidiu fazer uma surpresa à família, mas, ao chegar a casa, na Camacha, encontrou a esposa morta, tendo o falecimento ocorrido momentos antes da sua chegada. Em princípios do século XX, a África do Sul estabelece mecanismos de entrada de qualquer emigrante. Assim, a entrada no Cabo obrigava a alguns requisitos: “não ser analphabeto, possuir umas certas habilita- ções literárias e meios pecuniários para a sua subsistência…”108 . Ora a maioria dos madeirenses não preenchia estas condições, obrigando-se a tentar uma viagem como clandestino a bordo dos navios que escalavam a Madeira, ou então a viagem até Lourenço Marques, entrando, clandestinamente, por terra. Recorde-se que, em 1909109 , dos 8436 emigrantes com origem nas ilhas, apenas 1972 sabiam ler, dado revelador de que a maioria era analfabeta, não tendo possibilidade legal de acolhimento na África do Sul110 . Atente-se ao facto de que a Union Castle aparece, desde 1904111 com escalas na Beira e em Lourenço Marques, o mesmo suce- dendo com a Companhia Nacional de Navegação que, a partir de 1906112 tinha escala no Cabo, na viagem de destino à Beira. Esta situação favoreceu essa rede de emigração clandestina, que tinha no Funchal e em Mo- çambique protagonistas que asseguravam o serviço aos madeirenses analfabetos. Consideramos, também, que os clandestinos deveriam contar com alguma organização de apoio nas embarcações inglesas, em ligação com engajadores funchalenses. Com vinte libras, estava garantido o acesso a bordo dos clandestinos113 . De- pois, ficavam entregues à sorte, mas o processo acabava sempre à chegada com a prisão e o repatriamento. 104 Id., p. 95 e 464. Refere-se a Carolina de Abreu, criada de Cândida Rodrigues, do Estreito de Câmara de Lobos. 105 Id., p. 127. Refere-se a João de Gouveia da Fajã da Ovelha. 106 DN, 5 de dezembro de 1894, p.1. 107 DN., 4 de janeiro de 1905, p.1 108 DN., 19 de novembro de 1903, p.1. Referem-se 22 madeirenses que havia tentado entrar no Cabo, mas por falta destes requisitos a companhia Union Castle teve de pagar ao Governo do Cabo 1.200 libras. Depois foi o caso de cinco rapazes, que tiveram de retornar à ilha, assumindo a Companhia os custos da situação. (Cf. 21 de novembro de 1903, p. 1). 109 Cf. DN., 2 de março de 1912, p. 2. Aqui, ainda se comenta que “A miséria intelectual do emigrante português é, pelo menos, igual à sua miséria material.” 110 A forma como se processava o movimento de venda de produtos regionais aos passageiros em trânsito, através dos bomboteiros, das suas canoas no mar, propiciava esta possibilidade. Cf. VIEIRA, Alberto, 2016, Bombote e Bomboteiros, in Aprender Madeira, (on line), Disponível na Internet em: http://aprenderamadeira.net/bombote-e-bomboteiros/. Consulta a 13.10.2018; FARIA, Cláudia e ALVES, Graça, “Atividades Sócio-Poéticas: o Bom- bote, a Mergulhança”, Anuário 2013, Centro de Estudos de História do Atlântico, Funchal, 2013, pp. 261-279. 111 Cf. DN., 7 de abril de 1904, p.1; id., 22 de julho de 1904, p.2; id., 26 de agosto de 1904, p.2. 112 Cf. DN, 14 de dezembro de 1906, p. 2, por ordem ministerial. As informações da imprensa referem esta escala. Cf., id., 24 de fevereiro de 1916, p.4; id., 12 de março de 1931, p. 5. 113 Cf. DN., de 26 de Novembro de 1889, p. 2. Sabemos disto pelo processo não concretizado da fuga de João Mendes da Madalena. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 40
  • 41. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA O julgamento por esta situação poderia conduzir a uma multa de 20 libras ou três meses de prisão, como sucedeu em 1897114 a João Vieira. Para obstar esta onda de emigração clandestina, surgiu a polícia de emigração distrital que, a partir de julho de 1904115 , passou a fiscalizar a bordo116 , os navios em escala. A imprensa assinala diversos aconteci- mentos relacionados com tentativas frustradas de saída para diversos destinos, incluindo a intrusão ilegal a bordo dos vapores do Cabo: em 1897117 , foi apanhado José Vieira que, por esta via, tentava seguir “à procura de fortuna”, mas não teve sorte acabando descoberto e julgado a pagar multa de 20 libras ou três meses de prisão, gorando-se a intenção. A 20 de agosto de 1902118 , a bordo do vapor Carisbrook Castle, de quatro rapazes que pretendiam viajar para a África do Sul, apenas um, José Fernandes de S. Martinho foi preso, “porque os outros se evadiram a tempo, saltando para as barcaças onde conseguiram pôr-se fora do alcance da polícia.” Depois, em outubro do mesmo ano, outros dois rapazes foram encontrados a bordo de um va- por do Cabo119 . Em 1904, António de Freitas Ponte, da Calheta “foi detido por haver desconfiança de querer embarcar clandestinamente para o Cabo da Boa Esperança andando fugido ao recenseamento militar”120 . No verão, um rapaz sem passaporte veio preso de regresso ao Funchal, mas, ao chegar à baía, atirou-se ao mar e fugiu121 . A questão do recenseamento e serviço militar eram uma importante condicionante para os jovens que queriam emigrar. Em 1914122 , Constantino de Castro para poder sair com destino ao Cabo, teve de entre- gar fiança na Administração do Concelho, uma vez que era soldado reservista. Já em 1918123 , José Coelho de Santa Cruz foi apanhado indocumentado a bordo do vapor Kenilworth Castle com destino ao Cabo. Desta forma, refratários e clandestinos são uma preocupação para as autoridades e a Union Castle. O princípio do século XX foi difícil para os madeirenses na África do Sul. Este destino, que parecia promissor, en- frenta a dificuldade da fiscalização das autoridades às medidas que obrigavam os emigrantes que chegavam 114 DN,11de dezembro de1897, p. 2. 115 Cf. DN., 19, 21, 24 de novembro de 1903; pp.1, 1,1; id., 6 e 26 de abril de 1904, pp. 1, 1; id, 4 de maio de 1904, p.1: id., 21 de julho de 1904, p.1. 116 Cf. DN., 21 de julho de 1904, p.1; id., 9 de agosto de 1904, p.1. 117 DN, 11 de dezembro de 1897, p.2. 118 DN, 21 de agosto de 1902, p.1. 119 DN, 22 de outubro de 1902, p.1. 120 DN., 7 de outubro de 1904, p.2. 121 Cf. DN, 17 de agosto de 1904, p.2. 122 DN., 8 de janeiro de 1914, p.2. 123 CF. DN, 21 de fevereiro de 1918, p.1. DN. 23.9.1903, p2.DN. 29.1.1897, p.2 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 41
  • 42. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA a Capetown a “Saber ler e escrever e ir provido, no acto da chegada, com uma importância em dinheiro não inferior a vinte libras.”124 . Estas exigências eram mais valorizadas que o passaporte. Em 1902, dos 45 madei- renses chegados ao Cabo temos 37 detidos por serem pobres e analfabetos125 . Em maio de 1904, foram repa- triados vários indivíduos da Calheta, “por não terem apresentado 50 libras de harmonia com as disposições legaes que ali estão em vigor em respeito à emigração.”126 Quando descoberto, o clandestino era condenado a pagar a multa de 15 libras ou prisão. A 23 de junho de 1904, Manuel Nunes e Feliciano Abreu foram denunciados condenados em Southampton e repatriados para a Madeira, Desagradados com a situação, estes condenados madeirenses, acabaram fazendo alguns estragos a bordo. Eram a expressão da revolta de um sonho desfeito. 124 Cf. DN, 6 de abril de 1904, p.1. Mas em 17 de agosto de 1904 ( Cf. DN., p.2) um rapaz sem passaporte foi preso e recambiado para a Madeira. Este valor de 20 libras era considerado um fator de travagem desta emigração, pois antes eram apenas 5 libras. (Cf. DN., 17 de março de 1904, p.2) 125 Cf. DN, 11 de junho de 1904, p.1. 126 Cf.DN., 25 de maio de 1904, p.1. DN. 1916.04.20, p.1 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 42
  • 43. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA O “POIO MADEIRENSE” NA ÁFRICA DO SUL Desde princípios do séc. XX que se tornou notória a presença da comunidade madeirense na África do Sul, nomeadamente em Pretória e Joanesburgo. Os madeirenses tiveram uma função importante na pesca e na agricultura. No primeiro caso, dominaram o mercado de tunídeos e de lagosta, enquanto, no segundo, detiveram o controlo dos produtos hortícolas. Sempre foram a comunidade mais representativa dos portu- gueses, constituindo mais de metade dos emigrantes, o que lhes permitiu antes e ainda no começo do séc. XXI uma posição importante na sociedade. 15.1.1905, p.1 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 43
  • 44. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA O P.e Mário José Lobo de Matos, natural da Contenda e falecido em 1988, foi secretário de D. Teodósio Clemente de Gouveia, arcebispo-bispo da Arquidiocese de Lourenço Marques, teve um papel importante no apoio aos gauleses que pretendiam emigrar para a África do Sul, conseguindo os vistos e os contratos de trabalho necessários. Foi ainda administrador da igreja de S.to António dos Portugueses em Benoni, Joanes- burgo. Teodósio Clemente de Gouveia GCC • GCIH (São Jorge, Santana, Ilha da Madeira, 13 de Maio de 1889 — Lourenço Marques, 6 de Fevereiro de 1962) foi arcebispo de Lourenço Marques (desde 1941). Eexerceu as funções de bispo de Leuce e Prelado de Moçambique (1936). Os dados oficiais disponíveis atestam a evolução destes rumos da emigração madeirense após a Segun- da Guerra Mundial e evidenciam que os destinos se diversificaram, de acordo com a demanda de mão-de-o- bra e as oportunidades oferecidas pelos principais mercados de trabalho. No caso da África do Sul, tivemos 2526 saídas entre 1945 e 1949; 5118, entre 1950 e 1959; 579, entre 1960 e 1969; 683, entre 1970 e 1979. (ver anexo 5) DN. 1911.07.222, p.1 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 44
  • 45. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA OUTRAS MOBILIDADES A rota marítima que ligava a Madeira à África do Sul foi muito importante para estabelecer uma apro- ximação entre as duas regiões e permitir o transplante de inúmeras flores, muitas delas por iniciativa da co- munidade inglesa. Em sentido contrário, tivemos o envio, em 1906, de bananeiras para o Natal e certamente algumas das vinhas do Cabo não são alheias à Madeira. Na passagem para o séc. XXI, a riqueza das flores da Ilha deve muito a essa situação. Segundo o inventário de Rui Vieira, temos as seguintes: agapanthus praecox e agapanthus africanus (L.) Hoffmgg. ou agapanthus umbellatus L´Hérit. (agapantos, coroas de henrique); aloe arborescens, aloe ciliaris, aloe plicatilis, aloe arborescens Mill. (aloés, babosa, foguete-de-natal); amaryllis belladonna L.; antholyza aethiopica L. ou chasmanthe aethiopica (L.) N.E.Br.; arctotis stoechadifolia Berg.; DN.29.V.1920, p.4 Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 45
  • 46. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA asystasia bella; banksia integrifolia; bolus hy br.; calodendrum capense Thunb. (castanheiro do Cabo); carissa grandiflora A.DC.; gerbera jamesonii; clivia miniata e clivia nobilis (clívias); dombeia nyuica; encephalartos trispinosus e encephalartos transvenosus; eriocephalus africanus (alecrim da virgem); erythrina lysistemon (coralina cafra); euphorbia cooperi (eufórbia) e euphorbia ingens (eufórbia gigante); iboza riparia; kniphofia uvaria (L.) Hook. (foguetes); leonotis leonurus (L.) R.Br. (rabos de leão);leucospermum conocarpodendron (protea); melianthus major (arbusto do mel); ochna serrulata; oxalis purpurea L.; pandorea ricasoliana Tanf. ou podranea ricasoliana Sprague (trepadeira); phoenix reclinata(palmeira do Senegal); plumbago auriculata e plumbago capensis Thunb.; polygala mynifolia (pera doce); protea cynaroides (protea real); strelitzia alba, sterlitzia nicolai (estrelícia gigante) e strelitzia reginae Banks (estrelícias ou aves do Paraíso); scholia brachype- tala; senecio macroglossus DC. (trepadeira); tecomaria capensis Thunb. Spach (camarões); tibouchina semi- decandra (Schrank et Mart.) Cogn. (aranha); tritonia crocata (L.) Ker Gawl. (manuelas); Watsonia ardernei hort. (hastes de S. José); yucca gloriosa L. (iúca); zantedeschia aethiopica (jarros). No começo do novo milénio, na África do Sul, as culturas da cana e da vinha passaram a ter um papel relevante na economia do país. As relações favoráveis levam a que, durante algum tempo, a Madeira impor- tasse melaço daqui para suprir carências da Ilha. Tivemos, ainda, a permuta de variedades da agricultura industrial; ao nível da produção açucareira, com as variedades de cana elefante e bambu, Porto Mackay, rajada e yuba do Natal (1897)127 . Esta situação resultou do facto de a espécie existente na Ilha ter sido, em 1881-1882, alvo de um ataque pelo fungo conyothyrium melasporum. 127 Cf. VIEIRA, A. (2004). Canaviais, Engenhos, Açúcar e Aguardente na Madeira. Séculos XV-XX. Funchal. CEHA, p.135. Da Madeira a Cape Town, República da África do Sul 46