O documento discute os desafios enfrentados por pessoas com deficiência na sociedade brasileira. Ele apresenta o fundador de um movimento que luta contra o preconceito, e uma presidente de associação que defende os direitos das pessoas com deficiência. A especialista Claudia Matarazzo também é citada, discutindo a "invisibilidade" enfrentada e como as pessoas podem superar barreiras de atitude no convívio social.
1. CMYK A-26
Saber viver
Editora: Ana Paula Macedo
anapaula.df@diariosassociados.com.br
3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155
26 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, terça-feira, 22 de setembro de 2009
ano era 1998, e o paulistano Billy Saga ti-
O nha 20 anos, muitos sonhos e a vida quase
inteira pela frente. Em uma noite aparente-
mente comum, o futuro do jovem mudou
completamente. Uma viatura de polícia desrespei-
Portadores de deficiência se reúnem em torno de associações e movimentos para
garantir seus direitos e mudar a visão estereotipada que a sociedade tem deles
Unidos contra
tou o sinal vermelho atingindo em cheio a moto pi-
lotada por ele. Depois de semanas internado no
hospital, veio o diagnóstico: Billy não voltaria a an-
dar. Na adaptação à nova vida, o jovem conheceu
uma realidade complicada, com várias dificulda-
des e restrições, mas que não anulava os desejos e
ambições do rapaz.
Ele poderia ser apenas mais um entre os mais de
o preconceito
30 milhões de brasileiros que, segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pos-
suem algum tipo de deficiência. Mas o jovem deci-
diu que poderia fazer a diferença. “Quando eu vi a
maneira como as pessoas com deficiência são tra-
tadas no Brasil, percebi que o único caminho seria
lutar contra essa realidade. Ficar em casa me la-
mentando não ajudaria nada”, conta, hoje aos 31
anos. Billy é um dos fundadores do movimento Su-
perAção, que surgiu em São Paulo e já se expandiu Carlos Moura/CB/D.A Press
para outras cidades, como Rio de Janeiro e Santa
Fé, na Argentina.
Desde 2002, o movimento trabalha para mudar
a percepção que a sociedade tem das pessoas com
deficiência. “As pessoas têm uma imagem bastante
estereotipada da deficiência. Muita gente sente pe-
na, acha que não temos capacidades. Nós traba-
lhamos para mostrar que somos pessoas como
quaisquer outras”, conta. Entre as vitórias do movi-
mento, está a adaptação de praticamente toda a
Avenida Paulista, em São Paulo, para permitir o
acesso às calçadas para pessoas com dificuldade
de locomoção. Apesar da
melhoria, os desafios ain-
da são muitos. “Não
adianta acesso à calçada
se não conseguimos en-
trar nas lojas, nos restau- Quando eu vi a
rantes. O que foi feito ain-
da é pouco, mesmo com maneira como as
os avanços, a sociedade pessoas com
não sabe lidar com as pes- deficiência são
soas com deficiência.”
tratadas no Brasil,
Acessibilidade percebi que o
Quem compartilha da
único caminho
mesma opinião de Billy é seria lutar contra
Nilza Gomes, 50 anos, essa realidade.
presidenta da Associação
de Portadores de Deficiên-
Ficar em casa me
cia do Distrito Federal lamentando não
(APDDF). Para ela, as difi- ajudaria nada”
culdades começam ao sair
de casa: “Falta tudo. As Billy Saga,
pessoas não respeitam as um dos fundadores do
poucas vagas reservadas, movimento SuperAção
as filas especiais em ban-
cos em geral são mais len-
tas que as comuns, há poucas rampas, e as que
existem muitas vezes estão fora dos padrões
ideais”, enumera.
Ela ajudou a fundar a APDDF há 30 anos, depois
de ficar paraplégica em um acidente de carro. Se-
gundo ela, um dos maiores desafios é assegurar os
direitos já conquistados e lutar por outros. “A legis-
lação abre muitas brechas, e as pessoas aprovei-
tam. Na questão das filas especiais, por exemplo, é
muito comum pessoas que levam crianças no colo
unicamente para ter direito ao atendimento espe-
cial”, reclama.
Para Nilza, a falta de fiscalização e a desinforma-
ção abrem espaço para o desrespeito. “Muitos ór-
gãos e empresas procuram a associação com dúvi-
das sobre como agir”, conta ela, que também é con- Nilza Gomes criou uma associação para atender os portadores de deficiência: luta por direitos iguais
selheira de saúde de Taguatinga. “Aqui, tudo é ma-
quiado, fazem pequenas ações e acham que o pro-
blema está resolvido. As políticas ainda são muito
tímidas diante do que há por fazer”, conclui.
Desinformação >> entrevista CLAUDIA MATARAZZO
A especialista em comportamento Claudia Ma-
tarazzo mergulhou nesse universo para escrever o Carlos Vieira/CB - 18/5/06
Convívio
livro Vai encarar? — A nação (quase) invisível de pessoas com deficiência. São pessoas como nós,
pessoas com deficiência (Melhoramentos), lançado com os mesmos problemas, com as mesmas difi-
em junho deste ano. Durante meses, Claudia con- culdades, obviamente ampliados pela questão físi-
versou com diversas pessoas com vários tipos de ca. É muito interessante você perceber outras ma-
deficiência. Segundo ela, em todas as conversas as
pessoas foram unânimes: a sociedade ignora quem
tem deficiência (veja entrevista ao lado).
Para ela, a convivência com pessoas portadoras
enriquecedor neiras que as pessoas encontram de administrar os
mesmos problemas que a gente. Não estou dizen-
do que toda pessoa com deficiência tem uma su-
per-história de superação. Como em todo universo,
de deficiência pode ser muito rica para as duas par- Não é a mesma coisa? Essa foi a pergunta que a existem pessoas mais e menos interessantes, mas
tes. “É uma diversidade interessante, você pode especialista em comportamento Claudia Matara- fechando essa possibilidade você deixa de conhe-
aprender muito. São pessoas que têm os mesmos zzo fez à amiga e vereadora de São Paulo Mara cer uma diversidade que é muito enriquecedora.
problemas que nós, a limitação física só os poten- Gabrilli quando recebeu a sugestão de escrever um
cializa”, afirma, lembrando que problemas como livro orientando como se comportar diante de pes- A senhora disse que a convivência pode
acessibilidade ou dificuldade no mercado de traba- soas com deficiência. Durante as pesquisas, para a ser uma oportunidade de aprendizado.
lho atingem a todos. elaboração do livro Vai encarar? — A nação (qua- De que forma isso pode acontecer?
Nilza lembra, porém, que, mesmo com tantos se) invisível de pessoas com deficiência, ela des- À medida que fui fazendo a pesquisa para o livro,
desafios, muitas conquistas já foram conseguidas. cobriu que a sociedade não sabe conviver com a descobri alternativas de trabalho, softwares diferen-
Desde 2004 , por exemplo, todos os motéis do Dis- diversidade, e que, na maioria das vezes, as pes- tes, maneiras distintas de encarar situações que as
trito Federal são obrigados a oferecerem quartos soas preferem ignorar a existência dessa parcela pessoas com deficiência são obrigadas a viver e en-
adaptados e acessíveis. A iniciativa é inédita no da população. carar que a gente nem imagina que existam. Elas
país, e pode ser adotada em outros estados. Vários somos educados a não olhar, não perguntar, não são obrigadas a contornar todo tipo de situação o
outros direitos já foram assegurados por lei, como A sociedade em geral ainda tem apontar. Isso gera um adulto com uma barreira. Vo- tempo todo. Desde o banheiro que não é acessível
a reserva de mesas em restaurantes e praças de ali- resistência à pessoa com deficiência? cê é condicionado a não incomodar e acaba nem até a dificuldade no mercado de trabalho. É muito
mentação, caixa eletrônicos adaptados em todas as Só porque é diferente, a maioria das pessoas tem chegando perto dessas pessoas. Todos que entre- interessante você perceber outras maneiras de en-
agências bancárias, atendimento especializado preguiça de chegar perto, de se adaptar, fica aflita. A vistei deram depoimentos semelhantes : “As pes- frentar essas dificuldades, que são comuns a todos.
para deficientes visuais e auditivos em todos os simples presença de uma pessoa com deficiência soas desviam o olhar da gente”, “numa festa as pes- Quem hoje em dia não tem dificuldade no mercado
hospitais, além do atendimento prioritário em am- gera uma situação de constrangimento. E, na verda- soas não conversam com a gente”, “fingem que não de trabalho, por exemplo? Conhecer essas histórias
bulatórios e emergências. de, a convivência vai muito além disso. São 30 mi- estamos lá”. Imagine como deve ser passar a vida pode nos abrir novas possibilidades, novas manei-
A presidenta da APDDF é otimista ao analisar o lhões de pessoas, então não é mais uma questão de inteira invisível. Essa é a principal barreira, as pes- ras de lidar com os nossos problemas. E perceber-
futuro. “Em algumas áreas, como na preferência comportamento, é uma questão social mesmo. Esta soas perceberem que essa atitude de não invadir, mos que, muitas vezes, eles não são tão grandes as-
para o atendimento, as coisas realmente melhora- sociedade não enxerga que essas pessoas têm sim essa pseudo discrição, acaba criando uma barreira, sim, pois que existem pessoas em situações muito
ram. Vamos continuar lutando para que tenhamos uma limitação, por vezes séria, mas que não impos- uma segregação. mais complicadas e que lidam bem com isso.
os mesmos direitos de qualquer pessoa, para que sibilita o convívio social. Não são indivíduos “defi-
possamos levar uma vida normal, sermos conside- cientes”, são pessoas “com deficiência”, ou seja, gen- Então como as pessoas podem
rados realmente cidadãos.” te com uma limitação e não inteiramente limitada. contornar essa “invisibilidade”? www.correiobraziliense.com.br
As pessoas precisam se colocar no lugar da outra
Qual a principal dificuldade encontrada e perceber o quanto é ruim você passar uma vida
» Leia mais sobre portadores de deficiência na
página 44
por essas pessoas no convívio social?
A primeira barreira é a de atitude. É cultural. Nós
inteira despercebida. Depois, é importante perce-
ber o quanto se perde em deixar de conviver com as Ouça entrevista com Claudia Matarazzo
CMYK A-26